ACÓRDÃO Nº 396/2021
Processo n.º 376/21
3.ª Secção
Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Manuel António dos Santos impugnou, junto deste Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 103.º-D, n.º 1, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante designada por LTC), o «Acórdão proferido pela Comissão Nacional de Jurisdição do Partido Socialista», de 30 de março de 2021, que lhe aplicou a sanção de suspensão de eleger e ser eleito pelo período de dois anos.
2. O ora impugnante alegou o seguinte:
«[…]
II. Da Violação do Artigo 17.º, Número 8., do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, Consubstanciada na Aplicação de Sanção Disciplinar Inaplicável ao arguido, ora Impugnante
5.º
Foi aplicada ao ora Impugnante, Manuel António dos Santos, pela Comissão Nacional de Jurisdição do Partido Socialista, a sanção disciplinar de suspensão do direito de eleger e ser eleito pelo período de 2 (dois) anos (vide página 15., do Acórdão da Comissão Nacional de Jurisdição, que constitui o documento número 1., já junto à presente petição).
6.º
Ora, tal sanção encontra-se prevista no artigo 17.º, número 1.5., do já supracitado Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, no qual se dispõe:
“Os membros do Partido estão sujeitos à disciplina partidária, pelo que em caso de infração aos deveres a que estão sujeitos, podem ser-lhes aplicadas as seguintes sanções:
(…)
5. Suspensão do direito de eleger e ser eleito até dois anos.”
7.º
No mesmo artigo 17.º, número 8., do invocado Regulamento, determina-se, taxativamente, e sem qualquer margem para dúvidas interpretativas, o seguinte:
“A suspensão do direito de eleger e ser eleito até dois anos é aplicável por infração cometida por quem sendo dirigente do Partido manifeste grave e reiteradamente desrespeito à observância dos deveres de militância, em especial às deliberações tomadas pelos órgãos competentes.” (negrito e sublinhado nossos).
8.º
Ora, o Arguido e ora Impugnante, para além de não ter cometido nenhuma infração disciplinar e para além de não lhe terem sido concedidas as mais básicas e elementares garantias de defesa, tendo a instrução do processo disciplinar sido uma autêntica catástrofe e hecatombe em termos legais e processuais, tudo como infra amplamente se demonstrará, não exerce, nem exercia, à data dos factos que lhe são imputados, qualquer cargo de dirigente no Partido Socialista.
9.º
Sendo que a última vez que o ora Impugnante exerceu qualquer cargo dirigente no Partido Socialista foi no mandato do Secretário Geral António José Seguro, que cessou em 2014, tendo sido, a partir desse momento, militante de base, condição que mantém até à presente data.
10.º
Facto que é do conhecimento público e, natural e inegavelmente, do conhecimento do Partido Socialista, tanto mais que foi julgado, em primeira instância, pela Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, decisão da qual recorreu para a Comissão Nacional de Jurisdição, culminando tal recurso com a decisão ora impugnada.
11.º
Comissão Federativa de Jurisdição do Porto que instruiu e julgou, em primeira instância, o ora Impugnante, exatamente por este não ser dirigente, já que se o ora Impugnante, então Arguido, fosse dirigente, integrando os órgãos nacionais ou das Federações do Partido Socialista, a instrução e julgamento do processo disciplinar caberia exclusivamente à Comissão Nacional de Jurisdição, como resulta do disposto no artigo 4.º, número 4., do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
[…]
15.º
Não podendo, por essa razão, e em confronto com o disposto no já supra indicado número 8., do artigo 17.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, ser aplicável ao ora Impugnante, como erroneamente foi, a sanção de suspensão do direito de eleger e de ser eleito, pelo prazo de 2 (dois) anos.
16.º
Assim sendo, e face ao que fica supra exposto, terá forçosamente que ser declarada nula, por violação, manifesta e grosseira, do artigo 17, número 8., do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, a sanção disciplinar aplicada ao Arguido, ora Impugnante, sendo tal sanção, nos termos regulamentares previstos, inaplicável ao caso sub judice.
17.º
Nulidade que, desde já, se invoca, e que se requer seja declarada por esse Venerando Tribunal.
III. Dos Vícios do Procedimento Disciplinar e da Decisão IMPUGNADA
18.º
A decisão ora impugnada, tal como a decisão da primeira instância, é manifestamente inválida por, no procedimento que culminou na aplicação de sanção disciplinar ao ora Impugnante, terem sido violadas, de forma clara e flagrante, além do mais e como infra melhor se dilucidará, todas as formalidades essenciais e as mais elementares garantias de defesa do então Arguido, ora Impugnante, fazendo-se tábua rasa do disposto na Lei, nos Estatutos e no Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, numa manifestação que se está em crer, sob pena de total alienação do património e do ideário do Partido Socialista, ser única e irrefletida e não consubstanciar, por consequência, um sinal alarmante de degeneração democrática do Partido Socialista e de capitulação deste partido na já sinalizada e amplamente discutida corrosão dos partidos.
[…]
► Dos Vícios do Procedimento Disciplinar em Concreto
A. Da Ausência de Participação Disciplinar e da Violação do Artigo 25.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista
21.º
Compulsado o processo disciplinar, verifica-se inexistir qualquer participação disciplinar, tendo o processo na sua génese um e-mail remetido por “Catarina Faria”, junto a fls. 2., dirigido ao Exmo. Senhor Dr. Luciano Vilhena Pereira, do qual resulta expresso o seguinte:
“Por incumbência da secretária-geral Adjunta, Ana Catarina Mendes, envio o conteúdo da deliberação tomada na Comissão Permanente, pedindo-lhe a melhor atenção”.
22.º
Após a assinatura surge transcrito, no indicado e-mail, o seguinte texto:
“A Comissão Permanente do Partido Socialista, considerando a informação agora conhecida do arquivamento - atenta a intenção de não participar disciplinarmente da visada e sem prejuízo da compreensão que tal decisão do ponto de vista pessoal possa merecer - mas considerando que as declarações proferidas pelo militante Manuel dos Santos são, objetivamente, graves, atentatórias e vexatórias do Partido Socialista, da sua história, da sua Declaração de Princípios e dos seus Estatutos, porque eivadas de um preconceito rácico e misógino inaceitáveis no Partido; de uma linguagem e referências inapropriadas entre militantes e de uma intenção de ofensa censurável, delibera, por unanimidade:”
23.º
Tal e-mail foi reencaminhado para os serviços administrativos, pelo Exmo. Senhor Dr. Luciano Vilhena Pereira, digníssimo Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição do PS Porto, que determinou a sua autuação como processo disciplinar e a sua distribuição, encontrando-se a fls. 4., lavrado despacho, assinado pelo identificado Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição do PS Porto, datado de 23 de maio de 2018, com o seguinte teor:
“Face à participação que antecede autue como processo disciplinar e distribua pela ordem de sorteio recentemente efetuado.”
24.º
No que respeita à participação disciplinar, dispõe, expressamente, o artigo 25.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, o seguinte:
“1. O procedimento disciplinar depende da participação de órgão ou filiado do Partido no pleno gozo dos seus direitos.
2. A participação revestirá a forma escrita e deverá vir assinada com a indicação da morada ou sede do participante e ainda da sua Secção quando se trate da pessoa singular.
3. O participante deverá descrever sumariamente os fatos imputados e fornecer os meios de prova.
4. Verificando‑se que a participação não satisfaz os requisitos indicados nos números anteriores, deverá o participante ser notificado para a corrigir ou completar no prazo de cinco (5) dias sob pena de, não o fazendo, se ordenar o arquivamento do processo.”
25.º
Da supra citada disposição do Regulamento Disciplinar do Partido Socialista resulta uma primeira e inevitável conclusão: o órgão disciplinar não pode promover o procedimento disciplinar na ausência de participação disciplinar, por o procedimento disciplinar depender de participação de órgãos ou filiado do Partido no pleno gozo dos seus direitos.
26.º
Sendo que a existir tal participação disciplinar esta terá que obedecer aos requisitos expressamente definidos nos números 2., e 3., do artigo 25.º, supra transcritos, e, quando os não satisfaça, o participante deverá ser notificado para a corrigir ou completar no prazo de cinco dias, sob pena de, não o fazendo, se ordenar o arquivamento do processo.
27.º
Ora como se viu, no que respeita ao presente procedimento disciplinar, verifica-se que não consta do mesmo, qualquer participação disciplinar, ou seja, qualquer manifestação inequívoca de um militante do Partido Socialista, no pleno gozo dos seus direitos, ou de um órgão do Partido Socialista, da vontade de que seja iniciado um procedimento disciplinar contra o arguido.
28.º
Muito pelo contrário, do teor do e-mail, junto a fls. 2., que deu origem ao procedimento, resulta tão só, reitera-se que é pedida “a melhor atenção” para o conteúdo da deliberação tomada na Comissão Permanente que, a ter existido, o que não é do conhecimento do Arguido, não é transcrita e não consta dos autos de procedimento sub judice.
29.º
Mas, ainda que se considerasse o e-mail, junto a fls. 2., como participação disciplinar, sempre o mesmo não identifica o participante, não se encontra assinado e, sobretudo, não descreve sumariamente os fatos imputados ao Arguido, nem indica quaisquer meios de prova.
30.º
31.º
Impondo-se, do mesmo modo, o arquivamento do processo, caso tal correção não viesse a ocorrer.
32.º
Neste contexto, por o despacho proferido a fls. 4., a determinar a autuação do processo como disciplinar ser ilegal, por violação do disposto no artigo 25.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, deve ser determinada a sua anulação e, por consequência, a anulação de todos os atos subsequentes, designadamente a decisão ora impugnada.
33.º
É certo que no Acórdão, ora impugnado, no que respeita a esta matéria, se decide que a alegação do Arguido recorrente, ora Impugnante, não tem qualquer “cabimento” por, no recurso que apresentou, transcrever a decisão da Comissão Política Nacional, esquecendo-se o Arguido, na versão da decisão ora impugnada, de acrescentar o que da alegada “participação” constaria, como resulta da seguinte passagem do Acórdão: “Como refere o Recorrente no seu recurso, a Comissão Política decidiu que: (…)”, porém esqueceu-se de acrescentar o seguinte: “Participar à Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, para efeitos de instauração de um processo disciplinar às informações proferidas pelo militante n.º 4537.” (vide alíneas g) e h) constantes da página 10., do Acórdão, já junto à presente petição como documento número 1.)
34.º
Sucede que o então Recorrente, ora Impugnante, não se esqueceu de acrescentar nada, como erradamente se afirma no Acórdão, uma vez que a frase que no Acórdão se refere como tendo sido omitida: “Participar à Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, para efeitos de instauração de um processo disciplinar às informações proferidas pelo militante n.º 4537.” não consta do alegado e-mail que configurará a participação disciplinar, como resulta, inequivocamente, da cópia do processo disciplinar entregue ao ora Impugnante, vide fls. 1., a 5., do documento número 4., já junto à presente petição.
35.º
Nesta conformidade, dúvidas não existem que, dos autos de procedimento disciplinar, não consta qualquer participação disciplinar, o que importa que o procedimento disciplinar estivesse ferido, ab initio, de nulidade, por violação do artigo 25.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
B. Da Nulidade da Acusação
36.º
37.º
Estatuindo o número 1., do artigo 34.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista que: “O despacho de acusação deve especificar a identidade do arguido, os factos imputados, localizados no tempo em que ocorreram e acompanhados das circunstâncias em que foram praticados, caracterizar a infração imputada, indicar as normas infringidas e referenciar meios de prova, bem como fixar o prazo para apresentação da defesa.” (negrito e sublinhados nossos)
38.º
O despacho de acusação proferido no caso sub judice, como alegado em sede de defesa, não cumpre, sequer minimamente, as exigências contidas na norma referida no artigo anterior.
39.º
Com efeito, o despacho de acusação mais não configura que uma sequência de arguições genéricas, descritas de forma errática, confusa, e indefinida, sem serem devidamente ordenadas, nem mesmo circunstanciadas em razão de tempo lugar e modo.
40.º
Sendo impossível ao Arguido, ora Impugnante, ainda que usando de toda a boa vontade e recorrendo ao mais exaustivo esforço interpretativo, percecionar quais os concretos factos que lhe são imputados, bem como as circunstâncias de tempo, lugar e modo em que terão sido cometidos.
41.º
Tal é tanto mais grave quanto se considere que, no âmbito dos autos sub judice, se está no plano do Direito sancionatório, com vista à aplicação de uma sanção disciplinar, que, desde o início, vide fls. 2. do procedimento disciplinar é anunciada como sendo a de expulsão, no que representa o expoente máximo de subversão do princípio constitucional da presunção de inocência (cf., documento número 4., já junto à presente petição).
42.º
Por esse motivo, “(...) na medida em que as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, devem (...) em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se-ão os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo (...)”[1], ou citando o Acórdão do Tribunal Constitucional: “Mas, sobretudo, entendendo-se - como se entende - que no “bloco de legalidade” a que estão sujeitas as deliberações punitivas dos partidos se devem integrar, por força da sua aplicação direta, os comandos constitucionais pertinentes, em matéria de direitos liberdades e garantias - em particular, as garantias de audiência e defesa aplicáveis, nos termos do artigo 32.º n.º 10 da Constituição “em quaisquer processos sancionatórios” -, não pode deixar de se considerar lícita a invocação da violação desses preceitos na ação de impugnação prevista no artigo 103.º-D n.º 1 da LTC.”[2]
43.º
O que significa que, como seguramente será também defendido por um dos partidos políticos fundadores da nossa democracia, o Partido Socialista, em matéria de Direito sancionatório, importa respeitar ou observar o princípio de que ninguém pode ser condenado/sancionado sem que previamente lhe tenham sido facultados todas as garantias ou meios de defesa de molde a que esta se faça sem debilidades ou constrangimentos, beneficiando o arguido, ao longo de todo o procedimento, do princípio da presunção de inocência[3].
44.º
Sendo que o requisito primordial para que o agente visado no âmbito do Direito sancionatório possa cabalmente exercer a sua defesa, será o conhecimento, de forma clara e concreta, dos factos de que é acusado, permitindo que possa apresentar a defesa pertinente a esses mesmos factos, quer no sentido de provar que os não praticou e que, como tal, é inocente, quer com o objetivo de demonstrar que não se justifica a aplicação de sanções pelos alegados factos não constituírem infrações disciplinares.
45.º
Nas palavras de Marcello Caetano: “(…) a acusação deduz-se por artigos para tornar mais fácil a defesa. Cada artigo deve conter um facto imputado ao arguido, indicado «precisa e concretamente, com todas as circunstâncias de modo, lugar e tempo (...). (…) A acusação deve ser tal que o acusado inocente a possa cabalmente destruir: sem imputações vagas, sem factos imprecisos, sem arguições genéricas. (...). (…) A redação dos artigos da acusação corresponde ao ato mais delicado do processo disciplinar, visto que neles se fixa a matéria de facto sobre a qual, daí por diante, versará a discussão processual e que pode servir de base à decisão final. (…) Factos não articulados não poderão mais ser invocados contra o arguido ou fundamentar a sua condenação. E têm-se por não articulados os factos apenas insinuados ou obscura, vaga ou confusamente apresentados. (...) A “audiência do arguido” (...) compreende várias formalidades essenciais, a saber: a) Formulação clara e precisa de artigos de acusação (...)”[4].
46.º
Aliás, apenas poderá proceder-se ao correto enquadramento e qualificação jurídico-disciplinar da conduta do Arguido através da enumeração concreta e precisa dos factos que lhe são imputados.
47.º
Como se refere no supra citado Acórdão do Tribuna Constitucional: “A verdade, porém, é que, no caso, a garantia estatutária de audição prévia não se traduz apenas no direito do filiado a uma pronúncia sobre os factos que lhe são imputados. Esse direito, para ser efetivo, postula, desde logo certas exigências a cumprir pela peça acusatória, como sejam a de assentar em factos concretos identificados ou identificáveis, a de indicar os deveres ofendidos e a de valorar disciplinarmente as condutas sancionáveis.
Por outro lado, há-de proporcionar-se ao filiado a possibilidade de oferecer prova aos factos que alega em sua defesa.
Considerando, depois, a deliberação punitiva (bem como a que vier a decidir o recurso dela interposto) impõe-se de igual modo que ela esteja fundamentada, com a indicação dos factos provados e do seu enquadramento jurídico-disciplinar.
Tudo, aliás, é decorrência dos direitos de audiência e defesa garantidos, quer pelos estatutos, quer indiretamente pelo disposto no artigo 17.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 595/74.”
No mesmo sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20 de março de 2003, proferido no âmbito do Processo n.º 369/02: “(…) ao mesmo tempo, uma acusação assim lavrada, clara e precisa, acode à garantia de audiência e defesa prevista no artigo 269.º, n.º 3, da CRP, enquanto, por outro lado, obriga o órgão competente para a censura a uma mais cuidada e ponderada análise de todo o circunstancialismo dos factos em discussão, de maneira a não bulir com direitos de personalidade e de imagem de seriedade e de dignidade que todo o indivíduo tem de si mesmo e pretende salvaguardar. (…) É preciso não esquecer que por vezes a simples dedução do libelo é suficiente para a destruição do sentimento de honradez e de nobreza de caráter que o outro até então via no acusado: mesmo inocentado, mesmo que o procedimento disciplinar termine em nada, mesmo que não seja feita censura no final do processo, a circunstância de alguém até esse momento ter sido tocado pela lâmina de uma acusação disciplinar pode não mais apagar os vestígios de algo que o seu ego ferido sempre considerará achincalhamento e labéu vergonhoso. (…) Daí, o extremo cuidado na elaboração dessa peça procedimental. (…) Por isso, a acusação deve expor os factos um a um, circunstanciados, precisos, concretizados pelo modus operandi, pela indicação cabal das circunstâncias de modo, lugar e tempo em que tenham ocorrido, sob pena de nulidade insuprível e, portanto, de anulabilidade da decisão punitiva (…).” (negrito e sublinhado nossos)
48.º
A acusação proferida no âmbito do processo sub judice é vaga e imprecisa o que impediu o exercício do direito de defesa do Arguido, ora Impugnante, tendo como consequência necessária a nulidade insuprível da mesma, como nula será a decisão de primeira instância que acrescentou factos à acusação, que ponderou a bel prazer do relator, sem ter garantido, quanto aos mesmos, a audição prévia do arguido.
49.º
Veja-se, no sentido de todo o supra exposto, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 5 de dezembro de 2014, proferido no âmbito do Processo n.º 00185/11.0BECBR: “A enunciação de tais factos de forma vaga e imprecisa, impossibilitando o eficaz exercício do direito de defesa, equivale à falta de concessão deste direito, geradora da nulidade insuprível.
Relacionada com este princípio está a proibição de no Relatório Final se virem a dar como provados factos que não constavam da acusação, com base nos quais a autoridade administrativa aplica a sanção. Também nesta situação se estará perante nulidade insuprível resultante de falta de audição do Arguido (cf. Acórdãos. do S.T.A. de 26.9.96 e de 1.10.96, respetivamente in recurso n.º 28.054 e R. 31.378).
Lê-se no Acórdão nº 12868/03 do TCA-Sul de 09/06/2004: Diz-nos Eduardo Correia: “(...) na medida em que as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, devem (...) em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se-ão os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo (...)” (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Almedina, 1971, pág. 37.).
Por seu turno, José Beleza dos Santos sustenta: “(…) As sanções disciplinares têm fins idênticos aos das penas crimes; são, por isso, verdadeiras penas: como elas reprovam e procuram prevenir faltas idênticas por parte de quem quer que seja obrigado a deveres disciplinares e essencialmente daquele que os violou. (...) aquelas sanções têm essencialmente em vista o interesse da função que defendem, e a sua atuação repressiva e preventiva é condicionada pelo interesse dessa função, por aquilo que mais convenha ao seu desempenho atual ou futuro (...). No que não seja essencialmente previsto na legislação disciplinar ou desviado pela estrutura específica do respetivo ilícito, há que aplicar a este e seus efeitos as normas do direito criminal comum. (...)” (José Beleza dos Santos, Ensaio sobre a introdução ao direito criminal, Atlântida Editora SARL/1968, págs.113 e 116.).
50.º
51.º
Ora, a nulidade da acusação importa na anulação de todos os atos posteriores, mas assim se não decidiu na decisão ora impugnada, que pretende colmatar as omissões do despacho de acusação com o pretenso conhecimento pelo Arguido, ora Impugnante, do modo, lugar e tempo e demais circunstâncias da infração.
52.º
Se é verdade que o Arguido, ora Impugnante, supôs que o procedimento disciplinar se pudesse reportar a tweets que publicou, designadamente em 16.06.2017, tal convicção não obsta, para um pleno exercício do seu direito de defesa, que incumbisse ao “acusador”, sob pena de nulidade, sobretudo ao acusador que já havia inscrito na capa do procedimento disciplinar, aquando da sua autuação, a pena disciplinar de “expulsão”, concretizar os factos circunstanciadamente que integravam a violação dos deveres que configuravam as infrações cuja prática lhe imputava.
53.º
A acusação não se sustenta, nem é legalmente admissível que se sustente, na suposição do conhecimento que o Arguido detém dos factos que lhe são imputados e consubstanciam a infração disciplinar, como parece defender-se na decisão ora impugnada, antes constitui a delimitação do objeto processual com rigor, elencando os factos, caracterizando a infração, indicando as normas violadas e referenciando os meios de prova: já era assim, como vimos supra, no tempo dos ensinamentos de Marcello Caetano, em que ainda não sopravam os ventos democráticos que inspiram o ordenamento jurídico atual.
54.º
Ora a decisão impugnada, tal como a decisão de primeira instância, ao não declarar a nulidade da acusação, errou, já que tal vício se devia ter tido como verificado, o que importaria na anulação de todos os atos subsequentes, incluindo o da acusação.
55.º
Errou, porque adere à argumentação da decisão da primeira instância que, a este propósito, refere: “(…) quanto ao tempo é inequívoco que a infração ocorreu no dia 16.06.1917”[5] É o próprio arguido quem o diz na carta enviada ao processo e já referida”[6].
56.º
Ou seja, a acusação não indica as circunstâncias de tempo, mas foi o Arguido quem o disse na carta que enviou.
57.º
Para pouco depois, pasme-se, na decisão ora impugnada, se concluir que não existe “(…) qualquer nulidade do Despacho de Acusação, porquanto foi especificada a identidade do arguido, os factos imputados localizados no tempo em que ocorreram, acompanhados das circunstâncias em que foram praticados, caracterizada a infração imputada, indicadas as normas infringidas e referenciados os meios de prova, tendo sido fixado o prazo para apresentação da defesa, em consonância com os termos do n.º 1 do artigo 34.º do referido Regulamento Processual.”, tudo como resulta da decisão ora impugnada do qual se extraiu o excerto transcrito, vide p. 12., alínea g), do Acórdão já junto à presente petição como documento número 1.
58.º
Afinal, não foram indicadas na acusação as circunstâncias de tempo e lugar na acusação por o Arguido as saber e constarem da carta que este escreveu e no qual o mesmo refere que “supõe” tratar-se de tais tweets, como decorre do relatório final da Comissão Federativa de Jurisdição ao qual a Decisão ora impugnada adere, ou, pelo contrário, foram indicadas, como expressamente consta da decisão ora impugnada, as circunstâncias de tempo e lugar na acusação?
59.º
Tratando-se, no caso do despacho de acusação, de um documento imortalizado, por estar escrito, não será difícil verificar se assiste razão ao Arguido, ora Impugnante, ou se, pelo contrário, está correta a decisão recorrida ao rejeitar a arguição de nulidade da acusação.
60.º
Não havendo dúvidas, para qualquer declaratório normal, para qualquer pessoa comum, para qualquer militante, que a acusação é omissa, violando o disposto no número 1., do artigo 34.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, ao não indicar os fatos imputados, localizados no tempo em que ocorreram e acompanhados das circunstâncias em que foram praticados, ao não caracterizar a infração imputada, ao não indicar as normas infringidas pelo arguido e ao não fazer qualquer referência aos meios de prova.
61.º
Refira-se, ainda, que não estando indicada qualquer circunstância de tempo na acusação, nem resultando dos autos qualquer prova relativamente à data da publicação no twitter de qualquer tweet, já que apenas o Arguido, que publica centenas de tweets, se reporta a esta em termos temporalmente imprecisos, alegando que supõe tratar-se de publicação efetuada em tal data, não podia, como o foi na decisão de primeira instância, matéria de facto provada à qual adere o Acórdão ora impugnado, ter sido dado como provado que:
- “Em 16.06.2017 publicou no Twitter “Luísa Salgueiro, dita a cigana e não é só pelo aspeto, paga os favores que recebe com votos alinhados com os centralistas”, facto provado 2, a fls. 129 da decisão recorrida;
- E ainda “Luísa Salgueiro, desconhecida deputada em Lisboa, reside na Maia, é protegida por Costa e Pizarro e vais ser candidata à Câmara de Matosinhos.”
- E mais “Entre os deputados socialistas que votaram Lisboa com sede da Agência Europeia do Medicamento, esteve Luísa Salgueiro, dita a cigana.”
62.º
Sustenta-se no Acórdão, ora impugnado, que: “(…) a falta de indicação clara das circunstâncias de modo, tempo e lugar só seriam possíveis de constituir nulidade se o arguido não tivesse percebido de todo qual a infração de que é acusado.”, vide p. 11., alínea d) do Acórdão ora impugnado.
63.º
Ora, a interpretação preconizada no Acórdão ora impugnado do artigo 34.º, número 1., do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, no sentido de que a falta de indicação clara das circunstâncias de modo, tempo e lugar só seriam possíveis de constituir nulidade se o arguido não tivesse percebido de todo qual a infração de que é acusado é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e da presunção de inocência, consagradas no artigo 32.º, números 1., 2., e 10., da Constituição da República Portuguesa.
IV. Da Violação dos Direitos e Garantias de Defesa
64.º
O Arguido, ora Impugnante, no procedimento disciplinar, apresentou a sua defesa e requereu diligências probatórias no estrito cumprimento do disposto no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, no artigo 22.º, da Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), no artigo 8.º, número 1., alínea f), dos Estatutos do Partido Socialista e no artigo 36.º, número 2., do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
65.º
Alegou o então Arguido, em sede de defesa, além de outros, os seguintes factos, que infra se transcrevem[7]:
→ O Arguido é militante do Partido Socialista desde 8 de abril de 1975.
→ Tendo dedicado toda a sua vida ao serviço do Partido Socialista e do Estado Português, prestando uma constante e relevante contribuição para a “construção de uma sociedade livre, igualitária, solidária, económica e socialmente desenvolvida, ecologicamente sustentável”.
→ Pautando a sua conduta na vida pública, partidária, social, particular e familiar pelos princípios da liberdade, igualdade e solidariedade.
→ Sendo defensor daqueles princípios, nunca, em toda a sua vida, o Arguido teve ou defendeu qualquer atitude xenófoba ou discriminatória em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
→ Pelo contrário, sempre se pautou e lutou, de forma intransigente, pelo valor da igualdade, tal como constitucionalmente consagrado e repudiando toda e qualquer violação àquele princípio constitucional.
→ Conduta que sempre pautou o seu exercício em todos os cargos, ao serviço do Partido Socialista e do Estado Português, que desempenhou ao longo de mais de 40 (quarenta) anos, a saber:
a) Presidente da Federação do Porto;
b) Membro da Comissão Nacional;
c) Membro da Comissão Política Nacional;
d) Secretário Nacional, com Vítor Constâncio, Mário Soares e Jorge Sampaio;
e) Vereador na Câmara Municipal do Porto;
f) Vereador na Câmara Municipal da Maia;
g) Membro da Assembleia Municipal de Matosinhos;
h) Membro da Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia;
i) Secretário de Estado do Comércio no Governo de António Guterres;
j) Deputado à Assembleia da República entre 1980 e 2001;
l) Deputado Europeu entre 2001 e 2009 e 2016 e 2019.
→ Todos os cargos foram exercidos pelo Arguido enquanto militante e ao serviço do Partido Socialista.
→ O Arguido foi, ainda, membro de órgãos de administração de várias empresas privadas de importante relevância na economia nacional.
→ Em todas as funções desempenhadas pelo Arguido, quer no seio do Partido Socialista, quer ao serviço do Estado Português, ou, até mesmo, no âmbito do exercício de funções em entidades privadas, o Arguido sempre honrou os princípios fundadores do Partido Socialista, em defesa dos valores da democracia, da liberdade, da igualdade e solidariedade, da defesa e da promoção dos direitos humanos e da paz, da defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, do combate às desigualdades e discriminações fundadas em critérios de nascimento, sexo, orientação sexual, origem racial, fortuna, religião ou convicções, predisposição genética, ou quaisquer outras que não resultem da iniciativa e do mérito das pessoas, em condições de igualdade de direitos e oportunidades, e na defesa do Estado Social.
→ O Arguido sempre prestou total colaboração ao Partido Socialista e a todos os seus militantes ou simpatizantes.
→ Aliás, contrariamente ao que se refere no Despacho de Acusação, nem sequer no âmbito deste processo disciplinar, o Arguido se recusou a prestar colaboração, tendo, ao invés, solicitado que lhe fossem comunicados, por escrito, os factos que lhe eram imputados e as questões que se pretendia que por si fossem esclarecidas, tendo sobre tal requerimento recaído despacho de indeferimento da Senhora Instrutora do Processo, invocando-se a natureza secreta do processo até à acusação.
→ Não podendo deixar de referir-se que será, de todo, inaceitável que a natureza secreta do processo impeça que ao Arguido sejam comunicados os factos que lhe são imputados antes da sua audição, por constituir uma violação aos seus mais elementares direitos de defesa.
→ Do que decorrerá que a norma constante no número 1., do artigo 16.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, interpretada no sentido de não poderem ser comunicados ao Arguido os factos que lhe são imputados no processo disciplinar em que é visado, dada a natureza secreta do processo até à acusação, está ferida de inconstitucionalidade por violação do número 10., do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, o que desde já, expressamente, se invoca.
→ Ao longo de toda a sua vida partidária, o Arguido nunca foi visado ou condenado em qualquer processo disciplinar.”, tudo como melhor resulta da defesa apresentada pelo então arguido, constante do documento número 4., já junto à presente petição.
66.º
Para prova da matéria alegada na sua Defesa, nos artigos 23.º, 28.º, 29.º, e 36.º, acima transcritos, requereu o então Arguido que fossem oficiados os serviços do Partido Socialista para juntarem os documentos comprovativos de tais factos, por ser a estrutura do Partido Socialista que tem tais documentos na sua disponibilidade e em arquivo.
67.º
Sobre tal requerimento de prova não recaiu qualquer despacho, designadamente indeferindo, fundamentadamente, a requerida junção de documentos.
68.º
Sendo que foi com natural estupefação que o ora Impugnante foi notificado da decisão punitiva, proferida em primeira instância, quando ainda estava, em boa fé, a aguardar lhe fosse notificado o despacho a deferir a produção de prova ou a recusá-la, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 36.º, número 2., do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
69.º
Verificando, ao compulsar os autos do procedimento disciplinar, que não só não recaiu qualquer despacho de admissão ou de recusa no que concerne à prova documental que requereu fosse solicitada aos Serviços do Partido Socialista, como ainda se tomaram outras decisões arbitrárias, pouco consentâneas com o princípio democrático, relativamente às testemunhas, como infra melhor se detalhará.
70.º
O então Arguido arrolou três testemunhas, indicando, expressamente, que todas as testemunhas deveriam ser inquiridas à matéria constante nos artigos 23.º, a 32.º, da defesa:
“1. José Manuel Mesquita, […];
2. José Vilhena, […];
3. Ernesto Augusto Jorge Páscoa, […].”
71.º
No que respeita à testemunha José Manuel Mesquita, que foi notificado[8], por e-mail, para comparecer e ser inquirido na sede da Federação Distrital do Partido Socialista do Porto, sita na Rua Santa Isabel, n.º 82, no Porto, apresentou requerimento, igualmente por e-mail, alegando um contratempo que o impedia de viajar para o Porto e requerendo “que a inquirição se faça no âmbito do CFJ de Lisboa”, nos termos do disposto no artigo 29.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, artigo que transcreve na íntegra,[9] requerendo, ainda: “A segunda questão prende-se com a matéria que serei inquirido, porquanto – tanto quanto sei – não tenho conhecimento direto de nenhum facto que possa interessar à instrução. Assim, venho requerer que seja solicitado à CFJ de Lisboa a realização de inquirição sendo, para tanto, indicada a matéria a que terei que responder. Sendo que – obtida a concordância da camarada instrutora – me encarregarei de articular diretamente com a CFJ de Lisboa o melhor dia e hora para a realização da diligência entrando, para tanto, em contacto direto com o presidente da mesma.”
72.º
Não tendo merecido tal requerimento qualquer despacho da Instrutora, designadamente deferindo ou indeferindo o requerimento ou do mesmo dando conhecimento ao Arguido, que havia arrolado a testemunha, para se pronunciar.
73.º
Por sua vez, em data que não consta do procedimento disciplinar, é remetido novo e-mail à Instrutora pela testemunha de defesa arrolada, Dr. José Manuel Mesquita, com o seguinte teor:
“Cara Camarada Maria Raquel Feiteira
Na sequência da minha comunicação infra, venho reforçar e afirmar que não tenho conhecimento nem direto, nem indireto, dos factos que originaram este procedimento disciplinar, pelo que será isso que irei declarar nos autos, caso a minha presença e declarações venham a ser mantidas. Termos em que requeiro ser dispensado da prestação de declarações”[10].
74.º
O então Arguido que, reitera-se, havia arrolado a testemunha, na sua defesa, para ser inquirido a factos especificamente identificados e que indica taxativamente, não foi, mais uma vez, notificado também deste requerimento, designadamente para se pronunciar.
75.º
Decidindo a Instrutora, por sua exclusiva iniciativa, sem qualquer fundamento sério, em data que se desconhece, por não estar aposta no despacho, inscrito no próprio e-mail da testemunha, que “prescindia” da audição da testemunha, num despacho kafkiano com o seguinte teor:
“Perante a tomada de posição da indicada testemunha José Mesquita prescinde-se da sua audição por inutilidade superveniente da lide”, vide. procedimento disciplinar junto como documento número 4.
76.º
Registe-se que o fundamento para a Instrutora “prescindir” da testemunha, que foi arrolada pela defesa, é a “inutilidade superveniente da lide”: lide essa que não foi extinta, antes prosseguiu, tanto assim que culminou no Acórdão da Comissão Federativa de Jurisdição e, após recurso, no Acórdão ora impugnado.
77.º
- Não solicitando aos serviços do Partido Socialista os documentos indicados pelo Arguido, nem justificando a não produção de tal prova;
- “Prescindindo” da audição por inutilidade superveniente da lide da testemunha José Manuel Mesquita, sem que a lide, leia-se o procedimento disciplinar, se tenha extinto por inutilidade, e sem notificar o Arguido de tal despacho.
78.º
Atuação processual que revela o mais absoluto descomprometimento com a descoberta da verdade, com os legítimos direitos do Arguido, ora Impugnante, num procedimento disciplinar que indicia uma conduta persecutória que envergonhará, seguramente, qualquer estrutura do Partido Socialista ou qualquer democrata e que não mereceu censura no Acórdão ora impugnado.
79.º
E como se não fossem suficientes os narrados atropelos aos direitos e garantias de defesa do Arguido, tendo sido inquirida, por decisão unilateral e autocrática da Instrutora, apenas uma testemunha das três arroladas pela defesa e não tendo sido ordenada a junção dos documentos requeridos ao Partido Socialista, verte a Instrutora /Relatora, com uma falta de verdade confrangedora, o seguinte no Relatório Final, dado como reproduzido no Acórdão da Comissão Federativa de Jurisdição:
“Realizadas as diligências instrutórias da prova requerida pelo arguido na sua Contestação, nomeadamente ouvindo as testemunhas por ele indicadas e regulamente notificadas para apresentar o seu depoimento conclui-se pela seguinte valoração: (…)”
80.º
É certo que se propala, reiteradamente, que a sorte parece proteger os audazes, mas até a audácia reconhecerá a razoabilidade como limite do tolerável: se a Instrutora não ordenou a junção dos documentos e apenas inquiriu uma das três testemunhas arroladas, como pode considerar que realizou as diligências de prova requeridas pelo Arguido, nomeadamente ouvindo as testemunhas?! As testemunhas, quais testemunhas?!
81.º
Como pode omitir a Instrutora no Relatório Final, reproduzido no Acórdão, que o camarada José Manuel Mesquita requereu a sua inquirição no CFJ de Lisboa, para apenas fazer menção ao seu segundo requerimento.
82.º
Aliás, como pôde a Instrutora omitir à própria testemunha José Manuel Mesquita que os factos sobre os quais deveria recair o seu depoimento, indicados expressamente na defesa pelo Arguido, estavam relacionados com o percurso profissional e político do Arguido, com os princípios e com o ideário que este sustenta, com a sua militância no Partido Socialista e um conjunto de outros factos que a testemunha bem conhece, por ter trabalhado diretamente com o Arguido e já não com os tweets que este terá publicado e esses sim, se admita que a testemunha desconheça?!
83.º
E como pôde a instrutora concluir, como conclui, e consta do despacho junto ao procedimento disciplinar, que, perante o requerimento, reitera-se, perante a posição assumida no segundo requerimento apresentado pela testemunha José Manuel Mesquita, que subsistia “inutilidade deste depoimento para valoração da prova foi proferido despacho nos autos que prescindiu da audição desta testemunha”. (sic)
84.º
Mas então é a instrutora que ainda antes do depoimento ocorrer e sem comunicar à testemunha a matéria sobre a qual deverá recair o seu depoimento que afere da inutilidade para a valoração da prova e “prescinde” de uma testemunha que foi arrolada pela defesa?!
85.º
Não se inibindo, no êxtase persecutório que domina todo o processo disciplinar, sequer, de tecer considerações com base nas suas convicções íntimas, sem que se alicercem em factos carreados para os autos ou na prova produzida.
86.º
Referindo-se, a título exemplificativo, este excerto da decisão, que se reporta ao depoimento da única testemunha, Ernesto Jorge Páscoa, arrolada pela defesa, única testemunha, reitera-se, que logrou depor neste procedimento disciplinar e que, por confirmar os factos vertidos pelo Arguido na sua defesa, é brindado com os seguintes comentários, da exclusiva autoria, conforme resulta do confronto da passagem que se passa a transcrever com o auto de inquirição da testemunha, junto ao procedimento disciplinar:
“Valorada esta prova, não se considerou este depoimento completamente isento em virtude da longa relação de amizade entre o arguido e a testemunha e ainda porque a camarada Luísa Salgueiro foi a escolhida pela Federação do Porto para candidata à Câmara Municipal de Matosinhos, contrariando a vontade expressa da testemunha que como presidente da Concelhia pretendia ser ele o candidato a presidente da Câmara de Matosinhos.”
87.º
Não se vislumbrando, compulsada toda a matéria do procedimento disciplinar, desnudado o conteúdo de todas as suas páginas, o que possa ter fundamentado tão estranha convicção expressa pela Instrutora.
88.º
E a mesma relatora do relatório final do procedimento disciplinar que parece tanto saber de factos que não existem no processo, já curiosamente não dá como provado qualquer dos factos que constam da defesa, designadamente aqueles que, por serem factos do conhecimento público e notórios, não careceriam de prova, designadamente aqueles que se prendem com todos os cargos exercidos pelo Arguido, ora Impugnante, no Partido Socialista ou porque eleito nas listas do Partido Socialista.
89.º
Factos esses que, a serem dados como provados, como se impunha que fossem na decisão recorrida, configurariam circunstâncias atenuantes, nos termos do disposto no Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
90.º
Matéria que, de resto, integra a defesa e sobre a qual não só não se permitiu fosse produzisse a prova requerida pelo Arguido, como não se ordenou, sequer, a junção dos documentos que o órgão jurisdicional, oficiosamente, está obrigado a promover, como é o caso da ficha de inscrição do Arguido, em manifesta violação do disposto no artigo 30.º, número 1., do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
91.º
O que importou se desse, na decisão recorrida, convenientemente, como não provada toda a matéria alegada pelo Arguido, até o facto de não ter averbada qualquer sanção disciplinar, e sobre a qual não consentiu que se fizesse prova ou não promoveu oficiosamente as diligências de prova a que está obrigada.
92.º
Face ao exposto, é de mediana evidência que no procedimento disciplinar se violaram os mais elementares direitos e as garantias de defesa do então Arguido, designadamente os previstos no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, no artigo 22.º, da Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), no artigo 8.º, número 1., alínea f), dos Estatutos do Partido Socialista e no artigo 36.º, número 2., do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, pelo que se impõe a anulação da decisão.
93.º
O Acórdão ora impugnado, no que respeita às imputadas violações das garantias e direitos de defesa do Arguido, ora Impugnante, não só não as não reconhece, como se permite, o que se regista com pesar, desvalorizar tais atropelos, no que representa um esforço hercúleo para justificar injustificáveis violações à lei e ao regulamento disciplinar.
94.º
Efetivamente, no que respeita à falta de junção dos documentos pelo Partido Socialista ao procedimento disciplinar, nos termos requeridos pelo então Arguido em sede de defesa, entende-se no Acórdão ora impugnado:
“Porém tais documentos a existirem destinam-se a confirmar os factos que são do conhecimento público, que o Partido Socialista e os seus órgãos, nomeadamente a Comissão Federativa de Jurisdição tem pleno conhecimento, e que nunca foram colocados em causa”.
95.º
Para acrescentar: “Estes documentos pretendiam comprovar aquilo que é de todos conhecido, que o arguido é militante do PS desde 1975, exerceu os cargos indicados ao serviço do PS nunca foi visado ou condenado em qualquer processo disciplinar, que se concede e sempre se concedeu.”
96.º
Ora, tal afirmação, vertida no Acórdão ora impugnado, não corresponde de todo à verdade.
97.º
Efetivamente, todos os factos alegados na defesa apresentada pelo Arguido e para cuja prova foi requerida a junção aos autos dos documentos pelo Partido Socialista, não foram dados como provados no Acórdão da Comissão Federativa de Jurisdição.
98.º
E que tais factos não eram notórios, ainda que relevantes para a escolha e medida da sanção, como parece ser sustentado no Acórdão ora impugnado, decorre, desde logo, que o Acórdão da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto não só não dá esses factos como provados como na escolha e medida da sanção não valora nenhum desses factos, embora os mesmos sejam suscetíveis de integrar circunstâncias atenuantes.
99.º
É certo que nesta matéria, o Acórdão ora impugnado efetua uma relativa ponderação dos factos relativos às funções exercidas pelo então Arguido em representação do Partido Socialista, com referência à sua alegação no recurso apresentado pelo Arguido, e ora Impugnante, sem que contudo o Acórdão da Comissão Federativa de Jurisdição tivesse merecido qualquer reparo, designadamente por não ter dado como provados os factos “notórios” relativamente ao curriculum, às funções internas e externas exercidas pelo ora Impugnante em representação do Partido Socialista, não valorizando tais funções e todo o percurso político do mesmo, que sendo militante ativo do partido socialista, há mais de 46 anos, não tem averbada qualquer sanção disciplinar.
100.º
Já no que respeita à falta de inquirição das testemunhas arroladas na defesa, o Acórdão ora impugnado traduz o memorável exercício de acrobacia fático-jurídica.
101.º
Senão vejamos o que, nesta matéria, consta do Acórdão ora impugnado, quanto a cada uma das testemunhas arroladas na defesa apresentada pelo então Arguido:
“(…) d) Quanto às testemunhas arroladas é evidente o lapso em que o Recorrente ocorreu, uma vez que o saudoso militante José Vilhena, faleceu há já alguns anos, pelo que nunca poderia ter sido notificado.
e) Porém, do recurso apresentado, vem o arguido referir que o Dr. José Vilhena é Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto.
f) Ora, o Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, não é o Dr. José Vilhena, já falecido, como atrás se referiu, mas sim o Dr. Luciano Augusto B. Vilhena de Pereira.
g) Acresce que, mesmo que tivesse sido arrolado o Presidente da Comissão de Jurisdição, o que não aconteceu, nunca este poderia ser ouvido como testemunha, uma vez que era um dos membros que iria participar na decisão relativa ao processo disciplinar, havendo aqui total incompatibilidade legal para prestar declarações como testemunha.”
102.º
Ora, no que respeita ao lapso na indicação do nome, desde já se penaliza o ora Impugnante, que pretendendo indicar o Senhor Dr. Luciano Vilhena, como notoriamente foi apreendido pela Comissão Nacional de Jurisdição, no Acórdão ora impugnado, se equivocou na indicação do nome, indicando o Dr. José Vilhena.
103.º
Contudo, seja qual for o ângulo de análise, sempre se imporia uma decisão, no âmbito do procedimento disciplinar, quanto à inquirição de tal testemunha:
- Se a Comissão Federativa de Jurisdição considerasse que o Arguido indicou o Senhor Dr. José Vilhena, teria que notificar o Arguido da impossibilidade de notificar a testemunha arrolada por esta já haver falecido, por forma a que este, querendo, alterasse o seu rol de testemunhas;
- Se a Comissão Federativa de Jurisdição considerasse que a indicação do Dr. José Vilhena, ao invés da indicação do Dr. Luciano Vilhena, correspondia a um manifesto lapso[11], como decorre e foi apreendido no Acórdão ora impugnado, teria que inquirir este último, uma vez que, contrariamente ao alegado no Acórdão ora impugnado, não há qualquer “incompatibilidade legal” para que a testemunha que se pretendeu arrolar depusesse como testemunha, podendo, como é natural, o Presidente de um órgão jurisdicional depor como testemunha, ficando, quando preste declarações nessa qualidade, apenas impedido de participar na deliberação do órgão.
104.º
Neste contexto, o que não poderia acontecer, no âmbito de um procedimento disciplinar, foi o que aconteceu: não haver qualquer despacho a pronunciar-se quanto à testemunha que, inequivocamente, se pretendeu arrolar e os motivos da sua não inquirição.
105.º
Deixando aberta toda uma autoestrada intelectual para que por essa via de trânsito, em segunda instância, pudessem vir a transitar os mais diversos argumentos, desde a morte do Senhor Dr. José Vilhena à incompatibilidade legal do Senhor Dr. Luciano Vilhena em depor como testemunha.
106.º
E, se tal acrobacia não fosse per se memorável, já o que se refere no Acórdão ora impugnado, quanto à testemunha arrolada na defesa, pelo Arguido, ora Impugnante, José Manuel Mesquita, é um verdadeiro tsunami de repercussões imprevisíveis nos processos disciplinares e, por analogia, nos demais: a dispensa da inquirição da testemunha, a pedido desta, por declarar antecipadamente, sem ser confrontada com os factos sobre os quais deveria depor e com o conteúdo da defesa apresentada pelo arguido, que nada sabe sobre os factos.
107.º
Permitir-nos-íamos aqui perguntar sobre que factos é que a testemunha José Manuel Mesquita declarou nada saber.
108.º
Sobre os factos vertidos na acusação?
109.º
Ou sobre os factos vertidos na defesa, designadamente os factos sobre os quais a testemunha tem que ter conhecimento, por força do exercício de funções, designadamente por força do facto de ter sido chefe de gabinete do ora Impugnante e que se prendem com a seguinte factualidade vertida na defesa:
→ Sendo defensor daqueles princípios, nunca, em toda a sua vida, o Arguido teve ou defendeu qualquer atitude xenófoba ou discriminatória em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
→ Pelo contrário, sempre se pautou e lutou, de forma intransigente, pelo valor da igualdade, tal como constitucionalmente consagrado e repudiando toda e qualquer violação àquele princípio constitucional.
→ Conduta que sempre pautou o seu exercício em todos os cargos, ao serviço do Partido Socialista e do Estado Português, que desempenhou ao longo de mais de 40 (quarenta) anos,
110.º
Esta posição pioneira de “dispensa” de testemunhas, assumida no procedimento disciplinar, e validada no Acórdão ora impugnado que se absteve de declarar a nulidade invocada, a ter consagração doutrinária ou jurisprudencial será a principal medida de descongestionamento dos Tribunais, passando as testemunhas, aquando da sua notificação para comparecer em qualquer diligência de prova, a poderem, livremente, comunicar ao Tribunal que nada sabem sobre os factos ou de que estão indisponíveis para prestar declarações.
111.º
O que passaria a ser fundamento suficiente e bastante para se prescindir da sua inquirição, ademais sem audição da parte, ademais num processo sancionatório, que a indicou!
112.º
Ora, tendo em consideração o teor da defesa e os factos invocados em tal peça, designadamente nos artigos 24.º, a 32.º, a serem dados como provados, integram circunstâncias atenuantes da responsabilidade disciplinar, nomeadamente as constantes do artigo 22.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista:
- Militância ativa e antiga no Partido;
- Prestação de relevantes serviços ao Partido ou ao país;
- Passado iniludível de combatente antifascista ou de defesa dos princípios socialistas democráticos.
113.
Impunha-se, como é de mediana evidência, que fosse sobre tais factos que a testemunha José Manuel Mesquita fosse inquirida.
114.º
Até por ter conhecimento direto da ação do então Arguido, ora Impugnante, por este ter sido, além do mais, chefe de gabinete do ora Impugnante e dirigente do Partido Socialista.
115.º
Omitindo o Acórdão sub judice que tal testemunha não foi inquirida por a Relatora, por iniciativa própria, ter proferido despacho “prescindindo” da sua inquirição, concluindo-se no Acórdão da primeira instância que por “inutilidade deste depoimento para valoração da prova foi proferido despacho nos autos que prescindiu da audição desta testemunha”.
116.º
Já quanto à única testemunha inquirida, o Acórdão ora impugnado nada refere sobre a valoração efetuada no Acórdão recorrido, ao qual adere em sede de matéria de facto, e em que a desvalorização da isenção da testemunha se alicerça em factos que não constam do procedimento disciplinar ou do auto de inquirição (vide págs. 118., e 119., do auto de inquirição junto ao procedimento disciplinar), mas traduzem convicções íntimas, seguramente respeitáveis, mas íntimas da Relatora, que, extravasando o objeto do processo conclui, como se ela própria, a Relatora, fosse testemunha: “Valorada esta prova, não se considerou este depoimento completamente isento em virtude da longa relação de amizade entre o arguido e a testemunha e ainda porque a camarada Luísa Salgueiro foi a escolhida pela Federação do Porto para candidata à Câmara Municipal de Matosinhos, contrariando a vontade expressa da testemunha que como presidente da Concelhia pretendia ser ele o candidato a presidente da Câmara de Matosinhos.”
117.º
Compreendemos o embaraço jurídico que atravessou o Acórdão ora impugnado e que, quanto a esta testemunha, se limitou a concluir que: “Relativamente à testemunha Ernesto Jorge Páscoa, a mesma foi ouvida e o seu depoimento valorado pela instrutora do processo que procedeu à sua inquirição”, conforme resulta da alínea j), p. 13 do Acórdão ora impugnado.
118.º
Sobre a fundamentação histriónica da falta de isenção da testemunha, designadamente convocando a Instrutora, para fundamentar tal falta de isenção, um incidente sobre o qual a testemunha não depôs, que não consta do processo e que se desconhece se será verdadeiro, nem uma palavra se verteu no Acórdão ora impugnado, como se fosse normal o julgador extravasar o objeto do processo.
119.º
Face ao exposto, é de mediana evidência que se mantêm todos os vícios apontados ao procedimento disciplinar que inquinaram o Acórdão da primeira instância e contaminaram, do mesmo modo, o Acórdão ora impugnado, que se deverá considerar inválido.
120.º
Por último, mas nem por isso menos relevante, refira-se que o Acórdão proferido pela Comissão Federativa de Jurisdição do Porto é nulo, por se tratar de acórdão/decisão que não está assinado por qualquer membro da Comissão Federativa de Jurisdição, desconhecendo-se, por o mesmo não estar assinado, se o Acórdão foi objeto de votação e, em caso afirmativo, quais os membros da Comissão Federativa de Jurisdição que participaram na deliberação.
121.º
122.º
Nulidade da decisão que se impunha ser declarada na decisão ora impugnada, mas que não o foi, por se ter considerado que (vide p. 14., do Acórdão impugnado):
“b) Acontece que aquando da elaboração do Parecer e Relatório Final, a 10/05/2020, o país estava em plena pandemia e confinamento geral.
c) Por essa razão, que é do conhecimento público e notório, foi feito circular pelos membros da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto em funções, o Relatório Final, tendo todos eles manifestado a sua concordância e aprovação do mesmo.
d) Pelo que não foi o Acórdão assinado face à questão pandémica.
e) Porém, consta dos autos o despacho do Sr. Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, em que confirma a razão pela qual o Acórdão não foi assinado presencialmente, e em anexo a ata da deliberação do Acórdão e os respetivos e-mails com a aprovação, por escrito, de cada um dos membros em funções.”
123.º
Ora, como é de mediana evidência, subsiste a nulidade invocada uma vez que o Acórdão da primeira instância não foi assinado, sendo, por consequência, nulo, nos termos do artigo 40.º, número 2., do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, o que sempre importará na nulidade de todos os atos subsequentes, designadamente do Acórdão ora impugnado.
124.º
Não sendo relevante o facto de estar em curso uma pandemia, já que foi por opção da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, e da sua exclusiva responsabilidade, a prolação do Acórdão numa altura em que estava em curso, como ainda está, uma pandemia.
125.º
Realce-se ainda que, à data, estavam até suspensos os prazos processuais, bem ainda os prazos de caducidade ou de prescrição, por força da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o que sempre permitiria adiar a aprovação e assinatura do Acórdão para momento ulterior.
126.º
Aliás, a falta de sustentação do Acórdão ora impugnado, ao indeferir a nulidade decorrente da falta de assinatura do Acórdão de primeira instância, decorre, desde logo, do facto de a situação pandémica se manter, como invocado nesse mesmo Acórdão, mas o mesmo ter sido assinado por todos os membros da Comissão Nacional de Jurisdição, não tendo a situação pandémica obstado ao cumprimento de uma formalidade tão essencial que se encontra cominada com a nulidade da Decisão, no Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
127.º
Realce-se ainda que, ao Arguido foi facultada, a requerimento deste, após a notificação do Acórdão de primeira instância, cópia integral do procedimento disciplinar, numerado e rubricado, cópia já junta à presente petição como documento número 4., sendo que de tais autos não constavam, ainda que irrelevantes para a apreciação da nulidade sub judice, o despacho e as comunicações referenciadas no Acórdão ora impugnado.
128.º
Constando dos autos, todos numerados e rubricados, a fls. 121 a 131, o Relatório Final, que está por assinar, a fls. 131, o Acórdão, sem a aposição de qualquer assinatura, constando, ainda, a fls. 132., cópia do ofício de notificação do Acórdão ao ora Impugnante e documentos subsequentes, tudo como melhor resulta do documento número 4., já junto com a presente petição.
129.º
130.º
Ora, sendo nulo o Acórdão da primeira instância, deverá tal nulidade ser conhecida e declarada, anulando-se todos os atos subsequentes, designadamente o Acórdão ora impugnado.
V. Dos Factos Provados e da Desproporcionalidade da Sanção Aplicada
131.º
Do Acórdão ora impugnado, que não altera a matéria de facto dada como provada no Acórdão da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, resulta que foram dados como provados os seguintes factos, no que respeita à infração disciplinar:
“1. O arguido é militante do partido socialista desde 8 de abril de 1975.
2. Em 16.06.2017 publicou no Twitter “Luísa Salgueiro, dita a cigana e não é só pelo aspeto, paga os favores que recebe com voto alinhados com os centralistas.”
3. E ainda “Luísa Salgueiro, desconhecida deputada em Lisboa, reside na Maia, é protegida por Costa e Pizarro e vai ser candidata à Câmara de Matosinhos.”
4. E mais “Entre os deputados socialistas que votaram em Lisboa com sede da Agência Europeia do Medicamento, esteve Luísa Salgueiro, dita a cigana.”
5. O arguido tinha conhecimento aquando das publicações no Twitter referidas que a sua camarada Luísa Salgueiro havia sido indigitada pelos órgãos competentes e legítimos do Partido Socialista para Candidata a Presidente da Câmara de Matosinhos.
6. Provado ainda que a ECRI (Comission Eurpéenne contre le Racisme et L’ Intolérance) incluiu no seu Relatório anual sobre o racismo e a intolerância o seguinte: “No dia 16 de junho de 20017, o membro do Parlamento Europeu do Partido Socialista (MPE) Manuel dos Santos, incorreu em atitudes “anticiganistas” num Tweet no qual insultava outra MPE 24.”
132.º
Sem prejuízo de lhe ter sido vedada a prova dos factos que verteu na sua defesa e consubstanciam factos relevantes, que afastariam a punibilidade da sua conduta, foi ainda considerado no Acórdão impugnado, que o ora Impugnante exerceu, ao serviço do Partido Socialista e do Estado Português, ao longo de mais de 40 (quarenta) anos, as seguintes funções /cargos:
a) Presidente da Federação do Porto;
b) Membro da Comissão Nacional;
c) Membro da Comissão Política Nacional;
d) Secretário Nacional, com Vítor Constâncio, Mário Soares e Jorge Sampaio;
e) Vereador na Câmara Municipal do Porto;
f) Vereador na Câmara Municipal da Maia;
g) Membro da Assembleia Municipal de Matosinhos;
h) Membro da Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia;
i) Secretário de Estado do Comércio no Governo de António Guterres;
j) Deputado à Assembleia da República entre 1980 e 2001;
l) Deputado Europeu entre 2001 e 2009 e 2016 e 2019.
133.º
Ao proferir as declarações que constam do processo disciplinar, o ora Impugnante nunca teve qualquer intenção de visar, pessoalmente, a destinatária de tais declarações, sendo que as mesmas foram proferidas no âmbito do debate político e da divergência de opiniões, ao abrigo do direito à liberdade de expressão, constitucionalmente consagrado, nos termos do artigo 37.º, da Constituição da República Portuguesa, sendo que não resulta indiciado que assim não fosse, tanto mais que no procedimento disciplinar não resulta produzida qualquer prova em sentido diverso.
134.º
Nos termos do artigo 22.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista:
“São circunstâncias atenuantes da responsabilidade disciplinar, entre outras, as seguintes:
- Militância ativa e antiga no Partido;
- Prestação de relevantes serviços ao Partido ou ao País;
135.º
Ora, de acordo com o artigo 13.º, dos Estatutos do Partido Socialista:
“Os membros do Partido estão sujeitos à disciplina partidária, pelo que em caso de infração aos deveres a que estão sujeitos, podem ser-lhes aplicadas as seguintes sanções, por ordem de gravidade:
a) Advertência;
b) Censura;
c) Cessação de funções em órgãos do Partido;
d) Suspensão até um ano;
e) Suspensão do direito de eleger e ser eleito até dois anos;
f) Expulsão.”
136.º
Determinando o artigo 20.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, que:
“Na aplicação das penas deve atender-se aos antecedentes disciplinares do Arguido, à natureza e consequências da infração, ao grau de culpabilidade e a todas as demais circunstâncias agravantes e atenuantes.”
137.º
Na aplicação concreta de uma pena disciplinar, deve atender-se ao princípio da proporcionalidade, considerando o desvalor de ação do agente, o desvalor de resultado ou das consequências da sua atuação em função daquilo que seria o comportamento devido e o grau de ilicitude e de culpa do agente demonstrados pela factualidade provada no caso concreto.
138.º
O princípio da proporcionalidade integra, com é amplamente sabido, o subprincípio da adequação, o subprincípio da exigibilidade e o subprincípio da justa medida ou da proporcionalidade em sentido estrito, sendo que este último impede que se adotem medidas excessivas ou desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos.
139.º
No que respeita ao subprincípio da justa medida o que está em causa é “a relação concretamente existente entre a carga coativa decorrente da medida adotada e o peso específico do ganho de interesse público que com tal medida se visa alcançar”[12].
140.º
Ou seja, in casu, não existe qualquer relação atendível entre os factos praticados pelo ora Impugnante, reitera-se, sem qualquer intenção de prejudicar, ofender ou vilipendiar e sem qualquer intenção racista, xenófoba ou ciganófoba, e a sanção aplicada de suspensão de eleger e ser eleito pelo período de 2 anos[13], havendo, clara e manifestamente, uma desproporção injustificada e intolerável, na aplicação de tal sanção ao ora Impugnante.
141.º
Nunca se tendo provado, no âmbito do processo disciplinar movido ao então Arguido, que o mesmo tivesse tido qualquer intenção ou propósito racista, xenófobo ou ciganófobo, até por nesse mesmo processo não ter sido produzida qualquer prova que sustentasse a acusação.
142.º
Ora, atendendo-se aos critérios de escolha da sanção a aplicar, não poderá deixar de se concluir que, a equacionar-se, embora tal nem sequer se conceba, que alguma pena devesse ser aplicada ao ora Impugnante, pelos factos praticados, nunca se poderá admitir, face aos factos em análise, face à prova produzida e atendendo às circunstâncias atenuantes, a aplicação da pena de suspensão do direito de eleger ou ser eleito pelo período de dois anos, por tal aplicação ser manifestamente ilegal e indubitavelmente abusiva no caso sub judice.
Nestes termos e nos mais de Direito deve a presente ação ser julgada procedente, e, por consequência, devem ser conhecidas e declaradas as nulidades verificadas no procedimento disciplinar, designadamente por violação das garantias de audição e de defesa do ora Impugnante, vício procedimental que determina a invalidade dos termos posteriores do processo, com a anulação das decisões subsequentes, designadamente da Decisão ora impugnada.
Assim se não entendendo, sempre deverão ser conhecidos e declarados os demais vícios supra elencados, anulando-se a decisão ora impugnada.
3. O Partido Socialista foi citado para responder à ação de impugnação contra si movida, tendo-o feito nos seguintes termos:
«1º. Do pedido formulado decorre que o impugnante, com a presente impugnação, pretende questionar o acórdão da Comissão Nacional de Jurisdição do Partido Socialista (CNJ) de 30 de março de 2021, que determinou aplicação da sanção de suspensão de eleger e ser eleito pelo período de 2 anos,
2º. Decisão essa notificada ao impugnante em 16 de abril de 2021, conforme o mesmo alega no artigo 1º do seu articulado.
3º. A presente ação foi apresentada em juízo em 20 de abril de 2021 (DOC.1).
4º. Tendo sido respeitado o disposto no n.º 4 do artigo 103.º- C, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), por remissão do nº 3 do artigo 103-D do mesmo diploma, a petição pela qual se impugnam as decisões punitivas dos respetivos órgãos partidários, tomadas em processo disciplinar, deve ser apresentada no Tribunal Constitucional no prazo de cinco dias a contar da notificação da deliberação do órgão que, segundo os estatutos, for competente para conhecer, em última instância, da validade ou regularidade do ato impugnado.
5º. A decisão em causa foi tomada pela CNJ e sempre se dirá que, a decisão punitiva de suspensão de eleger e ser eleito pelo período de 2 anos ao ora impugnante não merece qualquer censura, pois que o respetivo processo disciplinar observou os comandos constitucionais em matéria de direitos, liberdades e garantias, em particular as garantias da audiência e defesa aplicáveis e nos termos do artigo 32º, nº 10 da Constituição, não violando qualquer regra estatutária e observando em tudo a lei aplicável.
6º. Carecendo a presente impugnação ostensivamente de fundamento jurídico.
7º. O ora impugnante joga com as palavras, pois parece invocar, ou invoca mesmo no artigo 7º e seguintes do seu articulado que “… a suspensão do direito de eleger e ser eleito até dois anos, é aplicável por quem sendo dirigente do Partido …” e que “… não exerce, nem exercia, à data dos factos que lhe são imputados, qualquer cargo de dirigente do Partido Socialista…”
8º. De facto, à data da prática dos factos – 16/06/2017 – o ora impugnante não era dirigente, mas exercia as funções de Deputado junto do Parlamento Europeu;
9º. Contudo, a sanção ora aplicada pela CNJ de suspensão de eleger e ser eleito pelo período de 2 anos, em vez da sanção de expulsão, nada tem a ver com a qualidade de dirigente ou não dirigente do PS do ora impugnante;
10º. Antes sim, teve em conta as diversas circunstâncias atenuantes para redução da pena, como seja o currículo e as funções políticas desempenhadas em nome do Partido Socialista as quais tiveram a devida valoração, e neste sentido remetemos para as conclusões da decisão da CNJ (DOC.1 junto com a P.I.), sob impugnação e que se transcreve:
“Da matéria apurada nos presentes autos e por todos os argumentos aduzidos, parece-nos que os factos praticados pelo ora arguido Manuel António dos Santos são muito graves, e sem dúvida alguma causaram sérios prejuízos ao Partido Socialista, quer no âmbito nacional como internacional, integrando o conceito do artº 10º nº 2 e artº 19º do Regulamento Processual e Disciplinar e artº 13º nº 2 dos Estatutos do Partido Socialista, para efeitos de aplicação de pena mais grave, acrescido do facto de o arguido ter também violado o artº 30º nº 3 do aludido Regulamento.
Porém, e nos termos do artº 20º do acima citado Regulamento, deverá atender-se aos antecedentes disciplinares do arguido, à matéria da infração, ao grau de culpabilidade e a todas as circunstâncias agravantes e atenuantes.
Nesse sentido, o arguido é detentor de um curriculum partidário vasto, com o exercício de diversas funções internas e externas em representação do Partido Socialista, conforme alegado no seu recurso, e que aqui damos por integralmente reproduzidas, currículo esse que foi devidamente tido em consideração, entendendo-se que tais factos constituem circunstâncias atenuantes que devem ser atendidas, pelo que nos parece, apurados os factos e analisada a medida da pena, que deverá ser aplicada ao arguido a pena de suspensão do direito de eleger e ser eleito até dois anos, nos termos do artº 13º, nº 1, alínea e), dos Estatutos do Partido Socialista, do nº 2 do artº 10º, alínea e), do nº 1 e nº 8 do artº 17º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, em virtude do sério prejuízo causado ao Partido Socialista e à forma reiterada como não cumpriu com as obrigações de apresentação para tomada de declarações no decurso do processo disciplinar, com as atenuantes já acima referidas, nomeadamente a valoração das funções e do percurso político do arguido.”
11º. Ademais, convém referir que, todos os membros do Partido estão sujeitos à disciplina partidária, pelo que em caso de infração aos deveres a que estão sujeitos, podem ser-lhes aplicadas as seguintes sanções, por ordem de gravidade, e dispõe quanto a esta matéria o artigo 13º n.º 1 al. e) dos Estatutos do PS, cfr. se transcreve:
“e) Suspensão do direito de eleger e ser eleito até dois anos;”
12º. Ou seja, a sanção ora aplicada pela CNJ ao impugnante está prevista nos Estatutos do PS e a mesma é aplicável a qualquer militante, sem qualquer restrição de aplicação.
13º. Contudo, a norma constante do artigo 17º n.º 8 do regulamento é norma especial para os dirigentes, que se aplica sempre que um dirigente incorra numa infração aí especificada, e como tal é-lhe aplicada uma sanção.
14º. Logo somos forçados a concluir que não existe qualquer violação, não podendo por isso a presente sanção ser declarada nula.
II. Vícios do procedimento disciplinar e da decisão impugnada:
15º. Defende o impugnante, como aliás já defendeu em sede de defesa, que as normas dos vícios do procedimento disciplinar, em concreto do artigo 25º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, foram violadas pela ausência de participação disciplinar.
16º. Neste sentido remetemos para o já alegado em sede de relatório final da CNJ referindo apenas que a participação foi efetuada pela Comissão Permanente do Partido Socialista, órgão do Partido.
17º. Essa participação reveste a forma escrita, com descrição dos factos e com documentos comprovativos das declarações do ora impugnante, efetuados através dos tweets emitidos a 16/06/2017.
18º. O próprio impugnante reconheceu ao longo do procedimento disciplinar e reconhece agora que proferiu tais declarações, como também as situa no tempo e lugar.
19º. Logo, cabe à Comissão Federativa de Jurisdição apurar os factos e concluir por eventual sanção a aplicar.
20º. Face ao descrito não existe qualquer violação do artigo 25º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, nem mesmo qualquer nulidade da acusação.
21º. Uma vez que, que a acusação está claramente explicitada, descrita por números, nos quais são indicados todos os factos de que o impugnante vem acusado, e que constam do relatório final da Comissão Federativa de Jurisdição, e da decisão final ora impugnada para as quais remetemos.
22º. E só seriam possíveis de constituir nulidade se o arguido/impugnante não tivesse percebido de todo qual a infração de que é acusado.
23º. É o próprio impugnante que afirma e confirma ao longo de toda a defesa e mesmo agora em sede de impugnação, o total e perfeito conhecimento dos factos de que era acusado, para além de constar da acusação a identificação da data e dos seus comportamentos, que estão devidamente plasmadas nos documentos juntos aos autos.
24º. Assim conclui-se que não existe qualquer nulidade do despacho, pois foi especificada a identidade do arguido, os factos imputados localizados no tempo em que ocorreram, acompanhados das circunstâncias em que foram praticados, caracterizada a infração imputada, indicadas as normas infringidas e referenciados os meios de prova, tendo sido fixado o prazo para apresentação da defesa, tudo em consonância com os termos do nº 1 do artigo 34º do referido regulamento.
25º. Pelo que somos forçados, a conclui pela total improcedência da exceção de nulidade.
26º. Contudo, vem agora, em sede de impugnação, o impugnante referir que a infração de que vem acusado é inconstitucional por violação das garantias de defesa e da presunção de inocência, consagradas no artigo 32º n.º 1, 2 e 10 da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos se faz algum sentido a invocada inconstitucionalidade:
27º. O artigo 32º da Constituição da República Portuguesa tem por epígrafe: (Garantias de processo criminal), bem sabendo que o nº 1 refere: «O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso». Já o nº 2 daquele inciso constitucional: «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa». “Last but not least”, refere o nº 10: «Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa».
28º. Ora, as alterações destas normas constitucionais resultaram da revisão constitucional de 1989, especificamente em relação aos processos contraordenacionais, posteriormente alargada a todos os processos sancionatórios aquando da revisão de 1997.
29º. Tendo como objetivo, assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao atual artigo 269.º, n.º 3 da CRP).
30º. Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade[14].
31º. É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de assegurar ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal[15]”
32º. Tal significa que a pretensão do ora impugnante claudica na parte em que pretende a aplicação dos princípios do direito criminal, ao processo disciplinar que aqui nos ocupa, com todos os formalismos que o processo criminal exige, tendo em conta o tipo de bens jurídicos protegidos, a anos luz dos objetivos prosseguidos com o processo disciplinar instaurado pelo Partido Socialista.
33º. Isto porque o arguido teve ocasião de conhecer os factos imputados, no tempo, local e total abrangência, conforme consta dos autos, apresentou defesa a todos os factos imputados e os mesmos foram apreciados em sede de instrução.
Convém ainda referir,
III. Violação dos direitos e garantias de defesa:
34º. Alega o impugnante que apresentou defesa e requereu diversas diligências probatórias, mas que não foram juntos aos autos documentos requeridos no âmbito do processo disciplinar.
35º. Conforme referido em sede de processo disciplinar, tais documentos a existirem destinam-se a confirmar os factos que são do conhecimento público (é o próprio impugnante que declara nos artigos 124º e 125º do recurso), que o Partido Socialista e os seus órgãos, nomeadamente a Comissão Federativa de Jurisdição tem pleno conhecimento, e que nunca foram colocados em causa.
36º. Estes documentos pretendiam comprovar aquilo que é de todos conhecido, que o impugnante é militante do PS desde 1975, exerceu os cargos indicados no artigo 65º da presente impugnação, ao serviço do PS nunca foi visado ou condenado em qualquer processo disciplinar, que se concede e sempre se concedeu.
37º. Quanto às testemunhas arroladas é evidente o lapso em que o impugnante ocorreu, uma vez que o saudoso militante José Vilhena, faleceu há já alguns anos, pelo que nunca poderia ter sido notificado. Por este facto o ora impugnante se penaliza.
38º. Quanto às outras testemunhas arroladas - José Manuel Mesquita e Ernesto Páscoa, remete-se para tudo o que foi alegado em sede de relatório final.
39º. Mantendo-se tudo o que foi afirmado em sede de relatório final, ou seja, que a exposição apelando aos mais profundos princípios democráticos e eivada de considerações políticas sobre a violação dos valores prosseguidos pelo Partido Socialista e das garantias de defesa do arguido, caem pela base quando se vislumbra que tais diligências poderiam eventualmente prosseguir intuitos puramente dilatórios.
40º. Pelo que, tem de improceder a presente exceção.
Refere ainda, o impugnante, que
41º. O acórdão da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto é nulo, por não estar assinado por qualquer membro dessa mesma Comissão.
42º. Como já referido, aquando da elaboração do Parecer e Relatório Final, a 10/05/2020, o país estava em plena pandemia e em confinamento geral, motivo pelo qual, foi feito circular pelos membros da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto em funções, o Relatório Final, tendo todos eles manifestado a sua concordância e aprovação do mesmo, como aliás já foi referido em sede de relatório final e para o qual remetemos.
43º. Assim, mais uma vez a presente exceção tem que improceder, pois que foi confirmada a concordância e aprovação do referido Acórdão por todos membros da Comissão Federativa de Jurisdição, que não foi assinado presencialmente pelas circunstâncias excecionais de confinamento que o país atravessava e que infelizmente ainda perduram até à presente data.
Por último,
44º. Dá-se aqui, como reproduzido, para os devidos e legais efeitos, o teor do acórdão da CNJ ora impugnado, e que constitui o documento nº 1 junto com a ação pelo impugnante, cujos fundamentos de facto e de direito nele vertidos justificam a decisão tomada de aplicar ao ora impugnante, a sanção de suspensão de eleger e ser eleito pelo período de 2 anos,
45º. Sendo que a sanção, decretada pelo órgão competente, CNJ, que é estatutária e regulamentar, decorre do facto de ter ficado provado no processo, que o impugnante,
46º. Ao atuar da forma que atuou, praticou atos disciplinarmente ilícitos, seja na sua forma, seja no seu conteúdo, que não podem deixar de envolver juízos de censura e reprovação, já que praticados com culpa grave.
Na verdade,
47º. O impugnante, cometeu infração disciplinar grave, causando sério prejuízo ao prestígio, ao bom nome, à credibilidade, honorabilidade e imagem pública do Partido Socialista, quer no âmbito nacional como internacional.
48º. Comportamento que constitui grave violação dos deveres de disciplina partidária, integrando o conceito de “falta grave” previsto no artigo 10º, nº 2 e no nº 1 do artigo 19º do citado Regulamento Processual, e artigo 13º n.º 2 dos Estatutos do Partido, para efeitos de aplicação de pena mais grave, acrescido do facto do impugnante ter também violado o artigo 30º nº 3 do aludido Regulamento.
49º. Contudo, e atento ao disposto no artigo 20º do regulamento supra, deve atender-se aos antecedentes disciplinares do impugnante, à matéria da infração, ao grau de culpabilidade e a todas as circunstâncias agravantes e atenuantes.
50º. E nesse sentido, sendo o arguido detentor de um curriculum partidário vasto, com o exercício de diversas funções internas e externas em representação do Partido Socialista, conforme descrito ao longo de todo o processo, curriculum esse que foi devidamente tido em consideração, entendendo-se que tais factos constituem circunstâncias atenuantes que devem ser atendidas, pelo que, apurados os factos e analisada a medida da pena, que deverá ser aplicada a pena de suspensão do direito de eleger e ser eleito até dois anos, nos termos do artigo 13º, nº 1, alínea e), dos Estatutos do Partido Socialista, do nº 2 do artigo 10º, alínea e), do nº 1 e nº 8 do artigo 17º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
51º. Pelo que se deixou dito, aferindo a culpa e a gravidade do comportamento do arguido com o grau de lesão dos interesses e dos valores da lealdade, do respeito pelos Estatutos, da verdade e legalidade, afigura-se que, segundo critérios de objetividade e razoabilidade a sanção de suspensão de eleger e ser eleito pelo período de 2 anos é adequada.
Termos em que deve ser a presente ação julgada improcedente e não provada com as legais consequências.».
4. Por despacho proferido pela relatora, foi determinada a notificação do Partido Socialista para juntar cópia integral da ata onde conste a deliberação da sua Comissão Permanente que esteve na origem do processo disciplinar instaurado ao ora impugnante.
5. Junto o referido documento e notificado do mesmo, para, querendo, se pronunciar, o impugnante fê-lo nos seguintes termos:
1. O Impugnante desconhece a contestação apresentada pelo Partido Socialista, bem como os documentos que possam ter sido juntos à contestação e que possam ter determinado a prolação do douto despacho que ordenou a notificação do Partido Socialista “(…) para, no prazo de 5 dias, juntar cópia integral da ata onde conste a deliberação da sua Comissão Permanente que esteve na origem do processo disciplinar instaurado ao ora impugnante (…)”.
2. Ainda assim, por tal resultar das regras da experiência e da lógica, sempre será de supor que tal notificação ocorreu, por esse Colendo Tribunal ter confirmado o alegado pelo IMPUGNANTE, na petição inicial, de que inexistia no processo disciplinar qualquer participação disciplinar, designadamente aquela que é, verifica-se agora, constituída pela deliberação da Comissão Permanente do Partido Socialista e que foi, na sequência do douto despacho, junta aos autos. Registe-se que, com a notificação efetuada por esse Venerando Tribunal se deu, finalmente, conhecimento ao Impugnante do teor da participação disciplinar que, até à concretização deste ato, estava no segredo de uma qualquer gaveta, não tendo sido dada oportunidade ao Arguido, ora IMPUGNANTE, de, no âmbito de um processo sancionatório, conhecer da “participação” que é, per se, condição de procedibilidade do procedimento.
3. Já no que concerne ao documento, em concreto, vem alegar o seguinte:
i. Tal como resulta da cópia do processo disciplinar junta aos autos pelo IMPUGNANTE e que corresponde à cópia integral do processo disciplinar que correu termos na Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, o documento ora junto, que consubstanciará, alegadamente, a participação disciplinar, não foi remetida à Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, órgão competente para a promoção do procedimento disciplinar, nem se encontrava junta ao processo disciplinar.
ii. O que determina, como alegado no recurso que antecedeu esta ação e também na petição inicial, que a Comissão Federativa de Jurisdição do Porto tenha promovido o procedimento disciplinar sem verificar da existência de participação disciplinar de órgão ou filiado e da sua regularidade.
iii. No que respeita à participação disciplinar, dispõe, expressamente, o artigo 25.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, o seguinte:
“1. O procedimento disciplinar depende da participação de órgão ou filiado do Partido no pleno gozo dos seus direitos.
2. A participação revestirá a forma escrita e deverá vir assinada com a indicação da morada ou sede do participante e ainda da sua Secção quando se trate da pessoa singular.
3. O participante deverá descrever sumariamente os fatos imputados e fornecer os meios de prova.
4. Verificando-se que a participação não satisfaz os requisitos indicados nos números anteriores, deverá o participante ser notificado para a corrigir ou completar no prazo de cinco (5) dias sob pena de, não o fazendo, se ordenar o arquivamento do processo.” (sublinhado nosso)
iv. Da transcrita disposição do Regulamento Disciplinar do Partido Socialista resulta, inequivocamente, uma primeira e inevitável conclusão: o órgão disciplinar não pode promover o procedimento disciplinar na ausência de participação disciplinar, por o procedimento disciplinar depender de participação de órgãos ou filiado do Partido no pleno gozo dos seus direitos.
v. E uma segunda exigência, da qual decorre que existindo a participação disciplinar esta terá, como alegado na petição inicial, que obedecer aos requisitos expressamente definidos nos números 2., e 3., do artigo 25.º, supra transcritos, e, quando os não satisfaça, o participante deverá ser notificado para a corrigir ou completar no prazo de cinco dias, sob pena de, não o fazendo, se ordenar o arquivamento do processo.
vi. Ora sendo a existência de participação disciplinar e a sua regularidade, como resulta do Regulamento Disciplinar do Partido Socialista, um pressuposto de procedibilidade, a sua falta, no âmbito de procedimento disciplinar, obsta a que o órgão possa conhecer do mérito.
vii. Tendo tal participação disciplinar que constar, como é de mediana evidência, até por se tratar de um processo sancionatório, do processo disciplinar, sob pena de estar amputado o direito de defesa do arguido que não só não se pode defender das imputações que constam de tal participação como não pode invocar os vícios de que esta possa enfermar.
viii. Veja-se, a título meramente exemplificativo, a situação em que a participação disciplinar é admitida pelo órgão jurisdicional do Partido Socialista, mas é efetuada por um militante que não está no pleno gozo dos seus direitos, ao arguido, visado com tal participação disciplinar, terá que ser admitido invocar a violação da norma supra citada do Regulamento Disciplinar, o que apenas estará ao seu alcance se tomar conhecimento da participação disciplinar e esta integrar o processo disciplinar.
ix. Neste sentido, reitera-se, relativamente ao documento ora junto, tudo o que foi alegado na petição inicial, designadamente a matéria constante dos artigos 21.º a 35.º, da petição inicial, bem como o que resulta de fls. 1 a 5 do documento 4., junto à contestação.
x. Sendo que a junção da participação disciplinar apenas em sede judicial, quando se está no âmbito da verificação da legalidade do procedimento e das decisões, não pode determinar a sanação do vício apontado pelo ora Impugnante ao processo disciplinar (”Non quod est in actis non est in mundo”).
xi. Sendo que qualquer interpretação em sentido diverso daquele que ora se sustenta, ou seja, que a participação disciplinar, no âmbito de um processo disciplinar, que se rege por regulamento disciplinar que impõe a existência e a regularidade da participação disciplinar como condição de procedibilidade do órgão jurisdicional, tem que constar do processo disciplinar, ter-se-ia que considerar desconforme às garantias e direito de defesa do arguido consagradas no número 10.º, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa.».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. Conforme relatado, o impugnante fundamenta a presente impugnação no disposto no n.º 1 do artigo 103.º-D da LTC, disposição que, no que ora releva, confere legitimidade a qualquer militante de um partido político para impugnar, com fundamento em ilegalidade ou violação de regra estatutária, as decisões punitivas dos respetivos órgãos partidários, tomadas em processo disciplinar em que seja arguido.
A respeito da origem e sentido do referido artigo 103.º-D, bem como dos meios impugnatórios nele previstos, escreveu-se no Acórdão n.º 185/2003 (disponível, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ) o seguinte:
«(…) o artigo 103º-D da LTC – foi aditado à Lei que regula a “organização, funcionamento e processo” do Tribunal Constitucional pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro e decorre das alterações que a revisão de 97 introduziu na Constituição, num sentido que, sendo um “sinal dos tempos”, nas palavras de Garrorena Morales (“Hacia un analisis democratico de las disfunciones de los partidos” in “Teoria y práctica de los partidos políticos”, Cuadernos para el dialogo, p. 71), se caracteriza, segundo o mesmo autor, como de “intensificação progressiva do controlo normativo e, portanto estatal, sobre os partidos políticos”.
Esta revisão, na parte que para o caso releva, aditou ao artigo 51º os nºs 5 e 6 que consagram “princípios” de organização e funcionamento dos partidos políticos (nº 5) e remetem para a lei o estabelecimento de regras de financiamento quanto aos requisitos e limites do financiamento público, bem como às exigências de publicidade do património e das contas dos mesmos partidos.
Tem para o caso especial relevância a consagração constitucional do dever dos partidos políticos de se regerem “pelos princípios da transparência, da organização e da gestão democrática e da participação de todos os seus membros”.
A discussão parlamentar deste aditamento (in DAR – II-A – RC nº 24, de 19/09/96), proposto pelo grupo parlamentar do PS, elucida o que, com ele, se pretendeu.
Disse, então, o deputado Alberto Martins que o aditamento traduz: “(...) a transposição explícita de princípios constitucionais para a vida interna dos partidos, porque não faria sentido que algumas regras constitucionais do Estado democrático não fossem absorvidas na prática quotidiana dos partidos políticos”.
Justifica-o, igualmente, o deputado Miguel Macedo, com “(...) a importância que os partidos políticos têm na organização do Estado e a influência que a vontade de cada um dos partidos tem dentro da arquitetura constitucional em que são inseridos.”
Assinale-se que, na mesma discussão, não foi questionada a aceitação daqueles princípios, incidindo, antes, sobre a eficácia da sua consagração “constitucional” para a vida partidária e para o funcionamento interno dos partidos, a fiscalização da constitucionalidade das normas estatutárias dos partidos e a competência dos tribunais (do Tribunal Constitucional) para dirimir os conflitos internos dos partidos.
Note-se, ainda, que a proposta, que veio a ser aprovada, não deixa de revelar uma certa “contenção” – justificável pela autorregulação dos partidos, também constitucionalmente garantida -, sem a imposição de regras idênticas às estabelecidas no artigo 55º nº 3 da CRP para as associações sindicais, como propunha Jorge Miranda.
Esta “contenção” veio, aliás, a ser evocada no procedimento que deu lugar à Lei nº 13-A/98, no “Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre o projeto de lei nº 460/VII, apresentado pelo grupo parlamentar do PSD”, in DAR – II-A nº 32 de 19/02/98”, aprovado por unanimidade, onde se salientou que o artigo 51º nº 5 da CRP se reporta a “princípios” (não a “regras”), que “permitem o balanceamento de valores e interesses consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflituantes” e, mais adiante se realça “esta prudência do legislador constituinte”.
[…]
Na mesma revisão constitucional, foi aditada, entre outras, a alínea h) ao artigo 223º nº 2 da CRP (antes, artigo 225º), atribuindo ao Tribunal Constitucional a competência para “Julgar as ações de impugnação de eleições e deliberações de órgãos de partidos políticos que, nos termos da lei, sejam recorríveis”.
Regra apenas de competência, a ela não caberia determinar as decisões dos órgãos partidários impugnáveis, o que foi relegado para a lei. E, do mesmo passo, não foram aí enunciados os fundamentos de impugnação admissíveis.
Coube à citada Lei nº 13-A/98 fazê-lo, como atrás se disse, aditando à LTC, entre outros, o artigo 103º-D que estabeleceu a impugnabilidade:
- das decisões punitivas dos respetivos órgãos partidários, tomadas em processo disciplinar em que o impugnante seja arguido e das deliberações dos mesmo órgãos que afetem direta e pessoalmente os direitos de participação do impugnante nas atividades do partido (nº 1);
- das deliberações dos órgãos partidários com fundamento em grave violação de regras essenciais relativas à competência ou ao funcionamento democrático do partido (nº 2).
Trata-se de regras que, simultaneamente, dispõem sobre o objeto e fundamentos da impugnação e sobre a legitimidade dos impugnantes.
Assim, no que concerne à legitimidade, enquanto a impugnação prevista no nº 1 só pode ser deduzida pelo militante que tiver sido punido ou direta e pessoalmente afetado nos seus direitos de participação nas atividades do partido, já na que se prevê no nº 2 a legitimidade é conferida a qualquer militante sem que se exija um nexo especial entre a deliberação e o impugnante.
Por outro lado, enquanto a impugnação prevista no nº 1 pode ser deduzida “com fundamento em ilegalidade ou violação de regra estatutária”, a que se consagra no nº 2 só é admissível “com fundamento em grave violação de regras essenciais à competência ou ao funcionamento democrático do partido”.
De salientar, a este propósito, o que se escreveu no citado “Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias”:
“Esta prudência do legislador constituinte [reporta-se ao aditamento do nº 5 ao artigo 51º da CRP] não deve esquecer-se na interpretação da alínea h) do artigo 223º da Constituição, introduzida na 4ª revisão constitucional.
É sob a forma de uma norma processual que se vem estabelecer que haverá impugnação de eleições e de deliberações de órgãos de partidos políticos que, nos termos da lei, sejam recorríveis.
O legislador constituinte deixou, assim, para a lei a tarefa de determinar que eleições e que deliberações de órgãos de partidos políticos seriam recorríveis.
Tendo em conta o que atrás se deixa dito quanto às cautelas do legislador constituinte ao consagrar apenas princípios no nº 5 do artigo 51º, e as razões de tais cautelas, também na consagração de competências do Tribunal Constitucional (que levam a definir regras jurídicas) deverão ser ponderados os limites das mesmas, por forma que, através de uma norma processual, se não vá exercer controlo sobre a atividade política dos partidos, o que contraria o estatuto dos mesmos. Ou seja: o que limitaria a organização da vontade popular e a expressão dessa mesma vontade”.
E, mais adiante:
“As normas do projeto devem ser expurgadas de soluções excessivas, como acontece com a possibilidade de impugnação de deliberações com base em vícios de forma e violação de normas procedimentais”.
Foi na decorrência desta observação que veio a ser aprovada uma proposta de alteração do PS e do PSD ao que se propunha para o nº 2 do artigo 103º-D (impugnação com fundamento em vícios de forma ou violação de normas procedimentais) com um sentido claramente mais restritivo - “grave violação de regras essenciais ao funcionamento democrático do partido”, (e isto não sem que alguns parlamentares tenham deixado de expressar as suas reservas, como foi o caso do deputado Barbosa de Melo quando, a título pessoal, considerou: “Preferia ver isto reduzido à sua expressão ínfima porque creio que não é saudável para a democracia, e porque vivemos num sistema partidário, que qualquer tribunal, seja ele constitucional ou comum, se possa armar em juiz da vida interna dos partidos. Os partidos são associações políticas e como tal podem convencionar um tribunal arbitral – aliás, os seus órgãos de conflitos internos, os seus órgãos internos jurisdicionais são verdadeiros tribunais arbitrais. Nos partidos, quem não está bem muda-se”).».
Em jurisprudência posterior, o Tribunal Constitucional tem vindo a definir e a densificar os critérios que devem orientar a sua intervenção em sede de controlo da legalidade interna dos partidos políticos, considerando que tal intervenção – incluindo nos casos em que estejam em causa a impugnação de deliberações punitivas – se rege por um princípio de intervenção mínima ou de controlo mitigado.
A esse respeito, a propósito de um caso em que estava em questão a impugnação de uma deliberação de expulsão, refere-se o seguinte no Acórdão n.º 590/2014:
«A competência do Tribunal Constitucional para julgar as ações de impugnação de deliberações (designadamente punitivas) de órgãos de partidos políticos foi introduzida na revisão constitucional de 1997, que aditou a alínea h) do n.º 2 do artigo 223.º (“2. Compete ao Tribunal Constitucional: (…) h) Julgar as ações de impugnação de eleições e deliberações de órgãos de partidos políticos que, nos termos da lei, sejam recorríveis”) e o n.º 5 do artigo 51.º (“5. Os partidos políticos devem reger se pelos princípios da transparência, da organização e da gestão democráticas e da participação de todos os seus membros”), na sequência do que o artigo 103.º-D da Lei do Tribunal Constitucional, aditado pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, veio estatuir que “qualquer militante de um partido político pode impugnar, com fundamento em ilegalidade ou violação de regra estatutária, as decisões punitivas dos respetivos órgãos partidários, tomadas em processo disciplinar em que seja arguido, e, bem assim, as deliberações dos mesmos órgãos que afetem direta e pessoalmente os seus direitos de participação nas atividades do partido” (v. acórdão n.º 338/2008 e 258/2008, disponíveis no sítio indicado).
A propósito da polémica em torno da consagração constitucional do contencioso partidário, Carla Amado Gomes (ob. cit., p. 607) salienta que “o problema fundamental é, todavia, o dos limites do controlo da observância dos parâmetros, legais e constitucionais, da democraticidade interna qua tale. Parece evidente que o Tribunal Constitucional deve limitar-se a avaliar aspetos procedimentais, não aspetos substanciais. Ou seja, ao Tribunal Constitucional está reservado um controlo de legalidade procedimental, mas está vedado entrar a conhecer da motivação política da decisão”.
Neste sentido, Miguel Prata Roque (O Controlo Jurisdicional da Democraticidade Interna dos Partidos Políticos, in AA.VV., Tribunal Constitucional, 35.º Aniversário da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra Editora, 2012, pp. 310-311) nota que a atuação do Tribunal Constitucional no que respeita ao controlo externo da democraticidade interna dos partidos políticos se tem norteado pelo “princípio da intervenção mínima”, que se manifesta na limitação da interferência jurisdicional na vida interna dos partidos políticos a um nível mínimo, sob pena de esvaziamento do direito fundamental dos respetivos militantes, enquanto indivíduos, à livre auto-organização associativa (artigo 46.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP).
Esta matriz de intervenção mínima reveste particular expressividade na exigência de verificação dos requisitos para o conhecimento, por parte do Tribunal Constitucional, do pedido de impugnação, devendo apenas intervir depois de esgotados os mecanismos estatutários de autocontrolo, e com o objetivo único de garantir a observância dos limites materiais constitucionalmente impostos. Outro reflexo desta lógica de ingerência mínima é o “modelo de tipicidade estrita” a que estão sujeitas as ações de impugnação, que se traduz, no que ao nosso caso interessa, na circunstância de os fundamentos em que se pode basear a impugnação da decisão punitiva serem, apenas, a violação de regra estatutária e a ilegalidade (artigo 103.º-D, n.º 1, da LTC).
Como o Tribunal Constitucional salientou no acórdão 338/2008 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “Neste domínio, impõe-se naturalmente ao Tribunal Constitucional uma especial contenção, não lhe cabendo substituir por outros os critérios sancionatórios que os órgãos partidários estatutariamente competentes adotaram, mas tão-só sindicar a eventual violação de regras estatutárias ou legais que atinja gravidade tal, na perspetiva dos direitos de defesa dos filiados em partidos políticos, que imponha a anulação das correspondentes deliberações punitivas, designadamente por ocorrência de erro grosseiro ou manifesto”.».
Mais recentemente, no Acórdão n.º 177/2019, dá-se nota desse entendimento, com referência à jurisprudência mais relevante a esse respeito:
«5. A jurisprudência constitucional tem considerado que, no âmbito dos processos impugnatórios visando deliberações dos órgãos partidários, vale, como já referido, o princípio da intervenção mínima, que funciona como um critério geral orientador do sentido e da medida de sindicância confiada ao Tribunal Constitucional.
Este princípio de autocontenção da intervenção fiscalizadora do Tribunal Constitucional materializa o resultado da concordância prática entre a autonomia associativa e partidária – que implica um grau de liberdade organizacional que permita a construção e manutenção da “idiossincracia identitária de um partido” (Acórdão n.º 178/2017) – e a necessidade de garantir que a atividade dos partidos, atenta a sua função estruturante num Estado de direito, se processe de acordo com os limites estabelecidos na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente com respeito pelos princípios essenciais da transparência, da organização, da gestão democrática e da participação de todos os seus membros (artigo 51.º, n.º 5).
A este propósito, pode ler-se, no Acórdão n.º 497/2010:
“Não obstante concorrerem para a organização e para a expressão da vontade popular (artigo 10.º, n.º 12, da CRP), e deterem por isso funções e competências relevantes no domínio da organização do poder político (artigos 114.º; 151.º, n.º 1; 180.º da CRP), os partidos políticos são, na sua raiz, expressão do exercício da liberdade de associação. Nesses termos, e conforme o reconhece a Constituição nos artigos 51.º e 46.º, gozam, na ordenação da sua vida interna, da autonomia própria que é conferida às associações. É certo que tal autonomia conhece sempre limites, impostos pela ordem constitucional no seu conjunto. Para além daqueles que valem, em geral, para todas as associações, são aplicáveis à ordenação da vida interna dos partidos, pelas funções políticas que constitucionalmente são conferidos a estes últimos, não apenas os limites decorrentes do necessário respeito pelos princípios da independência nacional, da unidade do Estado e da democracia política (n.º 2 do artigo 10.º), mas ainda os decorrentes dos princípios da transparência, da organização e da gestão democrática e da participação de todos os seus membros (n.º 5 do artigo 51.º). É em razão destes limites, que conformam, por força da Constituição, o ordenamento interno dos partidos, que se atribui ao Tribunal Constitucional competência para, nos termos da lei, julgar ações de impugnação de eleições e deliberações dos órgãos partidários artigo (223.º, n.º 2, alínea h), da CRP).
Os termos em que são recorríveis tais eleições e deliberações são fixados pela LTC. E são-no de modo a que se obtenha a necessária concordância prática entre os dois princípios constitucionais atrás mencionados: por um lado, o princípio da autonomia na ordenação da vida interna de cada instituição partidária; por outro, o princípio da necessária submissão dessa organização interna aos limites que lhe são constitucionalmente impostos”.
No mesmo sentido, pode ler-se no Acórdão n.º 2/2011:
“[O] legislador constitucional, tal como o legislador ordinário, rodeou de especiais cautelas a intervenção jurisdicional destinada a garantir a observância dos princípios organizatórios e procedimentais da democracia política, pretendendo evitar que, por essa forma, se pudesse vir a exercer um controlo sobre a atividade política dos partidos e, de algum modo, limitar a liberdade de organização da vontade popular, e por isso se circunscreveu os meios processuais de impugnação das deliberações dos órgãos de partidários àquelas que fossem consideradas «mais importantes para assegurar os princípios da organização e gestão democráticas dos partidos políticos, sem, por outro lado, judicializar a respetiva vida interna, correndo o risco de tolher a sua liberdade de ação política e o seu espaço de afirmação, interna e externamente».
(…)”.
O princípio da intervenção mínima projeta-se, não apenas numa limitação dos fundamentos que legitimam a intervenção do Tribunal Constitucional, mas igualmente numa restrição dos atos impugnáveis, ao abrigo do artigo 103.º D da LTC.».
7. Conforme resulta dos arestos citados, o princípio da intervenção mínima assume particular relevância no que respeita à verificação dos requisitos necessários ao conhecimento, pelo Tribunal Constitucional, do pedido impugnatório.
Por um lado, a intervenção do Tribunal Constitucional deverá ocorrer apenas depois de esgotados os mecanismos estatutários de autocontrolo e com o objetivo único de garantir a observância dos limites materiais constitucionalmente impostos. Por outro lado, essa intervenção ocorre no quadro de um “modelo de tipicidade estrita” a que estão sujeitas as ações de impugnação (cf., o referido Acórdão n.º 590/2014).
A respeito deste modelo de tipicidade, refere-se o seguinte no Acórdão n.º 219/2018:
«Com efeito, a Constituição e a LTC consagraram um princípio de tipicidade das ações de impugnação relativas ao funcionamento interno dos partidos políticos, referindo-se apenas às ações de impugnação de eleição de titulares de órgãos (artigo 103.º-C) e às ações de impugnação de deliberação tomada por órgãos, incluindo neste último caso as decisões punitivas, tomadas em processo disciplinar em que é arguido o impugnante (artigo 103.º-D, n.º 1, primeira parte, da LTC), as deliberações que afetem direta e pessoalmente os direitos de participação nas atividades do partido por parte do impugnante (artigo 103.º-D, n.º 1, segunda parte, da LTC) e ainda outras deliberações dos órgãos partidários, mas apenas com fundamento em grave violação de regras essenciais relativas à competência ou ao funcionamento democrático do partido (artigo 103.º-D, n.º 2).
A estes meios de impugnação, consagrados na Constituição e regulados na LTC, acresceu o legislador o meio preliminar ou incidental da suspensão da eficácia dos atos partidários impugnados, que regulou no artigo 103.º-E da LTC.».
É, pois, à luz destes critérios que cumpre apreciar a situação dos autos, tendo em atenção que o meio impugnatório aqui em causa – previsto no artigo 103.º-D, n.º 1, da LTC – admite a sindicância, por qualquer militante de um partido, de decisões punitivas dos respetivos órgãos partidários, tomadas em processo disciplinar em que seja arguido, apenas com fundamento em ilegalidade ou violação de regra estatutária.
A respeito do fundamento de ilegalidade, refere-se o seguinte no Acórdão n.º 183/2003:
«A única lei, pertinente ao caso, que vigora no nosso ordenamento jurídico, é, ainda, com sucessivas alterações e revogações, o citado Decreto-lei nº 595/74, cujos preceitos mais salientes na matéria são os já acima enumerados, em particular, os artigos 17º e 19º. E mesmo estes dirigem-se diretamente aos estatutos dos partidos enquanto os vinculam a “conferir aos filiados meios de garantia dos seus direitos, nomeadamente através da possibilidade de reclamação ou recurso para os órgãos internos competentes” e estabelecem a proibição de o “ordenamento disciplinar” partidário “afetar o exercício e o cumprimento dos deveres prescritos pela Constituição, por lei ou por regulamento”, o que, no âmbito do processo em causa, lhes retira uma direta operatividade, sem embargo do que adiante se diz sobre a invocação da violação do citado artigo 19º como causa de pedir da presente ação.
Por outro lado, não há, obviamente, analogia possível que legitime o apelo a outras leis reguladoras de disciplina (como sejam, p. ex. os estatutos disciplinares da função pública).
Neste contexto, e não sendo pródigos alguns estatutos dos partidos políticos portugueses em normas disciplinares ou, mais particularmente, de procedimento disciplinar (em matéria de garantias dos militantes visados, os Estatutos do PCP limitam-se a estabelecer, nos artigos 60º e 62º, os direitos de audiência prévia e de recurso), a bem pouco se reduziriam, pois, os fundamentos de impugnação de deliberações punitivas.
A verdade, porém, é que, no caso, a garantia estatutária de audição prévia não se traduz apenas no direito do filiado a uma pronúncia sobre os factos que lhe são imputados.
Esse direito, para ser efetivo, postula, desde logo certas exigências a cumprir pela peça acusatória, como sejam a de assentar em factos concretos identificados ou identificáveis, a de indicar os deveres ofendidos e a de valorar disciplinarmente as condutas sancionáveis.
Por outro lado, há-de proporcionar-se ao filiado a possibilidade de oferecer prova aos factos que alega em sua defesa.
Considerando, depois, a deliberação punitiva (bem como a que vier a decidir o recurso dela interposto) impõe-se de igual modo que ela esteja fundamentada, com a indicação dos factos provados e do seu enquadramento jurídico-disciplinar.
Tudo, aliás, é decorrência dos direitos de audiência e defesa garantidos, quer pelos estatutos, quer indiretamente pelo disposto no artigo 17º nº 2 do Decreto-Lei nº 595/74.
Mas, sobretudo, entendendo-se – como se entende – que no “bloco de legalidade” a que estão sujeitas as deliberações punitivas dos partidos se devem integrar, por força da sua aplicação direta, os comandos constitucionais pertinentes, em matéria de direitos liberdades e garantias – em particular, as garantias de audiência e defesa aplicáveis, nos termos do artigo 32º nº 10 da Constituição “em quaisquer processos sancionatórios” -, não pode deixar de se considerar lícita a invocação da violação desses preceitos na ação de impugnação prevista no artigo 103º-D nº 1 da LTC.».
Atualmente, a única norma legal que prevê especialmente o regime a que se encontra sujeita a disciplina interna dos partidos políticos é a constante do artigo 22.º da Lei dos Partidos Políticos (Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto, alterada pela Lei Orgânica n.º 2/2008, de 14 de maio, e pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril), onde se estabelece, no n.º 1, que essa disciplina interna «não pode afetar o exercício de direitos e o cumprimento de deveres prescritos na Constituição e na lei», e, no n.º 2, que «compete aos órgãos próprios de cada partido a aplicação das sanções disciplinares, sempre com garantias de audiência e defesa e possibilidade de reclamação ou recurso».
Contundo, conforme se salientou no citado o Acórdão n.º 185/2003, «no “bloco de legalidade” a que estão sujeitas as deliberações punitivas dos partidos se devem integrar, por força da sua aplicação direta, os comandos constitucionais pertinentes, em matéria de direitos liberdades e garantias – em particular, as garantias de audiência e defesa aplicáveis, nos termos do artigo 32º nº 10 da Constituição “em quaisquer processos sancionatórios”».
Neste mesmo sentido aponta o Acórdão n.º 369/2009, onde se afirma o princípio de acordo com o qual a «disciplina partidária − ainda que não possa considerar-se direito sancionatório público (…) − não pode oferecer garantias substancialmente menores do que aquelas que constitucionalmente se exigem ao direito sancionatório público».
Este entendimento é também afirmado no Acórdão n.º 259/2008, no qual se salienta o seguinte:
«Os partidos políticos, enquanto «associações privadas com funções constitucionais» (J. J. GOMES CANOTILHO/ VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição revista, Coimbra, 2007, 682), estão sujeitos, por força do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 18.º da Constituição, ao princípio da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais, que os submete − maxime no exercício de competências sancionatórias − ao regime material dos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, e 32.º, n.º 10, da CRP (v. CARLA AMADO GOMES, “Partidos rigorosamente vigiados? Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 185/03” in Jurisprudência Constitucional, n.º 2, abril-junho 2004, 27).».
No caso dos autos, importa ainda ter em atenção o disposto no artigo 8.º, n.º 1, alínea f), dos Estatutos do Partido Socialista, no qual se reconhece aos seus militantes o direito a «não sofrer sanção disciplinar sem prévia audição e sem garantias de defesa, em processo organizado pela instância competente».
Estas garantias são desenvolvidas no Regulamento Disciplinar do Partido Socialista (“RPDPS” – aprovado nos termos do artigo 49.º, n.º 2, alínea n) dos Estatutos do Partido Socialista), no qual se preveem as infrações e sanções disciplinares, a competência para a sua instrução e julgamento e os vários aspetos do regime do procedimento disciplinar.
É, pois, à luz deste enquadramento jurídico que deverá ser apreciada a presente ação.
8. Conforme resulta do pedido formulado, com a presente ação o impugnante pretende que sejam conhecidas e declaradas as nulidades que entende terem ocorrido no procedimento disciplinar, designadamente por violação das suas garantias de audição e de defesa, com a consequente invalidade dos termos posteriores do processo e com a anulação das decisões subsequentes, designadamente da decisão ora impugnada. Caso assim não se entenda, pretende que sejam conhecidos e declarados os demais vícios elencados na petição, anulando-se a decisão ora impugnada.
De acordo com a petição inicial, o recorrente considera que o procedimento disciplinar ora em análise padece dos seguintes vícios:
- Nulidade decorrente de ausência de participação disciplinar (cf. o ponto III., A – artigos 21.º a 35.º da petição);
- Nulidade da acusação (cf. o ponto III., A – artigos 36.º a 63.º da petição);
- Nulidade decorrente da violação de direitos e garantias de defesa do arguido, ora impugnante (cf. o ponto IV – artigos 64.º a 119.º da petição);
- Nulidade do acórdão proferido em primeira instância, pela Comissão Federativa de Jurisdição do Porto (cf. o ponto IV – artigos 120.º a 130.º da petição).
Por outro lado, o recorrente invoca ainda a nulidade da sanção aplicada pela decisão recorrida (a sanção de suspensão do direito de eleger e de ser eleito, pelo prazo de dois anos), por entender que a mesma é inaplicável ao caso sub judice (cf. ponto II, artigos 5.º a 17.º da petição), considerando-a ainda em qualquer caso desproporcionada (cf. o ponto V – artigos 131.º a 142.º da petição).
Importa começar por analisar os vícios imputados ao procedimento disciplinar.
9. Da falta de participação disciplinar
9.1. Como primeiro fundamento de nulidade do procedimento disciplinar contra si instaurado, alega o impugnante, em síntese, que, no caso em análise, por não estarem verificados os requisitos previstos no artigo 25.º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, não tinha a Comissão Federativa de Jurisdição do PS Porto legitimidade para promover o procedimento disciplinar, atenta a falta de participação ou, pelo menos, não poderia ter promovido o procedimento disciplinar sem que notificasse o suposto “participante” para a corrigir ou completar no prazo de cinco dias, sob pena de, não o fazendo, se ordenar o arquivamento do processo.
O Partido Socialista, na sua resposta, para além de remeter para o já alegado em sede de relatório final da CNJ, refere ainda que a participação foi efetuada pela Comissão Permanente do Partido Socialista, órgão do Partido, revestiu a forma escrita, com descrição dos factos e com documentos comprovativos das declarações do ora impugnante, produzidas através dos tweets emitidos a 16/06/2017. Mais refere que o próprio impugnante reconheceu ao longo do procedimento disciplinar e reconhece agora que proferiu tais declarações, como também as situa no tempo e lugar, cabendo à Comissão Federativa de Jurisdição apurar os factos e concluir por eventual sanção a aplicar.
Conclui, por isso, que não existe qualquer violação do artigo 25º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
9.2. Com interesse para apreciação desta questão, resulta dos autos de procedimento disciplinar o seguinte:
1. Foi remetida por Catarina Faria a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra a fls. 2 dos autos de procedimento disciplinar (cf. fls. 109 dos presentes autos), dirigida ao Exmo. Senhor Dr. Luciano Vilhena Pereira, com o seguinte teor: “Por incumbência da secretária-geral Adjunta, Ana Catarina Mendes, envio o conteúdo da deliberação tomada na Comissão Permanente, pedindo-lhe a melhor atenção”.
2. Após a assinatura da remetente, consta da referida mensagem o seguinte texto: “A Comissão Permanente do Partido Socialista, considerando a informação agora conhecida do arquivamento - atenta a intenção de não participar disciplinarmente da visada e sem prejuízo da compreensão que tal decisão do ponto de vista pessoal possa merecer - mas considerando que as declarações proferidas pelo militante Manuel dos Santos são, objetivamente, graves, atentatórias e vexatórias do Partido Socialista, da sua história, da sua Declaração de Princípios e dos seus Estatutos, porque eivadas de um preconceito rácico e misógino inaceitáveis no Partido; de uma linguagem e referências inapropriadas entre militantes e de uma intenção de ofensa censurável, delibera, por unanimidade:”
3. Com a mensagem de correio eletrónico supra referida encontra-se junta cópia das declarações atribuídas ao impugnante, efetuadas através de publicações na rede social Twitter, com o seguinte teor: (cf. fls. 3 do procedimento disciplinar e fls. 109/v.º dos presentes autos): “Luísa Salgueiro, dita a cigana e não é só pelo aspeto, paga os favores que recebe com votos alinhados com os centralistas.”; “Luísa Salgueiro, desconhecida deputada em Lisboa, reside na Maia, é protegida por Costa e Pizarro e vais ser candidata à Câmara de Matosinhos.” e “Entre os deputados socialistas que votaram Lisboa como sede da Agência Europeia do Medicamento, esteve Luísa Salgueiro, dita a cigana.”
4. A referida mensagem de correio eletrónico foi reencaminhada para os serviços administrativos, pelo Exmo. Senhor Dr. Luciano Vilhena Pereira, Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição da Federação Distrital do Porto, que determinou a sua autuação como processo disciplinar e a sua distribuição, encontrando-se a fls. 4., lavrado despacho, assinado pelo identificado Presidente da referida Comissão Federativa de Jurisdição, datado de 23 de maio de 2018, com o seguinte teor: “Face à participação que antecede autue como processo disciplinar e distribua pela ordem de sorteio recentemente efetuado.”
Na sequência de despacho proferido pela ora relatora, foi junta aos presentes autos a ata da reunião da Comissão Permanente do Partido Socialista, de 21 de maio de 2018, da qual consta o seguinte:
«Aos vinte e um dias do mês de maio de dois mil e dezoito, reuniu a Comissão Permanente, tendo aprovado a deliberação em anexo, respeitante à participação disciplinar do militante Manuel dos Santos. Nada mais havendo a tratar, deu-se por encerrada a reunião da qual se lavrou a presente ata assinada pela Secretária Geral-Adjunta que lhe presidiu.
DELIBERAÇÃO
A Comissão Permanente do Partido Socialista, considerando a informação agora conhecida do arquivamento - atenta a intenção de não participar disciplinarmente da visada e sem prejuízo da compreensão que tal decisão do ponto de vista pessoal possa merecer - mas considerando que as declarações proferidas pelo militante Manuel dos Santos são, objetivamente, graves, atentatórias e vexatórias do Partido Socialista, da sua história, da sua Declaração de Princípios e dos seus Estatutos, porque eivadas de um preconceito rácico e misógino inaceitáveis no Partido; de uma linguagem e referências inapropriadas entre militantes e de uma intenção de ofensa censurável, delibera, por unanimidade:
Participar à Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, para efeito da instauração de um processo disciplinar e consequente sancionamento, as afirmações proferidas pelo militante número 4537.
Lisboa, 21 de maio de 2018».
9.3. A questão ora em análise foi objeto de apreciação e decisão no acórdão ora impugnado, nos seguintes termos:
a) Entende o recorrente que as normas dos vícios do Procedimento Disciplinar, em concreto do artº 25º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, foram-violadas pela ausência de participação disciplinar.
b) Porém, e analisando a participação efetuada pela Comissão Permanente do Partido Socialista, órgão do Partido, remetida à Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, há que verificar se a mesma contém os requisitos do artº 25º do Regulamento Processual e Disciplinar.
e) Como primeiro requisito é referido que o procedimento disciplinar depende da participação de órgão ou filiado do Partido no pleno gozo dos seus direitos.
d) Quanto a este requisito, parece evidente que o mesmo se encontra preenchido, uma vez que a participação foi efetuada pela Comissão Permanente do Partido Socialista, órgão do Partido.
e) A Participação reveste a forma escrita e vem da Comissão Permanente do Partido, cuja morada é a da sede nacional.
f) Os factos estão descritos sumariamente, e da mesma comunicação constam documentos comprovativos das declarações do arguido, efetuados através dos tweets emitidos a 16/06/2017, que o próprio confirmou em carta dirigida ao instrutor do processo, e que já constavam do Despacho de Acusação.
g) A conclusão do Recorrente de que não há manifestação inequívoca do órgão do Partido em iniciar um procedimento disciplinar não tem qualquer cabimento.
h) Como refere o Recorrente no seu recurso, a Comissão Política decidiu que: “conhecida a decisão de arquivamento, mas considerando que as declarações proferidas pelo militante Manuel António dos Santos são objetivamente, graves, atentatórias e vexatórias do Partido Socialista, da sua história, da sua Declaração de Princípios e dos seus Estatutos, porque eivadas de um preconceito rácico e misógino inaceitáveis no Partido; de uma linguagem e referências inapropriadas entre militantes e de uma intenção de ofensa censurável, delibera, por unanimidade.”, porém esqueceu-se de acrescentar o seguinte: “Participar à Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, para efeitos de instauração de um processo disciplinar às informações proferidas pelo militante nº 4537”.
i) Esta é sem dúvida uma expressão inequívoca de que face à gravidade dos factos, e ao pedido de instauração do processo disciplinar, deveria a Comissão Federativa de Jurisdição do Porto tomar posição, como lhe competia, tendo determinado a autuação e abertura do respetivo processo disciplinar.
j) Pelo que é evidente a intenção de iniciar processo disciplinar comunicada pela Comissão Permanente do Partido Socialista, ao contrário do alegado pelo arguido.
k) Os factos e as provas constam das cópias dos Tweets que o arguido emitiu, e que são do conhecimento público em virtude de terem sido veiculadas através das redes sociais, cópias essas que se encontram nos autos.
l) O próprio Recorrente reconhece nas suas defesas que proferiu tais declarações, como também as situa no tempo e lugar.
m) Assim, cabe à Comissão Federativa de Jurisdição apurar os factos e concluir por eventual sanção a aplicar.
n) Pelo que concluímos não existir assim qualquer violação do artº 25º do Regulamento acima mencionado, e pela improcedência da exceção alegada.».
9.4. O artigo 25.º do RPDPS, sob a epígrafe “Participação”, estabelece o seguinte:
«1. O procedimento disciplinar depende da participação de órgão ou filiado do Partido no pleno gozo dos seus direitos.
2. A participação revestirá a forma escrita e deverá vir assinada com a indicação da morada ou sede do participante e ainda da sua Secção quando se trate da pessoa singular.
3. O participante deverá descrever sumariamente os fatos imputados e fornecer os meios de prova.
4. Verificando‑se que a participação não satisfaz os requisitos indicados nos números anteriores, deverá o participante ser notificado para a corrigir ou completar no prazo de cinco (5) dias sob pena de, não o fazendo, se ordenar o arquivamento do processo.».
Preliminarmente, importa salientar que a notificação efetuada, no âmbito dos presentes autos, ao Partido Socialista, para proceder à junção de cópia integral da ata onde conste a deliberação da sua Comissão Permanente que esteve na origem do processo disciplinar instaurado ao ora impugnante, não teve em vista – nem poderá ter como efeito – determinar a sanação de qualquer vício de que padeça o procedimento disciplinar.
No entanto, conforme resulta inequívoco dos elementos constantes dos autos de procedimento disciplinar, acima referidos, teve lugar uma comunicação, via mensagem de correio eletrónico, subscrita por Catarina Faria, remetida «por incumbência da secretária-geral Adjunta, Ana Catarina Mendes» e dirigida ao Exmo. Senhor Dr. Luciano Vilhena Pereira, através da qual foi enviado «o conteúdo da deliberação tomada na Comissão Permanente» (cf. o ponto 1 dos factos acima enumerados – cf. o ponto 9.2, supra). Por outro lado, na referida comunicação consta ainda o seguinte texto: “A Comissão Permanente do Partido Socialista, considerando a informação agora conhecida do arquivamento - atenta a intenção de não participar disciplinarmente da visada e sem prejuízo da compreensão que tal decisão do ponto de vista pessoal possa merecer - mas considerando que as declarações proferidas pelo militante Manuel dos Santos são, objetivamente, graves, atentatórias e vexatórias do Partido Socialista, da sua história, da sua Declaração de Princípios e dos seus Estatutos, porque eivadas de um preconceito rácico e misógino inaceitáveis no Partido; de uma linguagem e referências inapropriadas entre militantes e de uma intenção de ofensa censurável, delibera, por unanimidade:” (cf. o ponto 2, idem).
Ou seja, dos autos do procedimento disciplinar resulta que teve lugar uma deliberação tomada na Comissão Permanente do Partido Socialista, respeitante ao militante Manuel dos Santos e às declarações por este prestadas através da rede social Twitter (declarações cujas cópias se encontram juntas com a referida mensagem de correio eletrónico) e que foram reputadas, pelo referido órgão do Partido, como «objetivamente, graves, atentatórias e vexatórias do Partido Socialista, da sua história, da sua Declaração de Princípios e dos seus Estatutos, porque eivadas de um preconceito rácico e misógino inaceitáveis no Partido; de uma linguagem e referências inapropriadas entre militantes e de uma intenção de ofensa censurável».
Por outro lado, afirmou-se na decisão recorrida que, «como refere o Recorrente no seu recurso, a Comissão Política decidiu que: “conhecida a decisão de arquivamento, mas considerando que as declarações proferidas pelo militante Manuel António dos Santos são objetivamente, graves, atentatórias e vexatórias do Partido Socialista, da sua história, da sua Declaração de Princípios e dos seus Estatutos, porque eivadas de um preconceito rácico e misógino inaceitáveis no Partido; de uma linguagem e referências inapropriadas entre militantes e de uma intenção de ofensa censurável, delibera, por unanimidade.”, porém esqueceu-se de acrescentar o seguinte: “Participar à Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, para efeitos de instauração de um processo disciplinar às informações proferidas pelo militante nº 4537”» (cf. alínea h) da decisão ora impugnada).
Assim, face a esta referência constante da decisão recorrida, a notificação efetuada nos presentes autos no sentido de ser junta a cópia da ata da reunião em que foi adotada tal deliberação teve como propósito, tão só, clarificar qual o teor integral da referida deliberação que esteve na origem do processo disciplinar instaurado ao ora impugnante.
Ora, o que o impugnante contesta neste autos é, desde logo, a circunstância de a comunicação da referida deliberação, através de mensagem de correio eletrónico, dirigida ao Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição da Federação Distrital do Porto – órgão competente para a instauração do referido procedimento –, poder valer como participação disciplinar, por a mesma omitir a referência ao facto de a Comissão Permanente do Partido Socialista ter deliberado “Participar à Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, para efeitos de instauração de um processo disciplinar às afirmações proferidas pelo militante nº 4537”.
Vejamos se lhe assiste razão.
Conforme resulta do exposto, não está em causa a existência do pressuposto prévio de que o artigo 25.º, n.º 1, do RPDPS faz depender a instauração de procedimento disciplinar. Com efeito, a participação de órgão do partido, prevista neste preceito, implica a existência de uma decisão no sentido dessa participação, a qual existiu efetivamente no presente caso. Aliás, o impugnante, embora alegando desconhecer tal deliberação, não nega expressamente a existência da mesma.
No caso, em face da comunicação que lhe foi dirigida, e não obstante a incompletude da mensagem de correio eletrónico que se mostra junta aos autos de procedimento disciplinar, o Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição da Federação Distrital do Porto entendeu que tal era bastante que concluir pela existência da aludida participação disciplinar, razão pela qual, por despacho de 23 de maio de 2018, determinou a sua autuação como processo disciplinar e a sua distribuição (cf. o ponto 9.2., supra).
Assim, não se pode concluir, ao contrário do que refere o impugnante, pela pura e simples inexistência de qualquer ato que possa ser configurado como participação disciplinar, enquanto condição de procedibilidade, nos termos do n.º 1 do artigo 25.º do RPDPS, tanto mais que é possível identificar, pela comunicação constante dos autos de procedimento disciplinar, qual o órgão que tomou a deliberação em questão e quais os factos em causa.
É certo que sempre se poderia entender, conforme sustenta o impugnante, que a circunstância de, na sua perspetiva, a participação em causa não obedecer aos requisitos expressamente definidos n.ºs 2 e 3 do referido artigo 25.º do RPDPS (segundo o impugnante, na mensagem de correio eletrónico através da qual foi efetuada a participação não está identificado o participante, a mesma não se encontra assinada e, sobretudo, não descreve sumariamente os factos imputados, nem indica quaisquer meios de prova) deveria ter determinado a notificação do participante para a corrigir ou completar, no prazo de cinco dias, os elementos em falta, sob pena de, não o fazendo, se ordenar o arquivamento do processo, nos termos do n.º 4 do referido artigo 25.º.
Contudo, conforme se refere na decisão impugnada, a participação revestiu forma escrita, foi efetuada por um órgão do partido – a Comissão Permanente –, sendo que os factos a que a mesma se reporta, pela sua simplicidade, resultam claros da conjugação da mensagem de correio eletrónico enviada, com as cópias dos tweets emitidos pelo ora impugnante, juntas com tal comunicação.
Assim, em face da referida comunicação escrita, é admissível que o Presidente do órgão com competência disciplinar lhe tenha atribuído o valor de participação disciplinar, pois da mesma é possível, conforme se disse, concluir pela existência de uma deliberação nesse sentido, por parte da Comissão Permanente do Partido (sendo que, embora no e-mail que se encontra impresso no processo não conste a transcrição integral da deliberação em questão, é possível depreender que seja esse o propósito de tal comunicação, até pela junção, com o mesmo, de cópias das declarações imputadas ao ora impugnante e que estiveram na base dessa deliberação), sendo também possível concluir a que factos a mesma respeita e qual o seu autor.
Finalmente, no que respeita à eventual necessidade de, no caso, por aplicação do n.º 4 do artigo 25.º do RPDPS, ser notificado o participante para corrigir ou completar a participação no prazo de cinco dias sob pena de, não o fazendo, se ordenar o arquivamento do processo, tal corresponderá a uma mera irregularidade do procedimento disciplinar, decorrente do incumprimento do prescrito no referido preceito regulamentar.
Ora, tal eventual incumprimento, bem como toda a argumentação expendida pelo impugnante a respeito da ausência de participação, dificilmente poderá configurar-se como reportado à violação de regra estatutária ou a ilegalidade, como exige o artigo 103.º-D, n.º 1, da LTC.
Finalmente, em face do exposto, também não se afigura que, no caso, a eventual inobservância estrita das regras procedimentais previstas no artigo 25.º do RPDPS tenha atingido o núcleo das garantias de audiência e defesa decorrentes do artigo 32.º, n.º 10, da CRP, incluindo na dimensão decorrente do princípio do contraditório. Com efeito, através da comunicação acima referida, que deu origem ao procedimento disciplinar, é possível, conforme se disse, identificar quais a imputações que são feitas ao ora impugnante, bem como o órgão que adotou a deliberação em causa, pelo que não foi colocada em causa a possibilidade de o arguido se defender das imputações que lhe são dirigidas, nem dos eventuais vícios decorrentes da falta de legitimidade do órgão participante.
Improcede, assim, a arguida nulidade do procedimento disciplinar com fundamento na violação do artigo 25.º do RPDPS.
10. Da nulidade da acusação
10.1. Segundo o impugnante, o despacho de acusação proferido no caso sub judice não cumpre as exigências contidas no n.º 1 do artigo 34.º do RPDPS, uma vez que «mais não configura que uma sequência de arguições genéricas, descritas de forma errática, confusa, e indefinida, sem serem devidamente ordenadas, nem mesmo circunstanciadas em razão de tempo lugar e modo».
Ainda segundo o impugnante, a referida acusação é vaga e imprecisa, o que impediu o exercício do seu direito de defesa, tendo como consequência necessária a nulidade insuprível da mesma, bem como da decisão de primeira instância, que acrescentou factos à acusação, sem ter garantido, quanto aos mesmos, a audição prévia do arguido.
Mais se refere que, para além de a acusação não conter os factos imputados, localizados no tempo em que ocorreram e acompanhados das circunstâncias em que foram praticados, de igual forma, não carateriza a infração imputada, não faz indicação das normas infringidas e não referencia os meios de prova, o que, em si mesmo, também importaria na nulidade insuprível da acusação, com a consequente anulação de todos os atos posteriores, ao contrário do que se decidiu na decisão ora impugnada, em que se pretende colmatar as omissões do despacho de acusação com o pretenso conhecimento pelo Arguido, ora Impugnante, do modo, lugar e tempo e demais circunstâncias da infração.
Conclui ainda o impugnante que a interpretação do referido artigo 34.º, n.º 1, preconizada no Acórdão ora impugnado, no sentido de que a falta de indicação clara das circunstâncias de modo, tempo e lugar só seriam possíveis de constituir nulidade se o arguido não tivesse percebido de todo qual a infração de que é acusado é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e da presunção de inocência, consagradas no artigo 32.º, n.ºs 1, 2 e 10 da Constituição da República Portuguesa.
Respondeu o Partido Socialista, sustentando que acusação está claramente explicitada, descrita por números, nos quais são indicados todos os factos de que o impugnante vem acusado, e que constam do relatório final da Comissão Federativa de Jurisdição, e da decisão final ora impugnada. Mais alega que só haveria nulidade se o arguido/impugnante não tivesse percebido de todo qual a infração de que é acusado, o que não aconteceu, uma vez que aquele, ao longo de toda a defesa, e mesmo agora em sede de impugnação, demonstra o total e perfeito conhecimento dos factos de que foi acusado, para além de constar da acusação a identificação da data e dos seus comportamentos, que estão devidamente plasmadas nos documentos juntos aos autos.
Conclui, por isso, não existe qualquer nulidade do de acusação, pois foi especificada a identidade do arguido, os factos imputados localizados no tempo em que ocorreram, acompanhados das circunstâncias em que foram praticados, caracterizada a infração imputada, indicadas as normas infringidas e referenciados os meios de prova, tendo sido fixado o prazo para apresentação da defesa, tudo em consonância com os termos do nº 1 do artigo 34º do referido regulamento.
10.2. O despacho de acusação proferido no procedimento disciplinar instaurado contra o ora impugnante tem o seguinte teor (cf. fls. 143/v.º a 146):
«DESPACHO DE ACUSAÇÃO
Deduzido contra:
Manuel António dos Santos, militante n.º 4537, da Concelhia de Matosinhos, secção de Sra. da Hora, residente na […], arguido no processo disciplinar em epígrafe, no qual é Participante a Comissão Permanente do Partido Socialista,
nos termos e com os seguintes Fundamentos:
1. De acordo com a participação autuada nesta CFJ, e remetida pela Comissão Permanente do Partido Socialista, o camarada Manuel António dos Santos, proferiu publicamente contra a candidata e agora Presidente da Câmara de Matosinhos, declarações que a Participante considera objetivamente graves, atentatórias e vexatórias do Partido Socialista, da sua história, da sua Declaração de Princípios e dos seus Estatutos, eivadas de um preconceito rácico e misógino, tendo o arguido usado uma linguagem inapropriada entre militantes com intencionalidade definida de ofensa censurável.
Questão Prévia:
2. O Arguido regularmente notificado para ser ouvido sobre os factos imputados, em conformidade com o previsto no n.º 2, do artigo 30º, do citado Regulamento Processual e Disciplinar, não compareceu.
3. Dispõe o n.º 1 do artigo 20º do citado Regulamento “A instrução do processo realiza-se na sede da Comissão de Jurisdição com competência para a instrução, se não houver conveniência em que as diligências se efetuem em local diferente.”
4. Entendeu-se, para o cabal exercício da instrução, que o local apropriado para o arguido ser ouvido seria a sede desta Comissão de Jurisdição, apesar das diversas tentativas, colocando o arguido na posição de poder indicar data e hora da sua conveniência para prestar as suas declarações, o mesmo não se mostrou disponível nem colaborante, conforme demonstram as missivas juntas aos autos pelo arguido.
5. Desta forma, é indubitável que o arguido prescindiu do exercício do direito de audição prévia, pelo que, se considera a matéria de facto como integralmente e fortemente indiciada.
6. Assim, e até à presente fase processual as partes tiveram igual possibilidade de dispor dos instrumentos processuais ao seu alcance para virem ao processo dizer o que tivessem por conveniente.
7. Face ao presente exposto, cumpre Decidir:
8. Nos termos do artigo 6.º do Estatutos “É membro do partido socialista quem aceitando a Declaração de Princípios, o Programa, os Estatutos e disciplina do Partido se inscreva como militante e seja aceite pelos competentes órgãos.”
9. São ainda deveres dos militantes do Partido Socialista, ao abrigo do n.º 1 alíneas c) e d) do artigo 9.º dos Estatutos supra “(…) c) Respeitar, cumprir e fazer cumprir os presentes Estatutos e seus regulamentos, bem como as decisões e deliberações dos órgãos do Partido; d) Guardar sigilo sobre as atividades internas e posições dos órgãos do Partido com caracter reservado; (…) h) Manter um elevado sentido de responsabilidade no exercício de qualquer atividade profissional, (…) cívica ou pública; (…)”
10. Perante a clareza e inequívoco conteúdo deste artigo expressamente plasmado nos Estatutos, é reveladora a conduta inapropriada, ferida de ilicitude pelo arguido.
11. Apesar das normas Estatutárias e Regulamentares, o arguido não se inibiu de comportamentos gravemente violadores das normas supracitadas, e das mais elementares regras de convivência política, social, de camaradagem e lealdade para com os pares.
12. Entre os quais se enquadram os escritos amplamente e publicamente divulgados, nomeadamente através das redes sociais e com caráter ofensivo e ultrajante contra a referida Luísa Salgueiro, candidata do PS à Câmara de Matosinhos, logo contra uma candidatura legalmente deliberada e formalmente aprovada na generalidade por toda a estrutura partidária e especificamente pelos órgãos estatutariamente competentes.
13. O arguido é eurodeputado eleito pelo Partido Socialista, e sobre ele impendem responsabilidades acrescidas no exercício da sua cidadania e nas funções políticas que assumiu em representação do Partido.
14. Dos escritos supra referidos constam expressões “dita cigana” que a própria ECRI (Commission Européenne contre le Racisme et L'lntolérance) veio considerar, no seu Relatório sobre Portugal adotado em 19 de junho de 2018 e publicado em 2 de outubro de 2018, de comentários racistas.
Desta forma,
15. Apresentou como exemplo estas declarações proferidas pelo Membro do Parlamento Europeu do Partido Socialista (MPE) Manuel dos Santos, aqui arguido, tendo concluído que este incorreu em atitudes “anticiganistas” num tweet no qual insultava a militante Luísa Salgueiro, candidata e atual Presidente de Câmara de Matosinhos, como se pode constatar pelo aqui transcrição: “Podemos notar, por exemplo, comentários racistas dirigidos a migrantes e negros proferidos por um professor da Faculdade de Economia do Porto, Pedro Cosme Vieira. No dia 16 de junho de 2017, o Membro do Parlamento Europeu do Partido Socialista (MPE) Manuel dos Santos incorreu em atitudes “anticiganistas” num tweet no qual insultava uma outra MPE24.”
16. Vem a CERI condenar esta prática de discurso de ódio e o racismo presentes no discurso público sendo dirigidos em particular à minoria nacional cigana e aos negros, a que Portugal por recomendação não pode ser indiferente, ao invés, aconselhando a adotar medidas legislativas, nomeadamente com alterações ao Código Penal, que permitam maior eficácia no combate ao Racismo e Xenofobia, aumentando-se para tanto a criminalização de condutas.
Não obstante,
17. Saber que a sua conduta é censurável, violadora dos Estatutos do Partido, e condenável nas Instâncias Europeias, veio o arguido praticando continuadamente e reiteradamente os factos supra.
18. Como se verifica através das publicações, nomeadamente no Tweets, onde o arguido se refere à Candidata à Câmara de Matosinhos, Luísa Salgueiro como “(…) dita cigana e não é só pelo aspeto, paga os favores que recebe com votos alinhados com os centralistas.”
19. E mais diz “Luísa Salgueiro, desconhecida deputada em Lisboa, reside na Maia, é protegida por Costa e Pizarro e vai ser candidata à câmara de Matosinhos.”
20. Os comentários impróprios sucedem-se repetidamente afirmando o arguido “Entre os deputados socialistas que votaram Lisboa como sede da Agência Europeia do Medicamento, esteve Luísa Salgueiro, dita cigana.”
21. A factualidade referida resulta expressamente e amplamente provada pelo teor de toda a prova documental junta aos autos.
Assim,
22. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, violando os princípios básicos de militância do Partido Socialista, “(…) desempenhar com zelo, (…) e lealdade, para com o Partido os cargos para que tenha sido eleito ou designado, ou as funções que lhe tenham sido confiadas, interna ou externamente; respeitar, respeitar cumprir e fazer cumprir os presentes Estatutos e seus regulamentos, bem como as decisões e deliberações dos órgãos do Partido;”(…) previstos no n.º 1 alíneas b) e c) do artigo 9º dos Estatutos do Partido Socialista, bem como a violação da alínea h) que preconiza “Manter em elevado sentido de responsabilidade no exercício de qualquer atividade profissional, (…) cívica ou pública;” como foi manifestamente o caso.
23. Para além da infração cometida supra referida, nos termos do n.º 3 do artigo 30º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, a própria recusa do arguido em comparecer pessoalmente, inibindo-se de estar formalmente presente perante o Relator do processo, quando regularmente convocado para o efeito, constitui infração disciplinar como demonstram os autos.
Face ao conjunto de factos acabados de narrar, verifica-se que o arguido cometeu falta, grave, nomeadamente, pelo desrespeito aos princípios programáticos essenciais e à linha política do Partido, a inobservância dos Estatutos e Regulamentos e das deliberações dos órgãos do Partido, a violação de compromissos assumidos e, em geral, conduta que acarrete sérios prejuízos ao prestígio e ao bom nome do Partido, punível com a sanção mais elevada das previstas nos termos das disposições conjugadas da alínea f), do n.º 1 e do n.ºs 2 do art.º 13.º dos EPS, do n.º 2 do art.º 10.º da alínea f), do n.º 1, do art.º 17.º e do n.º 1 e do art.º 19.º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
Incorre o arguido Manuel António dos Santos, a serem dados como provados os factos narrados em pena de expulsão.
Notifique-se o arguido do teor do despacho de acusação, fixando-se em 10 dias o prazo para, querendo, apresentar a sua defesa, requerendo tudo quanto considere adequado à sua defesa, nos termos do artigo 35º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista.
Porto, 10 de abril de 2019
P' Comissão Federativa de Jurisdição
A Instrutora
[…]».
10.3. De acordo com o artigo 34.º, n.º 1, do RPDPS, o despacho de acusação deve especificar a identidade do arguido, os factos imputados, localizados no tempo em que ocorreram e acompanhados das circunstâncias em que foram praticados, caracterizar a infração imputada, indicar as normas infringidas e referenciar meios de prova, bem como fixar o prazo para apresentação da defesa.
No caso dos autos, se é certo que o despacho de acusação começa por referir, de forma genérica e meramente conclusiva, quais as imputações dirigidas ao arguido (cf. o ponto 1), a verdade é que não deixa de concretizar os factos em que a mesma se traduz, indicando, designadamente, qual o teor das declarações proferidas (cf., os pontos 18 a 20 da acusação), o meio utilizado e o contexto em que as mesmas ocorreram (cf., em especial, os pontos 12 a 20, idem), sendo perfeitamente percetíveis quais os factos imputados, em termos de o arguido poder, quanto aos mesmos, exercer a sua defesa.
Por outro lado, para além de conter claramente quais os factos imputados, nos termos expostos, resulta também da acusação a data em que os mesmos foram praticados – o dia 16 de junho de 2017 (v., o ponto 15 da acusação) –, bem como as circunstâncias da sua prática, com um mínimo de contextualização (cf., em especial, os pontos 12 a 16), de forma a possibilitar ao arguido exercer cabalmente a sua defesa.
Acresce que consta também da acusação a caracterização da infração, com referência às normas estatutárias cuja violação é imputada ao arguido, bem como a indicação da sanção aplicável (cf. os pontos 9 a 11, 22 e conclusão final da acusação).
Finalmente, no que respeita aos meios de prova, embora o despacho ora em análise se limite a fazer referência ao «teor de toda a prova documental junta aos autos» (cf. o ponto 21), tal indicação, atenta a simplicidade dos factos e os meios de prova juntos aos autos, permite facilmente perceber que tal prova se reconduz à cópia dos tweets publicados pelo arguido, onde constam as declarações que lhe são imputadas (cópia essa que se encontra junta à participação, a fls. 3 dos autos de procedimento disciplinar, para a qual se remete no ponto 1 da acusação), bem como a cópia do relatório referido no ponto 14 da acusação (junto as fls. 21 e ss. dos autos de procedimento disciplinar – cf. fls. 118/v.º destes autos).
Assim, é de concluir que não se verificam os vícios apontados pelo impugnante.
Acresce, por outro lado, e apesar das objeções dirigidas à forma como se encontra estruturado o despacho de acusação, que o mesmo não enferma de qualquer desvio formal assinalável que pudesse comprometer a defesa do impugnante: de tal despacho constam, em termos objetivos, quais os factos imputados, a correspondente infração e as respetivas consequências, tendo sido concedido prazo para defesa.
Conclui-se, por isso, atento o já referido princípio da intervenção mínima, pela improcedência da invocada nulidade da acusação.
Por fim, importa salientar que não é a circunstância de o arguido ter percebido qual a infração de que é acusado que afasta a invocada nulidade. Conforme referido, a acusação, objetivamente considerada, não padece dos vícios que lhe são apontados, contendo os elementos necessários a que o arguido pudesse exercer cabalmente a sua defesa. A circunstância de o arguido ter efetivamente percebido quais os factos e a infração que lhe eram imputados, apenas pode evidenciar a inexistência de tais vícios, não constituindo o fundamento da improcedência da nulidade.
Face a este entendimento, carece de fundamento a inconstitucionalidade invocada.
11. Da violação das garantias de defesa por omissão de diligências probatórias
11.1. Alega o ora Impugnante que, no procedimento disciplinar, foi omitida a realização de diligências probatórias por si requeridas, ao abrigo do disposto no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, no artigo 22.º, da Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), no artigo 8.º, número 1, alínea f), dos Estatutos do Partido Socialista e no artigo 36.º, número 2., do RPDPS, o que constitui uma violação dos seus direitos e garantias de defesa, geradora de nulidade do procedimento disciplinar (cf. os artigos 64.º a 119.º da petição inicial).
11.2. Com interesse para a apreciação desta matéria, resulta dos autos o seguinte:
1. O ora impugnante, apresentou a sua defesa no procedimento disciplinar, tendo feito constar do respetivo requerimento, entre o mais, o seguinte:
«[…]
23.º O Arguido é militante do Partido Socialista desde 8 de abril de 1975.
24.º Tendo dedicado toda a sua vida ao serviço do Partido Socialista e do Estado Português, prestando uma constante e relevante contribuição para a “construção de uma sociedade livre, igualitária, solidária, económica e socialmente desenvolvida, ecologicamente sustentável”.
25.º Pautando a sua conduta na vida pública, partidária, social, particular e familiar pelos princípios da liberdade, igualdade e solidariedade.
26.º Sendo defensor daqueles princípios, nunca, em toda a sua vida, o Arguido teve ou defendeu qualquer atitude xenófoba ou discriminatória em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
27.º Pelo contrário, sempre se pautou e lutou, de forma intransigente, pelo valor da igualdade, tal como constitucionalmente consagrado e repudiando toda e qualquer violação àquele princípio constitucional.
28.º Conduta que sempre pautou o seu exercício em todos os cargos, ao serviço do Partido Socialista e do Estado Português, que desempenhou ao longo de mais de 40 (quarenta) anos, a saber:
a) Presidente da Federação do Porto;
b) Membro da Comissão Nacional;
c) Membro da Comissão Política Nacional;
d) Secretário Nacional, com Vítor Constâncio, Mário Soares e Jorge Sampaio;
e) Vereador na Câmara Municipal do Porto;
f) Vereador na Câmara Municipal da Maia;
g) Membro da Assembleia Municipal de Matosinhos;
h) Membro da Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia;
i) Secretário de Estado do Comércio no Governo de António Guterres;
j) Deputado à Assembleia da República entre 1980 e 2001;
l) Deputado Europeu entre 2001 e 2009 e 2016 e 2019.
29.º Todos os cargos foram exercidos pelo Arguido enquanto militante e ao serviço do Partido Socialista.
30.º O Arguido foi, ainda, membro de órgãos de administração de várias empresas privadas de importante relevância na economia nacional.
31.º Em todas as funções desempenhadas pelo Arguido, quer no seio do Partido Socialista, quer ao serviço do Estado Português, ou, até mesmo, no âmbito do exercício de funções em entidades privadas, o Arguido sempre honrou os princípios fundadores do Partido Socialista, em defesa dos valores da democracia, da liberdade, da igualdade e solidariedade, da defesa e da promoção dos direitos humanos e da paz, da defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, do combate às desigualdades e discriminações fundadas em critérios de nascimento, sexo, orientação sexual, origem racial, fortuna, religião ou convicções, predisposição genética, ou quaisquer outras que não resultem da iniciativa e do mérito das pessoas, em condições de igualdade de direitos e oportunidades, e na defesa do Estado Social.
32.º O Arguido sempre prestou total colaboração ao Partido Socialista e a todos os seus militantes ou simpatizantes.
[…]
36.º Ao longo de toda a sua vida partidária, o Arguido nunca foi visado ou condenado em qualquer processo disciplinar.
[…]
Prova
Documental:
Requer-se que sejam oficiados os serviços do Partido Socialista para juntarem aos autos documentos comprovativos da matéria alegada nos artigos 23.º, 28.º, 29.º e 36.º da presente Defesa.
Testemunhal:
1. José Manuel Mesquita […]
2. José Vilhena […]
3. Ernesto Augusto Jorge Páscoa […].
Todas as testemunhas deverão ser inquiridas à matéria constante nos artigos 23.º, a 32.º da presente Defesa.»
2. Não se mostra junta aos autos de procedimento disciplinar a cópia da ficha do arguido.
3. Sobre o requerimento formulado pelo arguido, ora impugnante, respeitante à junção de documentos, não recaiu qualquer despacho por parte da instrutora do procedimento disciplinar.
4. Na sequência da sua notificação para comparecer e ser inquirido, como testemunha, na sede da Federação Distrital do Partido Socialista do Porto, José Manuel Mesquita apresentou requerimento, por e-mail, alegando um contratempo que o impedia de viajar para o Porto e requerendo “que a inquirição se faça no âmbito do CFJ de Lisboa”, nos termos do disposto no artigo 29.º, do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, referindo ainda o seguinte: “A segunda questão prende-se com a matéria que serei inquirido, porquanto – tanto quanto sei – não tenho conhecimento direto de nenhum facto que possa interessar à instrução. Assim, venho requerer que seja solicitado à CFJ de Lisboa a realização de inquirição sendo, para tanto, indicada a matéria a que terei que responder. Sendo que – obtida a concordância da camarada instrutora – me encarregarei de articular diretamente com a CFJ de Lisboa o melhor dia e hora para a realização da diligência entrando, para tanto, em contacto direto com o presidente da mesma.”.
5. Em data posterior, a testemunha José Manuel Mesquita remeteu nova mensagem de correio eletrónico, dirigida à instrutora do processo, onde fez constar o seguinte: “Na sequência da minha comunicação infra, venho reforçar e afirmar que não tenho conhecimento nem direto, nem indireto, dos factos que originaram este procedimento disciplinar, pelo que será isso que irei declarar nos autos, caso a minha presença e declarações venham a ser mantidas. Termos em que requeiro ser dispensado da prestação de declarações”.
6. Nessa sequência, e sem que tenha sido dado conhecimento prévio ao arguido do requerido pela testemunha José Manuel Mesquita, foi proferido o seguinte despacho pela relatora do procedimento disciplinar: “Perante a tomada de posição da indicada testemunha José Mesquita prescinde-se da sua audição por inutilidade superveniente da lide”.
7. Das restantes testemunhas arroladas pelo arguido, apenas se procedeu à inquirição de Ernesto Augusto Jorge Páscoa, não tendo sido proferido qualquer despacho a respeito das razões da não inquirição da testemunha José Vilhena.
11.3. O artigo 30.º do RPDPS, sob a epígrafe “Diligências instrutórias”, atribuiu no seu n.º 1 ao Relator a incumbência de proceder à investigação, determinando que este comece «por ouvir o participante e as testemunhas por este indicadas ou outras que entenda convenientes, procedendo a exames e demais diligências que possam contribuir para o esclarecimento da verdade e providenciando pela junção aos autos de cópia da ficha do arguido».
Por sua vez, o artigo 31.º do mesmo RPDPS dispõe, no n.º 1, que «[n]a instrução do processo são admissíveis, todos os meios de prova em direito permitidos», conferindo-se, no n.º 2, ao participante e ao arguido o direito de «requerer ao Relator as diligências de prova que considerem necessárias ao apuramento da verdade».
No que respeita ao arguido, o regime respeitante à produção de prova no âmbito do procedimento disciplinar ora em análise, aquando da apresentação da sua defesa, encontra-se previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 36.º do RPDPD, onde se estabelece que o seguinte:
«2. Com a defesa deve o arguido apresentar rol de testemunhas, juntar documentos e requerer quaisquer diligências, que podem ser recusadas, quando manifestamente impertinentes ou desnecessárias para o apuramento dos fatos. Desta recusa cabe reclamação, sem efeito suspensivo, para o Plenário da Comissão de Jurisdição em causa, a deduzir no prazo de cinco (5) dias a contar da notificação.
3. O arguido deve indicar os factos sobre os quais incidirá a prova, não podendo ser indicadas mais de dez (10) testemunhas, na globalidade, nem mais de três a cada facto, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.».
Sendo este, em termos gerais, o regime regulamentar aplicável à realização de diligências probatórias, importa agora analisar cada um dos vícios invocados, a este respeito, pelo ora impugnante.
11.4. Como primeiro fundamento de arguição de nulidade por omissão de diligências de prova por si requeridas, o impugnante alega que, para prova da matéria alegada nos artigos 23.º, 28.º, 29.º e 36.º da sua defesa, requereu que fossem oficiados os serviços do Partido Socialista para juntarem os documentos comprovativos de tais factos, por ser a estrutura do Partido que tem tais documentos na sua disponibilidade e em arquivo, e que sobre tal requerimento de prova não recaiu qualquer despacho, designadamente indeferindo, fundamentadamente, o requerido. Mais alega o impugnante que a instrutora do procedimento disciplinar não ordenou sequer a junção dos documentos que o órgão jurisdicional, oficiosamente, está obrigado a promover, como é o caso da ficha de inscrição do arguido, em manifesta violação do disposto no artigo 30.º, n.º 1, do RPDPS, o que importou que, na decisão recorrida, se tivesse dado como não provada toda a matéria alegada pelo arguido, até o facto de não ter averbada qualquer sanção disciplinar.
O Partido impugnado respondeu, argumentando, em linha com o entendimento adotado na decisão ora impugnada, que os documentos cuja junção foi requerida pelo arguido, a existirem, se destinam a confirmar os factos que são do conhecimento público, de que o Partido Socialista e os seus órgãos, nomeadamente a Comissão Federativa de Jurisdição, têm pleno conhecimento, e que nunca foram colocados em causa, designadamente, que o impugnante é militante do PS desde 1975, que exerceu os cargos por si indicados no artigo 65º da presente impugnação, ao serviço do PS, e que nunca foi visado ou condenado em qualquer processo disciplinar.
No caso, conforme refere o impugnante, sobre o seu requerimento no sentido de se proceder à junção dos aludidos documentos, não foi proferido qualquer despacho. Por outro lado, conforme refere também o impugnante, e se alcança da leitura da decisão proferida em primeira instância pela Comissão Federativa de Jurisdição da Federação Distrital do Porto (cf. o Relatório Final e acórdão junto pelo impugnante como documento n.º 2, a fls. 72 a 82 dos autos), em tal decisão não foram dados como provados quaisquer dos factos alegados pela defesa (designadamente, os factos alegado nos artigos 23.º, 28.º, 29.º e 36.º, para cuja prova o arguido havia requerido a aludida junção de documentos).
Todavia, coerentemente com a posição adotada quanto à desnecessidade de junção dos documentos em causa, a decisão ora impugnada, embora sem se alterar a matéria de facto dada como provada na instância recorrida, acabou por valorar os factos que o arguido pretendia provar com tais documentos, para efeitos da determinação da medida e graduação da pena aplicável ao caso, à luz do artigo 20.º do RPDPS. A esse respeito, refere-se o seguinte em tal decisão:
«[…N]os termos do art.º 20º do acima citado Regulamento, deverá atender-se aos- antecedentes disciplinares do arguido, à matéria da infração, ao grau de culpabilidade e a todas as circunstâncias agravantes é atenuantes.
Nesse sentido, o arguido é detentor de um curriculum partidário vasto, com o exercício de diversas funções internas e externas em representação do Partido Socialista, conforme alegado no seu recurso, e que aqui damos por integralmente reproduzidas, currículo esse que foi devidamente tido em consideração, entendendo-se que tais factos constituem circunstâncias atenuantes que devem ser atendidas, pelo que nos parece, apurados os factos e analisada a medida da pena, que deverá ser aplicada ao arguido a pena de suspensão do direito de eleger e ser eleito até dois anos, nos termos do art.º 13.º, nº 1, alínea e), dos Estatutos do Partido Socialista, do n.º 2 do artº 10º, alínea e), do nº 1 e nº 8 do artº 17º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista, em virtude do sério prejuízo causado ao Partido Socialista e à forma reiterada corno não cumpriu com as obrigações de apresentação para tornada de declarações no decurso do processo disciplinar, com as atenuantes já acima referidas, nomeadamente a valoração das funções e do percurso político do arguido.».
Este entendimento, na hipótese de esta decisão não ser afetada por qualquer dos demais vícios invocados pelo impugnante, permite suprir a ausência de decisão, no âmbito do procedimento disciplinar, sobre a junção de documentos, bem como a falta de junção aos autos da ficha do arguido. Com efeito, entendendo-se na decisão ora impugnada que os factos em causa são do conhecimento do Partido Socialista e dos seus órgãos, nomeadamente a Comissão Federativa de Jurisdição e, que, como tal, não carecem de prova, ficará necessariamente prejudicada a necessidade de junção de tais documentos.
No entanto, não se poderá deixar de reconhecer que assiste razão ao impugnante quanto sustenta que, no âmbito do procedimento disciplinar, deveria ter recaído despacho sobre o seu requerimento no sentido da junção dos aludidos documentos. É o que impõe o n.º 2 do artigo 36.º do RPDPS, que, concedendo ao arguido a faculdade de requerer quaisquer diligências probatórias, estabelece que estas «podem ser recusadas, quando manifestamente impertinentes ou desnecessárias para o apuramento dos fatos», conferindo ainda ao arguido a possibilidade de reagir a esta recusa, através de «reclamação, sem efeito suspensivo, para o Plenário da Comissão de Jurisdição em causa».
Daí que a ausência de qualquer despacho da instrutora do processo sobre esta diligência probatória ¾ note-se que a instrutora, para além de não ter determinado a realização da diligência requerida, também não emitiu qualquer pronúncia no sentido da sua recusa ¾ privou o arguido de reagir processualmente quanto ao resultado da apreciação que mereceu o seu requerimento de prova.
Na verdade, conforme se dá nota no Acórdão n.º 592/2015, as garantias de audiência e defesa, na dimensão decorrente do princípio do contraditório, «compreendem necessariamente, não apenas a possibilidade de o arguido influir na decisão sancionatória através do oferecimento de prova dos factos que alega em sua defesa, mas também de intervir ativamente na sua produção, assim como, em geral, a possibilidade de contradizer as provas que contra si sejam produzidas». E, ainda segundo o mesmo aresto:
«O direito de participação do arguido em processo sancionatório – “right to be heard, caracterizador do “due process” – não se cinge ao oferecimento de prova. Enquanto princípio intimamente conexionado com a ideia de Estado de direito democrático (artigos 2.º e 9.º, alínea b), da Constituição), como salientado nos Acórdãos n.º 1010/96, 499/2009 e 413/2011, exige que se assegure ao arguido a possibilidade de ser ouvido sobre todos os factos, sobre todas as provas e sobre todas as questões jurídicas a ponderar na decisão final, o que “também exige que, se surgirem elementos novos na fase de defesa do arguido ou na fase de decisão, seja dada ao arguido a possibilidade de sobre eles se pronunciar, contraditando-os, infirmando-os ou negando-lhes relevância ou atendibilidade, se necessário com oportunidade de produção de prova complementar” (Acórdão n.º 499/2009).».
11.5. Um segundo fundamento com base no qual o impugnante invoca a existência de vícios do procedimento disciplinar prende-se com a circunstância de ter sido omitida a inquirição de testemunhas por si arroladas, aquando da apresentação da sua defesa.
No que respeita à primeira das testemunhas arroladas – José Manuel Mesquita –, o impugnante questiona a decisão da instrutora que, na sequência informação prestada pela aludida testemunha de que não tinha conhecimento direto, nem indireto, dos factos que originaram o procedimento disciplinar, entendeu “prescindir” da mesma “por inutilidade superveniente da lide”. O impugnante contesta, por um lado, que se verifique, no caso, uma situação de inutilidade superveniente da lide; por outro lado, insurge-se contra a circunstância de a instrutora ter proferido tal decisão sem fundamentação válida, sem notificação ao arguido, sem contraditório, decidindo assim, livre e arbitrariamente, sobre a prova que a defesa apresentou.
Relativamente à segunda das testemunhas arroladas – José Vilhena –, alega o impugnante que a mesma não foi ouvida, nem foi proferido qualquer despacho a esse respeito, contestando a argumentação da decisão ora impugnada, na qual se entendeu o seguinte:
«[…]
d) Quanto às testemunhas arroladas é evidente o lapso em que o Recorrente ocorreu, uma vez que o saudoso militante José Vilhena, faleceu há já alguns anos, pelo que nunca poderia ter sido notificado.
e) Porém, do recurso apresentado, vem o arguido referir que o Dr. José Vilhena é Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto.
f) Ora, o Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, não é o Dr. José Vilhena, já falecido, como atrás se referiu, mas sim o Dr. Luciano Augusto B. Vilhena de Pereira.
g) Acresce que, mesmo que tivesse sido arrolado o Presidente da Comissão de Jurisdição, o que não aconteceu, nunca este poderia ser ouvido como testemunha, uma vez que era um dos membros que iria participar na decisão relativa ao processo disciplinar, havendo aqui total incompatibilidade legal para prestar declarações como testemunha.».
Reconhecendo o lapso na indicação da testemunha José Vilhena e afirmando que pretendia na verdade indicar o Senhor Dr. Luciano Vilhena, como foi apreendido na decisão ora impugnado, sustenta o impugnante que, em qualquer caso, sempre se imporia uma decisão, no âmbito do procedimento disciplinar, quanto à inquirição de tal testemunha, no sentido de notificar o Arguido da impossibilidade de notificar a testemunha arrolada, por esta já haver falecido, por forma a que este, querendo, alterasse o seu rol de testemunhas; ou, no caso de se considerar que a indicação do Dr. José Vilhena, ao invés da indicação do Dr. Luciano Vilhena, correspondia a um manifesto lapso, no sentido da inquirição deste último, uma vez que, contrariamente ao alegado no Acórdão ora impugnado, não há qualquer “incompatibilidade legal” para que tal testemunha seja ouvida.
O Partido impugnado, em resposta, alegou que é evidente o lapso em que o impugnante ocorreu, uma vez que o militante José Vilhena faleceu há já alguns anos, pelo que nunca poderia ter sido notificado. Quanto às outras testemunhas arroladas, remeteu para tudo o que foi alegado em sede de relatório final, ou seja, que a exposição apelando aos mais profundos princípios democráticos e eivada de considerações políticas sobre a violação dos valores prosseguidos pelo Partido Socialista e das garantias de defesa do arguido caem pela base quando se vislumbra que tais diligências poderiam eventualmente prosseguir intuitos puramente dilatórios.
Na decisão ora impugnada entendeu-se, no que respeita à testemunha José Vilhena, que, tendo este militante do partido falecido há alguns anos, nunca poderia ser notificado, sendo evidente o lapso em que o impugnante incorrera.
Por outro lado, esclareceu-se ainda em tal decisão que, tendo o ora impugnante referido, no recurso interposto, que pretendia indicar como testemunha o Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, este não é o Dr. José Vilhena, já falecido, mas o Dr. Luciano Augusto B. Vilhena Pereira. Considerou-se, no entanto, que mesmo que tivesse sido arrolado o Presidente da referida Comissão, o que não acontecera, nunca este poderia ser ouvido como testemunha, uma vez que era um dos membros que iria participar na decisão relativa ao processo disciplinar, havendo incompatibilidade legal para prestar declarações como testemunha.
Relativamente à testemunha José Manuel Mesquita, considerou a decisão recorrida que, tendo a mesma alegado não ter qualquer conhecimento direto ou indireto dos factos que originaram o procedimento disciplinar e requerido ser dispensada de prestar declarações, conclui-se pela inutilidade da respetiva inquirição em face do requerimento que a própria apresentou.
Quanto à testemunha Ernesto Jorge Páscoa, considerou a decisão recorrida tal testemunha foi ouvida e o seu depoimento valorado pela instrutora do processo que procedeu à sua inquirição.
Finalmente, sustenta ainda a decisão recorrida que é o próprio recorrente que reconhece, na sua defesa, que tais factos e informações decorrentes dos documentos e das declarações a prestar pelas testemunhas são do conhecimento público e notório, pelo que, toda a exposição apelando aos mais profundos princípios democráticos e eivada de considerações políticas sobre a violação dos valores prosseguidos pelo Partido Socialista e das garantias de defesa do arguido, caem pela base quando se vislumbra que tais diligências poderiam eventualmente prosseguir intuitos puramente dilatórios.
Cumpre apreciar.
11.6. Importa, em primeiro lugar, salientar, no que respeita às considerações do recorrente quanto à forma como foi apreciado depoimento da testemunha Ernesto Jorge Páscoa (cf., em especial, os artigos 85.º a 87.º da petição inicial), que as mesmas respeitam à valoração da prova. Trata-se, quanto a esta testemunha, de sindicar essencialmente a matéria de facto apurada, tendo em conta o resultado da sua inquirição. Ora, tendo em conta o âmbito dos poderes de cognição atribuídos a este Tribunal, dificilmente os argumentos apresentados na impugnação quanto a esta testemunha poderão ser reportados à violação de regra estatutária ou a ilegalidade, como exige o artigo 103.º-D, n.º 1, da LTC (v., neste sentido, Acórdão n.º 590/2014). Nessa medida, atento o princípio da intervenção mínima, acima explicitado, não compete ao tribunal sindicar a valoração do depoimento em questão.
No que respeita à testemunha José Vilhena, tendo a mesma falecido, deveria o impugnante ser notificado de tal facto para, querendo, se pronunciar, requerendo o que entendesse conveniente. Acresce, por outro lado, que, a considerar-se ter havido lapso na indicação do nome dessa testemunha – pretendendo o impugnante, ao invés, arrolar como testemunha o Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, Dr. Luciano Augusto B. Vilhena Pereira –, tal notificação teria assegurado ao impugnante a oportunidade de clarificar tal questão. E, em face disso, poderia então a instrutora pronunciar-se sobre a admissibilidade de o Presidente do órgão jurisdicional competente para instruir e julgar o processo disciplinar ora em análise vir a prestar depoimento na qualidade de testemunha.
Com efeito, contrariamente ao que refere o acórdão recorrido, não resulta do RPDPS a existência de uma “incompatibilidade” preclusiva da possibilidade de o Presidente da Comissão Federativa de Jurisdição para prestar declarações como testemunha. De acordo com o artigo 5.º, n.º 1, do referido Regulamento, as Comissões Federativas de Jurisdição são compostas por cinco a sete membros, prevendo-se no n.º 3 que o Vice-Presidente substituirá o Presidente em caso de impedimento. Por outro lado, as deliberações deste órgão podem ser validamente tomadas «com a presença de, pelo menos, três dos membros que as constituem» (cf. o n.º 4 do mesmo artigo 5.º). Acresce, ainda, que o n.º 3 do artigo 6.º do RPDPS estabelece que se procede a nova distribuição sempre que a Comissão aceite escusa do Relator ou em caso de impedimento deste, apreciado nos termos e segundo o disposto no Código Processo Penal. Embora esta norma se refira apenas ao relator, deverá entender-se a remissão nela prevista se aplicará às situações de eventual impedimento de outros membros do órgão em questão. Ora, no artigo 39.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código de Processo Penal, prevê-se a possibilidade de o juiz ser oferecido como testemunhas, bem como o regime a adotar em tal hipótese.
Assim, não tendo o impugnante sido notificado da impossibilidade de audição da testemunha José Vilhena, não teve a oportunidade de se pronunciar a esse respeito, requerendo o que entendesse por conveniente a esse respeito, v.g., solicitando a inquirição de outra testemunha ou esclarecendo – como o fez em sede de recurso da decisão da Comissão Federativa de Jurisdição do Porto –, que havia incorrido em lapso e que pretendia arrolar como testemunha o Presidente daquele órgão. E, nesta última hipótese, deveria então ser apreciada a admissibilidade ou não da indicação desta testemunha, sendo que, conforme referido, de uma eventual recusa desta diligência probatória, poderia o arguido reagir mediante reclamação (cf. o citado n.º 2 do artigo 36.º do RPDPS).
No que respeita à testemunha José Manuel Mesquita, conforme resulta dos autos, esta remeteu uma mensagem de correio eletrónico, dirigida à instrutora do processo, onde informou não ter conhecimento direto, nem indireto, dos factos que originaram o procedimento disciplinar, requerendo ser dispensado da prestação de declarações. Nessa sequência, e sem que tenha sido dado conhecimento ao arguido do requerido pela referida testemunha, a instrutora proferiu despacho nos termos do qual prescindiu “da sua audição por inutilidade superveniente da lide”.
Ora, mesmo que se considerasse que, não obstante a formulação utilizada, este despacho equivale a uma recusa de realização de uma diligência probatória requerida pelo arguido, nos termos do referido artigo 36.º, n.º 2, do RPDPS, sempre será de considerar que ocorreu uma violação do princípio do contraditório, uma vez que, conforme defende o impugnante, antes de a instrutora tomar posição sobre a pretensão formulada pela referida testemunha, deveria o arguido ter sido notificado para se pronunciar. Por outro lado, o despacho da instrutora, nos termos do qual se “prescindiu” da inquirição de tal testemunha, deveria ter sido notificado ao arguido para que este, querendo, pudesse reagir quanto ao mesmo, nos termos do já referido artigo 36.º, n.º 2, do RPDPS. Acresce ainda que, conforme salienta também o impugnante, e no que respeita ao fundamento da não inquirição da testemunha, não resulta dos autos sobre que factos esta declarou nada saber, tanto mais que a referida testemunha foi arrolada pelo arguido para ser ouvida sobre factos alegados em sua defesa (cf. os artigos 107.º a 109.º e 112.º da petição inicial e artigos 24.º a 32.º da defesa apresentada pelo arguido no procedimento disciplinar).
Finalmente, improcede também o alegado pelo Partido ora impugnado, que, corroborando o entendido na decisão recorrida, sustenta que as diligências omitidas poderiam ter intuitos puramente dilatórios.
Com efeito, é certo, conforme se refere na decisão recorrida, que o ora impugnante, no recurso interposto para a Comissão Nacional de Jurisdição, refere que, na decisão proferida pela Comissão Federativa de Jurisdição da Federação Distrital do Porto, a relatora não deu como provado qualquer dos factos que constam da defesa «designadamente aqueles que, por serem factos do conhecimento público e notórios, não careceriam de prova, designadamente aqueles que se prendem com todos os cargos exercidos pelo Arguido no Partido Socialista ou porque eleito nas listas do Partido Socialista» (cf. o artigo 124.º do referido requerimento de recurso, a fls. 106/v.º). Estes factos, para cuja prova o arguido havida requerido a junção de documentos, nos termos expostos, vieram a ser considerados na decisão recorrida nos termos já referidos (cf. o ponto 11.4, supra). Contudo, os factos alegados pelo arguido em sua defesa, e para cuja demonstração foram arroladas as referidas testemunhas, não foram apenas os respeitantes aos cargos por si exercidos. Conforme resulta da defesa apresentada, as testemunhas foram arroladas para prova dos factos indicados nos artigos 23.º a 32.º de tal articulado. Ora, se aí se incluem, conforme referido, factos que, por terem sido considerados notórios, a decisão ora impugnada entendeu que não carecem de prova (os factos respeitantes ao currículo partidário do arguido e ao exercício por este de diversas funções internas e externas em representação do Partido Socialista – cf. a decisão recorrida, a fls. 70 dos autos), outros há que, não tendo sido dados como provados, não poderão ser tidos como irrelevantes na perspetiva da defesa apresentada.
Trata-se dos factos respeitantes à conduta observada pelo arguido na sua vida pública, partidária, social, particular e familiar – em que este alega que nunca «teve ou defendeu qualquer atitude xenófoba ou discriminatória em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual» e que «sempre se pautou e lutou, de forma intransigente, pelo valor da igualdade, tal como constitucionalmente consagrado e repudiando toda e qualquer violação àquele princípio constitucional» (cf. os pontos 25.º a 28.º da defesa apresentada) –, bem como à conduta que alega ter observado em todas as funções desempenhadas, sustentando que «sempre honrou os princípios fundadores do Partido Socialista, em defesa dos valores da democracia, da liberdade, da igualdade e solidariedade, da defesa e da promoção dos direitos humanos e da paz, da defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, do combate às desigualdades e discriminações fundadas em critérios de nascimento, sexo, orientação sexual, origem racial, fortuna, religião ou convicções, predisposição genética, ou quaisquer outras que não resultem da iniciativa e do mérito das pessoas, em condições de igualdade de direitos e oportunidades, e na defesa do Estado Social» (cf. o artigo 32.º, idem).
Tal matéria factual, que não foi dada como provada ou não provada, poderá assumir relevância, desde logo, para apreciar, na perspetiva do arguido, a motivação subjacente às declarações que conduziram à instauração do procedimento disciplinar. E poderá relevar ainda no que respeita determinação da medida e graduação da sanção (caso se conclua pela verificação dos pressupostos de que depende a sua aplicação), pois tais factos, a resultarem provados, poderão ser valorados enquanto circunstâncias atenuantes (cf. os artigos 20.º e 22.º, em especial os n.ºs 3 e 6, do RPDPS).
11.7. Do exposto decorre que, no procedimento disciplinar ora em análise, para além de não ter sido determinado, oficiosamente, conforme exige o artigo 30.º, n.º 1, do RPDPD, in fine, a junção aos autos da ficha do arguido, nem dos documentos cuja junção foi por este requerida, também não foram ouvidas todas as testemunhas arroladas pelo arguido, o que sucedeu sem que este tivesse sido notificado, quer para se pronunciar sobre as incidências que conduziram a essa não audição, quer da decisão que nesse sentido foi proferida.
Em face dos aludidos vícios acima analisados, importa concluir, assim, que não foram respeitadas as garantias de audição e defesa do impugnante, em violação do disposto no artigo 32.º, n.º 10, da CRP, bem como no artigo 22.º, n.º 2, da Lei dos Partidos Políticos e do artigo 8.º, n.º 1, alínea f) dos Estatutos do PS.
Estando em causa a omissão de diligências essenciais a uma defesa adequada e, como tal, essenciais para a descoberta da verdade, e que não poderão ter-se como supríveis ou sanáveis, tais vícios procedimentais determinam a invalidade dos termos posteriores à apresentação da defesa do arguido no referido procedimento disciplinar, com exceção do depoimento da testemunha Ernesto Jorge Páscoa (a que corresponde o autos declarações prestadas em 22 de novembro de 2019 – cf. fls. 117 e 118 do autos de procedimento disciplinar e fls. 171/v.º e 172 dos presentes autos). Tal determina necessariamente a invalidade da decisão proferida pela Comissão Federativa de Jurisdição da Federação Distrital do Porto, bem como da decisão da ora impugnada, que devem ser anuladas.
12. Em face da referida invalidade, fica prejudicada a apreciação dos demais fundamentos de nulidade invocados pelo impugnante, bem como as questões por este levantadas no que respeita à sanção aplicada.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se conceder provimento ao pedido formulado, anulando-se a decisão impugnada.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 7 de junho de 2021 – Joana Fernandes Costa – Maria José Rangel de Mesquita – João Pedro Caupers
Atesto os votos de conformidade dos Juízes Conselheiros Gonçalo Almeida Ribeiro e Lino Ribeiro, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio).
Joana Fernandes Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão relativa ao processo em referência por entender que os vícios de que enferma o processo disciplinar instaurado ao recorrente, traduzindo sérias violações dos seus direitos de defesa, não permitiam outra decisão.
Todavia, não ficaria de bem com a minha consciência se não assinalasse que o comportamento do arguido, cuja factualidade não foi posta em causa, foi reprovável e intolerável. Dirigir-se a um membro da organização partidária em que ambos militam apelidando-a, por duas vezes, de “cigana”, num contexto de acusações relativas à respetiva atividade política, não pode deixar de consubstanciar um comportamento orientado para a humilhação e o achincalhamento da visada.
Não, evidentemente, por ser censurável pertencer à etnia cigana. Ignoro, e não me interessa averiguar, se é o caso da ofendida. Seja como for, trata-se de evidente e chocante racismo, “temperado” com alguma discriminação de género, uma vez que a insultada é uma mulher e as mulheres ainda são uma minoria na política. Esta conduta não é aceitável, ainda por cima vinda de quem foi várias vezes deputado e exerceu relevantes cargos políticos e partidários.
João Caupers
[1] Eduardo Correia, in “Direito Criminal, I”, Almedina, 1971, p. 37.
[2] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2008.
[3] Neste sentido, vide, por todos, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 14 de dezembro de 2012, proferido no âmbito do Processo n.º 00493/06.2BECBR.
[4] In “Manual de Direito Administrativo”, vol. II, 10.ª edição, pp. 845, 846 e 854.
[5] Entende-se que é notório que se trata de lapso de escrita e que ao invés de “1917” se pretendia ter escrito “2017”, motivo pelo qual não se extrai qualquer consequência do erro.
[6] Vide, decisão recorrida, fls. 127.
[7] Tudo como melhor resulta dos artigos 25.º, a 36.º, da defesa apresentada pelo Arguido no procedimento disciplinar.
[8] Cf., notificação constante de fls. 112, do procedimento disciplinar.
[9] Vide e-mail junto a fls. 113, e 114, do procedimento disciplinar.
[10] Cit. e-mails, juntos a fls. 113, e 114, do procedimento disciplinar.
[11] Uma vez que o Senhor Dr. José Vilhena já faleceu há vários anos, sendo tal facto do conhecimento de todos os militantes do Partido Socialista.
[12] In Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 632/2008 de 23 de dezembro de 2008.
[13] Inaplicável ao ora impugnante, nos termos já supra explicitados.
[14] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363
[15] artigo 32.º B do Projeto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no
Diário da Assembleia da República, II Série RC, n.º 20, de 12 de setembro de 1996, pp.541 544, e I Série, n.º 95, de 17 de julho de 1997, pp. 3412 e 3466