ACÓRDÃO Nº 239/2021
Processo n.º 860/2020
Plenário
Aos vinte e um dias do mês de abril de dois mil e vinte e um, achando-se presentes o Conselheiro Presidente João Caupers e os Conselheiros José António Teles Pereira (intervindo por videoconferência), Joana Fernandes Costa, Maria José Rangel de Mesquita, Maria da Assunção Raimundo, Gonçalo de Almeida Ribeiro, Fernando Vaz Ventura, Pedro Machete, Mariana Rodrigues Canotilho, Maria de Fátima Mata‑Mouros, José João Abrantes e Lino Rodrigues Ribeiro (intervindo por videoconferência), foram trazidos à conferência os presentes autos.
Após debate e votação, e apurada a decisão do Tribunal, foi pelo Exmo. Conselheiro Presidente ditado o seguinte:
I. Relatório
1. Por decisão de 29 de maio de 2018, a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (doravante, «ECFP») julgou prestadas, com irregularidades, as contas apresentadas pelo Partido LIVRE, na altura designado «Livre/Tempo de Avançar» [artigos 27.º, n.º 4, da Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, doravante «LFP») e 43.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei da Organização e Funcionamento da ECFP, doravante «LEC»)].
2. Desta decisão não foi interposto recurso.
3. Na sequência da decisão relativa à prestação das contas, a ECFP levantou um auto de notícia e instaurou processo contraordenacional contra o LIVRE pela prática das irregularidades verificadas naquela decisão.
4. No âmbito do procedimento contraordenacional instaurado (Processo n.º 41/2019), por decisão de 30 de julho de 2020, a ECFP aplicou ao LIVRE uma coima no valor de €5.538,00, equivalente a 13 (treze) SMN de 2008, pela prática da contraordenação prevista e sancionada pelo artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, da LFP.
5. Inconformado, o arguido recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 23.º e 46.º, n.º 2, da LEC, e do artigo 9.º, alínea e), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional (doravante, «LTC»), alegando, em síntese, que a decisão não contém factos que fundamentem a atuação do Partido com dolo eventual, nem consciência da ilicitude, o que implica a sua absolvição, ao mesmo tempo que sustenta que a coima aplicada é injusta e desproporcional em face da reduzida gravidade da conduta e da ausência de benefício dela retirado e dos fatores atenuantes decorrentes da pequena dimensão e inexperiência do Partido, pugnando, a final, pela aplicação de uma admoestação ou, subsidiariamente, pela redução do montante da coima ao mínimo legal.
6. Recebido o requerimento de recurso da decisão de aplicação de coimas, a ECFP, ao abrigo do artigo 46.º, n.º 5, da LEC, sustentou a decisão recorrida e determinou a sua remessa ao Tribunal Constitucional.
7. O Tribunal Constitucional admitiu o recurso e ordenou a abertura de vista ao Ministério Público, nos termos do n.º 1 do artigo 103.º-A da LTC.
8. O Ministério Público emitiu parecer sobre o recurso da decisão sancionatória da ECFP, pronunciando-se pela sua improcedência.
9. Notificado de tal parecer, o arguido nada disse.
II – Fundamentação
[Considerações gerais sobre o novo regime de fiscalização das contas dos partidos e das campanhas eleitorais]
10. A Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, veio alterar a LFP e a LEC, introduzindo mudanças significativas no regime de apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e no regime de aplicação das respetivas coimas.
Tendo em conta que, à data de entrada em vigor dessa Lei – 20 de abril de 2018 (cfr. o seu artigo 10.º) –, os presentes autos aguardavam julgamento respeitante à legalidade e regularidade das contas, tal regime é-lhes aplicável, nos termos da norma transitória do artigo 7.º da mesma Lei.
[Do recurso da decisão da ECFP sobre a responsabilidade contraordenacional em matéria de contas de campanha]
A – Fundamentação de facto
11. Factos provados
Com relevância para a decisão, provou-se que:
Da decisão recorrida:
1. O LIVRE é um partido político português, constituído em 19 de março de 2014, cuja atividade se encontra registada junto do Tribunal Constitucional.
2. O Partido – na altura, designado «Livre/Tempo de Avançar» – apresentou candidatura às eleições para a Assembleia da República, realizadas a 4 de outubro de 2015.
3. O Partido apresentou junto do Tribunal Constitucional as respetivas contas relativas à campanha eleitoral mencionada em 2..
4. Nas contas apresentadas:
4.1. Não foram entregues o balancete do razão geral antes do apuramento de resultados das contas de campanha, o balancete do razão geral depois do apuramento de resultados das contas de campanha, o balancete analítico antes do apuramento de resultados das contas de campanha, os extratos de conta de cada uma das rubricas das demonstrações financeiras e o Anexo às contas de campanha.
4.2. O valor total das receitas de campanha corresponde a €23.767,54, o qual é divergente do valor de €25.944,04 inscrito no mapa dos valores totais das receitas.
4.3. O resultado da campanha, resultante da diferença entre o valor total das receitas e o valor total das despesas, tem o valor €-106.996,19, divergente do resultado de campanha registado na Demonstração de Resultados, que apresenta o valor de €-107.011,79.
4.4. Na Demonstração de Resultados não se encontram refletidos os montantes respeitantes aos donativos em espécie, no valor de €676,50, bem como às cedências de bens a título de empréstimo, no valor de €1.500,00.
4.5. Na Demonstração de Resultados consta o montante de €15,60, correspondente a despesas bancárias, o qual não se encontra registado nas despesas apresentadas.
4.6. No Balanço da Campanha o total do ativo, no valor de €9.760,81 (na rubrica de caixa e depósitos bancários), diverge do total de fundos patrimoniais e de passivo, no valor de €88.605,26 (correspondente ao saldo da rubrica de fornecedores) e não foi considerado, na sua preparação, o resultado apurado na campanha.
5. O Partido utilizou, como conta bancária de campanha, a conta n.º 250007066130, do Banco Caixa Geral de Depósitos, S.A..
6. Nos extratos bancários apresentados existe o movimento a crédito na conta bancária da campanha, ocorrido no dia 03/10/2015, com a descrição no extrato bancário “EmprestimoCampanha”, no valor de €3.000,00, sendo que nas contas apresentadas inexiste suporte documental a ele associado.
7. Nas contas apresentadas foram registadas as seguintes receitas sem que tenha sido exibida a respetiva documentação de suporte:
7.1. Em 19/06/2015, ação de angariação de fundos designada “Jantar/Debate na Voz do Operário em Lisboa”, no valor de €1.183,00, o qual não está titulado por meio bancário e não deu entrada na conta bancária da campanha.
7.2. Em 29/09/2015, ação de angariação de fundos designada “angariação de fundos sede de campanha em Setúbal”, no valor de €79,60, o qual não está titulado por meio bancário e não deu entrada na conta bancária da campanha.
7.3. Em 02/10/2015, ação de angariação de fundos designada “Comício de Encerramento”, “Teatro «A Barraca»”, no valor de €466,70, o qual não está titulado por meio bancário e não deu entrada na conta bancária da campanha.
7.4. Em 07/08/2015, donativo em espécie de “Azulejos”, por Ana Cordovil, no valor de €61,50.
8. Ao agir conforme descrito em 4. a 4.6. dos factos provados, não entregando os documentos descritos e apresentando o mapa da totalidade das receitas, o balanço e a demonstração de resultados nos termos descritos, o arguido representou como possível que tal não demonstrasse todas as receitas e despesas da campanha eleitoral, nem a sua origem, destino e motivo, e conformou-se com essa possibilidade, apresentando as contas nessas condições.
9. Ao agir conforme descrito em 6. dos factos provados, não entregando documento de suporte respeitante ao movimento a crédito na conta bancária da campanha, o arguido representou como possível que tal não demonstrasse a real origem e motivo da receita e conformou-se com essa possibilidade, apresentando as contas nessas condições.
10. Ao agir conforme descrito em 7. a 7.4. dos factos provados, registando nas contas receitas provenientes de ações de angariação de fundos cujo valor não estava titulado por meio bancário e não deu entrada na conta bancária da campanha, e de donativos em espécie sem a junção da respetiva documentação de suporte, o arguido representou como possível que tal não demonstrasse a real origem e motivo das receitas da campanha eleitoral e conformou-se com essa possibilidade, apresentando as contas nessas condições.
11. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e contraordenacionalmente sancionável, tendo agido livre, voluntária e conscientemente.
12. O LIVRE, nas contas referidas em 4., registou receitas no valor total de €23.767,54 e despesas no valor total de €130.763,73.
13. O LIVRE não recebeu subvenção pública para a campanha eleitoral relativa às eleições mencionadas em 2.
Do recurso:
14. As eleições referidas em 2. foram as primeiras eleições para a Assembleia da República a que o Partido LIVRE se candidatou.
15. O LIVRE no Balanço de 2014 registou um total de fundos patrimoniais e de passivo no valor de €4.500,86.
16. O LIVRE no Balanço de 2016 registou um total de fundos patrimoniais e de passivo no valor de €9.618,98.
17. O LIVRE no Balanço de 2017 registou um total de fundos patrimoniais e de passivo no valor de €11.584,15.
18. O LIVRE no Balanço de 2018 registou um total de fundos patrimoniais e de passivo no valor de €12.569,01.
[Com interesse, nenhum outro facto se provou.]
12. Motivação da matéria de facto
Na decisão sobre a matéria de facto (a qual, de resto, não foi posta em causa pelo arguido) o Tribunal teve, desde logo, em consideração factos notórios, isto é, do conhecimento geral (maxime, porque divulgados no sítio público do Tribunal Constitucional – http://www.tribunalconstitucional.pt). No mais, a convicção do Tribunal formou-se com base na análise conjugada e crítica da prova documental junta aos presentes autos e apenso (correspondente ao PA 14/AR/15/2018), como infra se explicitará.
Para prova da factualidade referida em 1. foi considerado o teor da publicação existente no sítio público da Internet do Tribunal Constitucional – http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/partidos.html, do qual a mesma se extrai.
A prova do facto mencionado em 2. resulta do teor de fls. 5 a 18 dos presentes autos e a do vertido em 3. dos documentos de fls. 22 a 61 do PA 14/AR/15/2018 apenso.
Para prova da factualidade descrita em 4. a 7. o Tribunal fundou-se, em geral, na análise das próprias contas apresentadas, que permite concluir, desde logo, pela falta de entrega dos elementos elencados no subponto 4.1..
A prova do subponto 4.2. resulta do exame do teor dos documentos junto a fls. 26 do apenso, em concreto, da comparação do valor total inscrito (€25.944,04) com a soma aritmética dos valores de cada item (€23.767,54).
A discrepância assinalada no subponto 4.3. retira-se do cálculo da diferença entre o valor total das receitas constantes dos mapas de receitas – correspondente à soma dos valores inscritos no mapa M2 (fls. 27), no mapa M3 (fls. 28, 29 e 30), no mapa M4 (fls. 31) e no mapa M5 (fls. 32), que perfaz €23.767,54 – e o valor total das despesas constantes dos mapas de despesas – correspondente à soma dos valores inseridos no mapa M7 (fls. 34), no mapa M8 (fls. 35), no mapa M9 (fls. 37), no mapa M10 (fls. 38), no mapa M11 (fls. 39), no mapa M13 (fls. 40) e no mapa M14 (fls. 41), que perfaz €130.763,73 –, que se traduz em €106.996,19 (e não €106.819,69, como, presumivelmente, por lapso, se escreveu na decisão recorrida – alteração, todavia, desprovida de relevo), valor este diferente do registado na Demonstração de Resultados, junta a fls. 45 do apenso (a que pertencem, também, os demais documentos acima citados).
A prova da factualidade narrada no subponto 4.4. decorre do confronto do teor da Demonstração de Resultados com os mapas de receitas e de despesas apresentados, em concreto, o mapa M4 (Receitas de Campanha – Donativos em espécie – fls. 31 do apenso), o mapa M5 (Receitas de Campanha – Cedências de bens – fls. 32 do apenso), o mapa M13 (Despesas de Campanha – Donativos em espécie) e o mapa M14 (Despesas de Campanha – Cedências de bens a título de empréstimo).
Por sua vez, a prova do dos factos relatados no subponto 4.5. (note-se que o Tribunal alterou a versão constante da decisão recorrida, porquanto, precisamente ao invés do que aí se dizia, o montante em causa está inscrito na Demonstração de Resultados, mas não tem registo nas despesas apresentadas – alteração que, mais uma vez, não assume especial relevância para a apreciação da responsabilidade contraordenacional) resulta do confronto do teor da Demonstração de Resultados com o mapa M11 (Despesas de Campanha – Custos Administrativos e Operacionais), junto a fls. 31 do apenso.
E para prova da factualidade referida no subponto 4.6. o Tribunal ateve-se ao teor do Balanço de Campanha Eleitoral de fls. 44 do apenso.
O facto vertido em 5. é demonstrado pelo teor do documento junto a fls. 25 do apenso.
No tocante à factualidade descrita em 6., a sua prova alicerçou-se no teor dos extratos bancários relativos à conta de campanha juntos a fls. 54 a 61 do apenso (em particular, a fls. 60), conjugado com a globalidade dos documentos apresentados com a prestação de contas, omissos quanto a esse movimento.
Finalmente, a prova da factualidade elencada em 7. sustentou-se na análise do teor dos mapas M3 (Receitas de Campanha – Produto de Angariação de Fundos) e M4 (Receitas de Campanha – Donativos em espécie), em conjugação com a globalidade dos documentos juntos com as contas e, em especial, com o teor dos extratos bancários a que se aludiu, os quais são omissos quanto a essas receitas.
De outra banda, a demonstração da factualidade narrada em 9. a 11. extrai-se da matéria objetiva dada como provada, que, à luz das regras de experiência comum, deixa antever a sua verificação, tanto mais que do Relatório da ECFP de fls. 63 a 100 do PA apenso constavam já todas as situações aqui em análise, tendo o Partido sido notificado do seu teor (cfr. fls. 103 do PA); e, apesar de lhe ter sido concedido prazo para se pronunciar e/ou retificar as contas, não o fez.
Sobre este assunto, veja-se a seguinte síntese do Acórdão n.º 98/2016: «Tratando-se, com efeito, do incumprimento de deveres que, para além de decorrerem expressamente da Lei n.º 19/2003, de 20 de junho, se encontram, quanto aos termos do seu cabal cumprimento, amplamente esclarecidos na jurisprudência do Tribunal, a conclusão que se impõe é a de que os agentes da candidatura representaram as exigências daí decorrentes no âmbito da organização das contas da campanha, tendo-se, no entanto, abstido de implementar os procedimentos necessários a assegurar a respetiva observância e conformado com o resultado desvalioso. O que conduz a ter por verificado, na modalidade de dolo eventual, o dolo exigido pelo tipo subjetivo do ilícito previsto no artigo 31.º do referido diploma legal. Finalmente, quanto à prova do substrato factual em que assenta o dolo, tem o Tribunal afirmado repetidas vezes (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 86/2008 e 405/2009) que ela decorrerá normalmente de elementos de prova indiciária ou circunstancial obtida através dos chamados juízos de inferência. Como se escreveu no primeiro dos Acórdãos citados, “além de admissível em termos gerais, o meio probatório em questão assum[e] decisiva relevância no âmbito da caracterização do «conteúdo da consciência de um sujeito no momento em que este realizou um facto objetivamente típico», em particular ao nível da determinação da «concorrência dos processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo» (cfr. Ramon Ragués I Vallès, El dolo y su prueba en el proceso penal, J.M. Bosch Editor, 1999, pg. 212 e ss.). Isto porque, conforme se sabe, o dolo – ou, melhor, o nível de representação que a sua afirmação supõe sob um ponto de vista fáctico –, uma vez que se estrutura sob realidade pertencente ao mundo interior do agente, apenas se tornará apreensível, na hipótese de não ser dado a conhecer pelo próprio, através da formulação de juízos de inferência e na presença de um circunstancialismo objetivo, dotado da idoneidade e concludência necessárias a revelá-lo”.»
Relativamente ao ponto 12. dos factos provados, os valores aí mencionados resultam do somatório das parcelas do documento de fls. 26 (receitas) e do total calculado no documento de fls. 33 (despesas), ambos do PA apenso, em confronto com os mapas apresentados no processo de prestação de contas.
A prova do facto referido em 13. fundou-se no teor dos documentos juntos a fls. 26 e 45 do apenso.
Por sua vez, o facto ínsito em 14. é do conhecimento geral e extrai-se facilmente da conjugação entre a data de criação do Partido LIVRE e a lista de eleições passadas, disponível, designadamente, no sítio público da Internet do Portal do Eleitor –https://www.portaldoeleitor.pt/Paginas/EleicoesPassadas.aspx.
Por último, para prova da factualidade elencada nos pontos 15. a 18., o Tribunal consultou as contas anuais do Partido de 2014 a 2019, disponíveis no sítio público da Internet do Tribunal Constitucional – https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/contas_eleicoes-partidos.html –, assinalando-se que do mesmo consta que em 2019 o LIVRE não apresentou as demonstrações financeiras, como o Balanço e a Demonstração de Resultados, apenas entregou documentação de suporte (recibos relativos a quotas e donativos, extratos bancários e faturas relativas a fornecimento de bens e serviços), donde a ausência de referência nos factos provados às contas de 2019.
B. Fundamentação de direito
13. Em causa estão as contas da campanha para as eleições legislativas de 4 de outubro de 2015 apresentadas pelo Partido LIVRE (à data, designado «Livre/Tempo de Avançar»).
O capítulo III da LFP contém as normas aplicáveis em sede de financiamento das campanhas eleitorais. Por sua vez, os artigos 30.º a 32.º do seu capítulo IV preveem as coimas a que estão sujeitos os infratores das regras respeitantes ao financiamento das campanhas eleitorais.
Porém, como se afirmou no Acórdão n.º 417/07 – e repetiu, designadamente, nos Acórdãos n.ºs 77/2011, 139/2012, 177/2014 e 43/2015 −, não se verifica uma correspondência perfeita entre os deveres que o Capítulo III da LFP impõe às candidaturas e as coimas previstas nos artigos 30.º a 32.º, pelo que nem todas as ilegalidades e irregularidades previamente detetadas na fiscalização às contas da campanha eleitoral implicam responsabilidade contraordenacional.
Na síntese do Acórdão n.º 43/2015, o Tribunal, com base nessa constatação, procedeu à identificação das condutas que o legislador escolheu como passíveis de coima, em matéria de financiamento e organização das contas das campanhas eleitorais, nos seguintes termos:
a) recebimento, por parte dos partidos políticos, de receitas para a campanha eleitoral através de formas não consentidas pela LFP – artigo 30.º, n.º 1, da mesma Lei;
b) incumprimento, por parte dos partidos políticos, dos limites máximos de despesas de campanha eleitoral fixados no artigo 20.º da LFP – artigo 30.º, n.º 1, desta Lei;
c) incumprimento, por parte das pessoas singulares, pessoas coletivas e respetivos administradores, das regras de financiamento de campanha eleitoral previstas no artigo 16.º da LFP – artigo 30.º, n.ºs 2 a 4, da citada Lei;
d) ausência ou insuficiência de discriminação e comprovação das receitas e despesas da campanha eleitoral, por parte dos partidos políticos, mandatários financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores – artigo 31.º da LFP;
e) incumprimento do dever de entrega, por partidos, mandatários financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores, de contas discriminadas da campanha eleitoral, nos termos previstos no artigo 27.º da LFP – artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da mesma Lei.
E, a partir desta sistematização, no Acórdão n.º 405/2009, identificaram-se, no conjunto das infrações respeitantes ao financiamento das campanhas eleitorais tipificadas na LFP, duas categorias (para além da correspondente ao incumprimento puro e simples do dever de entrega das contas discriminadas da campanha eleitoral): uma, composta por infrações relativas ao financiamento das campanhas eleitorais propriamente dito – as correspondentes à obtenção de receitas ou realização de despesas ilícitas, previstas no artigo 30.º do citado diploma; e outra, integrada pelas infrações relativas à organização das contas da campanha – as correspondentes à ausência ou insuficiência de discriminação e comprovação das receitas e despesas da campanha, a que se refere o artigo 31.º da mesma Lei. Como ali se elucida, as primeiras reportam-se à «inobservância do regime das despesas e das receitas em sentido estrito – ou seja, do conjunto das regras a que se subordina a respetiva realização e de cujo cumprimento depende a regularidade de cada ato» (cfr. os artigos 16.º, n.º 4 – anterior n.º 3 –, até “60 IAS por doador”, 19.º, n.º 3, e 20.º da LFP); as segundas respeitam à “desconsideração do regime de tratamento das receitas e despesas realizadas – isto é, do conjunto das regras que dispõem sobre a incidência contabilística dos atos já realizados” (cfr. o artigo 12.º, por força do artigo 15.º, n.º 1, e os artigos 16.º, n.ºs 2 e 4, última parte, e 19.º, n.º 2, da LFP)
Para o que ao caso importa, dispõe este artigo 31.º que “[o]s partidos políticos que cometam a infração prevista no número anterior”, isto é, “...que não discriminem ou não comprovem devidamente as receitas e despesas da campanha eleitoral...” “são punidos com coima mínima no valor de 10 vezes o valor do IAS e máxima no valor de 200 vezes o valor do IAS” [uma vez que estamos perante factos ocorridos antes de 2018, há que atentar no disposto no artigo 152.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, nos termos do qual o valor a considerar é o do salário mínimo nacional (SMN) de 2008 (€426,00), enquanto o valor do IAS não o ultrapassasse (o que só sucedeu em 2018 - cfr. a Portaria n.º 21/2018, de 18 de janeiro)].
Como resulta do teor da norma, o elemento objetivo do tipo contraordenacional em apreciação consiste na prestação de contas de campanha eleitoral sem discriminação ou sem a devida comprovação das respetivas receitas e despesas. Assim, não está em causa qualquer violação dos deveres legais de organização contabilística a que obedecem as contas das campanhas eleitorais, mas apenas e tão só a violação de tais deveres que se traduza na ausência de discriminação e/ou de devida comprovação da receita ou despesa em causa (vide Acórdão n.º 754/2020).
Relativamente ao elemento subjetivo, o tipo do artigo 31.º da LFP é estruturalmente doloso, admitindo a verificação do dolo em qualquer uma das três modalidades que dogmaticamente lhe estão associadas, ou seja, dolo direto, necessário ou eventual.
14. No caso vertente, conseguimos divisar na decisão sancionatória da ECFP três tipos de conduta em concreto:
- a primeira diz respeito à ausência de documentos contabilísticos considerados imprescindíveis, conjugada com as divergências e incongruências registadas no mapa da totalidade das receitas, na Demonstração de Resultados, nos mapas das despesas e no Balanço da Campanha (cfr. os pontos 4. a 4.6. dos factos provados);
- a segunda consiste na existência de um movimento a crédito na conta bancária da campanha sem entrega do respetivo documento de suporte (cfr. o ponto 6. dos factos provados);
- e a terceira corresponde à angariação de fundos e donativo em espécie para a campanha eleitoral sem entrega dos respetivos documentos de suporte e, no primeiro caso, sem que as receitas tenham sido movimentadas pela conta bancária da campanha, nem estejam tituladas por cheque ou outro meio bancário que permita a identificação do seu montante e da sua origem (cfr. os pontos 7. a 7.4. dos factos provados).
14.1. No tocante à primeira conduta imputada ao Partido, provou-se que (cfr. os pontos 4. a 4.6.) nas contas apresentadas:
a) não foram entregues o balancete do razão geral antes do apuramento de resultados das contas de campanha, o balancete do razão geral depois do apuramento de resultados das contas de campanha, o balancete analítico antes do apuramento de resultados das contas de campanha, os extratos de conta de cada uma das rubricas das demonstrações financeiras e o Anexo às contas de campanha;
b) o valor total das receitas de campanha corresponde a €23.767,54, o qual é divergente do valor de €25.944,04. inscrito no mapa dos valores totais das receitas;
c) o resultado da campanha, resultante da diferença entre o valor total das receitas e o valor total das despesas, tem o valor €-106.996,19, divergente do resultado de campanha registado na Demonstração de Resultados, que apresenta o valor de €-107.011,79;
d) na Demonstração de Resultados não se encontram refletidos os montantes respeitantes aos donativos em espécie, no valor de €676,50, bem como às cedências de bens a título de empréstimo, no valor de €1.500,00;
e) na Demonstração de Resultados consta o montante de €15,60, correspondente a despesas bancárias, o qual não se encontra registado nas despesas apresentadas;
f) no Balanço da Campanha o total do ativo, no valor de €9.760,81 (na rubrica de caixa e depósitos bancários), diverge do total de fundos patrimoniais e de passivo, no valor de €88.605,26 (correspondente ao saldo da rubrica de fornecedores) e não foi considerado, na sua preparação, o resultado apurado na campanha.
Nos termos do disposto no artigo 12.º, n.ºs 1 e 2, aplicável ex vi do artigo 15.º, n.º 1, ambos da LFP, a organização contabilística das campanhas eleitorais, sem prejuízo dos requisitos especiais do regime contabilístico próprio, rege-se pelos princípios aplicáveis ao Sistema de Normalização Contabilística (SNC). Destas normas extrai-se um dever genérico de organização contabilística nas campanhas eleitorais, por forma a que a contabilidade reflita, designadamente, as suas receitas e despesas.
Não há dúvida de que as ações descritas violam o disposto no citado artigo 12.º da LFP. Porém, uma vez que, como se viu, nem todas as ilegalidades e irregularidades das contas da campanha eleitoral implicam responsabilidade contraordenacional, resta saber – à luz das considerações expendidas – se tais ações são, ou não, subsumíveis à prática da contraordenação prevista e sancionada no artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, da LFP.
No que concerne à falta de entrega dos documentos contabilísticos (balancetes, extratos de conta e anexo ao balanço) e ao facto de o próprio balanço não se encontrar balanceado [cfr. as alíneas a) e f)], não se ignora a existência de jurisprudência constitucional no sentido de que se trata, primeiramente, da violação de um dever de informação, para a qual o Tribunal não tem competência sancionatória, não se enquadrando, na ausência de outros elementos de facto, na prática da contraordenação prevista e sancionada pelo artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, da LFP (neste sentido vide, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 98/2016, 537/2015 e 43/2015).
O mesmo sucede com alguns erros de cálculo e certas divergências entre o resultado da campanha apresentado e o resultado da campanha que se apura a partir das contas da receita e da despesa [cfr. as alíneas b) e c)], situações que, na falta de outros elementos, têm sido vistas como meros erros contabilísticos ou de cálculo no balanço ou no somatório final, não necessariamente coincidentes com a indevida discriminação de receitas ou despesas autonomizável de outras irregularidades (vide os Acórdãos n.ºs 537/2015 e 43/2015 citados).
Da jurisprudência constitucional citada resulta que tais condutas, isoladamente consideradas, apenas importam a violação de deveres de informação, que extravasam a competência sancionatória do Tribunal, e não permitem, sem mais, concluir pela existência de uma indevida discriminação de receitas e despesas, conforme consta da previsão típica do artigo 31.º da LFP, o que, de outra perspetiva, permite afirmar que mesmo essas irregularidades podem preencher os elementos do tipo contraordenacional em apreço, desde que as insuficiências e incongruências praticadas, globalmente consideradas, impeçam a contabilidade de refletir todas as receitas e despesas da campanha eleitoral, hipótese em que se estará perante uma “indevida discriminação de receitas e despesas”.
No caso, importa, então, analisar as irregularidades em apreço [alíneas a), b), c) e f)] conjugadamente entre si e com as restantes desconformidades detetadas.
Quanto a estas [cfr. as alíneas d) e e)], por um lado, existem montantes respeitantes a donativos em espécie e a cedências de bens a título de empréstimo que não estão refletidos na Demonstração de Resultados e, por outro, na Demonstração de Resultados consta um montante correspondente a despesas bancárias que não surge registado nas despesas apresentadas. Ora, tais omissões e discrepâncias, obstando à demonstração de todas as receitas e despesas da campanha eleitoral, configuram em si mesmas uma indevida discriminação (e comprovação) de receitas e despesas, sancionável contraordenacionalmente.
Tudo ponderado, concluímos que a ausência dos sobreditos elementos contabilísticos, as divergências e as omissões/incongruências detetadas no mapa da totalidade das receitas, na Demonstração de Resultados e no Balanço apresentados, globalmente consideradas, revelam uma contabilidade organizada sem rigor e que não reflete devidamente as receitas e despesas, isto é, não discrimina (nem comprova) a totalidade das receitas e despesas da campanha eleitoral, comprometendo a clareza e fidedignidade das contas, em violação do disposto no artigo 12.º, n.º 1, ex vi do artigo 15.º, n.º 1, ambos da LFP, subsumível, no contexto da prática dos factos, ao tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma.
14.2. Relativamente à segunda conduta imputada, provou-se, sob o ponto 6., que nos extratos bancários apresentados existe o movimento a crédito na conta bancária da campanha, ocorrido no dia 03/10/2015, com a descrição no extrato bancário “EmprestimoCampanha”, no valor de €3.000,00, sendo que nas contas apresentadas inexiste suporte documental a ele associado.
Foi, assim, identificado um valor creditado na conta bancária da campanha sem que tenha sido entregue o respetivo documento de suporte, em violação do disposto no artigo 12.º, n.º 1, aplicável ex vi do artigo 15.º, n.º 1, ambos da LFP – do qual emerge a obrigação de apresentação dos documentos de suporte da receita e da despesa –, que impossibilita a comprovação da receita em causa, conduta que integra o tipo objetivo de ilícito da contraordenação em apreço.
14.3. Finalmente, quanto à terceira conduta, está provado, sob os pontos 7. a 7.4., que nas contas apresentadas foram registadas as seguintes receitas sem que tenha sido exibida a respetiva documentação de suporte:
- em 19/06/2015, ação de angariação de fundos designada “Jantar/Debate na Voz do Operário em Lisboa”, no valor de €1.183,00, o qual não está titulado por meio bancário e não deu entrada na conta bancária da campanha;
- em 29/09/2015, ação de angariação de fundos designada “angariação de fundos sede de campanha em Setúbal”, no valor de €79,60, o qual não está titulado por meio bancário e não deu entrada na conta bancária da campanha;
- em 02/10/2015, ação de angariação de fundos designada “Comício de Encerramento”, “Teatro «A Barraca»”, no valor de €466,70, o qual não está titulado por meio bancário e não deu entrada na conta bancária da campanha;
- em 07/08/2015, donativo em espécie de “Azulejos”, por Ana Cordovil, no valor de €61,50 Eur.
Apurou-se, assim, que as elencadas receitas obtidas em angariação de fundos (subpontos 7.1. a 7.3.) e donativo em espécie (subponto 7.4.) não têm suporte documental, em incumprimento do disposto no artigo 12.º, n.º 1, ex vi do artigo 15.º, n.º 1, ambos da LFP.
Mais se apurou que as receitas provenientes de angariação de fundos não foram movimentadas pela conta bancária, nem estão tituladas por cheque ou outro meio bancário, em violação dos artigos 15.º, n.º 3, e 16.º, n.º 4, parte final, da LFP, respetivamente.
Tais irregularidades conduzem a uma ausência de comprovação destas receitas da campanha, cuja origem e motivo não podem ser sindicados, preenchendo, nessa medida, os pressupostos típicos objetivos da contraordenação prevista e sancionada pelo artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, da LFP.
14.4. No que toca ao tipo subjetivo da contraordenação, a decisão sancionatória imputa os factos ao Partido a título de dolo, sob a modalidade de dolo eventual. Nela se afirma, ainda, que o arguido teve consciência da ilicitude dos mesmos.
A este propósito, alega o recorrente que a decisão não contém factos que fundamentem a atuação do Partido com dolo eventual, nem consciência da ilicitude.
Basta, porém, atentar na factualidade descrita nos pontos 8. a 10. (quanto ao dolo) e no ponto 11. (quanto à consciência da ilicitude) da decisão impugnada para concluir que a atuação dolosa (na modalidade de dolo eventual) e com consciência da ilicitude do arguido se encontra suficientemente sustentada em factos.
No que respeita ao dolo, nos referidos pontos 8. a 10. concretiza-se que o arguido, ao agir da forma anteriormente narrada, representou como possível o resultado da sua conduta (que ali se descreve por referência a cada imputação) e se conformou com essa possibilidade, apresentando as contas nas condições relatadas.
E, relativamente, à consciência da ilicitude, refere-se expressamente no sobredito ponto 11. que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e contraordenacionalmente sancionável, tendo agido livre, voluntária e conscientemente.
A dado passo, o recorrente parece invocar, não já no campo puramente fáctico, que, por força da sua inexperiência, o incumprimento das regras contabilísticas não pode, nem deve ser censurado. Apesar de não ser muito clara a posição do recorrente, combinando conceitos como dolo, censura/culpa e consciência da ilicitude (censurável ou não), teceremos as seguintes considerações sobre a matéria.
É comum, nos casos como os dos autos, os arguidos contestarem a possibilidade de os factos em causa lhes virem a ser subjetivamente imputados a título de dolo e/ou que tivessem tido consciência da ilicitude dos mesmos e que essa falta de consciência se possa considerar censurável.
Sucede que, como se escreveu no Acórdão n.º 140/2015, «[c]onforme afirmado já na jurisprudência do Tribunal, este tipo de argumentação procede, nos seus aspetos essenciais, de um “deficiente entendimento do exato significado do conceito de dolo em matéria de responsabilidade contraordenacional” ou da atribuição “à falta de consciência da ilicitude do facto” de “consequências que ela não tem” (cfr. Acórdão n.º 77/2011). Na verdade, “é isento de dúvida – e o Tribunal tem-no afirmado repetidamente – que as infrações contraordenacionais às regras sobre o financiamento das campanhas eleitorais e a apresentação das respetivas contas são estruturalmente dolosas, no sentido de que os factos em que se consubstancia a infração apenas estão tipificados como contraordenação quando cometidos com dolo. Com efeito, na ausência, nesta matéria, de norma específica no sentido da punição contraordenacional das infrações negligentes, vale a regra geral constante do artigo 8.º, n.º 1, do RGCO, nos termos do qual “só é punível o facto praticado com dolo”. É, por outro lado, igualmente seguro – e também tem sido reiteradamente afirmado pelo Tribunal – que a responsabilidade contraordenacional, designadamente a que decorre da violação de regras sobre o financiamento das campanhas eleitorais e a apresentação das respetivas contas, é compatível com qualquer forma de dolo – direto, necessário ou eventual (cfr. o artigo 14.º do Código Penal, aplicável subsidiariamente por força do artigo 32.º do RGCO) (cfr. Acórdão n.º 444/10). Todavia, conforme teve o Tribunal igualmente ocasião de afirmar, o dolo, não só em geral, mas também no que se refere às contraordenações imputadas, não pressupõe nem implica qualquer “intenção” especial uma vez que não se trata aqui de tipos de ilícito construídos “de tal forma que uma certa intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona e dele se autonomiza” (cfr. Acórdão n.º 474/09). Por outro lado, conforme também salientado já, “a falta de consciência da ilicitude do facto não afasta o dolo. Como decorre do artigo 9.º do RGCO, em termos aliás idênticos aos que resultam do artigo 17.º do Código Penal, a falta de consciência da ilicitude do facto só pode, no limite, afastar a culpa, mas apenas quando “o erro não […] for censurável” ao agente (cf. artigo 9.º, n.º 1, do RGCO). Quando censurável, a falta de consciência da ilicitude apenas pode conduzir a uma atenuação especial da coima (cf. artigo 9.º, n.º 1, do RGCO)” (cfr. Acórdão n.º 444/2010)».
Estas considerações são inteiramente transponíveis para o nosso caso, porquanto, desde logo, está em causa o incumprimento de regras específicas relativas à candidatura de um ato eleitoral que um partido, mesmo inexperiente, na ausência de outras razões – que aqui não se perfilam – não pode, em consciência, deixar de conhecer, não podendo igualmente, pelos mesmos motivos, deixar de ser censurado pelo incumprimento, nem ignorar o seu carácter ilícito.
14.5. Em suma, em face de tudo quanto foi exposto, conclui-se que a conduta do Partido integra os elementos do tipo objetivo e subjetivo da contraordenação prevista e sancionada no artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, da LFP.
15. Das consequências jurídicas da contraordenação
15.1. No âmbito do procedimento contraordenacional a ECFP aplicou ao Partido uma coima no valor de €5.538,00, equivalente a 13 (treze) SMN de 2008, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, da LFP.
Insurge-se o recorrente, desde logo, contra a natureza da medida, pugnando pela aplicação de uma admoestação e, subsidiariamente, pela redução do montante da coima ao mínimo legal.
Nos termos previstos no artigo 31.º, n.ºs 1 e 2 da LFP, a ausência ou insuficiência de discriminação e comprovação das receitas e despesas da campanha eleitoral é punível, no caso dos partidos políticos, com coima, que varia entre 10 e 200 vezes o valor do IAS.
Neste particular, importa notar que as alterações introduzidas à LFP nesta matéria, operadas pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, não são ainda aplicáveis a estes autos, por força do preceituado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 152.º deste último diploma, pois o valor da remuneração mínima mensal nacional no ano de 2008 – €426,00, por força do disposto no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 397/2007, de 31 de dezembro – era ainda superior ao valor do IAS fixado para 2016 – €419,22, de acordo com a Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março.
Assim, da conjugação das referidas normas resulta que a coima aplicável aos partidos políticos pela ausência ou insuficiência de discriminação e comprovação das receitas e despesas da campanha eleitoral oscila entre €4.260,00 e €85.200,00.
Dentro da referida moldura legal, a determinação da medida concreta da coima seguirá o critério previsto no artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (doravante, «RGCO»), segundo o qual a mesma deve ser feita em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação.
Neste contexto há que ter em conta, como o Tribunal referiu em situações anteriores, não apenas que o nível de incumprimento do regime do financiamento das campanhas eleitorais, quando globalmente considerado, pode ser mais ou menos grave − dependendo, designadamente, de ser maior ou menor, em género e em número, o conjunto de irregularidades/ilegalidades em causa (que podem ser de diversa índole, abrangendo, designadamente, o deficiente tratamento contabilístico de receitas e despesas, a deficiente comprovação de receitas e despesas, etc.) –, mas também que o incumprimento de cada dever pode ser mais ou menos intenso (dependendo, designadamente, de ser maior ou menor o número de documentos que não foram apresentados ou o não foram corretamente, de serem maiores ou menores as deficiências de discriminação ou comprovação de receitas e despesas ou de serem maiores ou menores os montantes envolvidos), sendo ainda de considerar a diversa dimensão organizativa e financeira dos partidos concorrentes, nomeadamente quanto à existência ou não de uma estrutura permanente e rotinada, bem como o comportamento anterior e posterior do agente.
15.2. Atenta a posição do recorrente, cabe, em primeiro lugar, apreciar se se justifica a aplicação de uma coima ou se, ao invés, será suficiente a aplicação de uma admoestação.
A este respeito estabelece o artigo 51.º, n.º 1, do RGCO, que, quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.
Assim, são requisitos cumulativos da aplicação da sanção de admoestação a reduzida gravidade da contraordenação e a reduzida gravidade da culpa do agente.
Do ponto de vista da gravidade da infração, importa ter em conta, desde logo, que se trata do incumprimento de um dever imposto pelo regime legal do funcionamento e organização das contas dos partidos, de carácter estruturante e essencial para o controlo e fiscalização destas. Para além da importância que o controlo das contas das campanhas eleitorais assume no quadro da efetivação de um Estado democrático, a concreta infração em causa não pode deixar de ser analisada tendo em consideração a sua natureza e dimensão.
No caso, considerando o número das infrações cometidas e a sua repercussão na clareza e fidedignidade das contas apresentadas, entendemos que a gravidade da infração, ainda que se possa considerar baixa – como adiante melhor se verá –, não se pode ter como reduzida nos termos e para os efeitos do artigo 51.º, n.º 1, citado, pelo que, falhando um dos pressupostos – de verificação cumulativa – nele previstos, tanto basta para afastar a aplicação da admoestação. Sempre se dirá, porém, que a culpa, ainda que atenuada pela pequena dimensão e estrutura do Partido e pela circunstância de estarem em causa as contas da sua primeira campanha para as eleições legislativas (pontos 14. a 18. dos factos provados), não é tão diminuta ao ponto de justificar a aplicação de uma admoestação, na medida em que, por um lado, está em causa o cumprimento de regras específicas relativas à candidatura de um ato eleitoral que um partido, mesmo inexperiente, na ausência de outras razões – que aqui não se descortinam – não pode, em consciência, deixar de conhecer e menosprezar; e, por outro, as contas de um partido pequeno e com meios mais escassos também serão, à partida, menos complexas do que as de um partido de maior dimensão (isto sem prejuízo de os sobreditos fatores atenuantes poderem ser atendidos infra em sede de determinação da medida concreta da coima).
Deste modo, não se encontram reunidos os pressupostos de aplicação de uma admoestação pela prática da contraordenação em causa.
15.3. Para determinar a medida concreta da coima, no seguimento das considerações expendidas a este respeito, começaremos por analisar as características do incumprimento do recorrente.
Esse incumprimento pode dividir-se em duas grandes modalidades, ainda que interligadas: deficiente e incorreto tratamento contabilístico das receitas e despesas e deficiente comprovação das receitas e despesas. A primeira modalidade concretiza-se em várias ações violadoras, em concreto, na ausência de documentos contabilísticos relevantes, conjugada com divergências e incongruências registadas no mapa da totalidade das receitas, na Demonstração de Resultados, nos mapas das despesas e no Balanço da Campanha (cfr. os pontos 4. a 4.6. dos factos provados, correspondentes a seis irregularidades). A segunda modalidade manifesta-se através da existência de um movimento a crédito na conta bancária da campanha sem entrega do respetivo documento de suporte (cfr. o ponto 6. dos factos provados) e através da angariação de fundos (em três momentos temporais distintos) e um donativo em espécie para a campanha eleitoral sem entrega dos respetivos documentos de suporte e, no primeiro caso, sem que as receitas tenham sido movimentadas pela conta bancária da campanha, nem estejam tituladas por cheque ou outro meio bancário que permita a identificação do seu montante e da sua origem (cfr. os pontos 7. a 7.4. dos factos provados).
Desta descrição e sistematização retira-se que são várias e de diversa índole as irregularidades cometidas. Porém, do ponto de vista da gravidade da conduta identificam-se a favor do recorrente as seguintes circunstâncias:
- como se disse já, a ausência de certos documentos contabilísticos e as deficiências de alguns dos apresentados, bem como as incorreções/divergências de valores identificadas não relevam por si só, mas em conjugação com as demais desconformidades apuradas, designadamente, omissões e incongruências quanto a receitas e despesas, num quadro geral comprometedor da clareza e fidedignidade das contas; acresce que uma das divergências de valores – a descrita no subponto 4.2. dos factos provados – parece proceder de mero erro de cálculo e outra – a referida no subponto 4.3. – é de montante diminuto;
- os montantes não refletidos na Demonstração de Resultados (cfr. o subponto 4.4.) e a despesa não registada nas contas de despesas (cfr. o subponto 4.5.) são reduzidos, sendo o relativo à despesa quase inexpressivo no conjunto das despesas de campanha;
- também as angariações de fundos e, sobretudo, o donativo em espécie desprovidos de documentação de suporte (e, no caso das primeiras, de título bancário), embora de maior valor, não representam um valor considerável no conjunto das receitas.
Em face do explanado, não podemos concluir, como na decisão sancionatória, que a gravidade da infração é mediana, devendo antes ser situada abaixo desse patamar.
Quanto à culpa, a decisão sancionatória já a classificou como leve, na medida em que o arguido agiu com dolo eventual, a sua modalidade menos intensa. Ainda assim, entendemos que a decisão não ponderou, neste plano, determinadas circunstâncias que militam a favor do recorrente.
Com efeito, conforme entendimento que este Tribunal vem deixando expresso, na determinação da medida da coima devem ser tidas em conta «as dificuldades que os partidos políticos vêm tendo na implementação das estruturas internas necessárias ao completo cumprimento da lei, principalmente considerando a pequena dimensão de alguns dos partidos políticos em causa, já que da mesma decorrerá, compreensivelmente, uma menor exigência quanto à complexidade e completude da sua organização» (Acórdão n.º 288/2005).
Assim, enquanto fatores atenuantes, não deixarão de relevar a pequena dimensão e estrutura do LIVRE e a sua inexperiência por ser um partido político recente e estas serem as primeiras eleições legislativas a que se candidatava (cfr. os pontos 1. e 14. dos factos provados).
No tocante à situação económica do Partido, na decisão sancionatória atendeu-se somente ao valor total das receitas e despesas da campanha – cujo saldo é manifestamente negativo – (cfr. o ponto 12. dos factos provados) e à ausência de subvenção pública para a campanha eleitoral (cfr. o ponto 13.), elementos que apontam no sentido de uma situação económica pouco favorável. Esta asserção sai ainda mais reforçada pela factualidade descrita nos pontos 15. a 18., porquanto os valores aí elencados sugerem igualmente uma situação económica muito modesta.
Por fim, relativamente ao benefício da conduta, consta apenas da decisão sancionatória que o mesmo não é mensurável. A este respeito, entende o recorrente, de forma conclusiva, que o benefício que retirou da campanha é nulo, alegando para tanto que não recebeu qualquer subvenção pública, teve de assumir posteriormente uma parte significativa das despesas da campanha e no seguimento desta ficou numa situação financeira debilitada. Ora, não só a afirmação de “benefício nulo” é conclusiva, tendo de ser sustentada em factos concretos, como o conceito “benefício da conduta” não significa necessariamente – e apenas – vantagem económica. Tendo isto presente, por um lado, os factos alegados para fundamentar a ausência de benefício relevam já por via da situação económica do recorrente e, por outro, cingindo-se aos proveitos económicos (ou, melhor, à falta deles), não são suficientes para concluir, com a necessária certeza, pela inexistência de qualquer benefício, designadamente, imaterial. Em consequência, nada se provou que altere a afirmação expressa na decisão sancionatória de que o benefício retirado da prática da contraordenação não é mensurável, o que torna este elemento inócuo na operação de determinação da medida concreta da coima.
15.4. Assim, ponderando o grau da gravidade da conduta – baixo – e a medida da culpa – leve –, em conjugação com a situação económica do Partido pouco desafogada, decide-se reduzir o montante da coima aplicada para €4.686,00, equivalente a 11 (onze) SMN de 2008, que se reputa como justo, adequado e proporcional.
III – Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo LIVRE, reduzindo o montante da coima aplicada ao Partido a €4.686,00, equivalente a 11 (doze) SMN de 2008.
Lisboa, 21 de abril de 2021 - Joana Fernandes Costa - Maria José Rangel de Mesquita - Assunção Raimundo - Gonçalo Almeida Ribeiro - Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete - Mariana Canotilho - Maria de Fátima Mata-Mouros - José João Abrantes - João Pedro Caupers.
Atesto os votos de conformidade dos Conselheiros José António Teles Pereira e Lino Rodrigues Ribeiro nos termos do disposto no artigo 15º-A do decreto-Lei nº 10-A/2020, de13 de março (aditado pelo artigo 3º do decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de maio).
João Pedro Caupers