ACÓRDÃO N.º 14/2021
Processo n.º 821/2020
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Vêm os recorrentes A. e B. reclamar, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, da Decisão Sumária n.º 646/2020, que concluiu pelo não conhecimento do recurso de constitucionalidade.
2. Releva para a presente reclamação que o recurso de constitucionalidade é incidente de processo criminal, no âmbito do qual foram os aqui recorrentes pronunciados pela prática de crimes de abuso de confiança e falsificação de documento. Nessa decisão, o tribunal a quo tomou posição sobre questão suscitada pelos arguidos, no sentido da inadmissibilidade das três intervenções hierárquicas suscitadas pelos assistentes, vindo a concluir pela «inviabilidade e inadequação da instrução para apreciar os despachos de intervenção do superior hierárquico». Os recorrentes arguiram a nulidade da decisão instrutória, pretensão que foi indeferida, por despacho do mesmo tribunal de 27 de junho de 2019. Deste último despacho interpuseram os recorrentes recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual foi rejeitado, por inadmissibilidade legal, por decisão sumária do relator de 19 de fevereiro de 2020. Apresentada reclamação para a conferência, o Tribunal da Relação de Coimbra, por via do acórdão recorrido, decidiu «atender parcialmente a reclamação dos recorrentes, conhecendo do recurso apenas na parte referente às invocadas nulidades da própria decisão instrutória, mas, nessa parte, julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida; e, no mais, confirmar a decisão sumária do relator».
3. Nessa sequência, os recorrentes interpuseram o recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, através de requerimento onde se lê:
«O Acórdão recorrido defendeu a inconstitucionalidade, da decisão instrutória, dos artigos 286º, n.º 1, 292º, 297º e 307º e implicitamente do artigo 17º, todos do Código de Processo Penal, interpretado no sentido da inviabilidade e inadequação da instrução para apreciar as sucessivas intervenções hierárquicas requeridas no âmbito dos presentes autos e, consequentemente, dos despachos de admissão e de intervenção quanto às mesmas.
[...]
A admissão interpretativa da inadequação e inviabilidade da instrução para apreciar as sucessivas intervenções hierárquicas nos autos de processo em apreço viola grosseiramente as garantias de defesa de um processo criminal, consignadas nos n.ºs 1 e 4 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e o acesso ao direito a um processo justo e equitativo, estabelecido no artigo 20º, n.ºs 4 e 5, da CRP e artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
[...]
Atentando assim contra princípios basilares da República Portuguesa, especificamente o respeito e a garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais de um Estado de direito democrático (artigo 2º, da CRP), bem como do princípio da legalidade (artigo 3º, n.ºs 2 e 3, da CRP).»
4. Admitido o recurso pelo tribunal a quo e remetidos os autos a este Tribunal, o Relator proferiu a decisão reclamada, entendendo que não se encontram reunidos os pressupostos (cumulativos) de admissibilidade do recurso interposto. Diz-se na mesma:
«No caso, a questão enunciada pelos recorrentes não comporta verdadeiro questionamento normativo, dirigido a controlar a conformidade de um ato do poder normativo com parâmetros constitucionais; trata-se, antes, de procurar neste Tribunal uma nova instância de controlo do mérito da decisão judicial, em si mesma, mormente na definição do sentido a atribuir ao direito infraconstitucional e respetiva aplicação no caso concreto. Assim decorre da formulação que lhe é conferida no requerimento de interposição de recurso, e, bem assim, das peças de motivação do recurso dirigido ao tribunal a quo e de reclamação para a conferência.
Com efeito, percorrendo a argumentação recursória, com tradução nas conclusões formuladas nas alegações apresentadas ao Tribunal da Relação de Coimbra, constata-se que os recorrentes não enunciaram um sentido normativo minimamente precisado, contido no ordenamento jurídico aplicável ao caso, que devesse ser recusado com fundamento em inconstitucionalidade; ao invés, limitam-se a sufragar a nulidade da decisão instrutória e do despacho de resposta à arguição de nulidades da mesma, “ao abrigo do disposto nos artigos 309º nº 2, 291º nº 3, 125º, 124º nº1, 119, alínea d) e 118º, nº 1, 17º, todos do Código de Processo Penal, e, ainda, os artigos 18º nº 1 e 32º da CRP cujo sentido normativo constitucional foi incorretamente aplicado pelo tribunal” (conclusão 12.ª). Por sua vez, na peça de reclamação para a conferência, a crítica de inconstitucionalidade é dirigida ao ato de julgamento e resultado aplicativo atingido, que os recorrentes têm como errado, vincando a “inconstitucionalidade (violação das normas estipuladas nos arts. 18º, nº 1, 32º, da CRP e art. 6, da CEDH), pela admissão de sucessivas intervenções hierárquicas (3), quando tal não é admissível pela lei processual penal”. Tratou-se, pois, da colocação de questão de direito infraconstitucional, comportando uma crítica ao próprio ato de julgamento, que se tem como errado face aos parâmetros contidos no direito ordinário e às circunstâncias do caso.
Na enunciação da questão no requerimento de interposição do presente recurso, os recorrentes persistem na colocação de problema de interpretação e aplicação do direito ordinário, procurando o controlo do ato de julgamento, em si mesmo, e do mérito do resultado aplicativo atingido no caso vertente. Ora, como se disse, esse questionamento não é idóneo a ser conhecido, por não assistir a este Tribunal competência para controlar o acerto da interpretação do direito ordinário sufragada pelos demais tribunais, assim como a sua aplicação ao caso concreto.
Assim, porque desprovido de normatividade, o objeto conferido ao recurso não é idóneo a ser conhecido.
7. Acresce que, ainda que assim não fosse, impunha-se concluir pelo não conhecimento do recurso, por inútil.
Com efeito, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, é necessário que as normas ou interpretações normativas questionadas hajam sido efetivamente aplicadas como fundamento jurídico determinante da decisão recorrida. O que se compreende, pois de outra forma o eventual juízo de desconformidade constitucional ficaria desprovido de utilidade (n.º 2 do artigo 80.º da LTC), já que não seria apto a determinar a reforma da decisão recorrida, por se manter intocado o efetivo fundamento em que assenta.
No caso em análise, a questão enunciada não corresponde a norma efetivamente aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida. Com efeito, o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão recorrido, não mobilizou qualquer dimensão normativa extraída dos “artigos 286º, n.º 1, 292º, 297º e 307º e implicitamente do artigo 17º, todos do Código de Processo Penal”; antes, na parte em que julga improcedente o recurso, entendeu que a decisão recorrida tomou posição expressa sobre a invocada nulidade da decisão instrutória, que indeferiu, ainda que com fundamentação remissiva. Como emerge claro da fundamentação, para além da invocada questão de invalidade do ato judicial, não procedeu o tribunal a quo à cognição ou reapreciação do mérito do decidido sobre a problemática da pluralidade de intervenções hierárquicas em inquérito. O que significa que, qualquer que fosse o desfecho do recurso interposto, sempre estaria o tribunal a quo habilitado a manter o decidido, por se manterem incólumes os efetivos suportes jurídicos em que assenta o decidido.»
5. Inconformados, os recorrentes defendem na peça de reclamação que a questão foi suscitada «em todas as instâncias» e que o tribunal recorrido dela deveria ter conhecido, aduzindo que «a questão de inconstitucionalidade suscitada pelos recorrentes tem relevância jurídico-constitucional, assume particular relevo social e preocupa a comunidade judiciária pelo melindre das questões que encerra sendo pertinente a aferição da sua conformidade constitucional».
6. Em resposta, o Ministério Público pronunciou-se pela correção do sumariamente decidido e pela improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
7. Nos termos relatados, os recorrentes impugnam a decisão sumária de não conhecimento do recurso. Porém, em boa verdade, não avançam qualquer argumento suscetível de colocar em crise o decidido.
Com efeito, não basta a invocação genérica de relevo social para suportar o conhecimento do recurso, sendo manifesto que o objeto que lhe é conferido não reveste normatividade. Como demonstrado na decisão sumária, e encontra confirmação na própria reclamação, os recorrentes buscam na realidade a reapreciação do mérito da própria decisão recorrida, e não de um qualquer critério ou padrão normativo de decisão presente no ordenamento aplicável. Limitam-se a colocar em formulação negativa o resultado aplicativo que têm como ajustado, o que consubstancia crítica ao próprio ato de julgamento, que se tem como errado face aos parâmetros contidos no direito ordinário e às circunstâncias do caso. Aliás, em consonância com a imputação, repetida na reclamação, do vício à própria decisão instrutória.
Estamos, pois, perante questão de direito infraconstitucional, que não pode ser conhecida por este Tribunal.
8. Afastado esse pressuposto geral do recurso de constitucionalidade, sempre se impõe confirmar a decisão de não conhecimento do recurso e indeferir a reclamação.
De todo o modo, cabe referir que se mostra igualmente acertada a decisão reclamada quanto aos seus dois outros fundamentos - ilegitimidade dos recorrentes, por não se mostrar observado o ónus imposto pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC, e inutilidade do recurso, por não se mostrar aplicada norma extraída interpretativamente dos preceitos indicados. Para além da referida questão, que já se viu não revestir normatividade, nenhuma outra, idónea fundar a fiscalização concreta da constitucional de ato normativo, com referência ao quadro problemático referido no requerimento de interposição de recurso, encontra lugar na motivação do recurso conhecido pelo tribunal a quo. Por outro lado, a reclamação nem mesmo ensaia a demonstração de que a decisão recorrida mobilizou, como determinante jurídico do nela julgado, uma qualquer dimensão normativa extraída dos «artigos 286º, n.º 1, 292º, 297º e 307º e implicitamente do artigo 17º, todos do Código de Processo Penal».
III. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação e condenar os recorrentes/reclamantes nas custas, fixando, de acordo com o impulso processual em apreço e a valoração seguida pelo Tribunal em casos similares, a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Notifique.
Lisboa, 6 de janeiro de 2021 – Fernando Vaz Ventura – Mariana Canotilho – Manuel da Costa Andrade