ACÓRDÃO N.º 262/2020
Processo n.º 958/2019
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. O Ministério Público, em representação de menores, intentou contra a A., S.A., (A.) ora recorrente, a B., S.L., Sucursal Portugal, e os pais dos menores identificados, uma ação especial para tutela da personalidade, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Cível de Oeiras.
Proferida a decisão em primeira instância, o Ministério Público interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que o julgou parcialmente procedente.
A A., inconformada, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 30 de maio de 2019, negando provimento ao recurso de revista, confirmou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, e, em consequência, entre outros aspetos, decidiu determinar que as rés não possam exibir ou por qualquer modo divulgar o episódio 3 do programa em causa, sem que, previamente, comuniquem e solicitem autorização, e a obtenham, de participação dos menores no programa à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) competente e que a participação de menores em futuros episódios, independentemente de quem venham a ser, fique dependente da prévia comunicação e autorização da CPCJ a solicitar pela rés.
Ainda inconformada, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante designada por LTC).
Através da Decisão Sumária n.º 873/2019, que determinou o não conhecimento de cinco questões de constitucionalidade elencadas como objeto do recurso, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, os autos prosseguiram para alegações relativamente «às normas constantes dos artigos 2.º a 11.º da Lei n.º 105/2009, de [14] de setembro, interpretadas no sentido de que os menores apenas podem participar em programas de televisão após pedido e concessão de autorização pela CPCJ».
2. A recorrente formulou as suas alegações, apresentando as seguintes conclusões:
«A. A interpretação normativa cuja conformidade constitucional se submete à apreciação do Tribunal é aquela segundo a qual as normas constantes dos artigos 2.º a 11.º da Lei n.º 105/2009 devem ser interpretadas no sentido de que os menores apenas podem participar em qualquer programa de televisão após pedido de concessão de autorização pela CPCJ territorialmente competente.
B. A referida interpretação normativa consubstancia uma violação do princípio da separação de poderes, porquanto atribui às CPCJ – organismos administrativos integrados na administração do Estado, aos quais cabe, nessa medida, o exercício da função administrativa – um poder que corresponde materialmente ao exercício da função jurisdicional.
C. Da interpretação aqui em causa resulta a atribuição às CPCJ do poder de dirimir conflitos entre direitos fundamentais e de declarar o direito, atuando, deste modo, no âmbito do núcleo essencial da função jurisdicional.
D. No mais, admitir o poder de uma CPCJ impor decisões suscetíveis de implicar graves restrições de direitos fundamentais, ofende a dimensão clássica de garantia e de controlo do princípio da separação de poderes.
E. A medida resultante da interpretação normativa adotada implica uma limitação desnecessária e desproporcional dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e informação (em especial, dos operadores e produtores televisivos), bem como do direito dos pais a educar os seus filhos sem a intromissão do Estado na vida familiar.
F. Existem medidas alternativas menos restritivas daqueles direitos e liberdade e que seriam igualmente aptas a proteger os fins da medida – no essencial, correspondentes à salvaguarda do interesse da criança e do seu normal e são desenvolvimento -, sendo que a vantagem marginal que a solução adotada proporciona em termos de proteção daqueles fins não compensa o aumento de sacrifício daqueles direitos e liberdades.
G. A interpretação normativa em análise impõe uma limitação ou condicionamento à difusão de um programa televisivo, a ser determinada pela decisão de uma autoridade de natureza administrativa (e não de um tribunal), o que deve ser levado em linha de conta na submissão desta medida ao crivo do princípio da proporcionalidade.
H. O direito(-dever) fundamental dos pais a educar os seus filhos tem como correspetivo que o Estado se deva limitar a cooperar com os pais na educação dos filhos menores, reduzindo ao mínimo a sua intervenção no seio familiar e pressupondo que o interesse da criança está alinhado com o interesse dos pais.
I. Sem prejuízo da segurança e da saúde dos menores, o direito-dever de os pais educarem os filhos não responder a cânones fixos e deve ser exercido com liberdade, pelo que ao Estado não cabe impor uma certa forma de educar, devendo a sua atuação neste âmbito ser pautada por um princípio de intervenção mínima.
J. Nesta medida, a interpretação normativa em causa viola as normas constitucionais constantes dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 36.º, 37.º, 69.º, 110.º, 111.º, n.º 1 e 202.º da Constituição da República Portuguesa.»
3. O Ministério Público sustenta que deve ser negado provimento ao recurso de constitucionalidade interposto, apresentando por sua vez as seguintes conclusões nas alegações que produziu:
«1. O trabalho das crianças e dos jovens, trabalho dos menores ou trabalho infantil, numa designação mais vulgarmente utilizada, é, desde há muito objeto de uma especial atenção por parte das Convenções e Tratados Internacionais, oriundos dos organismos internacionais de Direitos Humanos e dos Direitos das Crianças.
2. Em Portugal a Constituição da República Portuguesa atribui ao Estado a incumbência de assegurar as condições de trabalho, designadamente a especial proteção do trabalho dos menores, na alínea c), do n.º 2 do artigo 59.º, enquanto no n.º 3 do artigo 69.º proíbe, nos termos da lei, o trabalho infantil de menores em idade escolar.
3. Estes princípios constitucionais inspiram toda a legislação relativa à matéria do trabalho infantil.
4. Neste âmbito, a Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, (com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 60/2018, de 21 de agosto e n.º 93/2019, de 4 de setembro), veio regulamentar matérias do Código do Trabalho relativas a menores, trabalhador-estudante e formação profissional, tendo revogado e substituído o regime previsto nos artigos 139.º a 146.º da RCT de 2004, legislação que até então regulamentava esta matéria, e que tinha respondido, ainda que com atraso, às exigências da Diretiva 94/33/CE.
5. Mais especificamente esta Lei tem como objeto, nos termos da alínea a) do n.º 1, a regulação da participação do menor em atividade de natureza cultural, artística ou publicitária – a que se refere o artigo 81.º do Código do Trabalho, com a extensão do trabalho autónomo de menor com idade inferior a 16 anos, decorrente do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, estabelecendo no seu capítulo II, que abrange os artigos 2.º a 11.º, as regras regulamentadoras da participação de menor em atividade de natureza cultural, artística ou publicitária.
6. Nos artigos 5.º, 6.º, 7.º, 8.º e 11.º estabelece-se o regime de autorização e comunicação, a que está sujeita a participação de menor.
7. No âmbito deste regime atribui-se à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) a competência para receber a comunicação ou conceder a autorização, relativas à participação de menores em atividade de natureza cultural artística ou publicitária, previstas no n.º 2 da legislação supra referida.
8. O fundamento e os pressupostos da concessão do pedido de autorização são especificados, designadamente, no n.º 2 do artigo 7.º, que dispõe: “A CPCJ autoriza a participação do menor se a atividade, o tipo de participação e o correspondente número de horas por dia e por semana respeitarem o disposto nos artigos anteriores e não prejudicarem a segurança, a saúde, o desenvolvimento físico, psíquico e moral, a educação e a formação do menor”.
9. O legislador atribui, pois, uma especial atenção à eventualidade da verificação de situações suscetíveis de poderem colocar em perigo a criança ou jovem, prejudicando a segurança, a saúde, o desenvolvimento físico, psíquico e moral, a educação e a formação do menor.
10. Da decisão da CPCJ cabe requerimento para o Tribunal de Família e Menores nos termos do artigo 11.º que, sob a epígrafe autorização judicial, dispõe que “caso a CPCJ não autorize a participação ou revogue a autorização anterior, os representantes legais do menor podem requerer ao tribunal de família e menores que autorize a participação ou mantenha a autorização anterior, observando-se até ao trânsito em julgado, a deliberação do CPCJ, e no n.º 2 que “ao processo referido no número anterior é aplicável, com as devidas adaptações, o regime do processo judicial de promoção e proteção previsto no diploma que regula a CPCJ”.
11. As Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, previstas no artigo 12.º da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, são instituições não judiciárias com autonomia funcional que visam promover os direitos da criança e do jovem e prevenir ou pôr termo a situações suscetíveis de afetar a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento integral, que exercem as suas atribuições em conformidade com a lei e deliberam com imparcialidade e independência”.
12. As deliberações da CPCJ, principalmente as que aplicam medidas relativas à apreciação de situações concretas de crianças em perigo, só são sindicáveis mediante a intervenção judicial prevista no artigo 11.º da LPCJP.
13. À Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens criada no Decreto-Lei n.º 195/2015, de 10 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 139/2017, de 10 de novembro, relativamente às CPCJ competem somente funções de acompanhamento e avaliação genéricas e procedimentais, que podem levar a orientações igualmente genéricas e procedimentais que em nenhum caso podem interferir ou limitar a autonomia funcional das CPCJ e a independência e imparcialidade das suas deliberações, consagradas no artigo 12.º da LPCJP.
14. Ou seja as relações existentes entre a CNPCJ e as CPCJ não se caracterizam por uma relação de natureza administrativa hierárquica.
15. A participação de menor em atividades de natureza cultural, artística ou publicitária regulamentada na Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, (com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 60/2018, de 21 de agosto e n.º 93/2019, de 4 de setembro), pode considerar-se como uma exceção ao princípio geral da proibição do trabalho infantil, consagrado na alínea c) do n.º 2 do artigo 59.º e no n.º 3 do artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa e em consonância com os diversos instrumentos jurídicos internacionais que Portugal subscreveu.
16. Compreende-se, assim, que o legislador tenha optado por um especial cuidado na regulação da participação de menor em atividades de natureza cultural, artística ou publicitária, dado que esta se constitui como uma potencial situação de perigo para o desenvolvimento integral da criança e do jovem.
17. Compreende-se, igualmente, que se tenha optado por atribuir às CPCJ e não a qualquer outra entidade de natureza administrativa, (como anteriormente acontecia), a autorização e comunicação para a participação de menor, em conformidade, também, com a Diretiva n.º 94/33/CE do Conselho, de 22 de junho.
18. No quadro legal da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, a atuação funcional atribuída às CPCJ – ponderação da autorização em função do eventual prejuízo para o desenvolvimento integral do menor e do perigo para a sua saúde, educação e formação – não se afasta do desenho interventivo legalmente previsto relativamente às atribuições das Comissões, consagrado na LPCJP, incluindo a previsão da sindicabilidade da deliberação da CPCJ, mediante intervenção judicial.
19. O legislador, na Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, como se infere do artigo 11.º, mantendo o figurino legal geral em matéria de proteção dos direitos e interesses das crianças e jovens, estabeleceu a intervenção jurisdicional própria e adequada à resolução do conflito, mediante autorização judicial, mandando aplicar, com as devidas adaptações, o regime do processo judicial de promoção e proteção previsto no diploma que regula a CPCJ.
20. Não se verifica, pois, qualquer intromissão no “núcleo essencial das funções” dos Tribunais, na medida em que a sua intervenção é assegurada por lei quando para tanto é exigida.
21. O que permite concluir que o desenho legal contido nas normas contidas nos artigos 2.º a 11.º, da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, (com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 60/2018, de 21 de agosto e n.º 93/2019, de 4 de setembro), estão completamente conformes à Constituição da República Portuguesa, quando interpretadas no sentido de que os menores apenas podem participar em programas de televisão após pedido e concessão de autorização pela CPCJ – Comissão de Proteção de Crianças e Jovens.
22. O artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito das crianças à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integra especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.
23. A previsão do n.º 5 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa ao estabelecer que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos, tem em atenção que este direito fundamental deve ser exercido em função do dever de educação e manutenção dos filhos, também constitucionalmente expresso, como claramente resulta do n.º 6 do mesmo artigo, ao prever a possibilidade de os filhos poderem ser separados dos pais quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles.
24. O regime instituído pela Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, não é desproporcionado face à proteção dos direitos e valores em causa.
25. A opção por um regime próprio de proteção dos direitos em causa, para além do regime de promoção dos direitos e proteção das crianças em perigo previsto na LPCPJ, corresponde à preocupação valorativa que a própria Lei Fundamental manifesta com o tratamento infra legal a dar à necessidade de uma tutela substantiva e adjetiva eficaz dos direitos de personalidade.
26. Por isso, com a consagração do regime legal contido na Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, em concreto, através da prévia comunicação e pedido de autorização às CPCJ para que as crianças participem em programas desta natureza e de conteúdo idêntico ou similar.
27. Acresce que a solução alternativa sugerida pelo recorrente não se compadece com uma verdadeira e eficaz tutela dos Direitos da Criança exigida constitucionalmente.
28. A intervenção de um psicólogo nos termos propostos levaria a que toda e qualquer avaliação relacionada com a promoção e proteção das crianças e jovens num qualquer programa televisivo, de qualquer conteúdo, apenas fosse referenciado à CPCJ, quando um psicólogo independente, cujo acompanhamento seria assegurado pelas entidades promotoras, assim entendesse, através de emissão de parecer, nos casos mais graves em que se justificasse a verificação de perigo para as crianças e jovens na participação no programa.
29. Quanto à alegada violação da liberdade de expressão e de informação também não assiste razão ao recorrente, na medida em que não há qualquer imposição definitiva por parte das CPCJ que impeça a existência de um programa televisivo ou da sua transmissão.
30. Efetivamente, não ocorre qualquer limitação desnecessária ou desproporcional ao exercício do direito à liberdade de expressão e de informação dos operadores e produtores televisivos, porquanto o conteúdo essencial do programa não é proibido ou censurado, mas antes suscetível de ser avaliado em nome dos direitos fundamentais das crianças, na dimensão da tutela da sua personalidade, vertente da privacidade e da reserva da sua vida privada.
31. De qualquer modo, a existir uma decisão por parte da CPCJ de não autorização, sempre existirá a possibilidade de os interessados requererem aos Tribunais de Família e Menores a competente alteração dessa decisão mediante autorização judicial, nos termos do já referenciado artigo 11.º, da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
a) Delimitação do objeto do processo
4. Constitui objeto do presente recurso «as normas constantes dos artigos 2.º a 11.º da Lei n.º 105/2009 devem ser interpretadas no sentido de que os menores apenas podem participar em qualquer programa de televisão após pedido de concessão de autorização pela CPCJ territorialmente competente.» (cfr. conclusão A das alegações do recorrente).
A formulação utilizada pretende abranger no seu âmbito um conjunto alargado de preceitos da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, que regulamenta e altera o Código do Trabalho – os «artigos 2.º a 11.º». Ora, resulta desses preceitos um conjunto vastíssimo de normas, que em muito ultrapassa o objeto normativo visado pelo recurso – incluindo a proibição de contracenar com animais, a duração máxima do período de atividade ou a responsabilidade por acidentes de trabalho. Assim, em rigor, a dimensão normativa em causa resulta, mais precisamente, dos artigos 2.º, n.º 1, 5.º, n.ºs 1 a 3, e 7.º, n.º 2, da Lei n.º 105/2009, que têm a seguinte redação:
«Artigo 2.º
Atividades permitidas a menor
1 - O menor pode participar em espetáculo ou outra atividade de natureza cultural, artística ou publicitária, designadamente como ator, cantor, dançarino, figurante, músico, modelo ou manequim.
(…)
Artigo 5.º
Autorização ou comunicação de participação em atividade
1 - A participação de menor em atividade referida no artigo 2.º está sujeita a autorização ou comunicação.
2 - A comunicação só pode ter lugar no caso de participação que decorra num período de vinte e quatro horas e respeite a menor com, pelo menos, 13 anos de idade que não tenha participado, nos 180 dias anteriores, em atividade a que se refere o artigo 2.º.
3 - É competente para a autorização e para receber a comunicação referidas no n.º 1 a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) cuja área abranja o domicílio do menor ou, na sua falta, aquela cuja sede estiver mais próxima, funcionando em comissão restrita.
(…)
Artigo 7.º
Deliberação da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens
(…)
2 - A CPCJ autoriza a participação do menor se a atividade, o tipo de participação e o correspondente número de horas por dia e por semana respeitarem o disposto nos artigos anteriores e não prejudicarem a segurança, a saúde, o desenvolvimento físico, psíquico e moral, a educação e a formação do menor.
Assim, o objeto do presente processo de fiscalização concreta da constitucionalidade incide sobre a norma que determina que a participação de um menor num programa televisivo depende de autorização da CPCJ competente, decorrente da interpretação dos artigos 2.º, n.º 1, artigo 5.º, n.ºs 1 a 3, e artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 105/2009.
No entender da recorrente uma tal interpretação normativa viola as normas constitucionais constantes dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 36.º, 37.º, 69.º, 110.º, 111.º, n.º 1 e 202.º da Constituição da República Portuguesa, por consubstanciar uma violação do princípio da separação de poderes e uma limitação desnecessária e desproporcional dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e informação (em especial, dos operadores e produtores televisivos), bem como do direito dos pais a educar os seus filhos sem a intromissão do Estado na vida familiar.
Vejamos.
b) Enquadramento normativo do trabalho infantil
5. A norma em análise resulta da interpretação da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, diploma que regulamentou e alterou o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro. Especificamente, o objeto normativo incide sobre a matéria do trabalho infantil, mais concretamente da participação de menor em atividade de natureza cultural, artística ou publicitária.
Nesse contexto, importa explorar o enquadramento normativo aplicável a esta realidade.
i) Plano internacional e da União Europeia
6. No âmbito do Direito Internacional, tem-se vindo a consagrar um conjunto de instrumentos internacionais e proteções específicas aplicáveis às crianças. Também como reflexo disso, o trabalho das crianças e dos jovens, é, desde há muito, objeto de uma especial atenção por parte das convenções e tratados internacionais.
Começando por referir os instrumentos mais gerais, é de assinalar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 217 A (III), de 10 de dezembro de 1948, estabelece, no seu artigo 25.º, n.º 2, que «a maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma proteção social», consagrando, no seu artigo 26.º, o direito de toda a pessoa à educação.
Por seu turno, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado para ratificação pela Lei n.º 29/78, de 12 de junho, estabelece, no artigo 24.º, n.º 1, o direito de todas as crianças, sem qualquer discriminação de raça, cor, sexo, língua, origem nacional ou social, propriedade ou nascimento, a terem da parte da sua família, da sociedade e do Estado a proteção que a sua condição de menor exige. E o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, aprovado para ratificação pela Lei n.º 45/78, de 11 de julho, além de prever que os Estados devem promover o «são desenvolvimento da criança», no contexto do direito à saúde (artigo 12.º, n.º 2, alínea a)), e o direito à educação, no artigo 13.º, estabelece, no seu artigo 10.º que «medidas especiais de proteção e de assistência devem ser tomadas em benefício de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação alguma derivada de razões de paternidade ou outras», bem como o direito das crianças e adolescentes a serem protegidos contra a exploração económica e social, devendo o seu emprego em trabalhos que comprometam a sua moralidade ou saúde, suscetíveis de pôr em perigo a sua vida ou de prejudicar o seu desenvolvimento normal, ser sujeito a sanções legais e os Estados fixar os limites de idade abaixo dos quais o emprego de mão de obra infantil será interdito e sancionado. Também o artigo 2.º do Protocolo Adicional (n.º 1) à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), aprovado pela Lei n.º 65/78, de 13 de outubro, estabelece o direito à educação.
No contexto específico dos direitos da criança, é de referir a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de setembro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de setembro, que prevê, no seu artigo 32.º, o reconhecimento pelos Estados do direito da criança a ser protegida contra a exploração económica ou sujeição a trabalhos perigosos ou capazes de comprometer a sua educação, prejudicar a sua saúde ou desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social, devendo os Estados fixar idades mínimas de admissão ao emprego, adotar regulamentos próprios relativos à duração e às condições de trabalho, prevendo as respetivas sanções. Ainda no que respeita aos instrumentos sobre os direitos da criança, é de relembrar a Declaração dos Direitos da Criança (proclamada pela Resolução da Assembleia Geral da ONU 1386 (XIV), 20.11.59) que no artigo 9.º consagra o direito da criança a ser protegida contra qualquer forma de exploração, não devendo ser admitida num emprego antes de uma idade mínima adequada e não podendo, em caso algum, dedicar-se a uma ocupação ou emprego que possa prejudicar a sua saúde e prejudicar o seu desenvolvimento físico, mental e moral.
A Carta Social Europeia Revista, do Conselho da Europa, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 64-A/2001, de 17 de outubro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 54-A/2001, de 17 de outubro, prevê no artigo 7.º, um conjunto de medidas de proteção das crianças e adolescentes, nomeadamente a fixação em quinze anos a idade mínima para admissão ao emprego, ainda que com exceções para os casos de determinados trabalhos ligeiros que não impliquem o risco de não prejudicar a saúde, moralidade ou educação da criança; a fixação em dezoito anos a idade mínima para admissão ao emprego em certas ocupações consideradas como perigosas ou insalubres; a proibição de empregar crianças sujeitas a escolaridade obrigatória em trabalhos que as privem do pleno benefício dessa escolaridade; a limitação da duração do trabalho dos menores de acordo com as exigências do seu desenvolvimento e com as necessidades da sua formação profissional; o reconhecimento do direito dos jovens trabalhadores a uma remuneração justa ou a um subsídio apropriado; a proteção especial contra os perigos físicos e morais a que as crianças e adolescentes estejam expostos, nomeadamente contra os que resultem de forma direta ou indireta do seu trabalho. Prevê-se igualmente, como parte do seu direito a crescer num ambiente favorável ao desabrochar da sua personalidade e ao desenvolvimento das suas aptidões físicas e mentais, a necessidade de os Estados tomarem medidas apropriadas a protegerem as crianças e os adolescentes contra a exploração (artigo 17.º, n.º 1, alínea b), da Carta).
A preocupação com o trabalho infantil ocupa um lugar central no contexto da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sendo de referir a Convenção n.º 138 da OIT, sobre a idade mínima de admissão ao emprego, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 11/98, de 19 de março, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 11/98, de 19 de março. Aí se estabelece que «a idade mínima de admissão a qualquer tipo de emprego ou trabalho que, pela sua natureza ou pelas condições em que se exerça, for suscetível de comprometer a saúde, a segurança ou a moralidade dos adolescentes não deverá ser inferior a 18 anos» (artigo 3.º, n.º 1), prevendo-se algumas exceções, nomeadamente que a autoridade nacional competente «poderá, derrogando a proibição de emprego ou de trabalho» de uma pessoa de idade inferior a esse mínimo, «autorizar, em casos individuais, a participação em atividades tais como espetáculos artísticos», devendo as autorizações «limitar a duração em horas do emprego ou do trabalho autorizados e prescrever as condições dos mesmos» (artigo 8.º da Convenção n.º 138).
É também de referir a Convenção n.º 182 da OIT, Relativa à Interdição das Piores Formas de Trabalho das Crianças e à Ação Imediata com vista à Sua Eliminação, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 47/2000, de 01 de junho, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 28/2000, de 01 de junho, que impõe a adoção de medidas pelos Estados para assegurar a proibição e a eliminação das piores formas de trabalho das crianças, incluindo aí os trabalhos que, pela sua natureza ou pelas condições em que são exercidos, são suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança ou moralidade da criança (artigos 1.º e 3.º, alínea d), da Convenção), nomeadamente os trabalhos que expõem a criança a abuso físico, psicológico ou sexual (n.º 3, alínea d), da Recomendação sobre as Piores Formas de Trabalho das Crianças da OIT de 1999).
7. Já ao nível do Direito da União Europeia (UE), a Carta de Direitos Fundamentais da UE, no seu artigo 14.º, n.º 1, garante o direito à educação. No seu artigo 32.º, proíbe o trabalho infantil, estipulando que, em regra, a idade mínima de admissão ao trabalho não pode ser inferior à idade em que termina a escolaridade obrigatória e faz ressaltar a necessidade de «os jovens admitidos ao trabalho [beneficiarem] de condições de trabalho adaptadas à sua idade e de proteção contra a exploração económica e contra todas as atividades suscetíveis de prejudicar a sua segurança, saúde ou desenvolvimento físico, mental, moral ou social, ou ainda de pôr em causa a sua educação».
Neste contexto, a Diretiva n.º 94/33/CE, do Conselho, de 22 de junho de 1994, relativa à proteção dos jovens no trabalho refere-se concretamente ao dever de os Estados-Membros tomarem as medidas necessárias à proibição do trabalho infantil, considerando este, geralmente, como o trabalho prestado por quem tem menos de 14 anos (artigo 4.º da Diretiva). Prevê-se expressamente uma exceção para a contratação de crianças para participarem em atividades de natureza cultural, artística, desportiva ou publicitária, no seu artigo 5.º, sujeitando-a à necessidade de obtenção de uma autorização prévia emitida pela autoridade competente para cada caso individual. As atividades em causa não devem ser suscetíveis de causar prejuízo à segurança, à saúde ou ao desenvolvimento das crianças ou prejudicar a sua capacidade para beneficiar da instrução ministrada. Por seu turno, a Diretiva n.º 2000/78/CE, do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional, prevê expressamente no seu artigo 6.º que as diferenças de tratamento com base na idade não constituam discriminação se forem objetiva e razoavelmente justificadas, no quadro do direito nacional, por um objetivo legítimo e desde que os meios para o realizar sejam apropriados e necessários, nomeadamente a fixação de condições mínimas de idade.
8. Assim, retira-se deste breve excurso pelo Direito Internacional e pelo Direito da UE a existência de uma preocupação com a proteção das crianças e dos jovens, expressa em todos estes instrumentos internacionais e europeus, que se funda na tutela da sua dignidade humana, no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, da educação, da formação e da salvaguarda da sua integridade física e psíquica.
ii) Plano interno
9. A Constituição da República Portuguesa consagra um direito especial das crianças à proteção por parte da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, nomeadamente contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições (artigo 69.º, n.º 1). É nesse contexto que se proíbe, logo no texto constitucional, o trabalho de menores em idade escolar, nos termos da lei (artigo 69.º, n.º 3), como decorrência do direito ao ensino (artigo 74.º, n.º 1) e no respeito pelo princípio do livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1). Também nesse âmbito, o artigo 59.º, n.º 2, alínea c), incumbe o Estado de assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente a especial proteção do trabalho dos menores. Deste quadro constitucional resulta o dever de o Estado, por lei, fixar uma idade mínima de admissão ao emprego, um sistema de proteção contra perigos físicos ou morais a que a criança possa estar exposta e um regime penal e sancionatório adequado (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. 1, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, p. 871).
O direito à especial proteção do trabalho dos menores, referido no parágrafo anterior, foi concretizado pelo legislador através: i) do artigo 3.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, (lei que aprovou em anexo o Código do Trabalho [CT]), que tem como epígrafe “trabalho autónomo de menor”; ii) dos artigos 66.º a 83.º do CT, onde se regulamenta o contrato de trabalho de menores; e iii) nos artigos 61.º a 72.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, (lei que aprova o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho), onde se estabelecem as atividades proibidas ou condicionadas a menor. Este conjunto de normas visa salvaguardar a posição jurídica do menor, proteger a sua saúde física e psíquica, o seu desenvolvimento, segurança, educação e formação.
No que respeita mais concretamente à participação de menores em atividades ligadas ao espetáculo ou de natureza cultural, artística ou publicitária, só com o Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, ficou claramente expressa a menção de que a participação de menores nessas atividades seria objeto de regulamentação em legislação especial (artigo 70.º desse Código), menção prevista hoje no artigo 81.º do CT. Esta matéria é regulamentada pelos artigos 2.º a 11.º da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, (lei que regulamenta e altera o CT), onde se trata especificamente da participação de menor em atividade de natureza cultural, artística ou publicitária, a que se refere o artigo 81.º do CT. Este complexo normativo transpõe para a ordem jurídica nacional a já referida Diretiva n.º 94/33/CE, do Conselho, de 22 de junho de 1994, relativa à proteção dos jovens no trabalho, que foi inicialmente transposta (com 8 anos de atraso) pela Lei n.º 35/2004, de 29 de julho (que regulamentava o Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto) e, mais tarde, pela Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro.
10. Nos termos do artigo 5.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 105/2009, a participação do menor em espetáculo ou em outras atividades de natureza cultural, artística ou publicitária carece de autorização ou comunicação à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) da área do domicílio do menor ou, na sua falta, aquela cuja sede estiver mais próxima. Trata-se da transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva n.º 94/33/CE que, no seu artigo 5º, prevê que «a contratação de crianças para participarem em atividades de natureza cultural, artística, desportiva ou publicitária está sujeita à obtenção de uma autorização prévia emitida pela autoridade competente para cada caso individual.» O não cumprimento do dever de comunicação ou pedido de autorização, bem como o não acatamento da decisão da CPCJ constitui contraordenação.
O pedido deve ser apresentado por escrito pela entidade promotora (artigo 5.º, n.º 1, e artigo 6.º, n.º 1), devendo ser instruído, entre outros documentos, com a autorização dos representantes legais do menor, a qual deve mencionar a atividade em que o menor participará e local onde a mesma se realiza, o tipo de participação do menor referenciada através de sinopse detalhada, a duração da participação do menor e o número de horas diárias e semanais de atividade do menor em atuação e atos preparatórios. Esta autorização repete grande parte dos elementos que a entidade promotora tem que enviar à CPCJ. Contudo, tal repetição não é despicienda pois visa assegurar que os representantes legais do menor possuem conhecimento dos precisos termos da atividade que o menor irá prestar, e que são os mesmos que foram comunicados à CPCJ. A CPCJ apenas deve autorizar a participação do menor se a atividade, o tipo de participação e o correspondente número de horas por dia e por semana respeitarem as exigências legais previstas naquele diploma, e desde que a participação não prejudique a segurança, a saúde, o desenvolvimento físico, psíquico e moral, a educação e a formação do menor (artigo 7.º, n.º 2).
Refira-se, por fim, que a CPCJ deve proferir decisão no prazo de 20 dias, considerando-se o requerimento indeferido se não for decidido nesse prazo. No entanto, haverá deferimento tácito uma vez decorrido o prazo de 20 dias, se os documentos referidos nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 6.º, forem favoráveis à participação do menor na atividade, ou se este já não estiver abrangido pela escolaridade obrigatória. Por seu lado, caso a CPCJ não autorize a participação ou revogue a autorização anterior, os representantes legais do menor podem requerer ao tribunal de família e menores que autorize a participação ou mantenha a autorização anterior, aplicando-se com as devidas adaptações o processo judicial de promoção e proteção, nos termos previstos no artigo 11.º
Subjacente a todo este regime está, portanto, a preocupação de evitar situações suscetíveis de colocar em perigo a criança ou jovem e de proteger a sua saúde física e psíquica, o seu desenvolvimento, segurança, educação e formação.
11. As CPCJ são instituições oficiais não judiciárias, com autonomia funcional, que visam promover os direitos das crianças e dos jovens, bem como prevenir e pôr termo a situações que coloquem em perigo a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento integral dos mesmos, devendo exercer as suas atribuições em conformidade com a lei e deliberar com imparcialidade e independência (artigo 12.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo [LPCJP], aprovada em anexo à Lei n.º 147/99, de 1 de setembro). Estas comissões têm uma composição múltipla, representativa da comunidade, integrando diversas instituições públicas e privadas com responsabilidades na área da tutela da família e da criança (artigo 17.º da LPCJP). Podem funcionar em comissão alargada ou restrita (artigos 16.º a 22.º), sendo que, para efeitos de conceder autorização para a participação do menor em espetáculo ou receber comunicação dessa participação funcionará em comissão restrita (artigo 21.º). A comissão restrita é composta por um número ímpar dos membros que compõem a comissão alargada, nunca inferior a cinco, devendo os mesmos ser escolhidos de forma a que a mesma tenha uma composição interdisciplinar e interinstitucional, incluindo, sempre que possível, pessoas com formação nas áreas de serviço social, psicologia, direito, educação e saúde (artigo 20.º).
As CPCJ assumem conjuntamente com os tribunais a competência exclusiva para a aplicação das medidas de promoção e proteção previstas no art. 35.º da LPCJP, nos termos do artigo 38.º da mesma Lei. Decorre do princípio da subsidiariedade, um dos princípios orientadores da intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, que esta deve ser efetuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais (artigo 4.º, alínea k), da LPCJP). No entanto, a legitimidade da intervenção das CPCJ está normalmente condicionada pelo consentimento expresso e prestado por escrito dos pais, do representante legal ou da pessoa com a guarda de facto (artigo 9.º) bem com a não oposição da criança ou jovem com 12 ou mais anos. A falta deste consentimento ou não oposição constitui motivo para intervenção judicial obrigatória (artigo 11.º, n.º 1, alínea c), da LPCJP).
Note-se que, apesar de existir um organismo público encarregue da missão de contribuir para a planificação da intervenção do Estado e para a coordenação, acompanhamento e avaliação da ação dos organismos públicos e da comunidade na promoção dos direitos das crianças – a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPCJ), nos termos dos artigos 30.º e ss. da LPCJP – as deliberações da comissão restrita relativas à ponderação de uma situação concreta de perigo suscetíveis de aplicação de uma medida de promoção e proteção não estão sujeitas à apreciação ou confirmação da CNPCJ. A CNPCJ é uma pessoa coletiva de direito público que funcionando, embora, no âmbito do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, tem autonomia administrativa e património próprio (artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 159/2015, de 10 de agosto). Certo é que as relações existentes entre a CNPCJ e as CPCJ não se caracterizam por uma relação de natureza administrativa hierárquica.
c) Apreciação do mérito da questão de inconstitucionalidade
12. Enquadrada a norma em análise no contexto normativo internacional, europeu e nacional, é tempo de abordar as questões de constitucionalidade que a recorrente coloca.
Apesar de concluir que as normas constitucionais violadas são as constantes dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 36.º, 37.º, 69.º, 110.º, 111.º, n.º 1 e 202.º da Constituição da República Portuguesa, os parâmetros constitucionais que a recorrente convoca para aferir da validade constitucional da norma ao longo da argumentação que expendeu nas suas alegações são o princípio da separação de poderes e os direitos fundamentais à liberdade de expressão e informação, bem como do direito dos pais a educar os seus filhos sem a intromissão do Estado na vida familiar.
i) A invocada violação do princípio da separação de poderes
13. Na tese da recorrente, a interpretação normativa em causa consubstancia uma violação do princípio da separação de poderes, porquanto atribui a organismos administrativos integrados na administração do Estado um poder que corresponde materialmente ao exercício da função jurisdicional, atribuindo às CPCJ o poder de dirimir conflitos entre direitos fundamentais e de declarar o direito, o que constitui o núcleo essencial da função jurisdicional.
De acordo com a argumentação expendida, a proteção de menores nas situações como a que desencadeou os autos, realiza-se no contexto de um conflito, designadamente no confronto entre a realização do interesse do menor em obediência às normas consagradas no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição e o direito dos pais na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos prescrito no artigo 68.º, n.º 1, cabendo aos tribunais resolver o conflito entre a proteção dos interesses dos menores e os direitos dos pais a conformar os seus cuidados e a sua educação. A avaliação casuística sobre se essa participação afeta o direito fundamental ao desenvolvimento integral do menor, em ordem a concluir se deve prevalecer um dado interesse do menor, na perspetiva do Estado, ou se deve prevalecer o direito e a liberdade dos pais a conformar os cuidados do menor e a sua educação constitui função jurisdicional, por implicar dirimir conflitos entre normas fundamentais e declarar o direito. Nesta medida, a interpretação normativa em análise ofende o princípio da separação de poderes, por atentar contra a dimensão material da função jurisdicional.
Além disso, o poder de uma CPCJ impor decisões suscetíveis de implicar graves restrições de direitos fundamentais, ofende a dimensão clássica de garantia e de controlo do princípio da separação de poderes ao permitir a órgãos de administração tomar decisões que podem implicar graves restrições de direitos fundamentais, uma vez que nos termos do artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, cabe exclusivamente aos juízes o primeiro e último controlo do respeito pelos direitos e liberdades fundamentais.
14. Vejamos:
A separação e interdependência de poderes constitui uma característica inerente do Estado de Direito democrático.
Como o Tribunal referiu no Acórdão n.º 214/2011, do Plenário:
«9. Nos termos do n.º 1 do artigo 111.º da Constituição, “os órgãos de soberania devem observar a separação e interdependência estabelecidos na Constituição”. Este princípio de separação e interdependência de poderes, que anteriormente apenas aparecia formulado no capítulo da organização do poder político (o atual preceito constitucional corresponde ao anterior n.º 1 do artigo 114.º), passou também a figurar, com a revisão operada pela Lei Constitucional n.º 1/97 (RC97), no artigo 2.º da Constituição. Com a diferença de que, enquanto na caracterização do Estado de direito democrático se menciona, de modo mais abrangente, a “separação e interdependência de poderes”, no capítulo relativo à organização do poder político a separação e interdependência que a Lei Fundamental manda observar respeita aos poderes dos “órgãos de soberania”. Esta dupla referência reafirma a posição do princípio da separação de poderes simultaneamente como um princípio fundamental do momento organizatório da Constituição e como um dos princípios definidores da comunidade política e do Estado. Como se disse no acórdão n.º 24/98 (disponível, como os demais citados em www.tribunalconstitucional.pt), o princípio ficou explicitado “inequívoca e claramente como um dos essentialia do Estado de direito democrático”.
Admite-se modernamente que o princípio da separação de poderes não cumpre apenas o papel, com que entrou na história do constitucionalismo, de repartição orgânico-funcional dos poderes do Estado com vista à proteção das liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos. Desempenha uma pluralidade de funções constitucionais: função de medida, função de racionalização, função de controlo e função de proteção. Como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª edição revista, Coimbra, 2007, pág. 209) o texto constitucional articula a ideia de separação com a ideia de interdependência de poderes, apontando a fundamentalidade do princípio para a ideia de ordenação dos órgãos de soberania pautada pela adequação orgânica, de modo a que as medidas e decisões do poder público para cumprimento das tarefas do Estado sejam preferencialmente adotadas pelos órgãos que, “segundo a sua organização, função, atribuição e procedimento de atuação estão em melhor posição para analisar os pressupostos, os juízos e os resultados indispensáveis a medidas ou decisões constitucionalmente ajustadas”. Ele implica, como refere Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo VII, Coimbra, 2007, pág. 83 “a necessidade de um núcleo essencial de competência de cada órgão, apurado a partir da adequação da sua estrutura ao tipo ou à natureza de competência de que se cuida”.
Com efeito, enquanto instrumento de inibição da atuação dos poderes públicos, através do modelo tradicional de checks and balances, em salvaguarda da liberdade individual dos cidadãos – a chamada dimensão negativa do princípio da separação de poderes –, o princípio cedeu campo operativo a um conjunto de institutos garantidores dos preceitos materiais da Constituição e dos direitos, liberdades e garantias. Designadamente, centrando desde já a atenção no âmbito relacional entre o poder legislativo do Parlamento e o poder executivo (…), perante a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais e a tendencial plenitude de acesso ao direito e aos tribunais para proteção contra qualquer lesão dos direitos e interesses individuais, incluindo a garantia de tutela jurisdicional efetiva dos direitos e garantias dos administrados.
A maior virtualidade ou dimensão operativa do princípio, ao menos em termos de justiciabilidade – o que, num sistema de justiça constitucional como a portuguesa, releva pela via da apreciação de constitucionalidade de normas jurídicas – é a que respeita à sua dimensão de elemento de interpretação e de delimitação funcional das normas constitucionais de competência no sentido da racionalização do exercício das funções do Estado. Nesta sua dimensão positiva, o princípio da separação de poderes “assegura uma justa e adequada ordenação das funções do Estado e, consequentemente, intervém como esquema relacional de competências, tarefas, funções e responsabilidades dos órgãos constitucionais de soberania” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, 2003, pág. 250). Como diz Jorge Reis Novais, Separação de Poderes e Limites da Competência Legislativa da Assembleia da República, Lisboa, 1997, pág. 37, o princípio “é hoje essencialmente invocável na praxis jurídica no seu significado de princípio organizatório estruturante de uma organização racional dos poderes do Estado”.
Não, obviamente, de uma racionalidade aprioristicamente concebida, mas daquela racionalidade que está presente na distribuição de competências constitucionais para prossecução das funções do Estado pelos diversos órgãos de soberania (“… a separação e interdependência estabelecidos na Constituição”), de modo que no binómio separação‑interdependência possa sobreviver o núcleo essencial das atribuições e responsabilidade constitucional de cada um deles. No essencial, o princípio significa “ordenação adequada de funções, proibição da confusão e da diluição dos nexos de imputação e responsabilidade” (Assunção Esteves, “Os limites do poder do Parlamento e o procedimento decisório da co-incineração”, Estudos de Direito Constitucional, Coimbra, 2001, pág. 17).»
15. Recordadas estas considerações gerais quanto ao alcance do princípio da separação de poderes, no presente recurso de constitucionalidade interessa, sobretudo, considerar a sua refração na garantia fundamental de acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos individuais e mais precisamente ainda na atribuição exclusiva aos tribunais da competência para exercer a atividade jurisdicional. Numa palavra, a reserva constitucional de jurisdição.
A este respeito, cumpre notar, desde logo, que a norma em análise não veda o acesso aos tribunais – nem os impede de ter a última palavra na ponderação entre os direitos fundamentais conflituantes. Apenas se determina que a participação de menores em espetáculos ou em outras atividades de natureza cultural, artística ou publicitária – incluindo-se aí a participação em programas de televisão está dependente da prévia autorização prestada pelas CPCJ. É certo que estas entidades se integram no exercício da função administrativa, e que desempenham funções complexas de balanceamento de direitos fundamentais e de tarefas do Estado quando emitem as suas decisões – como muitas outras entidades administrativas. Acontece que as deliberações da CPCJ são sindicáveis mediante a intervenção judicial prevista no artigo 11.º da LPCJP, o que significa que a decisão de indeferimento do pedido de autorização apresentado pela entidade promotora do programa proferida pela CPCJ pode ser impugnada em juízo, designadamente nos tribunais de família, o que afasta a tese da recorrente de violação da função jurisdicional.
Com efeito, a Constituição não impõe que em todos os momentos em que possa estar em causa o exercício da função jurisdicional, tenha de ser um tribunal a dizer a primeira palavra. A reserva de jurisdição tem sentido fundamental apenas para as matérias com dignidade para integrarem o «núcleo de uma função estadual» (Cf. Jorge Miranda e Rui de Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, III, p. 26-27). É possível distinguir, por isso, entre dois níveis de reservas de jurisdição, designadamente através do critério material das duas palavras adotado pelo Tribunal Constitucional (cfr., v.g., Acórdão n.º 365/91, do Plenário): de um lado, uma reserva absoluta, do outro, uma reserva relativa. A reserva absoluta reporta-se às matérias em que aos tribunais são atribuídas não apenas a última palavra, mas desde logo também a primeira palavra, o que traduz um verdadeiro monopólio de juiz. Daí resulta, nessas matérias, a proibição constitucional do exercício da função jurisdicional por parte de outras autoridades. Por seu lado, no domínio da reserva relativa, a garantia da reserva de jurisdição assume o significado de direito a uma garantia de acesso à justiça e à tutela jurisdicional (artigo 20.º da Constituição), que se concretiza através do processo justo para defesa de posições jurídico-subjetivas, tanto em casos de litígio que oponham interesses particulares a decisões de outros poderes e autoridades públicas, como em casos de litígios entre particulares. Nessas áreas é tão só atribuído aos tribunais o monopólio de última palavra, no sentido de que em dado momento da apreciação de uma determinada situação – normalmente num momento subsequente à sua verificação – é assegurada a intervenção de um juiz.
Ora, «o artigo 20.º não exige intervenção ou intervenção imediata de um tribunal quando se tenha que dispor sobre as relações e as situações recíprocas do Estado e dos cidadãos. (…). Necessário é que, quando seja afetado um direito, a última palavra caiba aos tribunais» (Jorge Miranda, Direitos Fundamentais, 2.ª ed., Almedina, 2017, pp. 399-400).
O juiz terá a primeira e última palavra naquele conjunto de situações especificamente previstas em preceitos da Constituição como os artigos. 27.º, n.º 2, 28.º, n.º 1, 33.º, n.ºs 2 e 6, 34.º, n.º 2, 36.º, n.º 6, 46.º, n.º 2 ou 113.º, n.º 7. Realce-se, em matéria de família e filiação, a imposição do monopólio do juiz para separar os filhos dos pais, «quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial» (artigo 36.º, n.º 6). Fora daquelas previsões constitucionais expressas só o “ato materialmente jurisdicional” ou o “ato nuclearmente pertencente à função jurisdicional” exige o monopólio de juiz. Ora, na busca de delimitação do que seja um “ato materialmente jurisdicional” é comum entender-se que basta que se afirme outro interesse público a par da resolução jurídica da questão para nos depararmos com uma área de mera reserva relativa de jurisdição. Em tal hipótese não se poderá excluir a legitimidade constitucional da intervenção decisória da autoridade não jurisdicional para pacificação desse interesse público (Paulo Rangel, Repensar o Poder Judicial. Fundamentos e Fragmentos, Publicações Universidade Católica, 2001, pp. 306-307).
Desta forma, a diferenciação entre reserva absoluta e relativa redunda, na prática na verificação, ou não, da presença de interesse público alheio ao conflito estritamente jurídico. Ou, como salientado, no Acórdão n.º 387/2019, desta 1.ª Secção, ponto 36, ainda que a propósito de questão de constitucionalidade diversa, «Dentro do princípio da reserva de jurisdição dos tribunais é possível distinguir a dimensão da garantia do recurso a juízo contra os atos de quaisquer outras entidades (Rechtsweggarantie ou Gerichtsvorbehalt) da dimensão da reserva de juiz (Richtervortbehalt). A primeira satisfaz-se com a possibilidade do recurso a tribunal desde que a pronúncia deste seja a decisiva. Exprime a ideia de que relativamente a algumas situações é legítima a intervenção de outros poderes desde que seja assegurado depois o direito de acesso aos tribunais.»
16. Na norma em análise é patente o interesse público na intervenção da CPCJ para autorizar a participação dos menores em programas de televisão.
A Constituição reconhece as crianças como sujeitos de direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, preocupa-se com as situações de necessidade associadas à sua natural vulnerabilidade, reconhecendo-lhes um específico e próprio «direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral» (artigo 69.º, n.º 1).
A «noção constitucional de desenvolvimento integral (n.º 1, in fine) – que deve ser aproximada da noção de “desenvolvimento da personalidade” (art. 26.º-[1]) – assenta em dois pressupostos: por um lado, a garantia da dignidade da pessoa humana (cfr. art. 1.º), elemento “estático”, mas fundamental para o alicerçamento do direito ao desenvolvimento; por outro lado, a consideração da criança como pessoa em formação, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades» (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, ob. cit., pp. 869-870).
De outro lado, e apesar de a Constituição reconhecer um papel fundamental à família no desenvolvimento das crianças – como resulta também da Convenção sobre os Direitos da Criança, a família constitui o elemento fundamental da sociedade, e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças – não devem ignorar-se as muitas situações em que o comportamento (por ação ou omissão) dos pais, do representante legal ou de quem tenha a guarda de facto do menor põe em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento.
Num tal quadro, nos termos da LPCJP, a promoção dos direitos e a proteção da criança e do jovem em perigo incumbe, subsidiariamente, às entidades com competência em matéria de infância e juventude, às CPCJ e, em última instância aos tribunais, quando a intervenção das comissões de proteção não possa ter lugar por falta de consentimento dos pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto da criança ou do jovem ou por não dispor dos meios a aplicar ou executar a medida adequada. Sendo entidades não judiciárias, com autonomia funcional, que visam promover os direitos da criança e do jovem e prevenir ou pôr termo a situações suscetíveis de afetarem a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento integral, as CPCJ atuam, sujeitas ao dever de imparcialidade e independência, em promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem - «quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo» (artigo 3.º, n.º 1, da LPCJP).
17. Entre outras situações igualmente previstas na lei, a criança ou o jovem está em perigo quando é obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento, está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional, assume comportamentos ou se entregue a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham por forma a remover a situação (artigo 3.º, n.º 2, da LPCJP).
Como o Tribunal salientou no acórdão Acórdão n.º 382/2017, da 2.ª Secção:
«10. A Constituição dá um especial relevo à inserção da criança ou jovem num ambiente familiar normal ou à sua privação. O desvio da normalidade ou “anomalia” é, neste contexto, aferido apenas pela falta de condições para o cuidado e o desenvolvimento da criança, e não na perspetiva de um qualquer modelo normativo de família (cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, cit., anot. III ao artigo 69.º, p. 871).
O ambiente familiar normal concretiza-se na sujeição da criança ou jovem durante a sua menoridade ao exercício pleno das responsabilidades próprias dos seus progenitores (ou, eventualmente, daqueles que, como os adotantes, assumem legalmente posição jurídica similar), maxime quanto à manutenção e educação dos filhos (cfr. o artigo 36.º, n.º 5, da Constituição), ainda que os progenitores não vivam em conjunto nem mantenham uma relação entre eles (caso em que as aludidas responsabilidades devem ser objeto de regulação, de acordo com a igualdade de direitos e deveres quanto à manutenção e educação dos filhos – v. o n.º 3 do mesmo artigo 36.º). Mas, como mencionado, a proteção do direito ao desenvolvimento integral da criança, designadamente por os pais não cumprirem os seus deveres fundamentais para com os filhos (cfr. os artigos 36.º, n.º 6, e 69.º, n.º 1, ambos da Constituição), pode impor a inibição de tais responsabilidades ou limitações mais ou menos severas ao seu exercício. Esta necessidade de proteção pressupõe, assim, um desvio relativamente ao ambiente familiar tido por desejável – e, nessa mesma medida, a privação de um ambiente familiar normal –, que é tanto maior, quanto maior for a limitação das aludidas responsabilidades dos pais relativamente aos seus filhos.
Por ser assim, compreende-se a importante particularidade de o direito das crianças à proteção do seu desenvolvimento integral não ter por sujeito passivo apenas os poderes públicos, mas também a sociedade (cfr. o mencionado artigo 69.º, n.º 1).»
Anteriormente, pode ler-se ainda no mesmo Acórdão:
«9. A maior densidade do referido direito à proteção das crianças, com vista ao seu desenvolvimento integral, resulta da respetiva associação ao direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição. Na verdade, aquele direito à proteção, além de pressupor o direito ao desenvolvimento da personalidade, implica direitos a uma proteção do bem jurídico desenvolvimento da personalidade contra ameaças ou agressões provenientes de terceiros, incluindo os progenitores ou de contingências naturais – a que correspondem deveres de proteção «contra todas as formas de abandono, de discriminação e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições», conforme referido no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição – e a garantia de condições favoráveis à própria formação da personalidade. E é por causa desta segunda vertente – a que corresponde um dever geral de promoção do bem jurídico em causa – que o direito das crianças à proteção do seu desenvolvimento integral se reconduz a um «típico “direito social”, que envolve deveres de legislação e de ação administrativa para a sua realização e concretização» (assim, v. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, cit., anot. I ao artigo 69.º, p. 869). Como refere REIS NOVAIS:
«[A] maior modificação implícita no advento do Estado social de Direito terá ocorrido através da complementação dos tradicionais deveres de respeitar e proteger por um dever estatal geral de promover o acesso individual aos bens jusfundamentalmente protegidos, portanto, através da dedução constitucional de uma obrigação jurídica estatal de ajuda dos particulares a acederem a tais bens.
O Estado deixa de ser visto como agente neutro, separado da sociedade civil, que apenas respeita a segurança das livres trocas individuais e do livre encontro de autonomias individuais, para passar a ser visto como Estado social – refletindo nesse conceito o movimento dúplice de socialização do Estado e de estadualização da sociedade […] –, um Estado preocupado com as desigualdades de facto que distorciam e anulavam as condições do livre desenvolvimento das autonomias individuais, empenhado ativamente na prossecução de uma liberdade e de uma igualdade reais.
Nesse sentido, para além de respeitar o acesso individual aos bens jusfundamentais, para além de proteger esse acesso, não apenas das ameaças e intervenções do aparelho estadual, mas também dos riscos naturais e das ameaças e intervenções de outros particulares, designadamente dos poderes sociais fácticos, o Estado passa a estar agora também obrigado a promover esse acesso, a ajudar sobretudo aqueles que, por si sós, com o recurso a meios, aptidões ou capacidades próprias, não dispõem de condições para um acesso igualitário e efetivo a tais bens» (v. Autor cit., Direitos Sociais – Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 261-262).»
18. Nas situações a que se reporta a norma em análise, trata-se também de prevenir perigos para o menor, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, designadamente numa área de interesses em que pode surgir o conflito entre os interesses dos pais e a proteção do menor.
Os preceitos dos artigos 2.º a 11.º da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, são, com efeito, expressão da evolução legislativa que ao longo das últimas décadas incrementou a atenção para as necessidades de proteção especial do menor em ordem a alcançar o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, integrando um sistema jurídico em que a criança é titular de direitos e liberdades fundamentais. Sem prejuízo do reconhecimento da «insubstituível ação [dos pais e das mães] em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação» (artigo 68.º, n.º 1, da Constituição), devendo o superior interesse da criança constituir a consideração primeira nas decisões que lhe dizem respeito, não pode deixar de abrir-se caminho à intervenção do Estado nos casos em que a família – apesar de esta constituir um «elemento fundamental da sociedade» (artigo 67.º, n.º 1) e, nesse sentido, representar também o lugar privilegiado de socialização da criança – poder não assegurar a proteção necessária. É no contexto de competência para a aplicação das medidas de promoção e proteção que as CPCJ assumem conjuntamente com os tribunais (com exceção para a medida de confiança do menor a pessoa selecionada para adoção, família de acolhimento ou instituição) que deve ser entendida a norma sindicada.
Trata-se de prevenir os perigos decorrentes do exercício de uma atividade pelo menor, considerando a sua especial vulnerabilidade a circunstâncias que podem comprometer ou condicionar o seu processo de desenvolvimento, como decorre na Constituição – e do Direito Internacional que vincula a República Portuguesa, como a Convenção sobre os Direitos da Criança ou a Carta Social Europeia Revista. Para o efeito faz-se depender aquela participação do menor de uma autorização prévia a conceder pela autoridade competente, como imposto pelo artigo 5.º da Diretiva n.º 94/33/CE (ou pelo artigo 8.º da Convenção n.º 138 da OIT, sobre a idade mínima de admissão ao emprego).
Reservada fica, porém, sempre aos tribunais a resolução dos conflitos que surjam entre a proteção dos interesses dos menores promovida pela CPCJ e os direitos dos pais a conformar os seus cuidados e a sua educação, o que acautela devidamente o princípio da separação de poderes e, em particular, a reserva constitucional do exercício da função jurisdicional pelos tribunais.
ii) A invocada restrição inconstitucional do direito dos pais a educar os seus filhos sem a intromissão do Estado na vida familiar
19. De acordo com a recorrente, a medida resultante da interpretação normativa adotada implica uma limitação desnecessária e desproporcional do direito dos pais a educar os seus filhos sem a intromissão do Estado na vida familiar, uma vez que existem medidas alternativas igualmente aptas a proteger os fins da medida que são menos restritivas daquele direito, sendo que a vantagem marginal que a solução adotada proporciona em termos de proteção daqueles fins não compensa o aumento de sacrifício dos mesmos.
Vejamos, em primeiro lugar, se a norma em referência restringe excessivamente o direito fundamental dos pais a educar os seus filhos, consagrado no artigo 36.º, n.º 5, da Constituição, como sustenta a recorrente, lembrando que um tal direito tem como correspetivo o dever de o Estado se limitar a uma intervenção mínima no seio familiar, em cooperação com os pais na educação dos filhos menores, e pressupondo que o interesse da criança está alinhado com o interesse dos pais, não lhe cabendo impor uma certa forma de educar.
Desde já se adianta que esta argumentação não procede. Na verdade, a tese da recorrente assenta na restrição de um direito cuja verificação não se confirma.
20. O direito de os pais educarem os seus filhos é expressamente reconhecido na Constituição, mas não representa verdadeiramente um direito individual. De acordo com o artigo 36.º, n.º 5, da Constituição, «os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos». Trata-se, por conseguinte, de um “poder-dever”, ou mais concretamente ainda, de poderes concedidos aos pais para serem exercidos no interesse dos filhos, no quadro das relações familiares que ente si estabelecem. Como é salientado por Vieira de Andrade, «Os direitos dos pais de educação dos filhos não são meras liberdades em face do Estado, representam, no seu conteúdo essencial, poderes sobre os filhos. Não são nesta dimensão rigorosamente direitos dos indivíduos, mas poderes concedidos no quadro da autonomia familiar e estariam até fora da matéria dos direitos fundamentais se não fosse a intensidade pessoal que caracteriza a organização da família na vida social e que é recolhida no seu reconhecimento jurídico-constitucional. (…) [C]ompreende-se que os direitos concedidos aos pais dentro da família sejam acoplados com deveres quando tenham a natureza de poderes de pessoas sobre outras pessoas, exercidos no interesse destas últimas e não dos seus titulares» (Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 6.ª ed., Almedina, 2019, p. 154, nota 354).
Assim sendo, para que se verificasse uma restrição relevante daquele direito, seria necessário demonstrar que a norma afeta o interesse do filho, não bastando a compressão do poder de educar dos pais. Ora o que a norma visa é, pelo contrário, fazer valer o superior interesse dos filhos, mesmo naquelas situações limite em que este pode não coincidir totalmente com o interesse manifestado pelos seus progenitores. Na verdade, e diferentemente do que a recorrente parece pressupor, nem sempre o interesse da criança estará alinhado com o interesse dos pais.
A norma em referência não desvirtua o primado dos pais na manutenção e educação dos filhos ou a prevalência da família na orientação do seu desenvolvimento.
21. No entanto, esta conclusão não significa uma ausência de controlo de constitucionalidade da opção legislativa em causa. A intervenção das instituições públicas no acompanhamento do menor deve ser reservada para os casos em que existe um risco sério de os pais não conseguirem corresponder às necessidades daquele. É subsidiária a função que os artigos 36.º, n.º 5, e 67.º, n.º 2, alínea c), atribuem à sociedade e ao Estado em relação ao desenvolvimento das crianças. No respeito por esta regra de subsidiariedade, «as intervenções dos poderes públicos, não só estão estritamente vinculadas à prossecução dos interesses dos filhos, como também devem ser submetidas a um rigoroso crivo de proporcionalidade» (cfr. Rui Medeiros, anotação ao artigo 69.º, in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2010, pp. 1384-1385).
Assim, o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso ainda é convocável por uma outra via, independentemente da restrição de um direito fundamental. O princípio da proporcionalidade pode ser aplicável ao caso, enquanto princípio geral de direito conformador dos atos do poder público, decorrente do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição. Princípio esse que impõe que «a limitação instrumental de bens, interesses ou valores subjetivamente radicáveis se deve revelar idónea e necessária para os fins legítimos concretos que cada um daqueles atos visam, bem como axiologicamente tolerável quando confrontada com esses fins» (Vitalino Canas, “Proporcionalidade (Princípio da)”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Separata do vol. VI, 1994, p. 1).
Com efeito, como foi afirmado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 187/2001, do Plenário, ponto 15, se, no que respeita «às restrições a direitos, liberdades e garantias, a exigência de proporcionalidade resulta do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República», para além desse âmbito «o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de limitação do poder público, pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito». Efetivamente, «impõem-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado-legislador e o Estado-administrador adequar a sua projetada ação aos fins pretendidos, e não configurar as medidas que tomam como desnecessária ou excessivamente restritivas». A afirmação do princípio da proporcionalidade como princípio fundamental geral da ordem constitucional da República Portuguesa, decorrente do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, limitando o poder público na sua liberdade de atuação mesmo fora do âmbito do artigo 18.º, n.º 2, tem vindo a ser reafirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.º 205/2000, da 2.ª Secção, ponto 8, n.º 491/2002, do Plenário, ponto c), n.º 73/2009, da 3.ª Secção, ponto 7).
Como referido no Acórdão n.º 651/2009, do Plenário:
«5. O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, enquanto princípio vinculativo das ações dos poderes públicos, tem referência expressa no texto constitucional apenas em dois lugares: na parte final do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, a propósito dos limites que devem ser observados pelas leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, e no n.º 2 do artigo 266.º, a propósito dos princípios fundamentais que regem a atuação da Administração Pública. No entanto, e como o tem afirmado o Tribunal (vejam-se, quanto a este ponto e por exemplo, os Acórdãos n.ºs 205/2000 e 491/2002, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o princípio decorre antes do mais das próprias exigências do Estado de direito a que se refere o artigo 2.º da Constituição, por ser consequência dos valores de segurança nele inscritos.
Tendo assim a proibição do excesso uma sede material que se revela bem mais vasta do que aquela que é coberta pelas suas referências textuais explícitas, natural é que ela possa ser invocada como parâmetro constitucional em outras situações, que não apenas as referentes, nomeadamente, às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias. É que o princípio vale, não apenas como limite constitucional das ações do legislador, mas como limite das acuações de todos os poderes públicos; e, quanto à função legislativa, não vinculará apenas aquela que se cifrar em instituição de restrições aos direitos, liberdades e garantias. Como os direitos fundamentais desempenham, no nosso ordenamento jurídico, também uma importante função “valorativa” ou objetiva, por certo que o princípio poderá ser invocado como instrumento de ponderação sempre que estiverem em causa “valores” jusfundamentais que entre si, objetivamente, conflituem. Ponto é, no entanto, que se tenha demonstrado previamente que, ainda nessas situações, o legislador, não agindo no âmbito da sua liberdade de conformação política, se encontrava constitucionalmente vinculado a decidir de um certo modo, e não de outro, o “conflito” entre os bens ou valores em colisão.»
No Acórdão n.º 387/2012, do Plenário, ponto 9.1., reconhece-se que é certo que «as decisões que o Estado (lato sensu) toma têm de ter uma certa finalidade ou uma certa razão de ser, não podendo ser ilimitadas nem arbitrárias e que esta finalidade deve ser algo de detetável e compreensível para os seus destinatários. O princípio da proibição de excesso postula que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma “justa medida” e encontra sede no artigo 2.º da Constituição. O Estado de direito não pode deixar de ser um “Estado proporcional”».
É a esta luz, de um Estado informado pela ideia de Direito de onde decorre a proibição do excesso, da atuação arbitrária ou injusta do Estado, da adoção de soluções desnecessárias ou excessivamente onerosas ou restritivas, que a questão de constitucionalidade se pode então colocar.
Ora, considerando o quadro legal em que se insere, e a que já acima se fez desenvolvida referência, não se vê como a norma em análise possa desrespeitar qualquer dos testes em que se desdobra a aplicação do princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido restrito).
Note-se, em primeiro lugar, que a norma se mostra adequada e necessária a fazer valer o superior interesse da criança, designadamente quando este não coincida com o interesse dos pais. Como antes já se deixou salientado, é o interesse público na proteção dos menores contra os perigos a que a participação em atividades de natureza cultural, artística ou publicitária, como um programa de televisão, o pode expor que se visa acautelar. A existência deste perigo resulta indiciada pelo facto de quer a Convenção n.º 138 da OIT, sobre a idade mínima de admissão ao emprego, no seu artigo 8.º, quer a Diretiva 94/33/CE, no seu artigo 4.º, preverem a necessidade de um regime de autorização nestes casos. Um tal interesse público em acautelar o referido perigo apenas pode ser garantido através da intervenção de um terceiro imparcial (uma “autoridade competente para cada caso individual” na expressão da Diretiva 94/33/CE), incumbido de autorizar a participação do menor no programa, norteando a sua atuação exclusivamente pelo superior interesse da criança. Com referência à norma sindicada, atente-se que a autoridade competente – no caso a CPCJ – autoriza a participação do menor se a atividade, o tipo de participação e o correspondente número de horas por dia e por semana não prejudicarem a segurança, a saúde, o desenvolvimento físico, psíquico e moral, a educação e a formação do menor, além de dever respeitar o disposto nas demais disposições previstas na Lei n.º 105/2009 (cfr. o seu artigo 7.º, n.º 2).
Não se vê que outra medida pudesse acautelar com o mesmo grau de eficácia aquele interesse. A solução alternativa apresentada pela recorrente, no sentido de impor às entidades promotoras do programa de televisão em que participem menores que assegurem um acompanhamento destes por um psicólogo especializado independente em ordem a proteger os seus interesses não se compadece com o grau mínimo de cumprimento do dever do Estado de proteção das crianças estabelecido na Constituição. Essa alternativa condicionaria a intervenção da autoridade imparcial encarregue de fazer valer o superior interesse da criança – no caso, a CPCJ – ao entendimento do psicólogo assegurado pelas entidades promotoras.
Por último, mas não menos relevante, a avaliação da conformidade desta norma com o princípio da proporcionalidade, decorrente do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, não pode ignorar que a participação do menor em espetáculos ou qualquer atividade de natureza cultural, artística ou publicitária a que se reporta a Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, representa uma exceção ao princípio geral da proibição do trabalho infantil igualmente consagrado na nossa Constituição, no artigo 69.º, n.º 3, que deve ser lido em conjugação com os deveres especiais do Estado de regular o trabalho do menos, quando este é legalmente admissível (artigo 59.º, n.º 2, alínea c), da Constituição), e em consonância também com os diversos instrumentos internacionais que o Estado português subscreveu. A referida exceção, constitucionalmente permitida, expressando uma proibição relativa, remete para o legislador a definição dos seus precisos termos, desde que sejam respeitados os princípios constitucionais. E, sendo assim, uma vez que a participação do menor em programas/espetáculos televisivos representa um potencial perigo para o desenvolvimento integral da criança, impunha-se ao legislador a adoção de um especial cuidado na sua regulação, já que a proibição do trabalho dos menores prevista na Constituição constitui uma garantia das condições para o desenvolvimento integral da criança. Na norma em análise aquele cuidado foi cumprido pelo legislador ao impor a intervenção da CPCJ para autorizar a participação no menor no programa de televisão, em conformidade com a Diretiva n.º 94/33/CE.
Resta sublinhar, uma vez mais, que os pais não ficam inibidos de fazer valer o seu ponto de vista contra a decisão da CPCJ, no caso de não haver coincidência na avaliação do interesse da criança na participação do programa. Em caso de conflito, os tribunais terão sempre a última palavra, nos termos acautelados no artigo 11.º, o que reforça o juízo de não violação do princípio da proibição do excesso pela medida.
Não existe, assim, evidência de a norma em análise violar o princípio da proporcionalidade. A regra nela contida não é desproporcionada face à proteção dos direitos e valores em causa.
22. De todo o modo - pode ainda acrescentar-se - a norma em apreciação não representa um entendimento jurisdicional dos preceitos constantes dos artigos 2.º a 11.º da Lei n.º 105/2009 que abstraia totalmente da compreensão e caracterização da atividade do menor. Diferentemente do que o enunciado da norma poderia inculcar, a decisão recorrida – o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 30 de maio de 2019 (constante de fls. 1204 a 1324 dos autos), não dispensou a identificação da atividade dos menores que exige autorização da CPCJ. Sobre a questão de fazer depender, quer a exibição do programa 3, quer a participação dos menores em programas futuros, de prévia comunicação e de autorização do CPCJ o tribunal, começando por referir que se tratava de uma medida que encontra suporte na lei – a Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, logo adiantou que «para a delimitação do âmbito de aplicabilidade da Lei n.º 105/2009 é relevante, não a qualificação da atividade cultural, artística ou publicitária (elenco visivelmente não taxativo), mas o conceito de espetáculo, central na disposição do artigo 81.º do Código do Trabalho (referida no artigo 1.º) e presente nas disposições do artigo 2.º e 5.º da Lei. A doutrina especializada conflui para que o conceito deve ser entendido num sentido (cada vez mais) lato: basta a exposição perante o público, designadamente por meios audiovisuais, para haver espetáculo (…). Os elementos essenciais e suficientes seriam, pois, a exibição e o público. Ora, neste caso, estão ambos presentes».
É certo que o acórdão recorrido não deixa de aludir também à possibilidade de aplicação analógica das medidas previstas na Lei n.º 105/2009 a situações semelhantes, solução que, todavia, apenas adianta para acautelar a eventualidade de uma interpretação da Lei n.º 105/2009 que recusasse a sua aplicabilidade direta a situações como as descritas nos autos, o que não deixaria, todavia, de conduzir ao mesmo resultado decisório. Trata-se, no entanto, de mero obter dictum, ou argumento ad ostentationem, sem influência efetiva e determinante na decisão concretamente tomada pelo julgador o que sempre inviabilizaria o seu conhecimento por via de recurso para o Tribunal Constitucional (cfr. Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, p. 110).
iii) A invocada restrição inconstitucional à liberdade de expressão e informação
23. Por fim, alega ainda a recorrente que a referida interpretação representa uma restrição excessiva da liberdade de expressão e informação (em especial, dos operadores e produtores televisivos), na medida em que impõe uma limitação ou condicionamento à difusão de um programa televisivo, a ser determinada pela decisão de uma autoridade de natureza administrativa.
Mais uma vez, não tem razão.
24. A liberdade de expressão e de informação ocupa um lugar central na garantia e desenvolvimento de uma sociedade democrática e pluralista como a República Portuguesa.
O Direito Internacional assegura estes direitos em vários textos fundamentais como no artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos ou no artigo 19.º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
Nos termos do Direito da UE, o direito à liberdade de expressão inclui a liberdade de opinião e de receber e transmitir informações e ideias sem interferência da autoridade pública e independentemente das fronteiras (artigo 11.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE). No contexto específico do Conselho da Europa, a liberdade de expressão é garantida pelo artigo 10.º da CEDH e só pode ser limitada se a limitação for prescrita por lei, prosseguir um dos objetivos legítimos enumerados no n.º 2 daquele preceito e for necessária numa sociedade democrática. Na sua jurisprudência, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) salientou que a liberdade da expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, uma das condições básicas para o seu progresso e para o desenvolvimento de todas as pessoas, sendo aplicável não só à “informação” ou às “ideias” que são favoravelmente recebidas ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também às que ofendem, chocam ou perturbam o Estado ou qualquer sector da população (cfr., por exemplo, o Acórdão do TEDH, Handyside v. Reino Unido, n.º 5493/72, de 7 de Dezembro de 1976, ponto 49).
No plano interno, a Constituição ocupa-se da liberdade de expressão e de informação, em geral, no artigo 37.º e, no artigo 38.º, da liberdade de imprensa, em particular. De acordo com o texto constitucional, todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, as liberdades de informação e de imprensa, tal como quaisquer outros direitos, liberdades e garantias, não constituem direitos ilimitados nem absolutos. É a própria Constituição que o admite desde logo no artigo 37.º, n.º 3. Como pode ler-se no Acórdão n.º 113/97, da 2.ª Secção:
«2 - Na vigente Constituição proclama-se (artigo 37.º, n.º 1), sob a epígrafe “Liberdade de expressão e de informação” o direito, que a todos é conferido, “de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações”.
Trata-se, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, 225), e na vertente do “direito de expressão”, de um direito que, enquanto direito negativo ou de defesa perante o poder público, implica “o direito de não ser impedido de exprimir-se”, inculcando ainda, na sua dimensão positiva, um direito “de acesso aos meios de expressão” (cfr. afloramentos desta dimensão, segundo os citados autores, no n.º 4 do artigo 37.º e nos artigos 40.º e 41.º, n.º 4); na vertente de “direito de informação”, o direito de informar “consiste, desde logo, na liberdade de transmitir ou comunicar informações a outrem, de as difundir sem impedimentos”, direito que, no seu atuar positivo, implicará o “direito a meios para informar” (cfr., também sobre o ponto, Leite Pinto, ob. cit., 54).
Se do n.º 2 do artigo 37.º se retira inequivocamente que a Constituição não permite que o exercício dos direitos de livre expressão e divulgação do seu pensamento pela palavra, pela imagem, ou por qualquer outro meio, seja, porque forma for, impedido ou limitado por qualquer tipo de censura, não se deverá, simplistamente, seguir um raciocínio que porventura aponte (ponderando que no seu n.º 1 também se faz alusão a que tais direitos se hão de efetivar sem impedimentos ou discriminações) para que não possa haver limites a tal exercício.
Na verdade, facilmente se infere do que vem disposto no n.º 3 daquele artigo que se admite que tais direitos não podem ser perspetivados como direitos cujo respetivo exercício não apresente limites, pois que, se assim fosse, não seria possível a previsão de infrações cometidas em tal exercício, infrações essas que até, segundo o comando constante daquela disposição, estão submetidas aos princípios gerais de direito criminal.
O que se não poderá, no caso de o falado exercício não exceder os limites pressupostos pela própria Lei Fundamental, é colocar obstáculos a ele (G. Canotilho e V. Moreira, ob., cit., 226).»
Vale a pena relembrar também o que a propósito se refere no Acórdão n.º 292/2008, da 3.ª Secção:
«13 - Aliás, a previsão de “regimes restritivos” da liberdade de imprensa, com vista à proteção de outros direitos fundamentais, não é inédita nos principais ordenamentos jurídicos europeus.
14 - Acrescente-se ainda que o Direito Internacional dos Direitos Humanos também não protege a liberdade de imprensa de modo ilimitado e absoluto. Tanto a Convenção Europeia dos Direitos do Homem como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos - instrumentos internacionais aos quais o Estado Português está vinculado, por força do artigo 8.º, n.º 2, da CRP - admitem restrições, limites, condicionamentos à liberdade de expressão, na qual se inclui a liberdade de imprensa.
Assim, o artigo 10.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem prevê que “o exercício desta liberdade [liberdade de expressão, na qual se inclui a liberdade de imprensa], porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial” e o artigo 19.º, n.º 3, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos dispõe que “o exercício das liberdades [liberdade de expressão, na qual se inclui a liberdade de imprensa] (…) comporta deveres e responsabilidades especiais. Pode, em consequência, ser submetido a certas restrições, que devem, todavia, ser expressamente fixadas na lei e que são necessárias: a) ao respeito dos direitos ou da reputação de outrem; b) à salvaguarda da segurança nacional, da ordem pública, da saúde e da moralidade públicas.”
Em suma, a possibilidade de a liberdade de imprensa poder vir a conflituar com outros direitos, designadamente, com o direito à honra, ao bom nome, à reputação, à intimidade da vida privada, é enfrentada pelo Direito Constitucional de muitos Estados, bem como pelas várias legislações ordinárias nacionais, e ainda pelo Direito Internacional».
Nesse contexto, é de admitir, quer à luz do artigo 10.º, n.º 2, da CEDH, quer da Constituição, que o exercício destas liberdades possa ser sujeito, pelo legislador democrático, a certas formalidades e formalismos, condições, restrições ou sanções, desde que possam ser consideradas necessárias, no contexto de uma sociedade democrática, para prosseguir um conjunto de valores essenciais como a segurança nacional, a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde física ou mental, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial. A possibilidade de submeter a participação de menores em espetáculos ou programas televisivos a um procedimento administrativo através do qual uma autoridade independente verifica se o superior interesse da criança está a ser respeitado – com o objetivo de proteger a sua saúde e o seu desenvolvimento – enquadra-se neste âmbito. Não ofende uma sociedade democrática a preocupação com o bem-estar das crianças e o controlo jurisdicional da decisão administrativa permite controlar a sua estrita legalidade e constitucionalidade.
25. A verdade é que a norma extraída dos artigos 2.º a 11.º da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, no sentido de que os menores apenas podem participar em programas de televisão após pedido e concessão de autorização pela CPCJ, não introduz nenhuma restrição à liberdade de expressão e informação constitucionalmente consagradas.
Com efeito, a liberdade de expressão implica o direito de expressar o pensamento, ou seja, ideias, opiniões, pontos de vista, juízos de valor, críticas, tomadas de posição sobre quaisquer assuntos, quaisquer que sejam as finalidades e os critérios de valoração. Por sua vez, a liberdade de informação compreende o direito de informar, de se informar e de ser informado. O primeiro consiste no direito de transmitir ou comunicar informações a outrem, sem impedimentos, o segundo no direito de recolha de informação e de procura de fontes de informação e o terceiro no direito de ser mantido adequada e verdadeiramente informado pelos meios de comunicação social e pelos poderes públicos. Há ainda quem, na esteira de Manuel da Costa Andrade (Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal - Uma perspetiva jurídico-criminal, Coimbra Editora, 1996, p. 45), refira uma quarta dimensão da liberdade de informação, traduzida numa conceção negativa, ou seja, num direito de recusa a expressar opinião, informar ou ser informado por qualquer indivíduo (cfr. v.g., o Acórdão n.º 292/2008, da 3.ª Secção, ponto 12).
Ora a norma em análise ao fazer depender de autorização da CPCJ a participação de menores em programas de televisão não inibe nenhuma expressão do pensamento, tal como não inibe ou sequer dificulta a possibilidade de transmitir ou comunicar informação a outrem, a possibilidade de recolher informação ou mesmo o direito de ser adequadamente informado pelos meios de comunicação social. A regra nela contida – e só esta cabe agora analisar - limita-se a fazer depender de autorização de uma autoridade vocacionada para a proteção de menores a participação destes em programas de televisão. Dela não decorre a proibição de qualquer programa televisivo, a censura do seu conteúdo, a limitação da informação transmitida, ou sequer a supressão de um personagem, mas tão só a proibição de participação de um menor no mesmo sem a prévia autorização, que ateste que tal participação não ocorre em detrimento para a sua saúde e bem-estar. Ou, dito de outro modo, da decisão da CPCJ em si mesma considerada não decorre qualquer impedimento de realização de um programa de televisão ou sua transmissão. Não pode ser considerado ofensivo da liberdade de expressão do operador de televisão ou do produtor do programa televisivo o facto de um menor não poder participar num episódio desse programa porque a administração estatal criada para o proteger entende ser contra o seu superior interesse, ponderação essa confirmada pelos tribunais da República.
É certo que a decisão recorrida, negando provimento à revista, confirmou na íntegra o acórdão do Tribunal da Relação e este, entre outras decisões, determinou também a proibição de a ré exibir ou divulgar um determinado episódio sem previamente comunicar e solicitar e obter autorização da participação dos menores naquele programa à CPCJ competente. Não é esse, porém, o conteúdo da norma que ocupou o conhecimento do presente recurso.
Resta, pois, concluir.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 2.º, n.º 1, 5.º, n.os 1 a 3, e 7.º, n.º 2, da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, no sentido de que os menores apenas podem participar em programas de televisão após pedido e concessão de autorização pela CPCJ;
b) Confirmar a decisão recorrida.
c) Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 13 de maio de 2020.
[A relatora atesta o voto de conformidade ao presente Acórdão dos restantes integrantes da 1.ª Secção, Conselheiro José Teles Pereira, Conselheiro Vice-Presidente João Pedro Caupers e Conselheiro Presidente Manuel da Costa Andrade, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio].
Maria de Fátima Mata-Mouros