ACÓRDÃO Nº 393/2020
Processo n.º 1061/2019
3.ª Secção
Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que são recorrentes o Ministério Público e A., Lda., e recorrida B., foram interpostos dois recursos, ambos ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante designada pela sigla «LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 23 de setembro de 2019, que julgou procedente o recurso de apelação interposto pela ora recorrida.
2. Na qualidade de arrendatária de prédio destinado a fins habitacionais, a aqui recorrida instaurou uma ação declarativa contra a recorrente A., Lda., peticionando a condenação desta no reconhecimento de que o contrato de arrendamento relativo ao referido prédio, celebrado com o anterior proprietário do imóvel, não transitara para o NRAU, razão pela qual não poderia ser livremente denunciado pelo senhorio, carecendo, assim, de fundamento legal a oposição deste à sua renovação.
Por sentença proferida em primeira instância, a ação foi julgada improcedente.
Inconformada, a ora recorrida apelou para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão datado de 23 de setembro de 2019, julgou o recurso procedente, condenando a aqui recorrente A., Lda. a reconhecer que o contrato de arrendamento não transitara para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (abreviadamente, «NRAU»), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, e negando-lhe o direito de se opor à respetiva renovação.
Para concluir pela procedência do recurso, o Tribunal da Relação recusou a aplicação: (i) por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2.º da Constituição, da «alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano)», nos casos em que o arrendatário se tenha mantido no local arrendado, nessa qualidade, «por um período superior a trinta anos, integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei n.º 31/2012»; e (ii) por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, a norma extraída dos artigos 30.º e 31.º, n.º 6, do NRAU, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, «segundo a qual a ausência de reposta do arrendatário à proposta do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, quanto ao tipo de contrato, quanto à sua duração e quanto ao valor da renda, significa, sem que ao arrendatário tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o mesmo tenha sido advertido do efeito cominatório associado ao seu eventual silêncio, a sua aceitação quanto à transição do contrato, quanto ao seu tipo, quanto ao seu prazo e quanto ao valor da renda».
3. No segmento que aqui revela, consta do acórdão recorrido a seguinte fundamentação:
«IV. Se a aplicação/interpretação dos artigos 26, n.º 4, al. a) ex vi dos artigos 27º e 28º ou, ainda, se a aplicação/interpretação dos artigos 26º, n.º 1, 30º, n.º 1 31º, n.º 6, todos do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012 de 14.08, confronta os princípios constitucionais da segurança jurídica e proteção da confiança que emergem do conceito de Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da CRP.
Dirimidas as questões antes expostas, resulta dos termos do recurso que, a título principal e em primeiro lugar, invoca a Recorrente que a aplicação e interpretação dos artigos 26º, n.º 4 al. a) ex vi dos artigos 27º e 28º e 26º, n.º 1, 30º e 31º, nº 6, todos do NRAU (Lei n.º 6/2006 de 27.02, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012 de 14.08), ao eliminarem a proteção da Autora/arrendatária decorrente do seu direito de oposição à denúncia do contrato de arrendamento por permanecer ininterruptamente no locado há mais de 60 anos e ter mais de 65 anos, é inconstitucional por não respeitar os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, violando a Constituição da República, especialmente o seu artigo 2º (Estado de Direito Democrático).
[...]
Cumpre decidir, conhecendo, previamente, da possibilidade de conhecimento nesta instância da questão da constitucionalidade suscitada pela Recorrente.
[...]
Ao nível da aplicação no tempo do NRAU rege o preceituado no artigo 59º, n.º 1, segundo o qual «O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas leis transitórias.»
Destarte, subsistindo o contrato de arrendamento em causa à data de entrada em vigor do NRAU, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 31/2012, daí decorre que está o mesmo contrato sujeito à regulamentação prevista no Código Civil e no dito NRAU e, em particular, às suas normas transitórias, ou seja, às normas dos artigos 26º a 58º do NRAU, nesta última redação.
Neste enquadramento, o contrato de arrendamento para habitação em causa foi celebrado há cerca de 60 anos, o que significa que foi celebrado antes da entrada em vigor do DL n.º 321-B/90 de 15.10. (RAU), sendo-lhe aplicável o preceituado no artigo 27º e 28º, do NRAU, este último com a redação introduzida pela Lei n.º 31/2012.
Este último normativo dispõe no seu n.º 1 o seguinte: «Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26º, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30º a 37º e 50º a 54º.»
[...]
No caso em apreço, a senhoria, aproveitando da faculdade introduzida pelo artigo 30º do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, ex vi do artigo 28º, n.º 1, notificou a arrendatária, por carta registada com a/r, da sua intenção de proceder à transição do contrato de arrendamento para o NRAU, indicando o valor da renda (€ 100,00), o tipo de contrato (prazo certo), a sua duração (5 anos, renovável por períodos de 3 anos), o valor do locado, avaliado nos termos do CIMI, constante da caderneta predial (€ 17.670,00), juntando, ainda, cópia desta caderneta – cfr. carta de fls. 36/37 e artigo 30º, n.º 1 als. a), b) e c) do NRAU, na redação já referida.
[...]
Neste contexto, para além de outras hipóteses – que não relevam ao caso -, se o arrendatário responder à carta em apreço do senhorio e nela alegar e demonstrar que tem 65 anos ou mais, ou, em alternativa, independentemente da sua idade, que sofre de uma incapacidade superior a 60%, o contrato só fica sujeito ao NRAU por acordo das partes (artigo 36º, n.º 1, do NRAU), podendo apenas verificar-se uma atualização do valor da renda nos termos previstos nos n.ºs 2 a 10 do artigo 36º, do mesmo diploma.
Trata-se, pois, de procurar proteger os arrendatários em situação de maior fragilidade, em função da sua idade e das suas limitações físicas geradoras de significativas limitações ao nível da angariação de rendimentos que lhe possam permitir aceder ao mercado de arrendamento.
Como assim, respondendo o arrendatário nos termos antes expostos e comprovando aquelas circunstâncias, nomeadamente que tem 65 anos (ou mais), o contrato de arrendamento para habitação anterior ao RAU (de duração indeterminada e vinculístico) mantém-se em vigor “sem alteração do regime [quanto à sua duração] que lhe é aplicável; portanto, mantém o cariz vinculístico, não podendo o senhorio denunciá-lo à luz do art. 33º, n.º 5, al. a), do NRAU”, nem, ainda, opor-se à sua renovação, pois que a oposição à renovação só é aplicável aos contratos de arrendamento com prazo certo – cfr. artigos 1096º, n.º 1 e 1097, n.º 1, ambos do Cód. Civil, na redação introduzida pela mesma Lei n.º 31/2012.
Na verdade, como é consabido, a denúncia corresponde uma forma de extinção dos contratos de duração indeterminada e que pode ser exercida a todo o tempo, ao passo que a oposição à renovação é apenas aplicável aos contratos em relação aos quais tenha sido estipulado (por acordo das partes ou ex lege) um prazo renovável, visando a oposição, precisamente impedir que, no termo do prazo, o contrato se renove automaticamente por igual período.
No entanto, não obstante as suas diferenças, certo é que ambas as figuras - denúncia e oposição à renovação - têm em vista a extinção do contrato, constituindo, por isso, como é pacífico, duas modalidades da extinção do contrato de arrendamento.
Prosseguindo, se, ao invés, o arrendatário – como foi o caso – tiver sido notificado pelo senhorio nos termos do artigo 30º do NRAU e nada disser no prazo de 30 dias a contar da receção da respetiva carta, em conformidade com o disposto no n.º 6 do artigo 31º do NRAU,
«A falta de resposta vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao termo do prazo previsto nos n.ºs 1 e 2.»
Em suma, na ausência de resposta do arrendatário em face da proposta do senhorio, a lei, a título cominatório, presume iuris et iure (isto é, sem possibilidade de prova em contrário por parte do arrendatário – artigo 350º, n.º 2, do Cód. Civil) que o arrendatário aceita a renda, o tipo de contrato e a duração propostos pelo senhorio, ocorrendo a transição do contrato antigo para o NRAU a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao termo do prazo de 30 dias a que alude o n.º 1 do citado artigo 31º e passando o contrato a vigorar nos moldes propostos pelo senhorio.
Como assim, no caso dos autos, atenta a ausência de resposta da arrendatária à missiva da então senhoria (datada de 19.04.2013 e recebida pela arrendatária a 22.04.2013) em que a mesma propunha a renda mensal de € 100,00, propunha que o arrendamento passasse a ser de prazo certo (ao invés de prazo indeterminado, como antes) e, ainda, propunha que esse prazo passasse a ser de 5 anos, renovável por 3 anos, o aludido contrato de arrendamento passou a reger-se pelo NRAU a partir de 1.07.2013 (1º dia do 2º mês após o termo do prazo de resposta, ou seja, 22.04.2013 + 30 dias de resposta = 23.05.2013), passou a ser devida a renda de € 100,00 mensais, passou para um contrato de prazo certo de 5 anos, sendo automaticamente renovável, no termo desses 5 anos por mais 3 anos (artigo 1096º, n.º 1), salvo se o senhorio se opusesse a essa renovação, em conformidade com o disposto no artigo 1097º, n.º 1, devendo este último, para tanto, comunicar essa sua intenção de não renovação do contrato (oposição à renovação) com a antecedência mínima de 120 dias em relação ao termo do prazo inicial do contrato (5 anos), em conformidade com o disposto no artigo 1097º, n.º 1 al. b) e 2, ambos do Cód. Civil, na redação introduzida pela citada Lei n.º 31/2012.
E também, no caso dos autos, em função da ausência de resposta da arrendatária e em razão da aplicação dos normativos antes referidos a que ficou submetido o contrato de arrendamento para habitação, a senhoria exerceu esse seu direito de oposição à renovação do contrato no termo dos aludidos 5 anos (30.06.2018), mediante comunicação desse seu propósito de não renovação do contrato, comunicação realizada sob a forma legal (carta registada com a/r) e com a antecedência exigível de quatro meses, ou seja, a 22.02.2018, para produzir efeitos a 30.06.2018.
Foi, portanto, este enquadramento legal que se perfilhou na sentença proferida e que conduziu à improcedência da ação instaurada pela arrendatária tendo em vista pôr em causa a validade da transição do arrendamento para o NRAU levada a cabo pela senhoria e a sua conversão num contrato a prazo certo com a consequente possibilidade de a mesma lhe colocar termo mediante oposição à sua renovação.
Serve isto para dizer que, no caso sub judice, foi posto termo ao contrato de arrendamento não por via de denúncia (cfr. artigo 1101º, do Cód. Civil) – aplicável apenas aos contratos de arrendamento de duração indeterminada, como resulta do proémio do aludido normativo -, mas antes por oposição à sua renovação, sendo certo que, como já se referiu, o contrato de arrendamento em causa por força do n.º 6 do artigo 31º do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, e da ausência de resposta da arrendatária, se transformou, a partir do dia 1.07.2013, num contrato de prazo certo de 5 anos, sujeito a renovação automática por mais 3 anos (em caso de não oposição do senhorio) ou não sujeito a renovação (em caso de oposição à renovação do senhorio, a exercer na forma e no prazo legais).
[...]
Já em sede de denúncia do contrato de arrendamento para habitação celebrado em data anterior à entrada em vigor do RAU, preceitua o artigo 1101º do Cód. Civil, na redação da Lei n.º 31/2012, o seguinte:
«O senhorio pode denunciar o contrato de duração indeterminada nos casos seguintes:
a) Necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1º grau;
b) Para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado;
c) Mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação.»
As condições do exercício da denúncia motivada ou justificada nas hipóteses contempladas nas alíneas a) e b) decorrem do previsto nos artigos 1102º e 1103º do Cód. Civil, na redação da citada Lei n.º 31/2012.
Por seu turno, a alínea c) prevê uma hipótese de denúncia imotivada ou «ad nutum», em que o senhorio pode, sem carecer de justificar a sua opção, proceder à denúncia do contrato de arrendamento, denúncia que operará os seus efeitos dois anos após a respetiva comunicação do senhorio ao arrendatário.
Esta última possibilidade está, no entanto, vedada ao senhorio por expressa limitação consignada no artigo 28º, n.º 2, do NRAU, na redação da mesma Lei n.º 31/2012, o que significa que o senhorio não pode, quanto aos contratos de arrendamento para habitação anteriores ao RAU (como é o caso dos autos), denunciar «ad nutum» ou de forma imotivada o contrato de arrendamento com um aviso prévio de 2 anos (ou de 5 anos, em conformidade com a nova redação de tal normativo introduzida pela Lei n.º 13/2019).
Essa denúncia, neste tipo de contratos de arrendamento anteriores ao RAU, só pode, pois, ter lugar nas hipóteses das alíneas a) e b) do artigo 1101º, do Cód. Civil e antes referidas.
Mas, mesmo nas hipóteses de denúncia motivada previstas no citado artigo 1101º, alíneas a) e b), do Cód. Civil e de que o senhorio pode, em regra, lançar mão, por força do n.º 4 al. a) do artigo 26º ex vi do artigo 28º, n.º 1, ambos do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, o senhorio também não pode denunciar o contrato de arrendamento (que assim se mantém vinculístico) se ocorrerem as hipóteses da alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do RAU, ou seja, se no momento em que a denúncia deva produzir efeitos, o arrendatário tenha 65 anos ou mais, ou, independentemente desta, se o arrendatário se encontrar na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, factos estes que lhe incumbe demonstrar.
Resulta, assim, do regime antes exposto, em primeiro lugar, que a arrendatária e ora Recorrente poderia, na sequência da notificação da senhoria para efeitos de transição do contrato de arrendamento para o NRAU, opor-se, no prazo legal de 30 dias, a essa transição e ao tipo de contrato que lhe era proposto, invocando e demonstrando que tinha mais de 65 anos; Se o tivesse feito – como devia -, o contrato em causa só seria transferido para o NRAU, com prazo certo de 5 anos, se ambas as partes acordassem nesse sentido;
Ou seja, não dando a Recorrente o seu acordo e comprovando a sua idade superior a 65 anos, o contrato de arrendamento em apreço manter-se-ia sob o regime vinculístico anterior, com prazo indeterminado, sem prejuízo da atualização de renda (cfr. artigo 36º, n.º 1, do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012).
Nesta hipótese, mostrar-se-ia, pois, plenamente assegurado o direito da ora Recorrente a permanecer no locado, sem prejuízo da atualização da renda nos termos legais.
Por outro lado, em segundo lugar, se a senhoria tivesse optado pela denúncia motivada do contrato de arrendamento ao abrigo do preceituado no artigo 1101º, alíneas a) e b), do Cód. Civil (o que não foi o caso dos autos, pois que a senhoria optou antes pela transição do contrato para o NRAU nos termos do artigo 30º do NRAU), também aqui a arrendatária poderia invocar (e comprovar) a sua idade superior a 65 anos (artigo 107º, alínea a) do RAU ex vi dos artigos 26º e 28º do NRAU), o que inviabilizaria a denúncia imotivada do contrato de arrendamento em apreço por parte da senhoria.
Dito de outro modo, também aqui à arrendatária e ora Recorrente a lei conferia meios para salvaguardar a sua permanência no arrendado e para manter a natureza vinculística do mesmo, impedindo a posterior denúncia imotivada do contrato de arrendamento em apreço.
Todavia, a despeito do que antes se expôs, certo é também que a denúncia do contrato de arrendamento ou a própria transição do contrato de arrendamento para o NRAU como contrato a prazo certo (com a subsequente oposição à sua renovação) podem vir a culminar, como, aliás, o demonstra o caso dos autos, com a cessação do contrato de arrendamento para habitação que foi celebrado muito antes da entrada em vigor do RAU, ou seja, num quadro legal em que o contrato tinha caracter vinculístico, colocando-se, pois, nesse contexto, em causa as expectativas dos arrendatários, sendo certo que estes podem, como é o caso dos autos, serem pessoas já com alguma idade (65 anos ou mais), sujeitas a alguma vulnerabilidade e com dificuldades em obter no mercado de arrendamento uma alternativa compatível com os seus rendimentos, sabendo-se, como se sabe, que muitas destas pessoas auferem pensões de reforma ou apoios sociais de reduzido valor.
Ora, neste contexto, sucede que, como decorre do citado artigo 26º, n.º 4, al. a) do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, e ao contrário do que sucedia na redação original do NRAU (Lei n.º 6/2006 – artigo 26º, n.º 4, al. a), no próprio RAU (artigo 107º, al. b) e, antes deste, decorria já do preceituado no artigo 2º, al. b), da Lei n.º 55/79 de 15.09, deixou, a partir da entrada em vigor daquela Lei n.º 31/2012, de ser aplicável a previsão da alínea b) do artigo 107º do RAU, ou seja, deixou de constituir facto impeditivo à denúncia do contrato de arrendamento para habitação anterior ao RAU, a circunstância de o arrendatário, à data em que a denúncia produziria os seus efeitos, se manter no arrendado há mais de 30 anos, nessa qualidade, qualidade que era extensível ao cônjuge (do arrendatário) a quem tal posição se tivesse transferido, como é o caso da Recorrente, sendo considerado a seu favor o tempo de que o transmitente já beneficiasse (artigo 107º, n.º 2, do RAU).
Dito de outro modo, como se refere no AC TC n.º 297/2015, publicado no DR, II série de 7.07.2015, da alteração do artigo 26º, n.º 4 al. a), introduzida pela Lei n.º 31/2012 (eliminação da remissão para a alínea b) do artigo 107º do RAU) e da sua aplicação retroativa aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes do RAU por força do preceituado nos artigos 26º e 28º, n.º 1, do NRAU, «resulta, a contrario, que passou a ser desconsiderada a circunstância de o arrendatário permanecer no local arrendado continuamente por período superior a trinta anos», mesmo nos casos «em que já tivesse decorrido integralmente, no domínio da versão originária do citado artigo 26º, n.º 4, e da alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, o tempo de permanência do arrendatário no local arrendado», ou seja, mesmo quando, à data de entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, os arrendatários já tivessem adquirido o direito à permanência no local arrendado com base na lei em vigor.
De facto, como se refere no AC TC n.º 297/15, em moldes que julgamos ser aplicável à própria transição do contrato de arrendamento para o NRAU – pois que esta transição consente, em certas circunstâncias, como as que ora ocorrem, que seja posto termo ao contrato de arrendamento por oposição à sua renovação pelo senhorio -, «o que está em causa é, verdadeiramente, a retroatividade da alteração legislativa, sendo sobre ela que que há-de recair o juízo de desconformidade ou não desconformidade constitucional. Na verdade, desacautelando os interesses dos arrendatários de longa duração, (o legislador) tornou imediatamente irrelevante, no plano da manutenção do contrato, aquela circunstância (de o arrendatário permanecer continuamente no arrendado há mais de 30 anos), debilitando insuportavelmente a situação jurídica dos arrendatários, mesmo que o prazo de trinta anos já tivesse transcorrido por completo à data de entrada em vigor da Lei n.º 31/2012 e os arrendatários tivessem, por tal motivo, adquirido direito à permanência no arrendado com base na lei então em vigor.»
Ou seja, as normas em causa - artigo 26º, n.º 4 al. a) ex vi do artigo 28º, n.º 1, do [N]RAU, na redação da Lei n.º 31/2012, ao eliminarem a hipótese prevista na alínea b) do artigo 107º do RAU, violam o direito que, com o decurso do tempo, os arrendatários tinham adquirido a permanecer no arrendado sem o risco de denúncia ou de oposição à renovação do prazo nele previsto, ambos conduzindo à cessação do contrato de arrendamento – e, com isso, violam, aquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito.
Na verdade, importa sublinhá-lo, não está aqui em causa que o legislador ordinário possa alterar o regime do contrato de arrendamento para habitação. O legislador, como se sublinha, no AC TC n.º 559/98, citando o AC n.º 352/91 do mesmo Tribunal, ambos disponíveis in wwww.tribunalconstitucional.pt, «não está obrigado, em regra, a manter as soluções jurídicas que alguma vez adotou. Notas típicas da função legislativa são, justamente, entre outras, a liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade. Por isso, salvo nos casos em que o legislador tenha que deixar intocados direitos entretanto adquiridos, não está ele obrigado a manter as soluções consagradas na lei a cuja revisão procede. Quando se revê uma lei, em regra, é porque se pretende alterar o regime jurídico até então vigente.»
No entanto, se é certo que não existe uma norma que, a nível constitucional, impeça a retroatividade (o que sucede, apenas, no domínio penal, no domínio fiscal e no das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), essa retroatividade não pode violar “princípios constitucionais autónomos”, estando-lhe, pois, nesse enquadramento, vedado pôr em risco de forma inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa, direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos.
Num tal caso, com efeito e como salienta a doutrina firmada pelo Tribunal Constitucional «a lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito, violando o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição da República.»
Ora, no caso dos autos, a Recorrente, à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012 de 14.08, ou seja, em 12.11.2012 – cfr. artigo 15º da mesma Lei -, mantinha-se no arrendado, nessa qualidade, de forma contínua desde a data em que o seu marido (falecido em 2005) o tomou de arrendamento há cerca de 60 anos, ou seja, há bem mais de 30 anos, à data de 12.11.2012. – cfr. artigo 107º, n.ºs 1 al. b) e 2, do RAU – o que lhe conferia, pois, à luz do regime em vigor à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, o direito de se opor à cessação do contrato de arrendamento, seja ela decorrente de denúncia ou de oposição à renovação do contrato, antes convertido em contrato com prazo certo por mor da sua transição para o NRAU.
Consequentemente, no seguimento da doutrina do AC TC n.º 297/2015 (e que se mostra acolhida também no AC TC n.º 277/2016), há que concluir que a norma do artigo 26º, n.º 4 al. a), da Lei n.º 6/2006 de 27.02, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012 de 14.08, ao limitar a remissão ali prevista apenas para a alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do RAU, desconsiderando a previsão da alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 107º, desprotegeu, de forma arbitrária e demasiadamente onerosa, a posição da arrendatária e ora Recorrente (que se encontrava no arrendado, à data de entrada em vigor da dita Lei n.º 31/2012 há mais de 30 anos) – impedindo-a de se opor, com tal fundamento, à denúncia ou à cessação do contrato de arrendamento por oposição à sua renovação.
Violou, pois, em nosso ver e na esteira do aludido Acórdão do TC, esta solução legal os princípios da segurança e proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de Direito Democrático contido no artigo 2º da CRP.
Note-se que, neste conspecto, a atualização das rendas mais antigas e a consequente dinamização do mercado de arrendamento, sempre poderia ser alcançada pelo legislador em moldes que não implicassem necessariamente, nos casos dos arrendamentos mais antigos celebrados antes do RAU (em que existia uma tradição vinculística que o próprio NRAU na sua versão originária salvaguardou), a transição para o NRAU e para contratos de prazo certo e a consequente possibilidade de cessação do contrato por oposição do senhorio à sua renovação, bastando, para tanto, em nosso ver, contemplar essa atualização das rendas mais antigas em termos semelhantes aos que vieram a ser previstos nos artigos 33º a 37º da dita Lei n.º 31/2012, mas sem pôr em causa retractivamente direitos já antes consolidados e sobre os quais o arrendatário construiu as suas justas expectativas e a sua vida.
Por conseguinte, tendo a douta sentença recorrida ao decretar a improcedência da ação desconsiderado aquele direito adquirido pela arrendatária e ora Recorrente e a inconstitucionalidade do citado artigo 26º, n.º 4 al. a), da Lei n.º 6/2006 de 27.02, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012 de 14.08, daí decorre que a mesma sentença não se pode manter, antes se impondo, em nosso julgamento, recusar a aplicação da dita norma com aquele sentido/interpretação, o que implica a revogação da mesma sentença e a consequente procedência da ação proposta pela arrendatária, julgando inválida, para todos os efeitos, a transição do contrato arrendamento em causa para o NRAU e para o tipo de arrendamento com prazo certo e, logicamente, a sua subsequente cessação por oposição do senhorio à sua renovação.
Mas se este fundamento seria, em nosso ver, o bastante ao decretamento da procedência da apelação, ainda um outro fundamento avulta nesse mesmo sentido, como em seguida se explicita.
O artigo 30º do NRAU, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, tinha a seguinte redação:
«A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando:
a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;
b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;
c) Cópia da caderneta predial urbana.»
Posteriormente, com a Lei n.º 79/2014 de 19.12., este mesmo artigo 30º foi alterado nos seguintes termos:
«A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando, sob pena de ineficácia da sua comunicação:
a)….
b)….
c)….
d) Que o prazo de resposta é de 30 dias;
e) O conteúdo que pode apresentar a resposta, nos termos do n.º 3 do artigo seguinte;
f) As circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou conjuntamente com a resposta prevista na alínea anterior, e no mesmo prazo, conforme previsto no n.º 4 do artigo seguinte, e a necessidade de serem apresentados documentos comprovativos, nos termos do disposto no artigo 32º;
g) As consequências da falta de resposta, bem como da não invocação de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo seguinte.»
Por seu turno, o artigo seguinte (31º) foi também alterado, nomeadamente quanto ao seu n.º 4, que passou a ter a seguinte redação:
«4 - …
a)…
b) Idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60% nos termos e para os efeitos previstos no artigo 36º.»
Esta alteração, em particular quanto à informação a transmitir ao arrendatário nas hipóteses de transição dos antigos contratos de arrendamento para o NRAU e atualização da renda, como resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 250/XII (aprovada pelo Governo em Conselho de Ministros de 2.10.2014) – disponível in www.parlamento.pt – que veio a dar origem à Lei n.º 79/2014, enquadra-se no objetivo de proteger o arrendatário face a frequentes e compreensíveis situações de desconhecimento ou imprevidência em face da iniciativa do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o novo regime (NRAU) e/ou atualização da renda.
Com efeito, como se assinala na exposição de motivo da dita Proposta de Lei n.º 250/XII «… a monitorização da reforma (…) revelou que existiam alguns aspetos do regime legal previsto que podiam e deviam ser melhorados, nomeadamente no que respeita à transição dos contratos mais antigos para o novo regime.
Assim, alguns dos procedimentos previstos nessa matéria carecem de ajustamento e foram refletidos, inclusivamente, nas sugestões da Comissão de Monitorização da Reforma do Arrendamento Urbano, nomeadamente quanto à informação exigível na comunicação realizada pelo senhorio para atualização de renda, no sentido de esclarecer o inquilino das consequências da falta ou da extemporaneidade da sua resposta ou quanto à comprovação anual dos rendimentos por parte dos arrendatários, cujo regime legal apontava para um momento temporal que não se revelava articulado com a liquidação anual dos impostos sobre o rendimento.»
Este novo regime que, conforme decorre dos princípios gerais da aplicação da lei no tempo (artigo 12º do Cód. Civil), não é retractivamente aplicável às situações já consumadas à data da sua entrada em vigor [15], procura corresponder às preocupações de proporção e justiça que vieram a ser expressamente apontadas pelo Tribunal Constitucional ao regime introduzido pela Lei n.º 31/2012 no seu Acórdão n.º 277/2016 de 4.05.2016. [16]
Nesse douto Acórdão, o Tribunal Constitucional ponderou, além do mais, que:
- a proibição do excesso (ou da proporcionalidade em sentido amplo) constitui, tal como o princípio da proibição do arbítrio, uma componente elementar da ideia de justiça, razão por que aquele princípio pode reclamar uma validade geral;
- este princípio constitui um princípio geral de limitação do poder público, que se ancora no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição;
- o princípio da proibição do excesso pressupõe que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma justa medida;
- existe, assim, violação do princípio da proporcionalidade se a medida em análise for considerada inadequada (no sentido de ser inócua, indiferente ou até negativa, relativamente ao fim nela visado); desnecessária (no sentido de existirem outros meios adequados alternativos mas menos onerosos para atingir o fim visado); ou desproporcionada (no sentido de que o ganho de interesse público inerente ao fim visado não justifica nem compensa a carga coativa imposta, gerando uma relação desequilibrada entre os custos e os benefícios);
Com efeito, o regime legal dos artigos 30º e seguintes do NRAU que prevê a troca de comunicações entre o arrendatário e o senhorio em vista da transição para o novo regime prossegue o objetivo precípuo de uma rápida definição do estatuto do contrato, ou seja, se o mesmo se continua reger pelo regime anterior (em caso de ausência de acordo entre o inquilino e o senhorio) ou se transita para o NRAU (em caso de acordo de ambos). Nesse sentido, compreende-se a imposição de diversos ónus ao arrendatário que seja confrontado com a intenção do senhorio de submeter o contrato ao NRAU e de atualizar a renda comunicada nos termos do artigo 30º.
Desde logo, um ónus de resposta à intenção do senhorio de submeter o contrato ao NRAU, já que falta de resposta do arrendatário vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio (artigo 31º, n.º 6).
Mas também um ónus de alegação de circunstâncias que podem condicionar ou, no limite, impedir a transição do contrato para o NRAU sem o acordo do arrendatário (artigo 31º, n.º 4).
E, ainda, um ónus de comprovação de tais circunstâncias no prazo concedido para a resposta (artigo 32º).
Note-se, como se refere no aludido AC TC n.º 277/2016, cuja lição aqui se segue de perto, que todos estes ónus são agravados pela circunstância de a referida comunicação do senhorio para início do procedimento de transição ser enquadrada exclusivamente pela lei, sem indicação das diferentes opções a favor do arrendatário e das respetivas consequências, em particular das consequências que emergem do silêncio do arrendatário e que, como resulta do regime antes exposto, podem ser particularmente gravosas para a manutenção do contrato de arrendamento e para a fixação do valor da renda. Por outro lado, como também se adverte no mesmo aresto, é de recordar que a referida comunicação, além de iniciar um procedimento negocial disciplinado por regras «claramente» inspiradas no Código de Processo Civil, tem como destinatários normais pessoas já com uma certa idade, atenta a titularidade de um contrato de arrendamento celebrado antes da entrada em vigor do RAU (1990).
Dito de outra forma, em nosso ver, a associação de um efeito cominatório inelutável à ausência de resposta do arrendatário perante a proposta do senhorio, aplicado sem qualquer menção das alternativas que se colocam ao arrendatário em face dessa proposta e sem qualquer aviso prévio quanto às suas consequências (que podem ser, como viu, especialmente gravosas para a posição do arrendatário) é tanto mais chocante quanto o quadro legal aplicável se apresenta significativamente complexo e “ incide sobre situações que a lei presume, justamente, serem de particular fragilidade, como é o caso dos autos, de pessoas sujeitas às limitações próprias da idade, frequentemente acompanhadas de doenças incapacitantes.”
O mesmo Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em causa a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais: - a justificação da exigência processual em causa; - a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; - e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento os ónus. [18]
Ora, é justamente em relação a este último especto que a norma dos artigos 30º e 31º, n.º 6, do NRAU, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, suscita especiais dificuldades.
Com efeito, a solução legal de associar à ausência de resposta do arrendatário, sem que ao mesmo seja dado prévio conhecimento das alternativas que se lhe colocam (em particular em razão da sua idade – 65 anos ou mais -, dos seus rendimentos – quanto à fixação do valor da renda – e quanto à sua incapacidade física) e, ainda, sem o advertir do efeito cominatório aplicado em razão da ausência de resposta (aceitação do tipo de contrato, aceitação da sua duração e do valor da renda propostos – tudo com efeitos gravosos na sua posição e na manutenção do contrato de arrendamento), traduz-se numa opção desproporcionadamente onerosa para o arrendatário, por comparação com os benefícios que a mesma solução traz para o senhorio e para o interesse comum, qual seja a dinamização do mercado de arrendamento e a atualização das rendas mais antigas.
Na verdade, esses mesmos objetivos seriam totalmente alcançáveis se a comunicação a realizar pelo senhorio ao arrendatário para efeitos de transição do contrato para o NRAU e atualização da renda contivesse as menções que o próprio legislador veio, ainda que tardiamente, a reconhecer serem devidas e a consignar em forma de lei na Lei n.º 79/2014 de 19.09 (acima referidas), sendo certo que as mesmas são essenciais a uma esclarecida, conscienciosa (e, assim, livre) tomada de posição por parte do arrendatário, sobretudo quando, como se referiu, está em causa um quadro legal com alguma complexidade, estão em causa arrendamentos já antigos (celebrados antes de 1990) em que intervieram pessoas que hoje têm já uma certa idade, frequentemente com doenças incapacitantes ou limitativas, e com rendimentos que não lhes permitem – em caso de cessação do contrato de arrendamento ou de revisão significativa do valor da renda – aceder a uma outra alternativa, do mesmo nível, no atual mercado de arrendamento.
Em suma, como se refere no citado AC TC n.º 277/2016, numa fase já avançada da sua vida, e em que dificilmente encontrará soluções equivalentes à que tinha por consolidada, o arrendatário pode, contra a sua vontade – em razão da não perceção exata dos efeitos que decorrem da ausência da sua resposta à proposta do senhorio (e sem que para tal tenha sido esclarecido ou advertido) -, ver-se confrontado, por mor do disposto nos artigos 30º e 31º, n.º 6, do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, com um contrato de arrendamento com prazo certo e, portanto, sujeito a caducidade por oposição à sua renovação e, ou, com uma renda de valor demasiado elevado para o seu nível de rendimentos.
O que significa, pois, em conclusão, que a norma extraída dos artigos 30º e 31º, n.º 6, do NRAU, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, segundo a qual a ausência de resposta do arrendatário à proposta do senhorio quanto ao tipo de contrato, à sua duração e ao valor da renda importa, sem que o arrendatário seja esclarecido das alternativas que lhe assistem e sem que seja advertido dos efeitos cominatórios associados ao seu eventual silêncio, a aceitação do tipo de contrato, a aceitação do prazo do mesmo e do valor da renda, sofre de inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da Constituição da República.
E, assim sendo, também por esta via não pode a sentença recorrida manter-se, antes se impondo a sua revogação, com a consequente procedência da apelação, ainda que, nesta parte, por fundamentos não inteiramente coincidentes com os invocados pela Recorrente».
4. Desta decisão foram interpostos dois recursos para este Tribunal, tendo por objeto as mesmas questões de constitucionalidade.
4.1. No requerimento que sustenta o recurso interposto pelo Ministério Público, tais questões foram definidas nos seguintes termos:
«a) Foi julgada inconstitucional a alteração introduzida pela Lei n. º 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.º n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, ao ofender o direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei, por violação dos princípios da segurança Jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2,º da CRP. - Sobre a mesma questão pronunciou-se Ac TC nº 297/2015 de 2.6.2015, DR 11 Série de 7.7.2015
b) Foi julgada inconstitucional, a norma extraída dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito, no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Também sobre esta questão o Acórdão n.º 277/2016, de 14/06, do Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma extraída dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, “segundo a qual a ausência de resposta do arrendatário à proposta do senhorio os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção”.»
4.2. Já no requerimento de interposição apresentado pela recorrente A., Lda., o objeto do recurso de constitucionalidade foi assim delimitado:
«1. No âmbito dos presentes autos, o Tribunal da Relação, no acórdão em crise, julgou inconstitucional a alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, ao artigo 26..º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, por desconsiderar o direito do arrendatário à permanência no local arrendado, quando aí se tiver mantido por um período superior a 30 anos, integralmente decorrido à data da entrada em vigor daquela lei, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, ambos integrantes do princípio do Estado de Direito Democrático plasmado no artigo 2.º da GRP.
2. Foram ainda julgadas inconstitucionais as normas retiradas dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, por alegada violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da CRP, segundo as quais a ausência de reposta do arrendatário à proposta do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o NRAU, quanto ao tipo de contrato, quanto à sua duração e quanto ao valor da renda, significa, sem que ao arrendatário tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o mesmo tenha sido advertido do efeito cominatório associado ao seu eventual silêncio, a sua aceitação quanto à transição do contrato, quanto ao seu tipo, quanto ao seu prazo e quanto ao valor da renda.
3. Dado que a ora Recorrente não concorda com o juízo de inconstitucionalidade formulado por este Douto Tribunal, que concluiu pela não aplicação das referidas normas do NRAU e, em consequência, revogou a Douta Decisão proferida em 1.ª instância e condenou a Ré, aqui Recorrente, a reconhecer que o contrato de arrendamento não transitou para o NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, não lhe assistindo por isso o direito a opor-se à renovação do mesmo,
4. Nomeadamente por considerar que tal Juízo não se aplica aos casos de oposição à renovação - como ocorreu no caso sub Júdice - e por considerar que não se aplica igualmente aos casos em que o arrendatário não reagiu à comunicação de transição para o NRAU que lhe foi endereçada pelo senhorio em observância dos requisitos legais em vigor à data de tal comunicação, impõe-se que o Venerando Tribunal Constitucional se pronuncie acerca do Juízo de inconstitucionalidade formulado por este Douto Tribunal sobre as normas acima referidas, o que legitima o presente recurso.»
5. Admitidos ambos os recursos e determinado o seu prosseguimento neste Tribunal, ambos os recorrentes alegaram, formulando as correspondentes conclusões.
5.1. O Ministério Público concluiu nos seguintes termos:
1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 280.º, nºs 1, al. a), e 3, da Constituição da República Portuguesa, 70.º, n.º 1, al. a), 72.º nºs 1, al. a) e n.º 3, ambos da LOFPTC, do “douto acórdão proferido em 23.09.2019 [do Tribunal da Relação do Porto, proferido nos autos de proc. N.º 4658/18.6T8VNG.P1, em que é A. A., Lda., e R. B., fls. 80 a 103], uma vez que no mesmo: a) Foi julgada inconstitucional a alteração introduzida pela Lei n.° 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.°. n.° 4. alínea a), da Lei n.° 6/2006, de 27 de fevereiro, ao ofender o direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2.° da CRP. - Sobre a mesma questão pronunciou-se Ac TC n° 297/2015 de 2.6.2015. DR II Série de 7.7.2015; b) Foi julgada inconstitucional, a norma extraída dos artigos 30°. 31.° e 32.° do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.° 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.° 31/2012, de 14 de agosto, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito, no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2,° da Constituição. (...)”
2.ª) A norma jurídica constante do artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro por força do disposto no artigo 4.º (Alteração à Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro) da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto (Procede à revisão do regime jurídico do arrendamento urbano, alterando o Código Civil, o Código de Processo Civil e a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro) passou a ter a seguinte redação: “Continua a aplicar-se o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU”;
3.ª) Tal norma jurídica foi julgada inconstitucional, no acórdão n.º 297/2015, proc.º n.º 369/14, de 2 de junho, do Tribunal Constitucional – 1.ª secção, por ofender o direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei, violando os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2.º da CRP.
4.ª) Neste processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, importa notar que a situação de facto subjacente ao litígio cível, no que ao tempo de permanência do arrendatário no local arrendado respeita, corresponderá aos pressupostos que foram premissa do julgado de inconstitucionalidade em apreço.
5.ª) E vale aqui, igualmente, a razão de decidir, o motivo da inconstitucionalidade, ali a justo titulo discernido: “O que está em causa é, verdadeiramente, a retroatividade da alteração legislativa, sendo sobre ela que há de recair o juízo de desconformidade ou não desconformidade constitucional. Na verdade, desacautelando os interesses dos arrendatários de longa duração, tornou imediatamente irrelevante, no plano da manutenção do arrendamento, aquela circunstância, debilitando insuportavelmente a situação jurídica dos arrendatários, mesmo que o prazo de trinta anos já tivesse transcorrido por completo à data da entrada em vigor da Lei n. 31/2012 e os arrendatários tivessem, por tal motivo, adquirido o direito à permanência no local arrendado com base na lei então em vigor.”
6.ª) Assim sendo, em conclusão, a alteração introduzida pelo artigo 4.º da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, ao ofender o direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei, em violação os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2.º da CRP é, portanto, materialmente inconstitucional.
7.ª) A segunda norma jurídica relevante para efeitos do presente processo de fiscalização concreta da constitucionalidade é a constante das disposições conjugadas dos artigos 30.º (conteúdo das menções da comunicação) e 31.º, n.º 6 (cominação para a falta de resposta do arrendatário) do NRAU.
8.ª) À data em causa (19 de abril de 2013) o artigo 30.º do NRAU não exigia que no conteúdo da comunicação constassem menções às “alternativas que lhe assistem” e, bem assim, ao “efeito cominatório associado ao seu eventual silêncio, a sua aceitação quanto à transição do contrato, quanto ao seu tipo, quanto ao seu prazo e quanto ao valor da renda”.
9.ª) Na lógica da decisão recorrida, a questão de constitucionalidade redunda em determinar se omissão desses dois avisos na comunicação prevista no artigo 30.º do NRAU é de tal sorte que privará o arrendatário de informação que lhe permita aferir do real alcance da falta de resposta à mesma, tornando assim desproporcionada (excessiva), em sentido constitucional, a correlativa cominação legal da “aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao do termo do prazo previsto nos n.ºs 1 e 2”.
10.ª) Antes do mais, importa referir, que em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, a concreta situação de facto a ajuizar é um elemento a ponderar para efeitos de formar o juízo de constitucionalidade.
11.ª) No caso, importa referir que já ficou estabelecido, através do pretérito juízo de inconstitucionalidade, que está “adquirido o direito à permanência no local arrendado com base na lei então em vigor”, pelo que o efeito prático mais relevante da eventual transição para o NRAU, será o aumento do valor da renda, à data de 91€ e para 100€, sem prejuízo de ulterior atualização.
12.ª) Da comunicação em causa, em observância do conteúdo do ónus legal que à data incumbia aos senhorios interessado na transição para o NRAU, constava, nomeadamente, informação sobre: a base legal (contrato de arrendamento acima identificado ter sido celebrado antes da entrada em vigor do D.L. n° 321-B/90, de 15 de Outubro, venho, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 30° da Lei n°6/2006, de 27 de Fevereiro, doravante abreviadamente designada por NRAU, na redação que lhe foi dada pela Lei n° 31/2012, de 14 de Agosto); a intenção em causa (o referido contrato transite para o regime do NRAU); a proposta de alteração do regime contratual (o mesmo contrato passe a ser do tipo prazo certo com a duração de 5 anos, renovável por períodos de 3 anos); e do valor da renda mensal (atualmente de EUR 91,00 (noventa e um euros), passe para EUR 100,00 (cem euros) mensais).
13.ª) Quanto à onerosidade do encargo do arrendatário, importa notar que a cominação apenas se desencadearia no caso extremo da “falta da sua resposta à comunicação” (art. 31.º, n. º 6) e, por outra parte, este ónus servirá, objetivamente, o relevante desígnio funcional de incitar a diligência mínima do arrendatário, em ordem a clarificar o estatuto contratual.
14.ª) Depois, a informação constante da comunicação, aludindo expressamente a um alteração contratual relevante, nomeadamente ao regime legal, ao prazo e montantes da renda, num quadro em que era público e notório estar em curso uma reforma legislativa do arrendamento, seria idónea e bastante para que um destinatário normal, com a diligência mínima esperada numa relação contratual regida pela boa fé, ficasse ciente e procurasse averiguar do perfil da situação contratual que lhe foi formalmente exposta, nomeadamente através do contato com o próprio senhorio.
15.ª) Em conclusão, a omissão desses dois avisos na comunicação a que alude o artigo 30.º do NRAU, na redação então vigente, não é de molde a privar, necessariamente, o arrendatário de informação que lhe permita aferir do real alcance da falta de resposta à mesma, pelo que não é desproporcionada (excessiva), no sentido constitucional inerente à cláusula do artigo 2.º (Estado de direito democrático), a correlativa cominação legal da “aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao do termo do prazo previsto nos n.ºs 1 e 2”, prevista no artigo 31.º, n.º 6, do NRAU.»
5.2. A recorrente A., Lda. formulou as seguintes conclusões:
«A. A Recorrente não aceita o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal a quo, que concluiu pela não aplicação das referidas normas do NRAU e, em consequência, revogou a douta Decisão proferida em primeira instância e condenou a Recorrente a reconhecer que o contrato de arrendamento não transitou para o NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, não lhe assistindo por isso o direito a opor-se à renovação do mesmo,
B. Nomeadamente por considerar que (i) tal juízo não se aplica aos casos de oposição à renovação no âmbito de um contrato de arrendamento com prazo certo — como ocorreu no caso sub judice — e por considerar que (ii) não se aplica igualmente aos casos em que o arrendatário não reagiu à comunicação de transição para o NRAU que lhe foi endereçada pelo senhorio em observância dos requisitos legais em vigor à data de tal comunicação, impondo-se que o Venerando Tribunal Constitucional se pronuncie acerca do juízo de inconstitucionalidade formulado por aquele Douto Tribunal sobre as normas acima referidas.
C. Entendemos, no entanto, que a inaplicabilidade da inconstitucionalidade da alteração introduzida, pela Lei n.º 31/2012, à alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º da Lei 6/2006 (que aprovou o NRAU) ao caso sub judice, decorre do facto de (i) o contrato já ter sido convertido em contrato de prazo certo e (ii) a situação contratual sub judice (contrato de arrendamento com prazo certo) é distinta da relação contratual que esteve na base do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 297/2015, o qual teve por objeto um contrato sem duração limitada; como ainda,
D. A inaplicabilidade da declaração de inconstitucionalidade das normas extraídas dos artigos 30.º e 31.º n.º 6, do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, decorre do facto de, à data da comunicação da anterior senhoria à Recorrida relativamente à transição do contrato para o NRAU, a Lei em vigor não exigir — por nem sequer prever, à data qualquer dever do senhorio de esclarecer as alternativas que assistem ao arrendatário e advertir o efeito cominatório associado ao seu eventual silêncio.
E. Nestes termos porém, veio o Douto Tribunal da Relação do Porto concluir que, ao ter sido eliminada, com a redação da Lei n.º 31/2012, a hipótese prevista na alínea b) do artigo 107.º do RAU, encontra-se violado o direito que os arrendatários haviam adquirido, com o decurso do tempo, em permanecer no arrendado, sem correrem o risco de verem o contrato denunciado ou formalizada oposição à sua renovação, o que levaria à cessação do contrato de arrendamento, o que viola o princípio da certeza e segurança que os cidadãos devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito.
F. Tal conclusão, teve por base o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 297/2015 que entendeu que "a norma do artigo 26.º n.º 4 al. a), da Lei n.º 6/2006 de 27.02, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012 de 14.08, ao limitar a remissão ali prevista apenas para a alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, desconsiderando a previsão da alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 170.º, desprotegeu, de forma arbitrária e demasiadamente onerosa, a posição da arrendatária e ora Recorrente (que se encontrava no arrendado, à data de entrada em vigor da dita lei n.º 31/2012 há mais de 30 anos) — impedindo-a de se opor, com tal fundamento, à denúncia ou à cessação do contrato de arrendamento por oposição à sua renovação.
G. E "Por conseguinte, tendo a douta sentença recorrida, ao decretar a improcedência da ação, desconsiderado aquele direito adquirido pela arrendatária e ora Recorrente e a sobredita inconstitucionalidade do citado artigo 26.º, n.º 4 al. a), da Lei n.º 6/2006 de 27.02, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012 de 14.08, daí decorre que a mesma sentença não se pode manter, antes se impondo, em nosso julgamento, recusar a aplicação da dita norma com o sentido/interpretação acolhidos pelo Tribunal de 1.ª instância, o que implica a revogação da mesma sentença e a consequente procedência da ação proposta pela arrendatária, julgando inválida, para todos os efeitos, a transição do contrato de arrendamento em causa para o NRAU e para o tipo de arrendamento com o prazo certo e, logicamente, a sua subsequente cessação por oposição do senhorio à sua renovação.
H. A Recorrente discorda, no entanto, com o devido respeito que é muito, do aludido raciocínio, porquanto a primeira redação do artigo 26.º n.º 4 do NRAU (Lei n.º 6/2006) tinha como uma das suas especificidades, para os contratos sem duração limitada, a aplicação do artigo n.º 1 do artigo 107.º do RAU no seu todo [alíneas a) e b)]. Posteriormente, em 2012, o legislador apenas manteve em vigor a remissão para a alínea a) do artigo 107.º do RAU, tendo, portanto, apenas pretendido excluir especificamente a aplicação da alínea b).
J. Foi neste contexto que o Tribunal Constitucional veio, através do seu Acórdão n.º 297/2015, julgar inconstitucional a exclusão desta alínea b), precisamente porque tal exclusão, desacautelando os interesses dos arrendatários de longa duração, tornou imediatamente irrelevante, no plano da manutenção do arrendamento, aquela circunstância, debilitando insuportavelmente a situação jurídica dos arrendatários, mesmo que o prazo de trinta anos já tivesse transcorrido por completo à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012 e os arrendatários tivessem, por tal motivo, adquirido o direito à permanência no local arrendado com base na lei então em vigor.'
K. Sucede que, no caso sub iudice, o referido artigo 26 nº 4 do NRAU deixou de ser aplicável quando o contrato em causa deixou de ser um contrato de duração indeterminada, por se ter legitimamente convertido num contrato com prazo certo.
L. De facto, não pode ser desconsiderada, peta sua extrema importância para o caso concreto, a circunstância de, embora estarmos perante um contrato celebrado antes de 1990, o arrendamento em causa ter transitado validamente, em cumprimento de todas as disposições legais e com salvaguarda integral de todos os direitos e garantias do arrendatário, para o NRAU, tendo-se assim convertido num contrato a prazo certo, com um período de 5 (cinco) anos.
M. O próprio Tribunal a quo entendeu que o contrato em apreço cessou por oposição à sua renovação, uma vez que esse mesmo contrato, em face da ausência de resposta da Recorrida, se transformou (a partir de 01.07.2013) num contrato de prazo certo de 5 anos, renovável automaticamente por 3 anos caso não seja objeto de oposição por parte do senhorio [Recorrente], a exercer na forma e no prazo legais.
N. Com efeito, os artigos 30.º e seguintes do NRAU, com a redação dada pela Lei n.º 31/2012, vieram prever um mecanismo de possibilidade de conversão de contratos de duração indeterminada em contratos de prazo certo.
O. Tal mecanismo prevê, detalhadamente, um conjunto de comunicações entre senhorio e arrendatário, opções de resposta e consequências para a ausência das mesmas, que visam proporcionar um maior equilíbrio entre as posições contratuais de senhorio e arrendatário, procurando uma saudável conjugação entre os interesses e necessidades de tutela de ambas as partes contratuais, por um lado, e o respeito pelo princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP.
P. Bastião deste mecanismo é o facto de o arrendatário poder impedir a conversão do seu contrato num contrato de prazo certo, desde que invoque as circunstâncias legalmente previstas, sendo que uma dessas circunstâncias é, precisamente, a idade igual ou superior a 65 anos do arrendatário, que permitem a este bloquear a transição do seu arrendamento para o NRAU.
Q. Não parecem, no entanto, existir dúvidas de que, transitado validamente o arrendamento para o NRAU e convertido o contrato em causa em contrato com prazo certo, a alínea a) do n.º 1 do artigo n.º 107º do RAU continue a ser aplicável, precisamente porque está em causa um direito do arrendatário que o NRAU salvaguardou no referido mecanismo de conversão e, por outro lado, o artigo 26.º n.º 4 do NRAU deixou de ser aplicável, porque deixámos de estar perante um contrato de duração indeterminada para passarmos a estar perante um contrato com prazo certo, cuja natureza não se compagina com a aplicação do artigo 107.º do RAU, precisamente por estar em causa um contrato em que, por definição, o senhorio se pode opor livremente à sua renovação.
R. De facto, parece-nos também claro que, verificada esta conversão, ao senhorio não poderia ser impedida a possibilidade de se opor à renovação do arrendamento com o fundamento de que o arrendatário tem idade igual ou superior a 65 anos, precisamente porque, atendendo-se à natureza de um contrato de prazo certo, o senhorio deve poder opor-se livremente à renovação do contrato.
S. Na verdade, esta possibilidade foi agora vedada com a entrada em vigor da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, por mera opção legislativa e política e não com base num qualquer juízo de inconstitucionalidade à não aplicação do artigo 107.º do RAU aos contratos convertidos em contrato de prazo certo.
T. Não poderá deixar-se, assim, de concluir que os casos de transição dos contratos para o NRAU e consequente conversão dos mesmos em contratos de prazo certo são incomparáveis à situação que esteve na base no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 297/15, pois este teve por boie-to um contrato de duração indeterminada e, no caso sub iudice, estamos perante uma situação onde iá se verificou uma conversão do contrato para contrato com prazo certo, tendo o arrendatário tido a "oportunidade" de se opor a tal conversão, optando por nada fazer.
U. Pelo que não logrou a Recorrente compreender por que motivo procurou o Tribunal a quo aplicar ao caso sub judice, sem justificação aparente, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 297/15, limitando-se a referir que seria aplicável "em moldes que julgamos ser aplicável à própria transição do contrato de arrendamento por oposição à sua renovação pelo senhorio" sem sustentar minimamente esta posição.
V. Adicionalmente, não podia também o Tribunal a quo desvalorizar o facto de que as expectativas jurídicas não são originadas apenas na esfera dos arrendatários — qualifiquem-se, ou não, os mesmos como uma parte particularmente frágil em cada caso concreto —, mas também nas dos demais agentes do mercado, como é o caso da Recorrente que adquiriu o imóvel na convicção absoluta de que o contrato de arrendamento que tinha o mesmo por objeto teria um prazo certo.
W. E que vê agora essas legítimas expectativas colocadas em causa e sacrificadas a um interesse de tutela de uma prerrogativa legal que, em bom rigor, no caso concreto, nunca chegou a converter-se num efetivo direito antes da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, de 14.08, como parece, em parte, dar a entender o Acórdão recorrido.
X. Dizer que a arrendatária preencheu, em determinado momento temporal, os requisitos para, verificado um determinado estado de coisas, exercer um determinado direito, não permite extrapolar no sentido de ter, efetivamente, visto sacrificado esse direito, nem sequer uma determinada expectativa por via da supressão legal desse requisito, porquanto a situação de base que poderia legitimar tal expectativa — a proposta de transição do contrato para o NRAU pela senhoria — nem sequer se verificou antes da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, de 14.08, mas sim, e apenas, quando o pressuposto relevante foi suprimido pelo legislador.
Y. Ou seja, não houve nenhum momento, entre a entrada em vigor do NRAU e a da Lei n.º 31/2012, em que a expectativa da arrendatária na manutenção do contrato sem conversão por residir no locado há mais de 30 anos se tivesse colocado e, quando a questão se colocou, mediante comunicação da então senhoria, o requisito previsto no artigo 107.º n.º 1, alínea b) do RAU já não era, há mais de cinco anos, um pressuposto de inviabilização da conversão do contrato para o NRAU — crê-se, assim, que a própria existência da expectativa da arrendatária se encontra por demonstrar.
Z. Foram as expectativas da Recorrente que, ao arrepio do princípio da certeza e segurança jurídicas, se viram colocadas em causa pelo Tribunal a quo, impondo-lhe um sacrifício desproporcional em benefício de uma tutela de supostas expectativas do arrendatário que o legislador manifestamente não pretendeu tutelar.
AA. Assim, o Tribunal a quo não poderia ter decidido declarar "Inconstitucional a alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, no artigo 26º n.º 4, alínea a), da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano) por violação do princípio da segurança e da certeza jurídica ínsitos no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, ao ofender o direito do arrendatário à permanência no arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela Lei n. º 31/2012" uma vez que, o facto de o arrendamento sub judice se ter legitimamente convertido em contrato com prazo certo, com todas as consequências daí resultantes, impede a aplicação, ainda que por analogia, do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 297/2015.
BB. Por outro lado, embora o Tribunal a quo tenha entendido que, atenta a ausência de resposta da Recorrida à comunicação da (primitiva) senhoria, o contrato de arrendamento passou reger-se pelo NRAU a partir de 01.07.2013, passando, assim, a ser um contrato com prazo certo de 5 anos, renovável por 3 anos, tendo a senhoria exercido o seu direito de oposição à renovação do contrato no termo dos 5 anos, mediante comunicação dessa oposição.
CC. A verdade é que, embora o senhorio tenha agido em escrupulosa conformidade com o artigo 30.º do NRAU, na versão à data em vigor (falamos da comunicação), entendeu o Tribunal da Relação aplicar incompreensivelmente a inconstitucionalidade julgada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n 277/2016, como se de um contrato de duração indeterminada se tratasse.
DD. Isto porque os factos ocorreram em 2013 e, à data, estava em vigor uma redação da Lei n.º 31/2012, que não obrigava o senhorio a comunicar ao arrendatário alternativas ou qualquer efeito cominatório da ausência de resposta e atribuía, por outro lado, ao arrendatário o direito de se opor à transição do contrato, bem como de aceitar ou opor-se ao valor da renda proposto, pronunciar-se sobre a duração do contrato e denunciar o contrato de arrendamento, o que não aconteceu.
EE. É certo que tais deveres/obrigações acabaram por ser introduzidos na Lei n.º 79/2014, através da qual se passou a exigir ao senhorio que incluísse na comunicação uma descrição alternativa ao dispor do arrendatário, bem como as implicações do seu silêncio.
FF. Porém, não nos parece que essa alteração legislativa posterior possa ser injustificadamente tratada pelo Tribunal da Relação como efetivamente foi como sinónimo de um qualquer reconhecimento que essa circunstância era fundamental ao equilíbrio das posições das partes,
GG. Muito menos, especificamente, como justificação do efeito cominatório atribuído à falta de resposta do arrendatário, quando a justificação desse efeito cominatório — como a de tantos outros, em tantas outras circunstâncias — radica, a nosso ver, antes de mais nada, no artigo 6.º do Código Civil,
HH. Acresce, a tudo isso, a regra geral da aplicação da lei no tempo, nos termos do n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil, i.e., "A lei só dispõe para o futuro" e, "ainda que lhe seja atribuída eficácia retractiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos iá produzidos pelos factos que a lei se destina regular."
II. Assim, perante a impossibilidade, antes de mais cronológica, de o senhorio incluir retractivamente essa referência na comunicação de Abril de 2013, é evidente que as expectativas geradas pelos efeitos produzidos por aquela comunicação, de acordo com a legislação em vigor à data da mesma, são igualmente dignas de proteção, vendo agora as mesmas destruídas com base num alegado desequilíbrio que nem sequer se encontra arguido relativamente ao confronto de duas soluções legais contemporâneas uma da outra, mas sim entre soluções seletivamente identificadas de um sempre temporalmente extenso processo de evolução legislativa.
JJ. No caso em apreço, e tendo em conta o referido supra, remetida a comunicação, recaía sobre a Recorrida um conjunto de ónus que esta não cumpriu.
KK. Certo é que a Recorrida, tendo recebido a comunicação para a transição do NRAU (que é em si uma declaração reptícia e, nessa medida, produz os seus efeitos com a sua receção pelo destinatário), nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 30.º do NRAU, nada fez.
LL. Em consequência, face à inércia da Recorrida, o contrato de arrendamento transitou para o NRAU e passou a ser do tipo prazo certo, com a duração de cinco anos, renovável por três anos.»
6. A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso sob invocação dos seguintes argumentos:
«1.- Violação do princípio da segurança e certeza jurídicas ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República (CRP).
Pugna a recorrente, em síntese, que o juízo de inconstitucionalidade sobre o preceito do artigo 26.º, n.º 4, alínea a) da Lei 6/2006, na redação que lhes foi dada pela Lei n.º 31/2012, não aplica ao caso dos autos.
Argumenta que a doutrina constitucional (vertida, designadamente, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 297/2015) que o vem consagrando consistentemente só é aplicável no âmbito de contratos de arrendamento vinculísticos, sem prazo, que não hajam transitado para o NRAU e não já após a sua transição e consequente transformação contratos com prazo certo.
Sem razão.
A ofensa ao direito do arrendatário de permanecer no arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos, integralmente transcorrido à data da entrada em vigor da citada Lei n.º 31/2012, verifica-se, desde logo, na mera admissão da possibilidade de o senhorio poder promover a sua transição para o NRAU.
Com efeito, aquele direito de se opor à cessação do contrato de arrendamento, seja por denúncia enquanto contrato sem prazo, seja por oposição à renovação após transição para o NRAU, é subtraído ao arrendatário quando referida alínea a), do n.º 4, do artigo 26.º daquela lei limita a remissão para o RAU à alínea a) do artigo 107.º, eliminando a previsão da alínea b).
Isto é, a segurança e certeza que a arrendatária nos autos - como qualquer arrendatário, em abstrato, e em qualquer circunstância - havia adquirido de não poder ser desalojada do arrendado por nele permanecer, continuamente, há mais de trinta anos, são-lhe retiradas em manifesta a despropositada desconformidade com o princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da CRP.
Assim, e como bem se decidiu no douto acórdão recorrido, a alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012 no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei 6/2006, é inconstitucional.
Conclusão que, aliás, o Ministério Público identicamente subscreve concluindo que “a alteração introduzida pelo artigo 4.º da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, ao ofender o direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei, em violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2.º da CRP é, portanto, materialmente inconstitucional.” (Ministério Público, alegações, pág. 3, fls.).
Sendo-o, tem como consequência que o contrato de arrendamento em causa não transitou para o NRAU.
Não tendo transitado, não se transmutou num contrato com prazo certo, pelo que não pode a recorrente pôr-lhe termo nos termos em que o fez.
Sem prescindir,
2.- Violação do princípio da proporcionalidade ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República (CRP).
O artigo 30.º do NRAU, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 31/2012, impunha ao senhorio, na hipótese de pretender fazer transitar o contrato de arrendamento para o NRAU, que, ao dar ao arrendatário nota dessa sua intenção, lhe comunicasse
“a) o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;
b) o valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;
c) cópia da caderneta predial urbana”.
Sem mais.
Neste enquadramento, a então senhoria C., Lda., remeteu à recorrida carta com a proposta de passar o contrato para “tipo prazo certo com a duração de 5 anos, renovável por períodos de 3 anos” (contestação, doc. n.º 2, fls.), omitindo as consequências de não lhe ser dada resposta, designadamente a de tal importar na aceitação da proposta e de que se poderia vir a opor imperativamente à renovação, fazendo unilateralmente cessar o contrato.
Ora, este tipo de comunicação resulta para o comum dos cidadãos aparentemente inócua, fazendo crer que nada se substantivo se altera em relação a um contrato vigente, que automática e anualmente se renova.
No entanto, é flagrante que as normas constantes dos artigos 30.º e 31.º-6 do NRAU, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012, traduzem para as partes vantagens e ónus clamorosamente desproporcionais: de um lado - o do senhorio - uma exigência procedimental simples, do outro - o do inquilino - complexa.
E, na inobservância do cumprimento dos ónus das partes, com consequências relativamente modestas para o senhorio e catastróficas para o arrendatário.
Como, aliás, o legislador, ainda que tarde, se veio a aperceber e, por via disso, a alterar, através da Lei n.º 79/2014, o disposto naqueles artigos 30.º e 31.º do NRAU promovendo o reequilíbrio na onerosidade entre os sujeitos na relação, designadamente impondo ao senhorio o dever de esclarecer cabalmente o inquilino sobre as alternativas de que dispõe e as consequências do seu eventual não pronunciamento em tempo útil.
Nestas circunstâncias, o douto tribunal recorrido, ao declarar “inconstitucional a norma extraída dos artigos 30.º e 31.º, n.º 6 do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, segundo a qual a ausência de resposta do arrendatário à proposta do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, quanto ao tipo de contrato, quanto à sua duração e quanto ao valor da renda, significa, sem que ao arrendatário tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o mesmo tenha sido advertido do efeito cominatório associado ao seu eventual silêncio, a sua aceitação quanto à transição do contrato, quanto ao seu tipo, quanto ao prazo e quanto ao valor da renda, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República”, decidiu de forma clarividente.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A. Delimitação do objeto do recurso e precedência no conhecimento das questões de constitucionalidade
7. A aqui recorrida, nascida em 7 de junho de 1931, instaurou uma ação declarativa contra a recorrente A., Lda., peticionando a condenação desta no reconhecimento de que o contrato de arrendamento para fins habitacionais, celebrado antes da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano (doravante designado pela sigla «RAU»), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90 de, 15 de outubro, e no qual figura atualmente como locatária, não transitara para o NRAU, razão pela qual não poderia ser livremente denunciado pelo senhorio, carecendo, assim, de fundamento legal a oposição deste à sua renovação.
Para julgar improcedente a ação, o Tribunal de primeira instância convocou a norma constante do n.º 6 do artigo 31.º do NRAU, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012, tida por aplicável ao caso sub judicie.
Considerando que a arrendatária, ora recorrida, não respondera dentro dos 30 dias subsequentes ao da sua receção, em 22 de abril de 2013, à comunicação que a anterior senhoria lhe havia dirigido nos termos previstos no artigo 30.º do NRAU, manifestando a sua intenção que fazer transitar para este novo regime ( o NRAU) o contrato de arrendamento celebrado antes da entrada em vigor do RAU, o Tribunal concluiu que, em face do disposto no n.º 6 do artigo 31.º do NRAU, na versão resultante da Lei n.º 31/2012, essa falta de resposta valera como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos naquela comunicação ¾ no caso, cinco anos ¾, tendo o contrato ficado submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao do termo daquele prazo.
Depois de concluir que o contrato de arrendamento, apesar de celebrado antes da entrada em vigor do RAU, se convertera, por efeito da ausência de resposta da arrendatária à comunicação efetuada pelo anterior senhorio na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, num contrato de arrendamento de duração limitada — coincidente com os cincos anos propostos naquela comunicação — e sujeito à disciplina decorrente do NRAU, ainda que com as especificidades assinaladas no artigo 28.º da Lei n.º 6/2006, na redação conferida por aquela Lei, o Tribunal de primeira instância considerou que a recorrente A., Lda., ao exercer, através de comunicação por carta registada com aviso de receção e com observância da antecedência exigível de quatro meses sobre o termo do prazo de duração do contrato, o direito de oposição à renovação do mesmo, o fizera nos termos consentidos pelo artigo 1097.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código Civil, na redação conferida Lei n.º 31/2012, provocando dessa forma a extinção, por caducidade, do vínculo locatício (artigo 1051.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil).
8. Este julgamento foi revertido pelo Tribunal da Relação do Porto com base em dois fundamentos alternativos, integrado, cada um deles, pela formulação de um juízo distinto e autónomo de inconstitucionalidade.
O primeiro fundamento invocado no acórdão recorrido diz respeito à irrelevância que a Lei n.º 31/2012 veio atribuir à circunstância de, à data da sua entrada em vigor, o arrendatário haver completado já 30 anos de permanência no local arrendado, nessa qualidade.
Para estabelecer o sentido e alcance de tal constatação, o Tribunal a quo começou por ater-se ao regime da denúncia do contrato de arrendamento pelo senhorio aplicável tanto aos contratos habitacionais celebrados durante a vigência do RAU, como, por força da remissão constante do artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, aos arrendamentos para habitação celebrados antes da vigência do RAU.
Atentando nas especificidades a que tais contratos ficaram submetidos de acordo com as normas de direito transitório constantes da Lei n.º 6/2006, o Tribunal recorrido relembrou que, por força do «artigo 26º, n.º 4, al. a) do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, e ao contrário do que sucedia na redação original do NRAU (Lei n.º 6/2006 – artigo 26º, n.º 4, al. a)), no próprio RAU (artigo 107º, al. b) e, antes deste, decorria já do preceituado no artigo 2º, al. b), da Lei n.º 55/79 de 15.09, deixou, a partir da entrada em vigor daquela Lei n.º 31/2012, de ser aplicável a previsão da alínea b) do artigo 107º do RAU, ou seja, deixou de constituir facto impeditivo à denúncia do contrato de arrendamento para habitação anterior ao RAU, a circunstância de o arrendatário, à data em que a denúncia produziria os seus efeitos, se manter no arrendado há mais de 30 anos, nessa qualidade [...], sendo considerado a seu favor o tempo de que o transmitente já beneficiasse (artigo 107º, n.º 2, do RAU)». E relembrou também que tal solução, na medida em que excluíra a possibilidade de o arrendatário opor à denúncia do contrato pelo senhorio a circunstância de haver completado já 30 anos de permanência no locado à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, fora censurada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 297/2015, que julgou inconstitucional «a alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, ao ofender o direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2.º da CRP.»
Socorrendo-se do julgamento levado a cabo no mencionado aresto, o Tribunal recorrido frisou que «da alteração do artigo 26º, n.º 4 al. a), introduzida pela Lei n.º 31/2012 (eliminação da remissão para a alínea b) do artigo 107º do RAU) e da sua aplicação retroativa aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes do RAU por força do preceituado nos artigos 26º e 28º, n.º 1, do NRAU, «resulta, a contrario, que passou a ser desconsiderada a circunstância de o arrendatário permanecer no local arrendado continuamente por período superior a trinta anos», mesmo nos casos «em que já tivesse decorrido integralmente, no domínio da versão originária do citado artigo 26º, n.º 4, e da alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, o tempo de permanência do arrendatário no local arrendado», ou seja, mesmo quando, à data de entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, os arrendatários já tivessem adquirido o direito à permanência no local arrendado com base na lei em vigor».
9. Se o juízo positivo de inconstitucionalidade formulado no Acórdão n.º 295/2015, que teve por objeto o regime da denúncia dos contratos de arrendamento para fins habitacionais celebrados durante a vigência do RAU — aplicável, por remissão, aos contratos celebrados antes do início dessa vigência —, constituiu indubitavelmente o ponto de partida do julgamento levado a cabo na decisão recorrida, já as ilações que desse juízo foram extraídas no caso sub judice e, sobretudo, o plano em que o Tribunal a quo as situou, carecem de ser clarificados.
Ao afirmar que os fundamentos constantes do Acórdão n.º 297/2015 se apresentam «em moldes [...] aplicáve[is] à própria transição do contrato de arrendamento para o NRAU», o Tribunal recorrido parece sugerir que o vício de inconstitucionalidade que esteve na base da procedência da apelação reside, não na insuficiência ou incompletude do elenco das especificidades de regime aplicáveis aos contratos de arrendamento para fins habitacionais celebrados durante a vigência do RAU ¾ elenco previsto nas diversas alíneas do n.º 4 do artigo 26.º da Lei n.º 6/2006 ¾ mas, a montante deste, na amplitude do âmbito de aplicação do próprio regime-regra de transição de tais contratos para o NRAU — fixado logo no n.º 1 do referido artigo —, por não excecionar ou excluir dessa transição os contratos celebrados antes ou durante vigência do RAU, com 30 ou mais anos de duração completados à data da entrada em vigor da referida lei, acompanhados de efetiva permanência do arrendatário no locado.
Tal indicação, que sempre suscitaria um problema de insuperável incongruência entre o âmbito de aplicação do preceito legal convocado ¾ alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º da Lei n.º 6/2006, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012, relativa ao regime aplicável aos contratos de arrendamento transitados para o NRAU ¾ e a norma que dele assim teria sido extraída ¾ respeitante à própria regra de transição ¾, foi, no entanto, reconsiderada e revista em subsequentes trechos do acórdão recorrido.
Recuperando os exatos termos do juízo positivo de inconstitucionalidade formulado no Acórdão n.º 297/2015, o Tribunal a quo acabou por sediar a desconformidade constitucional de que entendeu padecer a desconsideração da posição do arrendatário que houvesse completado mais de trinta anos de permanência no local arrendado à data da entrada em vigor na Lei n.º 31/2012 na inaplicabilidade aos contratos de arrendamento para fins habitacionais celebrados antes ou durante a vigência do RAU do fundamento de oposição à denúncia previsto na alínea b) do artigo 107.º deste Regime, excluído do âmbito das especificidades previstas para aqueles contratos por força da alteração introduzida pela referida Lei na alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º do NRAU.
Para o Tribunal a quo, «as normas em causa - artigo 26º, n.º 4 al. a) ex vi do artigo 28º, n.º 1, do [N]RAU, na redação da Lei n.º 31/2012, ao eliminarem a hipótese prevista na alínea b) do artigo 107º do RAU, violam o direito que, com o decurso do tempo, os arrendatários tinham adquirido a permanecer no arrendado sem o risco de denúncia ou de oposição à renovação do prazo nele previsto, ambos conduzindo à cessação do contrato de arrendamento – e, com isso, violam, aquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito». Isto é, «a norma do artigo 26º, n.º 4 al. a), da Lei n.º 6/2006 de 27.02, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012 de 14.08, ao limitar a remissão ali prevista apenas para a alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do RAU, desconsiderando a previsão da alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 107º, desprotegeu, de forma arbitrária e demasiadamente onerosa, a posição da arrendatária e ora Recorrente (que se encontrava no arrendado, à data de entrada em vigor da dita Lei n.º 31/2012 há mais de 30 anos) – impedindo-a de se opor, com tal fundamento, à denúncia ou à cessação do contrato de arrendamento por oposição à sua renovação.»
10. Explicitados os termos do juízo de inconstitucionalidade que recaiu sobre a «alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano)», nos casos em que o arrendatário se mantenha no local arrendado, nessa qualidade, «por um período superior a trinta anos, integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei n.º 31/2012», três conclusões se tornam neste momento evidentes.
As duas primeiras dizem respeito à delimitação do objeto do recurso.
Se o juízo positivo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal a quo recaiu sobre a alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012 na alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, parece que o arco legal que suporta a norma cuja aplicação foi recusada não poderá prescindir da inclusão do preceito constante do artigo 4.º daquela primeira Lei ¾ justamente aquele que determinou que os referidos artigo, número e alínea passassem a ter a sua atual redação. Em rigor, a norma desaplicada pelo Tribunal recorrido corresponde ao artigo 4.º da Lei n.º 31/2012, no segmento em que, conferindo nova redação à alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º da Lei n.º 6/2006, eliminou do âmbito das especificidades aplicáveis aos contratos para fins habitacionais sem duração limitada celebrados durante a vigência do RAU o fundamento de oposição à denúncia previsto na alínea b) do artigo 107.º do RAU, nos casos em que, à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, o arrendatário houvesse completado já trinta anos de permanência no locado, nessa qualidade.
É certo que o Tribunal recorrido, ainda que de modo implícito, considerou que a consequência deste juízo de inconstitucionalidade passaria pela repristinação da redação alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º da Lei n.º 6/2006 anterior à entrada em vigor da Lei n.º 31/2012 ¾ que contemplava a subsistência do fundamento de oposição à denúncia previsto na alínea b) do artigo 107.º do RAU ¾ e, mais importante ainda, que a mesma se aplicaria, por identidade de razão, aos casos de oposição à renovação do contrato de arrendamento transitado para o NRAU, uma vez atingido o prazo estabelecido para a sua duração.
Simplesmente, ao contrário do primeiro ¾ e aqui reside a segunda nota relativa à delimitação do objeto do recurso ¾, este segundo juízo situa-se no estrito plano da interpretação e aplicação do direito infraconstitucional. Isto é, saber se as especificidades previstas para os contratos de arrendamento transitados para o NRAU em matéria de denúncia, a que se refere a alínea a) artigo 26.º da Lei n.º 6/2006, são aplicáveis também aos casos de oposição à renovação, por ambas constituírem, nas palavras do acórdão recorrido, causas de «cessação do contrato de arrendamento», é questão que, tendo merecido resposta afirmativa do Tribunal a quo, se situa fora do âmbito do objeto do presente recurso, não podendo ser por isso equacionada, nos termos em que o pretende a recorrida, no âmbito do presente julgamento. O único significado que tal circunstância assume diz respeito, não à delimitação do objeto do recurso, mas ao estabelecimento da ordem de precedência no conhecimento das questões de constitucionalidade. Vejamos porquê.
Para além de ter recusado a aplicação do artigo 4.º da Lei n.º 31/2012 nos termos explicitados supra, o Tribunal recorrido recusou ainda a aplicação da norma extraída dos artigos 30.º e 31.º, n.º 6, do NRAU, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, «segundo a qual a ausência de reposta do arrendatário à proposta do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, quanto ao tipo de contrato, quanto à sua duração e quanto ao valor da renda, significa, sem que ao arrendatário tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o mesmo tenha sido advertido do efeito cominatório associado ao seu eventual silêncio, a sua aceitação quanto à transição do contrato, quanto ao seu tipo, quanto ao seu prazo e quanto ao valor da renda».
Enquanto a recusa de aplicação da «alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro», permitiu ao Tribunal recorrido considerar que a circunstância de a recorrida se manter «no arrendado, nessa qualidade, de forma contínua […], há bem mais de 30 anos, à data de 12.11.2012», lhe conferia, «à luz do regime em vigor à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, «o direito de se opor à cessação do […] arrendamento, seja ela decorrente de denúncia ou», como considerou suceder no caso, «de oposição à renovação do contrato, antes convertido em contrato com prazo certo por mor da sua transição para o NRAU», já o afastamento da norma extraída dos artigos 30.º e 31.º, n.º 6, do NRAU, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, possibilitou ao mesmo Tribunal concluir que o contrato em causa não havia sequer transitado para o NRAU nos particulares termos em que ali se permite ao senhorio fazer operar essa transição e, consequentemente, «não se transmut[ara] num contrato com prazo certo, pelo que não pod[ia] a recorrente pôr-lhe termo nos termos em que o f[izera]».
No plano da construção jurídica, a ordem por que surgem as questões de constitucionalidade incluídas no objeto do presente recurso é, por isso, inversa àquela que foi seguida pelo Tribunal a quo.
Uma vez que, somente perante a conclusão de que o contrato de arrendamento para fins habitacionais celebrado antes da entrada em vigor do RAU se converteu validamente num contrato com prazo certo fará sentido considerar o regime material aplicável aos factos impeditivos da oposição à sua renovação, o problema de constitucionalidade relativo às normas que integram o procedimento facultado ao senhorio para fazer operar a transição do contrato para o NRAU através da sua conversão em contrato com duração limitada precede logicamente aquele que emerge da (in)suficiência das especificidades aplicáveis à cessação do vínculo locatício por oposição à sua renovação para o termo do prazo, que o Tribunal recorrido considerou decorrerem, por identidade de razão, da alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º da Lei n.º 6/2006, na versão resultante da Lei n.º 31/2012.
Serve isto para dizer que a norma cuja constitucionalidade deverá começar por ser apreciada é aquela que foi extraída dos artigos 30.º e 31.º, n.º 6, do NRAU, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012. Apenas na hipótese de tal norma não vir a ser julgada inconstitucional — caso em decairá o fundamento que permitiu ao Tribunal recorrido concluir que o contrato de arrendamento em discussão nos autos não se convertera num contrato com prazo certo ¾, ganhará utilidade o confronto com a Constituição do regime a que, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012 no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 6/2006, tal contrato passou a ficar sujeito, não apenas em matéria de denúncia, como, na perspetiva do Tribunal a quo, também de oposição sua à renovação, quando provindas do senhorio.
B. Do Mérito
11. De acordo com a ordem de apreciação fixada, a primeira questão a decidir consiste em saber se é compatível com a Constituição a norma extraível dos artigos 30.º e 31.º, n.º 6, da Lei n.º 6/2006, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012, «segundo a qual a ausência de reposta do arrendatário à proposta do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, quanto ao tipo de contrato, quanto à sua duração e quanto ao valor da renda, significa, sem que ao arrendatário tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o mesmo tenha sido advertido do efeito cominatório associado ao seu eventual silêncio, a sua aceitação quanto à transição do contrato, quanto ao seu tipo, quanto ao seu prazo e quanto ao valor da renda». Ou, numa formulação porventura mais condensada, a norma extraível dos artigos 30.º e 31.º, n.º 6, da Lei n.º 6/2006, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012, segundo a qual a falta de resposta do arrendatário à comunicação prevista no artigo 30.º determina a transição do contrato para o NRAU e vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU, sem que ao primeiro tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o mesmo tenha sido advertido do efeito associado ao seu eventual silêncio.
A norma impugnada inscreve-se no âmbito do regime que disciplina o procedimento facultado ao senhorio para fazer transitar para o NRAU, com as especificidades a que alude o artigo 28.º da Lei n.º 6/2006, na versão resultante da Lei n.º 31/2012, os contratos de arrendamento para fins habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU.
Para melhor compreender o sentido e alcance da solução em causa, há determinados aspetos do regime do contrato de arrendamento urbano para habitação e, sobretudo, da evolução que o mesmo conheceu a partir da Lei n.º 6/2006, que convém começar por considerar.
12. Antes da entrada em vigor do RAU, ocorrida em 15 de novembro de 1990, os contratos de arrendamento para habitação regiam-se pelo regime geral constante do Código Civil, de pendor acentuadamente vinculístico e caracterizado, como se sabe, pela imposição de um significativo conjunto de restrições à liberdade contratual das partes, tendo em vista a estabilidade do vínculo contratual e a proteção da posição habitacional do locatário. No artigo 1095.º do Código Civil, estabelecia-se então um princípio de prorrogação obrigatória ou automática dos contratos de arrendamento, impondo-se a respetiva renovação ao locador findo o prazo de duração convencionado pelas partes ou supletivamente estabelecido na lei. A faculdade de denúncia livre e discricionária do contrato encontrava-se, por isso, reservada em exclusivo ao arrendatário, ao senhorio apenas assistindo o direito de se opor à renovação do vínculo locatício nas hipóteses, muito excecionais, então previstas no n.º 1 do artigo 1096.º do referido Código.
Com a entrada em vigor do RAU, passou a existir uma alternativa de regime, representada pelos contratos de duração limitada (artigos 98.º a 106.º). A par do regime vinculístico, que deixou de ser imperativo e acabou por converter-se numa escolha cada vez menos frequente das partes, o ordenamento jurídico passou a contemplar a possibilidade de celebração de contratos de arrendamento, pelo prazo mínimo de 5 anos, que qualquer das partes podia denunciar livremente caso não desejasse a sua renovação (artigo 100.º, n.º 1).
Com a aprovação do NRAU, levada a cabo pela Lei n.º 6/2006, o regime vinculísitico foi em larga medida abandonado.
Reintroduzida no Código Civil (cf. artigo 3.º da Lei n.º 6/2006), a disciplina jurídica dos contratos de arrendamento habitacional contemplada no NRAU trouxe como principal novidade, a eliminação do anterior princípio de renovação automática dos contratos de arrendamento de duração não determinada: de acordo com as novas regras consagradas no artigo 1101.º do Código Civil, ao senhorio passou a assistir o direito de denunciar o contrato, não apenas com fundamento na verificação de determinadas circunstâncias excecionais, mas ainda em termos potestativos e discricionários — isto é, independentemente da ocorrência de qualquer causa justificativa —, desde que observada na exigida comunicação ao arrendatário a antecedência mínima de cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação (alínea c)).
Tendo em vista o acautelamento dos vínculos locatícios preteritamente constituídos, o NRAU estabeleceu, todavia, um regime transitório para os contratos de arrendamento celebrados antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, distinguindo, no âmbito do arrendamento para habitação, entre contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU (artigo 26.º da Lei n.º 6/2006) e contratos habitacionais com início antes dessa vigência (artigos 27.º a 49.º na mesma Lei).
A Lei n.º 6/2012 foi subsequentemente modificada pela Lei n.º 31/2012, cujo intuito foi o de promover a dinamização do mercado de arrendamento urbano através da alteração, quer do regime substantivo da locação, no sentido de conferir maior liberdade às partes na estipulação das regras relativas à duração dos contratos de arrendamento, quer do próprio regime transitório aplicável aos contratos de pretérito, reforçando a negociação entre as partes e facilitando a transição dos referidos contratos para o novo regime, num curto espaço de tempo (artigo 1.º, alíneas a) e b), da Lei n.º 31/2012). É o que resulta da Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 38/XII, que, juntamente com o Projeto de Lei n.º 144/XII, esteve na génese da Lei n.º 31/2012. Tratou-se, conforme ali referido, da aprovação de um «amplo e profundo conjunto de reformas» orientado para a «dinamização do mercado de arrendamento», que contemplou, como um dos seus quatro vetores essenciais, a «revisão do sistema de transição dos contratos antigos para o novo regime».
Relativamente aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU — que representavam, em 2011, «33% do total de arrendamentos em vigor» —, a revisão do regime de transição para o NRAU partiu do reconhecimento da «excessiva complexidade e ineficácia do regime de atualização de rendas criado pela reforma de 2006», tendo-se concretizado na opção «por mecanismo de negociação da renda, a iniciar pelo senhorio» através de uma proposta que inclua o «valor de atualização da renda e o tipo e a duração do contrato que pretende», e centrado na «promoção do diálogo entre as partes, que deverão procurar alcançar um acordo quanto à manutenção do contrato, salvaguardando sempre os casos de arrendatários com carência económica e/ou idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, nos arrendamentos para habitação».
Uma vez que a norma sindicada se inscreve no âmbito do regime transitório previsto para os contratos de arrendamento celebrados antes do início de vigência do NRAU, a ele serão dedicados os pontos seguintes.
13. No respetivo Título II, integrado pelos artigos 26.º a 58.º, a Lei n.º 6/2006 acolheu um conjunto de normas transitórias, aplicáveis aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do NRAU, distinguindo, conforme referido já, entre contratos mais antigos e contratos menos antigos e estabelecendo algumas diferenças de regime para os contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU relativamente aos contratos celebrados durante a vigência deste.
Tais diferenças foram aprofundadas pela Lei n.º 31/2012, decorrendo agora do disposto nos artigos 26.º e 28.º, concatenados com a disciplina do contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais que passou a constar do Código Civil.
Logo na redação dada pela Lei n.º 6/2006, o artigo 1094.º do Código Civil passou a definir os tipos de contratos de arrendamento em função da sua duração (artigo 1094.º), consagrando o artigo 1099.º o novo princípio geral aplicável aos arrendamentos urbanos para habitação celebrados por duração indeterminada: estes cessam por denúncia do arrendatário ou do senhorio, que, por força do disposto nas alíneas a) a c) do artigo 1101.º do mesmo Código, passou a poder fazê-lo, não apenas com fundamento na necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau (alínea a)) ou para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado (alínea b)), mas ainda discricionariamente, isto é, sem dependência da verificação de qualquer outro evento para além da sua vontade, desde que observada a antecedência mínima estabelecida sobre a data em que pretenda a cessação do contrato (alínea c)) ¾ cinco anos na versão decorrente da Lei n.º 6/2006, reduzidos para dois na sequência das alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, e entretanto repostos em resultado da revisão recentemente levada a cabo pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro.
As especificidades que integram o regime locatício aplicável aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006 constituem derrogações, pontuais mas significativas, desta nova disciplina, consubstanciadas, em parte, na subsistência de certos aspetos da regulação anteriormente contida no RAU.
13.1. De acordo com o n.º 1 do artigo 26.º da Lei n.º 6/2006, os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do RAU «passam a estar submetidos ao NRAU», com as especificidades previstas, em matéria de regime substantivo aplicável, nos respetivos n.ºs 3 a 6, consoante se trate de contratos de duração limitada (n.º 3), de contratos sem duração limitada (n.º 4) ou de qualquer uma das referidas espécies (n.ºs 5 e 6).
Por força das especificidades estabelecidas no n.º 4 do artigo 26.º, aos contratos sem duração limitada celebrados durante a vigência do RAU são aplicáveis as regras previstas no NRAU para os contratos com duração indeterminada, embora não em toda a sua extensão.
De acordo com o regime originariamente previsto na Lei n.º 6/2006, os contratos sem duração limitada celebrados durante a vigência do RAU, para além de não poderem ser livremente denunciados pelo senhorio nos termos que passaram a ser consentidos pela alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil [artigo 26.º, n.º 4, alínea c)], tinham garantida a aplicação, em caso de denúncia com fundamento na necessidade do locado para habitação, própria ou de descendente em primeiro grau, de ambas as limitações a que aquele direito se encontrava sujeito nos termos do n.º 1 do artigo 107.º do RAU [artigo 26.º, n.º 4, alínea a)]: ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontrar na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofrer de incapacidade total para o trabalho (alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU); e manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade (alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU).
A Lei n.º 31/2012 veio reconfigurar ambas as referidas especificidades.
Por um lado, restringiu a inaplicabilidade da faculdade de denúncia potestativa do contrato pelo senhorio, prevista na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil, à hipótese de o arrendatário ter idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct. ¾ é o que resulta da nova redação conferida à alínea c) do n.º 4 do artigo 26.º do NRAU. Por outro, eliminou a limitação à denúncia do contrato pelo senhorio com fundamento na necessidade do locado para habitação, própria ou de descendente em primeiro grau, constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU: na medida em que, por força da nova redação conferida à alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º do NRAU, apenas o limite constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU continuou a aplicar-se aos contratos sem duração limitada celebrados durante a vigência do RAU, a denúncia pelo senhorio com fundamento na necessidade do locado para habitação passou a poder ocorrer mesmo sob verificação da circunstância anteriormente prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU e, portanto, também nos casos em o arrendatário habitasse o local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e integralmente decorrido na vigência desta.
13.2. Por força da remissão constante no n.º 1 do artigo 28.º do NRAU, o regime previsto no artigo 26.º para os contratos celebrados durante a vigência do RAU é aplicável aos contratos celebrados antes da respetiva entrada em vigor, com as necessárias adaptações. Quer isto significar que, tal como os contratos celebrados durante a vigência do RAU, também os contratos celebrados ao abrigo do regime vinculístico passam a «a estar submetidos ao NRAU», com as especificidades previstas, como contratos com duração indeterminada que necessariamente são, no n.º 4 do artigo 26.º.
No que diz respeito aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU, às especificidades decorrentes do n.º 4 do artigo 26.º — comuns aos contratos sem duração limitada celebrados na vigência do RAU —, somam-se as previstas nos n.ºs 2 e 5 do artigo 28.º.
A primeira das particularidades privativas dos contratos celebrados no âmbito do regime vinculístico diz respeito à denúncia do contrato pelo senhorio: embora tivesse restringido a inaplicabilidade da faculdade de denúncia potestativa do contrato, prevista na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil para os contratos de duração indeterminada, à hipótese de o arrendatário ter idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct. ¾ é o que resulta da nova redação conferida à alínea c) do n.º 4 do artigo 26.º do NRAU ¾, a Lei n.º 31/2012 excecionou dessa restrição os contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aos quais, por força do n.º 2 do artigo 28.º, aquela faculdade continuou a não ser aplicável, independentemente da verificação de quaisquer pressupostos ou condições.
A segunda especificidade encontra-se prevista n.º 5 do artigo 28.º ¾ entretanto revogado pela alínea b) do artigo 12.º da Lei n.º 13/2019 ¾, consistindo no condicionamento da faculdade denúncia pelo senhorio para demolição ou realização de obras, prevista no artigo 1101.º, alínea b), do Código Civil, à obrigação de realojamento do arrendatário, no caso de este ter idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
13.3. É no âmbito da transição para o NRAU dos contratos de arrendamento de pretérito que as diferenças de regime entre os arrendamentos celebrados durante a vigência do RAU e os arrendamentos celebrados em momento anterior assumem maior significado.
Ao contrário do que sucede com os contratos celebrados durante a vigência do RAU, todos os contratos celebrados ao abrigo do regime vinculístico são contratos com duração indeterminada.
É essa a razão pela qual, apesar de uns e outros passarem a estar submetidos ao NRAU, a Lei n.º 31/2002 (salvo indicação em contrário, todas as subsequentes referências ao NRAU reportam-se à versão resultante da citada Lei) veio estabelecer para os primeiros um mecanismo especial de transição para o NRAU, destinado a viabilizar a respetiva conversão em contratos com prazo certo.
Este mecanismo especial de transição para o NRAU dos contratos celebrados ao abrigo do regime vinculístico, suscetível de originar tanto a respetiva transformação em contratos de duração limitada, como a atualização do valor da renda, foi colocado na dependência da iniciativa do senhorio, ao qual foi conferido o direito, necessariamente potestativo, de desencadear o procedimento negocial para o efeito regulado nos artigos 30.º a 37.º.
O procedimento é, assim, iniciado pelo senhorio, que deverá comunicar ao arrendatário, através de escrito por si assinado e remetido por carta registada com aviso de receção (artigo 9.º, n.º 1), a sua intenção de fazer transitar o contrato para o NRAU, indicando, sob pena de ineficácia da sua comunicação, os elementos mencionados no artigo 30.º:
«a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;
b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;
c) Cópia da caderneta predial urbana.»
A essa comunicação poderá o arrendatário responder no prazo de 30 dias, exercendo, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 31.º, alguma(s) das seguintes faculdades:
«a) Aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio;
b) Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 33.º;
c) Em qualquer dos casos previstos nas alíneas anteriores, pronunciar-se quanto ao tipo e à duração do contrato propostos pelo senhorio;
d) Denunciar o contrato de arrendamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 34.º.»
Na resposta à comunicação do senhorio, o arrendatário pode ainda invocar, sendo caso disso, a verificação, singular ou cumulativa, das circunstâncias pessoais a que alude o n.º 4 do artigo 31.º:
«a) Rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35.º e 36.º;
b) Idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 36.º.»
Neste caso, o arrendatário deverá proceder à comprovação do alegado através da junção à sua resposta dos documentos referidos no artigo 32.º.
O tipo de reação do arrendatário à comunicação efetuada pelo senhorio condiciona, de forma determinante, o desfecho do processo negocial por este desencadeado, sendo várias as hipóteses a considerar.
Caso o arrendatário não reaja à comunicação do senhorio, a falta de resposta valerá como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo segundo, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao do termo do prazo para a resposta do arrendatário (artigo 31.º, n.º 6).
Já se o arrendatário responder a essa comunicação, valerá o disposto nos artigos 33.º a 36.º, divergindo a solução prevista em caso de dissenso entre as partes consoante haja ou não sido invocada e comprovada alguma (ou algumas) das circunstâncias pessoais referidas no n.º 4 do artigo 31.º.
Não invocando qualquer uma das circunstâncias pessoais referidas no n.º 4 do artigo 31.º, o arrendatário pode aceitar ou opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio.
Caso o aceite o valor proposto, o arrendamento ficará submetido ao NRAU de acordo com o tipo e a duração acordados, considerando-se o contrato celebrado, no silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, pelo período de cinco anos (artigo 31.º, n.º 7, b)). Na hipótese de se opor ao valor da renda proposto, o arrendatário pode contrapor, ou não, um valor alternativo, valendo a oposição, nesta última hipótese, como proposta de manutenção do valor da renda em vigor à data da comunicação do senhorio. Em qualquer dos casos, o senhorio dispõe do prazo de 30 dias para comunicar ao arrendatário se aceita ou não a contraproposta em causa, sendo que, se nada disser, a falta de resposta valerá como aceitação do valor da renda e, na hipótese de terem sido indicados, ainda do tipo e da duração do contrato propostos pelo arrendatário (artigo 33.º, n.ºs 1 a 3). A aceitação, expressa ou tácita, pelo senhorio do valor da renda proposto, expressa ou tacitamente, pelo arrendatário determina a submissão do contrato ao NRAU de acordo com o tipo e a duração acordados, considerando-se o contrato celebrado, no silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, pelo período de cinco anos (artigo 33.º, n.º 4).
Na hipótese de recusar o valor da renda proposto, expressa ou tacitamente, pelo arrendatário, pode o senhorio, na comunicação em que exprima tal recusa: (a) denunciar o contrato de arrendamento, pagando ao arrendatário uma indemnização equivalente a cinco anos de renda resultante do valor médio das propostas formuladas pelo senhorio e pelo arrendatário; (b) atualizar a renda de acordo com os critérios previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 35.º, considerando-se o contrato celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos, a contar da referida comunicação (artigo 33.º, n.º 5).
A solução é substancialmente diversa no caso de o arrendatário invocar e comprovar alguma ¾ ou ambas ¾ das circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo 31.º.
A primeira, relativa ao valor do rendimento do agregado familiar do arrendatário, condiciona, por si só, a transição do contrato de arrendamento para o NRAU. Com efeito, se, na resposta à comunicação do senhorio, o arrendatário alegar e comprovar que o rendimento anual bruto corrigido do seu agregado familiar é inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais, o contrato só ficará submetido ao NRAU mediante acordo das partes; inexistindo acordo das partes, a transição só opera depois de decorrido certo prazo sobre a receção pelo senhorio da resposta do arrendatário à sua comunicação inicial ¾ cinco anos, na versão resultante da Lei n.º 31/2012, aqui aplicável ¾, ficando a atualização da renda condicionada durante esse período em função de percentagens do RABC (artigo 35.º, n.ºs 1 e 2). Somente após a sobrevinda do termo do prazo de diferimento assegurado ao arrendatário poderá o senhorio promover a transição do contrato para o NRAU, sem que aquele possa invocar (ou reinvocar) as circunstâncias previstas nas alíneas do n.º 4 do artigo 31.º.
A segunda circunstância, relativa à especial vulnerabilidade do arrendatário em razão do seu índice de incapacidade ou, como no presente caso se verifica, da idade respetiva, determina que o contrato só fique submetido ao NRAU mediante acordo das partes (artigo 36.º, n.º 1), sem prejuízo da possibilidade de negociação da atualização da renda (artigo 36.º, n.ºs 2 a 6). Se o arrendatário invocar, cumulativamente, que o RABC do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA, o valor da renda é fixado nos termos do n.º 2 do artigo 35.º ¾ correspondendo a uma dada percentagem do RABC ¾, vigorando por um período de cinco anos (artigo 36.º, n.º 7). Findo este período, o valor da renda pode ser atualizado por iniciativa do senhorio, mas o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes (artigo 36.º, n.º 9).
14. Da análise da evolução do regime do arrendamento urbano para habitação que vimos de levar a cabo duas conclusões parecem resultar, desde já, evidentes: a primeira é que, do ponto de vista do arrendatário e da tutela da sua posição habitacional, a transição para o NRAU do contrato celebrado antes da entrada em vigor do RAU através do mecanismo negocial regulado nos artigos 30.º a 37.º do NRAU e, sobretudo, a possibilidade da sua conversão em contrato com prazo certo, está longe de poder ser considerada inócua; a segunda, mais relevante ainda para a primeira das questões que aqui cumpre decidir, é que aquela transição poderá revelar-se tanto mais gravosa para o locatário quanto menor for o nível da sua participação no âmbito do processo negocial iniciado pelo senhorio com vista a promover essa transição.
Se passarem simplesmente «a estar submetidos ao NRAU», nos termos que resultam dos artigos 26.º e 28.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2002, os arrendamentos habitacionais celebrados ao abrigo do regime vinculístico mantêm as suas características originárias, quer quanto ao tipo de contrato — que será de duração indeterminada por força do princípio de renovação automática — quer quanto ao valor da renda. Esta apenas ficará sujeita a uma atualização anual, de acordo com os coeficientes de atualização vigentes, tal como previsto no artigo 1077.º do Código Civil, na redação conferida pela Lei n.º 6/2006.
Ao invés do que sucede com os contratos sem duração limitada celebrados durante a vigência do RAU — os quais, apesar de passarem a estar submetidos ao NRAU, ficam sujeitos à disciplina prevista para os contratos de duração indeterminada —, os contratos celebrados antes da vigência do RAU, ao transitarem para o NRAU, podem converter-se, por força do mecanismo especial de transição previsto nos artigos 30.º a 37.º do NRAU, em arrendamentos com prazo certo, com implicações do ponto de vista tanto da duração efetiva do arrendamento como do valor da renda.
Essas implicações — ou melhor, a sua efetiva extensão — dependem em larga medida dos termos em que o arrendatário reaja à comunicação endereçada pelo senhorio e, na hipótese — muito frequente aliás, como o demonstra o caso sub judice — de se verificar alguma das circunstâncias pessoais suscetíveis de obstar à própria “transição” imediata do contrato para o NRAU, de a mesma ser ou não atempadamente invocada perante aquele.
Caso o arrendatário não responda à comunicação do senhorio, o contrato celebrado ao abrigo do regime vinculístico converter-se-á automaticamente num contrato com prazo certo sempre que tiver sido esse o tipo contratual proposto pelo senhorio, com a duração e mediante o pagamento do valor da renda que este tiver indicado naquela comunicação.
Mesmo respondendo à comunicação do senhorio, o arrendatário que se limite a aceitar o valor da renda proposto ou a contrapor um valor alternativo que venha a ser aceite pelo senhorio verá em qualquer caso o contrato transformar-se num contrato com prazo certo, com a duração de cinco anos, sempre que inexistir acordo das partes acerca do tipo ou da duração do arrendamento.
Mais: o locatário que, não obstante se encontrar em alguma das situações de especial vulnerabilidade contempladas no n.º 4 do artigo 31.º a não invoque na resposta àquela comunicação, verá automaticamente precludida a faculdade de condicionar a transição do contrato para o NRAU, garantindo o seu diferimento pelo prazo de cinco anos em caso de insuficiência económica, ou frustrando-a pura e simplesmente se, como sucede no caso sub judice, tiver completado já 65 anos de idade ou for portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
Ora, foi justamente tendo presente que, uma vez iniciado pelo senhorio o procedimento tendente a fazer transitar para o NRAU um contrato de arrendamento celebrado ao abrigo do regime vinculístico, a proteção do interesse do arrendatário depende do modo como o mesmo reagir à comunicação para esse efeito efetuada e, muito particularmente, das razões ou circunstâncias que vier a opor à concretização daquele projeto ou vontade, que, ao rever pela segunda vez o NRAU, a Lei n.º 79/2014, de 19 de dezembro, veio ampliar o conteúdo obrigatório de tal comunicação, de modo a assegurar as condições necessárias para uma tomada de posição esclarecida e eficiente por parte do segundo.
Através do aditamento das atuais alíneas e) a g) do artigo 31.º da Lei n.º 6/2006, na versão decorrente da Lei n.º 31/2012, a revisão levada a cabo pela Lei n.º 79/2014 veio, assim, subordinar a eficácia da comunicação enviada pelo senhorio ao arrendatário de outras indicações para além das que resultavam já das respetivas alíneas a) a c). São elas:
«[…]
e) O conteúdo que pode apresentar a resposta, nos termos do n.º 3 do artigo seguinte;
f) As circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou conjuntamente com a resposta prevista na alínea anterior, e no mesmo prazo, conforme previsto no n.º 4 do artigo seguinte, e a necessidade de serem apresentados os respetivos documentos comprovativos, nos termos do disposto no artigo 32.º;
g) As consequências da falta de resposta, bem como da não invocação de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo seguinte.»
Isto é: tendo em conta a severidade das consequências que a ausência pura e simples de resposta à comunicação do senhorio, ou uma resposta deficitária ou incompleta a essa mesma comunicação, é suscetível de gerar para a situação habitacional do arrendatário, a Lei n.º 79/2014 pretendeu assegurar que as mesmas apenas se produzirão se e na medida em que este for previamente informado, quer das faculdades que lhe assistem e ónus que sobre si impedem, quer dos efeitos resultantes do seu não exercício ou observância. Fê-lo tendo, além do mais, presente que o procedimento negocial desencadeado pelo senhorio com vista a fazer transitar para o NRAU contratos celebrados antes de 15 de novembro de 1990 (data da entrada em vigor do RAU) tem como destinatários pessoas com idade relativamente avançada, o que exponencia os riscos associados à falta de esclarecimento do arrendatário relativamente às opções que tem ao seu dispor e condições em que pode fazer uso delas. É o que resulta da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 250/XII, que esteve na origem da Lei n.º 79/2014, 19 de dezembro:
«[A] monitorização da reforma [do arrendamento urbano], para a qual contribuiu a Comissão de Monitorização da Reforma do Arrendamento Urbano […] que integrou entidades privadas e serviços públicos com envolvimento na execução da reforma, nomeadamente associações de inquilinos e de proprietários, assim como de profissionais do sector, revelou que existiam alguns aspetos do regime legal previsto que podiam e deviam ser melhorados, nomeadamente no que respeita à transição dos contratos mais antigos para o novo regime.
Assim, alguns dos procedimentos previstos nessa matéria carecem de ajustamento e foram refletidos, inclusivamente, nas sugestões da Comissão de Monitorização da Reforma do Arrendamento Urbano, nomeadamente quanto à informação exigível na comunicação realizada pelo senhorio para atualização de renda, no sentido de esclarecer o inquilino das consequências da falta ou da extemporaneidade da sua resposta ou quanto à comprovação anual dos rendimentos por parte dos arrendatários, cujo regime legal apontava para um momento temporal que não se revelava articulado com a liquidação anual dos impostos sobre o rendimento.»
Neste contexto, o que se procurará perceber nos pontos seguintes é se, ao subordinar a este novo dever de comunicação e advertência a eficácia da comunicação com que o senhorio desencadeia o procedimento negocial com vista à transição do arrendamento para o NRAU, a Lei n.º 79/2014 se limitou a modificar a disciplina constante da Lei n.º 31/2012 num sentido apenas constitucionalmente possível ou, pelo contrário, veio fazer depender o valor positivo do silêncio do arrendatário de uma condição indispensável à respetiva conformidade constitucional. O que, invertidos os respetivos termos, corresponde, em substância, à primeira das questões de constitucionalidade a apreciar: saber se a norma extraível dos artigos 30.º e 31.º, n.º 6, da Lei n.º 6/2006, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012 e que vigorou até janeiro de 2015 (artigo 9.º da Lei n.º 79/2014), segundo a qual a falta de resposta do arrendatário à comunicação prevista no artigo 30.º determina a transição do contrato para o NRAU e vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU, sem que ao primeiro tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o mesmo tenha sido advertido do efeito associado ao seu eventual silêncio, é compatível com a ordem jurídico-constitucional.
15. O regime transitório aplicável aos contratos de arrendamento celebrados antes da vigência do RAU, na versão decorrente da Lei n.º 31/2012, foi já por duas vezes apreciado na jurisprudência deste Tribunal.
No Acórdão n.º 277/2016, o Tribunal julgou inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, a norma extraída dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, segundo a qual «os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção».
Tendo-se colocado ali a questão de saber se, «atentas as consequências gravosas para os interesses em causa do arrendatário – como, sublinhe-se, o direito à habitação e a proteção à terceira idade (respetivamente, artigo 65º e artigo 72º, ambos da Constituição) — e, bem assim, o caráter duradouro e objetivo das situações a comprovar documentalmente (idade, incapacidade e rendimentos anuais brutos), não seria excessiva esta aplicação do princípio da preclusão num procedimento negocial complexo entre privados sem que exista qualquer advertência prévia por parte de quem inicia o mesmo procedimento», o Tribunal considerou tal solução, para além de desnecessária do ponto de vista da finalidade prosseguida — a dinamização do mercado do arrendamento —, «desproporcionadamente onerosa para o arrendatário, por comparação com os benefícios que a mesma traz para o senhorio e para o interesse comum».
Fê-lo com base nos seguintes fundamentos:
«In casu está em causa a aplicação do princípio da preclusão, de origem processual, à possibilidade de o arrendatário, não obstante as ter invocado oportunamente, se prevalecer de certas situações preexistentes, que têm natureza objetiva – porque verificáveis por terceiros e conhecidas das autoridades públicas – e duradoura. É o caso, nomeadamente, do seu rendimento anual bruto, da sua idade ou da sua incapacidade: não sendo tais situações comprovadas documentalmente no momento da resposta a que se refere o artigo 31.º do NRAU, o arrendatário deixa de poder beneficiar do regime substantivo associado à verificação de tais situações, impedindo ou diferindo a transição para o NRAU do seu arrendamento e limitando e condicionando a atualização do valor das rendas. A preclusão em apreço ocorre, não no quadro de um processo judicial, mas de um procedimento negocial desencadeado pelo senhorio e sem que este se encontre vinculado a advertir o arrendatário para as consequências da inobservância daquele ónus de comprovação.
[...]
O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:
- a justificação da exigência processual em causa;
- a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;
- e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cfr., neste sentido, os Acórdãos n.ºs 197/07, 277/07 e 332/07).»
Ora, é justamente em relação a este último aspeto que a norma sindicada pelo recorrente suscita dificuldades.
10. Como mencionado, o objetivo visado com tal solução é a célere definição do estatuto do contrato de arrendamento, uma vez comunicada a intenção do senhorio de o fazer transitar para o NRAU. Este fim interessa não apenas ao próprio senhorio, como, tendo em conta a apreciação feita pelo legislador relativamente à interdependência entre a reforma do regime do arrendamento concretizada no NRAU e a dinamização do mercado do arrendamento (cfr., por exemplo, a já citada Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 250/XII) – apreciação essa que não cabe a este Tribunal questionar –, a toda a comunidade. Trata-se, pois, de um fim legítimo.
Por outro lado, a solução legal de precludir a possibilidade de o arrendatário impedir ou diferir a transição para o NRAU do seu arrendamento e ou limitar e condicionar a atualização do valor das rendas não é funcionalmente inadequada para tal objetivo.
A verdade, porém, é que tal solução se revela desnecessária para o efeito. Uma vez comunicada ao senhorio a idade ou a incapacidade do arrendatário ou o seu rendimento anual bruto, aquele – que até pode ter conhecimento pessoal desses dados (ao menos quanto à idade e à incapacidade, tal até será a situação mais provável, de acordo com a experiência comum) – fica a saber que a sua intenção de fazer transitar o arrendamento para o NRAU, a menos que as alegações do arrendatário sejam falsas, está comprometida ou limitada. Mas nada impediria que, até ao momento em que tais circunstâncias pessoais do arrendatário fossem por este devidamente comprovadas, a transição prosseguisse sob condição. Agindo de boa fé, como é dever de todas as partes contratuais, o arrendatário também tem interesse numa rápida clarificação da situação. O mais tardar, no âmbito do procedimento especial de despejo referido nos artigos 15.º e seguintes do NRAU, a veracidade das alegações do arrendatário teria de ser comprovada, sem prejuízo do dever de compensação de eventuais danos causados pela demora na comprovação daquelas situações objetivas. E, de qualquer modo, opondo-se o arrendatário à transição para o NRAU, esta, mesmo abstraindo dos regimes especiais do “arrendatário com RABC inferior a cinco RMNA” (artigo 35.º) e do “arrendatário com idade igual ou superior a 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60%” (artigo 36.º), só implica a imediata cessação do vínculo de arrendamento no caso de o senhorio não aceitar o valor da renda proposto, expressa ou tacitamente, pelo arrendatário e optar pela denúncia imediata do contrato mediante o pagamento de indemnização, nos termos do artigo 33.º, n.º 5, alínea a) (cfr. supra o n.º 5.3.).
A solução consubstanciada na norma objeto do presente recurso revela-se, além disso, desproporcionadamente onerosa para o arrendatário, por comparação com os benefícios que a mesma traz para o senhorio e para o interesse comum. Aliás, estes não seriam excessivamente lesados caso tal norma não vigorasse. Com efeito, o senhorio não perde nem o seu direito a promover a transição para o NRAU nem o direito a eventuais compensações devidas pela demora na efetivação dessa mesma transição. Já o arrendatário que reúna as condições que alega – RABC inferior a cinco RMNA e idade igual ou superior a 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60% – sem as comprovar no momento devido e que até à comunicação da intenção do senhorio de fazer transitar o seu contrato de arrendamento para o NRAU gozava de um direito consolidado ao locado com uma certa renda, fica, por força de tal norma, numa situação muito precária, já que o seu direito à habitação no locado e a garantia de uma renda ajustada ao seu rendimento ficam dependentes da boa vontade do senhorio. Ou seja, numa fase já muito avançada da vida, e em que dificilmente encontrará soluções equivalentes à que tinha por consolidada, o arrendatário pode, contra a sua vontade, ver-se confrontado com um contrato de arrendamento com prazo certo e, portanto, sujeito a caducidade, e, ou, com uma renda de valor demasiado elevado para o seu nível de rendimentos (cfr. supra os n.ºs 5.3. e 5.4.).»
O juízo formulado no Acórdão n.º 277/2016 foi recentemente secundado no Acórdão n.º 440/2019, que julgou inconstitucional, «por violação do princípio da proporcionalidade ínsito ao princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, a interpretação normativa da alínea c) do n.º 7 do artigo 36.º e do n.º 5 do artigo 35.º do NRAU (aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, e retificada pela Declaração de Retificação n.º 59-A/2012, de 12 de outubro), segundo a qual os arrendatários a que se refere o artigo 36.º, que no mês correspondente àquele em que foi invocada a circunstância relativa ao RABC do agregado familiar, e pela mesma forma, não fizerem prova anual do seu rendimento perante o senhorio, ficam automaticamente impedidos de poder prevalecer-se desta circunstância, mesmo que não sejam alertados pelos senhorios para a necessidade de a apresentar».
Tratando-se, desta vez, do ónus de apresentação anual (e não inicial) dos documentos comprovativos dos regimes de exceção de que os arrendatários podem beneficiar, considerou-se, no referido aresto, não apenas «desproporcionadamente onerosa para a arrendatária a consequência adveniente da inobservância do ónus em questão, como especialmente desnecessária e injustificada uma tal exigência – sobretudo quando imposta em momento em que os serviços de finanças competentes não poderiam emitir qualquer documento comprovativo do RABC relativo ao ano civil anterior, por ainda não ter sido, sequer, iniciado o procedimento tendente à liquidação e cobrança de IRS.».
16. Diversamente das hipóteses apreciadas nos referidos arestos, a norma que integra o objeto do presente recurso diz respeito à medida das consequências que a lei associa à inobservância pelo arrendatário, não do ónus de comprovação de circunstâncias pressupostas pela aplicação do regime de exceção previsto para situações de especial vulnerabilidade atempadamente invocadas perante o senhorio, mas do próprio ónus de reação à comunicação com que este dá início ao procedimento negocial tendente a operar a transição para o NRAU. Mais concretamente, está em causa saber se a falta de resposta àquela comunicação pode valer como aceitação da proposta do senhorio quanto à transição do contrato de arrendamento para o NRAU, ao tipo de contrato, à sua duração e ao valor da renda, sem que ao arrendatário tenham sido comunicadas as alternativas de que dispõe — isto é, as faculdades que lhe permitem condicionar, diferir ou até mesmo frustrar a transição do contrato para o NRAU — e sem que o mesmo tenha sido previamente advertido do efeito que a lei atribui ao seu eventual silêncio.
À partida, são duas as possibilidades que se colocam quando se trata de enquadrar dogmaticamente a solução constante do n.º 6 do artigo 31.º da Lei n.º 6/2006, na versão ora considerada.
A primeira alternativa passa por reconduzi-la ao âmbito da teoria do negócio jurídico, mais concretamente ao valor do silêncio enquanto declaração negocial.
Sob tal perspetiva, o n.º 6 do artigo 31.º constituirá uma norma legal que, em linha com as exceções contempladas no n.º 1 do artigo 218.º do Código Civil, atribui ao silêncio do arrendatário o valor declarativo de aceitação da proposta negocial apresentada pelo senhorio, nos exatos termos que dela constam quanto ao valor da renda, tipo e duração do contrato, originando-se assim, através do encontro dessas duas declarações ¾ proposta expressa e aceitação ficta ¾, a formação de um novo contrato de arrendamento, sujeito ao NRAU. A proposta que dá corpo à comunicação efetuada pelo senhorio considera-se aceite pelo arrendatário se este não se pronunciar no prazo de 30 dias contados da receção daquela, efeito que se produzirá, assim, no plano da atribuição legal ao silêncio do destinatário de determinada proposta negocial do valor correspondente ao da declaração da sua aceitação.
A segunda possibilidade — que colocará o presente caso diretamente em linha com as hipóteses apreciadas nos Acórdãos n.º 277/2016 e 440/2019 ¾ passa por evidenciar a similitude existente entre a tramitação que integra o procedimento extrajudicial regulado nos artigos 30.º a 37.º do NRAU e as regras previstas para a ação declarativa no Código de Processo Civil.
Deste ponto de vista ¾ sustentado, na doutrina, por Francisco de Castro Fraga ¾ «[a] iniciativa do senhorio constitui como que uma petição inicial de um processo a que seguirão, naturalmente, a contestação (resposta do arrendatário) e a réplica (contra resposta do senhorio). O conjunto das três comunicações configura um processo negocial obrigatório, com regras que foram claramente inspiradas no processo civil […]. A comparação com as regras processuais ajuda a compreender as soluções legislativas adotadas (e, desde logo, o cuidado posto na receção, pelo arrendatário, da comunicação do senhorio, regulamentando-a quase como se tratasse da citação para uma ação judicial» (Códigos Comentados da Clássica de Lisboa, Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, coordenação: António Menezes Cordeiro, Coimbra, Almedina, 2014, p. 484).
17. Quer seja encarada como um problema relativo aos limites da intervenção do legislador na seleção e conformação dos procedimentos negociais compatíveis com a atribuição de eficácia declarativa ao silêncio de uma das partes, quer o seja como um problema respeitante à margem de discricionariedade legislativa no estabelecimento dos ónus que informam o procedimento e das cominações ou preclusões que resultam da sua inobservância por qualquer dos intervenientes, a questão de constitucionalidade que cumpre resolver não difere na sua essência: trata-se, em qualquer dos casos, de verificar se o legislador se encontra constitucionalmente autorizado, desde logo em face do direito à habitação consagrado no n.º 1 do artigo 65.º da Constituição, a estabelecer uma relação de causa-efeito entre a inação do arrendatário e a conversão do vínculo locatício no contrato proposto pelo senhorio, sem que o primeiro tenha sido previamente informado das faculdades que lhe assistem na reação a essa proposta e advertido das consequências que a lei associa à sua eventual inércia.
Tendo por conteúdo «o direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família» (Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Volume I, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2017, p. 958 e ss.), o direito à habitação consagrado no artigo 65.º, n.º 1, da Constituição, apresenta uma dupla natureza ou dimensão.
Desde há muito reconhecida na jurisprudência constitucional, essa dupla vertente do direito à habitação foi explicitada no Acórdão n.º 101/92 nos termos seguintes:
«(1) de um lado, consiste no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma, revestindo então a forma de «direito negativo», ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos «direitos, liberdades e garantias» (cfr. artigo 17.º); (2) de outro lado, o direito à habitação consiste no direito de a obter, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objectivo. Neste sentido, constitui um verdadeiro e próprio «direito social», implicando enquanto tal determinadas obrigações positivas do Estado (n.os 2, 3 e 4 do artigo 65.º) que conferem àquele a natureza de direito positivo que justifica e legitima a pretensão do cidadão a determinadas prestações (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., pp. 345 e 346).»
No caso presente, é a dimensão negativa do direito à habitação que importa considerar.
É certo que, em matéria de conformação do regime do arrendamento habitacional, dela não decorre para o legislador uma «obrigação geral de manter as soluções jurídicas anteriormente estabelecidas», sempre que mais favoráveis à posição do arrendatário (Acórdão n.º 465/01). O que dela para o legislador resulta é o dever de, ao definir, em cada momento histórico, a política habitacional a empreender e, sobretudo, ao selecionar os meios de promoção e regulação da oferta e/ou da procura habitacional necessários para esse efeito, se abstenha de o fazer em termos tais que admitam a privação arbitrária, sem fundamento razoável ou em condições desproporcionadamente onerosas da habitação alcançada através do contrato de arrendamento.
Saber a solução constante dos artigos 30.º e 31.º, n.º 6, da Lei n.º 6/2006, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012, reflete a observância desse dever é o que se procurará perceber nos pontos seguintes.
18. Reconduzindo-se ao direito do arrendatário a não ser arbitrariamente privado da habitação a que acedeu por essa via, a posição jusfundamental afetada pela norma sindicada apresenta, de acordo com o critério enunciado no Acórdão n.º 101/92 (e reafirmado no Acórdão n.º 406/07), uma natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias.
Tal critério é o mesmo com base no qual o Tribunal vem reconhecendo natureza análoga a outras dimensões do direito de propriedade para além daquela que corresponde ao «direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública» e «mediante o pagamento de justa indeminização». Trata-se, conforme notado no recente Acórdão n.º 299/2020, das «dimensões que consubstanciem «aquele “radical subjetivo” que o aproxima dos direitos fundamentais subjetivos de tipo clássico, negativos, diretamente invocáveis» (Parecer n.º 32/82 da Comissão Constitucional); que sejam «essenciais à realização do Homem como pessoa» (Acórdãos n.ºs 329/1999 e 187/2001); […] ou que se mostrem indispensáveis à conceção do direito de propriedade como garantia de “espaço de autonomia pessoal” (Acórdão n.º 374/2003)».
O direito do arrendatário a não ser arbitrariamente privado da habitação que o contrato lhe propicia, além de apresentar a estrutura típica dos direitos de defesa, constitui um pressuposto material da possibilidade de efetivação dos demais direitos e liberdades inerentes ao estatuto do ser-pessoa, beneficiando, também nessa medida, da proteção conferida pelo regime próprio dos limites às leis restritivas que se encontra definido no artigo 18.º da Constituição, em particular pelo princípio da proibição do excesso acolhido no respetivo n.º 2.
De acordo com a metódica assente no triplo teste desde há muito seguida na jurisprudência deste Tribunal (cf. Acórdão n.º 634/93), a proibição do excesso supõe que a medida seja adequada aos fins que através dela se prosseguem; que essa medida seja exigida para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para assegurar o mesmo desiderato; e, por fim, que o resultado obtido seja proporcional à carga coativa que a medida comporta, aferida pelo grau de afetação da posição jusfundamental em causa.
No caso presente, não está em causa a possibilidade, em si mesma, de o legislador admitir ou promover a transição para o NRAU de contratos de contratos de arrendamento celebrados antes da vigência do RAU, dentro de certos limites e sob determinadas condições. Também não está em causa a possibilidade, em si mesma, de, com vista a assegurar uma definição efetiva e célere do estatuto do arrendamento, o mesmo legislador atribuir valor negocial positivo ou efeito cominatório pleno ao silêncio do arrendatário, quando interpelado pelo senhorio através da comunicação que desencadeia o procedimento extrajudicial tendente a fazer transitar o vínculo locatício para o NRAU.
Nenhum desses aspetos do regime aplicável, isoladamente considerado ou mesmo em resultado da sua conjugação, foi contestado pelo Tribunal recorrido quanto à sua conformidade constitucional. A solução legal cuja aplicação o Tribunal recorrido considerou vedada pela relação de equilíbrio ou justa medida postulada pelo princípio da proibição do excesso é apenas a de que tais efeitos se produzam sem que o arrendatário haja sido previamente informado das faculdades que pode exercer no âmbito do procedimento de transição desencadeado pelo senhorio, e sem que haja sido advertido das consequências em que incorre em resultado de uma sua eventual inação.
A medida implicada na norma sindicada é, assim, a que resulta da convergência desses três elementos: falta de resposta do arrendatário à comunicação do senhorio; aceitação da proposta por este apresentada quanto ao valor da renda, tipo e duração do contrato, e transição do mesmo para o NRAU; dispensa de esclarecimento prévio do arrendatário quanto às faculdades que lhe assistem e, em especial, à relação que a lei estabelece entre aqueles dois primeiros elementos.
É essa, pois, a medida cuja adequação, exigibilidade e proporcionalidade cumpre aqui aferir, tendo em conta os fins prosseguidos pela Lei n.º 31/2012.
19. A revisão do NRAU levada a cabo pela Lei n.º 31/2012 teve como finalidade — vimo-lo já — a dinamização do mercado de arrendamento urbano.
De acordo com a avaliação política levada a cabo pelo legislador de 2012, essa dinamização seria mais eficazmente alcançada através do aumento da oferta habitacional disponível, não sendo tal aumento consonante com a perpetuação dos contratos de duração necessariamente indeterminada celebrados ao abrigo do regime vinculístico.
As opções de política social cabem em exclusivo ao legislador democraticamente legitimado, não sendo, por essa razão, em si mesmo sindicáveis por este Tribunal. À jurisdição constitucional cabe apenas verificar se os instrumentos normativos que «corporizam» tais opções são compatíveis com os «pertinentes preceitos constitucionais» (cf. Acórdão n.º 806/93).
Quanto aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU — que ascendiam a 255 mil em 2011 (Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 38/XII) —, as finalidades da política habitacional definida em 2012 foram concretizadas através do estabelecimento um procedimento extrajudicial tipificado, discricionariamente acionável pelo senhorio, suscetível de permitir que a transição de tais contratos para o NRAU contemplasse a possibilidade da sua conversão em contratos com prazo certo, bem como da atualização do valor da renda. Um procedimento que o legislador pretendeu de célere e eficaz, mas simultaneamente aberto à participação de ambas as partes — senhorio e arrendatário —, com vista a uma definição negociada e paritária do estatuto do vínculo locatício em face da nova disciplina instituída no NRAU. Assim, para que ambos pudessem intervir e influir nessa definição, tanto ao senhorio como ao arrendatário foi atribuído um conjunto de faculdades, através de cujo exercício, que se perspetivou dinâmico e dialético, se procurou assegurar a um e a outro o poder de influenciar, no âmbito do procedimento negocial previsto, os termos desse novo estatuto ou a formação de um novo contrato.
É nesta lógica que se compreendem as alternativas que, em reação à comunicação do senhorio, a lei confere ao arrendatário: a) aceitação do valor da renda proposto; b) rejeição do valor da renda proposto e apresentação de contraproposta tendo em vista a fixação de um novo valor; c) pronúncia, em qualquer dos casos, quanto ao tipo e à duração do contrato propostos; d) invocação e comprovação de circunstâncias pessoais justificativas da aplicação do regime excecional previsto para os arrendatários em situação de especial vulnerabilidade; e, por fim, e) denúncia do contrato de arrendamento.
20. Poucas reservas merecerá a conclusão de que, relativamente aos contratos celebrados em data anterior a 15 de novembro de 1990, a redefinição do estatuto de vínculo locatício à luz da evolução entretanto registada no ordenamento jurídico constitui, do ponto de avaliação política levada a cabo pelo legislador de 2012, uma medida funcionalmente adequada e até necessária à dinamização do mercado de arrendamento e, bem assim, que esta constitui fim legítimo, no sentido em que interessa a toda a comunidade (Acórdão n.º 277/2016).
Poucas dúvidas haverá também de que a atribuição de um efeito positivo à eventual inércia do arrendatário constitui, no âmbito da conformação do procedimento extrajudicial regulado nos artigos 30.º a 37.º do NRAU, um mecanismo idóneo e exigível ¾ ou mesmo até um mecanismo sem alternativa facilmente antecipável ¾ para evitar a frustração, por ato unilateral do primeiro, do mecanismo de natureza negociada instituído para aquele fim.
O que não é já, senão adequado, pelo menos necessário para a consecução de qualquer uma dessas finalidades é que este efeito positivo e aquela consequente redefinição do estatuto do vínculo locatício ¾ para mais em termos integralmente coincidentes a proposta apresentada pelo senhorio ¾ sejam produzidos direta e automaticamente pelo silêncio do arrendatário sem que este haja sido previamente esclarecido das faculdades que lhe assistem e, mais do que isso, das consequências que a lei associa à sua eventual inação.
Deste último ponto de vista, nenhuma vantagem é assegurada a qualquer interesse que possa dizer-se legítimo. O único interesse que uma reação desinformada e (por isso) omissiva do arrendatário é de modo a realizar é o eventual interesse do senhorio em fazer valer integralmente e com a maior brevidade possível os termos e condições constantes da sua proposta, designadamente quanto à duração do contrato e ao valor da renda, evitando, consoante os casos, os impedimentos, acertos e ajustes na redefinição do estatuto do arrendamento que, nos termos da lei, podem resultar de uma participação ativa e esclarecida do locatário no procedimento desencadeado pelo segundo.
Mas ainda que não fosse este — o da exigibilidade ¾ o plano em que a influência do défice de esclarecimento e informação do arrendatário devesse ser devidamente ponderada e sopesada no âmbito da confrontação da medida sindicada com o princípio da proibição do excesso, nenhuma dúvida haveria de que, justamente por conta daquela influência, a solução que lhe corresponde sempre se revelaria desproporcionadamente onerosa para aquele, por comparação com os fins através dela visados.
Para além de não proporcionar qualquer tipo de benefício ao interesse legítimo do senhorio ¾ este só poderá residir na definição rápida e eficaz do estatuto do arrendamento, e não, sequer também, na diminuição das condições para uma reação do arrendatário contrária ou até mesmo inviabilizadora da sua proposta ¾, a exclusão do âmbito do dever de comunicação a cargo do senhorio de dados imprescindíveis a uma tomada de posição consciente e esclarecida por parte do seu destinatário diminui tão dramática quanto desnecessariamente as condições do arrendatário para intervir eficientemente no procedimento extrajudicial em defesa dos seus interesses, sujeitando-o à contingência de, contra a sua vontade e em possível desconformidade com o que lhe seria devido, ver-se confrontado com um contrato de arrendamento com prazo certo ¾ e, por isso, caducável ¾ e/ou com uma renda de valor demasiado elevado para o seu nível de rendimentos. O mais das vezes numa fase já avançada da vida, em que, como se disse no Acórdão n.º 277/2016, dificilmente encontrará soluções habitacionais equivalentes àquela que tinha por consolidada, o arrendatário vê deste modo exponenciado ¾ desnecessariamente exponenciado ¾ o risco de vulnerabilização do vínculo que lhe garantia a ocupação do locado, com consequente agravamento da sua situação, já de si frequentemente precária, tanto do ponto de vista do direito a não ser arbitrariamente privado da sua habitação, como ainda, tanto na generalidade dos casos como na concreta situação sub judice, do direito à proteção na terceira idade, consagrado no 72.º da Constituição.
A norma sindicada constitui, em suma, uma restrição desproporcionada do direito à habitação, tornando-se, assim, constitucionalmente censurável à luz do que se dispõe no n.º 1 do artigo 65.º, conjugado com os artigos 17.º, 18.º, n.º 2, todos da Constituição.
21. Confirmado o juízo positivo de inconstitucionalidade que permitiu ao Tribunal recorrido recusar a aplicação da norma com base na qual poderia operar a conversão do contrato de arrendamento num contrato com prazo certo, o julgamento da segunda questão de inconstitucionalidade torna-se inútil. Esta, tendo por objeto o regime aplicável ao conjunto dos factos impeditivos da oposição do senhorio à renovação do contrato para o termo do prazo, deixa-se de colocar-se na medida em que, com a confirmação daquele juízo, decai a base legal que permitiria considerar celebrado por cinco anos o contrato de arrendamento em discussão nos autos.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 65.°, n.° 1, conjugado com os artigos 17.° e 18.°, n.° 2, todos da Constituição, a norma extraível dos artigos
30.° e 31.°, n.° 6, da Lei n.°
6/2006, de 27 de fevereiro, na redação conferida pela Lei n.°
31/2012, de 14 de agosto, segundo a qual a falta de resposta do arrendatário à
comunicação prevista no artigo 30.° determina a transição do contrato para o
NRAU e vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato
propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU, sem que ao
primeiro tenham sido comunicadas as alternativas que lhe assistem e sem que o
mesmo tenha sido advertido do efeito associado ao seu eventual silêncio; e, em
consequência,
b) Negar,
nessa parte, provimento a ambos os recursos.
c) Não conhecer, por inutilidade superveniente, do objeto de
ambos os recursos no segmento integrado pelo artigo 4.° da Lei n.° 31/2012, de 14 de agosto, na parte em que, conferindo
nova redação à alínea a) do n.° 4 do artigo 26.° da Lei n.° 6/2006, de 27 de
fevereiro, eliminou do âmbito das especificidades aplicáveis aos contratos para
fins habitacionais sem duração limitada celebrados durante a vigência do
RAU o fundamento de oposição à denúncia previsto na alínea b) do artigo
107.° do RAU, nos casos em que, à data da entrada em vigor da Lei n.° 31/2012, de 14 de agosto, o arrendatário houvesse
completado já trinta anos de permanência no locado, nessa qualidade.
Custas devidas pela recorrente A., Lda., fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, ponderados os fatores referidos no n.º 1 do respetivo artigo 9.º.
Lisboa, 13 de julho de 2020 - Joana Fernandes Costa - Maria José Rangel de Mesquita - Gonçalo Almeida Ribeiro - João Pedro Caupers
Atesto o voto de conformidade do Juiz Conselheiro Lino Ribeiro, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio).
Joana Fernandes Costa