ACÓRDÃO N.º
218/2020
Ata
Aos 17 dias do mês de abril de 2020, os cinco juízes integrantes do
Pleno da 3.ª Secção, presidida pelo Conselheiro Vice-Presidente, João Pedro Caupers, e composta pela Conselheira Joana Fernandes Costa (relatora)
e pelos Conselheiros Maria José Rangel de Mesquita, Gonçalo de Almeida Ribeiro
e Lino Rodrigues Ribeiro, reuniram-se por via telemática para discussão do
projeto de acórdão relativo ao processo n.º 397/2019, previamente distribuído
pela relatora, decidindo o recurso apresentado nos presentes autos pela
recorrente A., S.A. [artigo 70.º,
n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional – Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redação constante da Lei Orgânica
n.º 1/2018, de 19 de abril)].
Tendo a maioria dos intervenientes chegado a acordo quanto ao teor da
decisão, foi o acórdão aprovado, por maioria, com o voto de vencido do
Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, com dispensa de assinatura, nos termos
do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, sendo integrado, com
a declaração de voto, na presente ata, assinada pelo Conselheiro
Vice-Presidente.
A aprovação do acórdão foi feita ao abrigo do artigo 7.º, n.º 5, alínea
b), da Lei n.º 1-A/2020, na redação introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de
abril.
ACÓRDÃO N.º
218/2020
Processo n.º 397/2019
3.ª Secção
Relator: Conselheira Joana
Fernandes Costa
Acordam na 3.ª
Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. No âmbito dos presentes autos, vindos do
Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A., S.A. e recorrido Ministério
Público, foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional (doravante «LTC»), do acórdão proferido por aquele
Tribunal, em 31 de janeiro de 2019, que julgou improcedente o recurso de
apelação interposto pelo ora recorrente do despacho proferido pelo Juízo de
Execução de Chaves, que indeferiu a reclamação apresentada à conta de custas
apresentada pelo agente de execução.
2.
O requerimento de
interposição do recurso tem o seguinte teor:
«A., SA, inconformada com a parte do douto Acórdão de 31
de janeiro de 2019 em que se entende e decide que o "artº
829-A nº 4 não padece de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que a matéria
vertida naquele preceito não se encontra abrangida pelo artº
165º nº 1 da Constituição da República Portuguesa - não sendo, por isso,
matéria de reserva (relativa) da Assembleia da República", e isto pese
embora o facto deste dispositivo do Código Civil ter sido aditado e imposto
pelo Decreto Lei 262/83, publicado na I Série do Diário da República em 16 de
junho de 1983 e produzido no âmbito da competência legislativa do Governo, vem,
nos termos da norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da CRP e da norma da
aliena b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as
alterações que lhe foram introduzidas pela Lei 143/85, de 26 de novembro, pela
Lei n.º 85/89, de 7 de setembro, pela Lei n.º 88/91, de 1 de setembro, e pela
Lei n.º 113-A/98, de 26 de fevereiro, dela interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, por para isso estarem reunidos os pressupostos que se seguem:
a) A norma cuja inconstitucionalidade deve ser
apreciada pelo Tribunal Constitucional é a do artº
829-A n.º 4 do Código Civil, aditado pelo Decreto Lei 262/83, publicado na I
Série do Diário da República em 16 de junho de 1983 e produzido no âmbito da
competência legislativa do Governo,
b) O presente recurso é interposto ao abrigo da
norma da alínea b) do artigo 280.º da CRP e da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei n.º 28/82;
c) A inconstitucionalidade da referida norma foi
suscitada durante o processo;
d) As normas e os princípios constitucionais violados
com a produção legislativa e com a aplicação judicial da norma do artigo 829-A
do Código Civil, são as normas do artigo 165.º, alíneas b) e i) da Constituição
da República Portuguesa e o princípio da separação dos poderes do Estado.
e) Atendendo ao valor do processo o Acórdão não
admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça».
3.
Admitido o recurso e
determinado neste Tribunal o seu prosseguimento, a recorrente apresentou as
respetivas alegações, nos termos seguintes:
«1.º A fundamentação de direito usada no
Acórdão recorrido para manter o indeferimento da reclamação decidido em
primeira instância, e, assim, manter a nota discriminativa elaborada pelo
Agente de Execução que estabelece a obrigação de pagar juros compulsórios a
favor do Estado no valor de 6.677,28€ e juros compulsórios a favor do exequente
no valor de 6.677,28€, são as normas do artigo 829.º-A do Código Civil, aditado
pelo Decreto-Lei 262/83, publicado na I Série do Diário da República em 16 de
junho de 1983.
2.º Como se pode verificar pelo respetivo
teor, o Decreto Lei que adita o artigo 829.º-A do Código Civil foi feito ao
abrigo da competência legislativa do Governo, sendo que as normas que se
extraem deste artigo, nomeadamente as normas do n.º 1. e do n.º 4, impõem
sanções pecuniárias compulsórias e dispõem do direito de propriedade das
pessoas sobre os respetivos bens.
3.º É certo que o Estado, ressalvados que sejam
certos limites, pode impor sanções e pecuniárias e pode dispor do direito de propriedade
das pessoas, mas, porque esta matéria respeita a direitos a de natureza análoga
à dos direitos fundamentais, só o pode fazer através de Lei da Assembleia da
República ou de Decreto-Lei do Governo sustentado em autorização legislativa da
Assembleia da República que delimite o respetivo âmbito e alcance.
4.º O Governo fez o Decreto-Lei 262/83 e
aditou o artigo 829.º-A ao Código Civil sem possuir a necessária autorização
legislativa.
5.º E assim sendo, parece certo que pelo
menos as normas do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil, por
estabelecerem a obrigação do devedor de pagar uma sanção pecuniária
compulsória, consistente no pagamento de juros de 5% sobre o valor duma dívida,
são organicamente inconstitucionais, e, por isto mesmo, não podem servir para
fundamentar decisões judiciais.
Conclusões
a) O artigo 829.º-A do Código Civil foi
aditado pelo Decreto-Lei 262/83, publicado na I Série do Diário da República em
16 de junho de 1983.
b) Este Decreto-Lei versa sobre direitos de
natureza análoga à dos direitos fundamentais e foi feito ao abrigo da
competência legislativa do Governo
c) A restrição de direitos de natureza
análogo à dos direitos fundamentais só o pode ser imposta por Lei da Assembleia
da República ou por Decreto-Lei do Governo sustentado em autorização
legislativa da Assembleia da República.
d) Não tendo o artigo 829.º-A do Código
Civil sido aditado por Lei da Assembleia da República nem por Decreto-Lei do
Governo devidamente autorizado, as suas normas, atento o seu objeto, são
organicamente inconstitucionais.
Termos em que as normas do artigo 829.º-A
do Código Civil, aditado pelo Decreto-Lei 262/83, publicado na I Série do
Diário da República em 16 de junho de 1983, devem ser declaradas
inconstitucionais, com a consequente devolução do processo ao tribunal a
Relação de Guimarães, para obtenção de decisão que não viole a Constituição da
República».
4.
O Ministério Público
contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, como se transcreve:
«1. Objeto do recurso
1.1 O presente recurso vem interposto do acórdão, de
31 de janeiro de 2019, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães (proc.
n.º 963/14.9T8CHV), na parte em que decidiu aplicar o n.º 4 do artigo 829º-A do
Código Civil, por considerar não padecer esta norma de inconstitucionalidade
orgânica, uma vez que a matéria vertida naquele preceito não se encontra
abrangida pelo n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa,
não sendo por isso matéria de reserva relativa da Assembleia da República.
1.2 O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e da alínea b) do n.º
1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa, nos termos do
requerimento que se segue:
“A., SA, inconformada com a parte do douto
Acórdão de 31 de janeiro de 2019 em que se entende e decide que o "artº 829-A nº4 não padece de inconstitucionalidade
orgânica, uma vez que a matéria vertida naquele preceito não se encontra
abrangida pelo artº 165º nº1 da Constituição da
República Portuguesa — não sendo, por isso, matéria de reserva (relativa) da
Assembleia da República", e isto pese embora o facto deste dispositivo do
Código Civil ter sido aditado e imposto pelo Decreto Lei 262/83, publicado na I
Série do Diário da República em 16 de junho de 1983 e produzido no âmbito da
competência legislativa do Governo, vem, nos termos da norma da alínea b) do
n.º 1 do artigo 280.º da CRP e da norma da aliena b) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações que lhe foram introduzidas
pela Lei 143/85, de 26 de novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de setembro, pela
Lei n.º 88/91, de 1 de setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro,
dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional, por para isso estarem
reunidos os pressupostos que se seguem:
a) A norma
cuja inconstitucionalidade deve ser apreciada pelo Tribunal Constitucional é a
do artº 829-A nº 4 do Código Civil, aditado pelo Decreto
Lei 262/83, publicado na I Série do Diário da República em 16 de junho de 1983
e produzido no âmbito da competência legislativa do Governo,
b) O presente recurso é interposto ao abrigo da
norma da alínea b) do artigo 280.º da CRP e da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei n.º 28/82;
c) A inconstitucionalidade da referida norma foi
suscitada durante o processo;
d) As
normas e os princípios constitucionais violados com a produção legislativa e
com a aplicação judicial da norma do artigo 829-A do Código Civil, são as
normas do artigo 165.º, alíneas b) e i) da Constituição da República Portuguesa
e o princípio da separação dos poderes do Estado.
e) Atendendo ao valor do processo o Acórdão não admite recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso deve ser instruído com as peças
processuais com a referência CITIUS:
a) 30435993,
que se junta (requerimento e alegações de recurso em que é arguida
inconstitucionalidade orgânica do artigo 829-A do Código Civil)
b) 6213228,
que se junta (Acórdão recorrido)
O presente recurso tem efeitos suspensivos, sobe
nos próprios autos, e taxa de justiça, se a ela houver lugar, é integralmente
paga no final.”
1.3 Nas conclusões das alegações
do recurso de constitucionalidade o recorrente, contudo, para além do referido
n.º 4 do artigo 829º-A do Código Civil, vem invocar a inconstitucionalidade
orgânica de todas as normas deste mesmo artigo, nos seguintes termos:
“Conclusões
a) O artigo
829.º-A do Código Civil foi aditado pelo Decreto-Lei 262/83, publicado na I
Série do Diário da República em 16 de junho de 1983.
b) Este
Decreto-Lei versa sobre direitos de natureza análoga à dos direitos
fundamentais e foi feito ao abrigo da competência legislativa do Governo
c) A
restrição de direitos de natureza análogo à dos direitos fundamentais só o pode
ser imposta por Lei da Assembleia da República ou por Decreto-Lei do Governo
sustentado em autorização legislativa da Assembleia da República.
d) Não tendo o artigo 829. º-A do Código Civil
sido aditado por Lei da Assembleia da República nem por Decreto-Lei do Governo
devidamente autorizado, as suas normas, atento o seu objeto, são organicamente
inconstitucionais.
Termos em
que as normas do artigo 829. º-A do Código Civil, aditado pelo Decreto-Lei
262/83, publicado na I Série do Diário da República em 16 de junho de 1983,
devem ser declaradas inconstitucionais, com a consequente devolução do processo
ao tribunal a Relação de Guimarães, para obtenção de decisão que não viole a
Constituição da República.”.
1.4 O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães,
ora recorrido, pronunciou-se especificamente sobre a aplicação do n.º 4 do
artigo 829º-A do Código Civil à matéria em apreciação, tendo decidido que esta
norma não padece de inconstitucionalidade orgânica, por não se integrar em
qualquer das matérias previstas no n.º 1 do artigo 165º da CRP.
Nos temos
do artigo do 79º C da Lei do Tribunal Constitucional, os poderes de cognição
deste tribunal estão limitados à apreciação da norma que a decisão recorrida
tenha aplicado, ainda que a sua fundamentação se possa efetuar por referência à
violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada.
Como
refere Lopes do Rego, “… os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional
definem-se em função da delimitação da questão de constitucionalidade feita
pelo recorrente no seu requerimento de interposição de recurso, que lhe define
irremediavelmente o objeto (…) sendo manifesto que lhe não é possível em
momento processual ulterior, ampliar o objeto do recurso a outras normas ou
interpretações normativas, não adequadamente especificadas no momento
processual próprio…”
No caso
presente a norma aplicada pelo acórdão recorrido e cuja inconstitucionalidade
foi invocada no requerimento do recorrente - elaborado nos termos do artigo
75º-A da LTC – foi o n.º 4 do artigo
829º-A do Código Civil e não as normas constantes dos demais números deste
mesmo dispositivo legal.
Assim, o
objeto do presente recurso deve cingir-se à apreciação da constitucionalidade
do n.º 4 do artigo 829º-A do Código Civil.
1.5 O objeto do recurso é, pois, a apreciação da
constitucionalidade do n.º 4 do artigo 829º-A do Código Civil, introduzido pelo
Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho, produzido no âmbito da competência
legislativa do Governo, face às alíneas b) e i) do artigo 165º da Constituição
da República Portuguesa e ao princípio da separação dos poderes do Estado.
2.
APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
2.1 Para uma análise da questão
ora em causa importa ter em atenção o teor do artigo do Código Civil, o qual
dispõe o seguinte:
Artigo 829.º-A
(Sanção pecuniária compulsória)
1 - Nas
obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas
que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o
tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma
quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração,
conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
2 - A
sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo
critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.
3 - O
montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao
credor e ao Estado.
4 - Quando for estipulado ou judicialmente
determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente
devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação
transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem
também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.
Este normativo foi aditado ao Código Civil pelo
Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho, que introduziu alterações nos Códigos Civil e
Comercial e legislou em matéria de negócios usurários, taxas de juro, cláusulas
penais e sanções pecuniárias compulsórias, tendo
sido emitido pelo Governo.
A
finalidade e a intenção do legislador, (verdadeiramente inovatória), subjacente
à consagração da sanção pecuniária compulsória resulta clara do relatório que
precede o referenciado Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho:
"A
sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade
e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito
pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se
favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de
abstenção infungíveis. Quando se trate de obrigações ou de simples pagamentos a
efetuar em dinheiro corrente, a sanção compulsória — no pressuposto de que
possa versar sobre quantia certa e determinada e, também, a partir de uma data
exata (a do trânsito em julgado) — poderá funcionar automaticamente. Adota-se,
pois, um modelo diverso para esses casos, muito similar à presunção adotada já
pelo legislador em matéria de juros, inclusive moratórios, das obrigações
pecuniárias, com vantagens de segurança e certeza para o comércio jurídico.”
E como bem
se explicita no Acórdão recorrido “Daqui
se evidencia, por forma clara, que a sanção pecuniária compulsória tem por
objetivo não propriamente indemnizar o credor pelos danos sofridos com a mora,
mas o de impelir o devedor a cumprir, vencendo a resistência da sua oposição,
da sua displicência ou mesmo negligência.
Cremos, aliás, ser hoje maioritariamente
defendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores que a sanção
pecuniária compulsória prescrita no artigo 829º-A, nº 4 do CC, quando for
estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro
corrente, opera ex legis,
na fase executiva, sem necessidade de ser peticionada no requerimento
executivo.
Defende-se que a sanção pecuniária compulsória é,
por definição, um meio indireto de pressão, destinado a induzir o devedor a cumprir
a obrigação a que está adstrito e a obedecer à injunção judicial, a qual se
analisa, quanto à sua natureza jurídica, numa medida coercitiva, de caráter
patrimonial, seguida de sanção pecuniária na hipótese de não ser eficaz na
consecução das finalidades que prossegue.”
Seguindo a
Doutrina a previsão do n.º 4 do artigo 829º A do Código Civil poder-se-á
qualificar como sanção pecuniária compulsória legal, porquanto regulada e
disciplinada por lei, enquanto aquela que é ordenada e fixada pelo juiz (prevista
no nº 1 para as prestações de facto infungíveis) poderá chamar-se de sanção
pecuniária compulsória judicial.
“O
espírito de ambas, porém, é o mesmo: levar o devedor a encarar as coisas a
sério e a não desprezar o interesse do credor e do tribunal.” (cfr. Acórdão ora recorrido).
2.2 A consagração constitucional do direito de
propriedade está prevista no artigo 62º da Constituição da República
Portuguesa, que dispõe o seguinte:
Artigo 62º
1- A todos é garantido o
direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou morte, nos termos
da Constituição.
2- A requisição e a
expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e
mediante o pagamento de justa indemnização.
A sua
inserção no capítulo I, sob a epígrafe Direitos e deveres económicos, do Título
III, relativo aos Direitos e deveres sociais e económicos, bem como os termos
em que está consagrado o direito à propriedade, tem contribuído para um longo e
diversificado debate doutrinário, bem como para uma rica, ainda que não totalmente
uniforme, jurisprudência constitucional.
Como
afirma Ana Luísa Pinto “No caso do direito de propriedade, a sua definição e
caracterização por via jurisprudencial assume especial importância, atendendo,
desde logo, às especificidades do preceito constitucional que o consagra. Isto
porque o n.º 1 do artigo 62. º da Lei Fundamental determina que o direito de
propriedade é protegido "nos termos da Constituição", dispersando-se
o seu tratamento por diversos preceitos normativos e de acordo com as diferentes
finalidades visadas pelo legislador constitucional”
(…)
“… a
inserção sistemática do direito de propriedade na parte da Constituição
dedicada aos "direitos e deveres fundamentais", mas fora dos
"direitos, liberdades e garantias", suscita divergências quanto à sua
caracterização e força jurídica — o que tem implicações, mormente quanto a
saber como e em que medida o legislador ordinário pode restringir o direito em
questão. Neste contexto, tem-se questionado com frequência em processos de
fiscalização da constitucionalidade se está reservada à Assembleia da República
a adoção de medidas legislativas restritivas do direito de propriedade e se
tais medidas têm que obedecer aos requisitos previstos nos n." 2 e 3 do
artigo 18. º da Constituição.”
Ou seja, como
resume a mesma autora “ Tal fenómeno é compreensível atendendo (I) à
ambiguidade do próprio texto constitucional, que determina que o direito de
propriedade é protegido "nos termos da Constituição", (II) ao facto
de as diferentes facetas do direito de propriedade estarem dispersas num
conjunto vasto de normas constitucionais, mormente a propriedade da habitação,
a propriedade dos solos urbanos, a propriedade dos meios de produção e a
propriedade agrícola, (III) e à circunstância de o direito de propriedade ser
um direito económico e não pertencer ao catálogo dos direitos, liberdades e
garantias”
2.3 Não pertencendo o direito de propriedade ao
catálogo dos direitos liberdades e garantias, mas sendo reconhecido como um
direito fundamental, pode o mesmo beneficiar do estatuto de direito análogo aos
direitos liberdades e garantias para os efeitos do artigo 17º da Constituição
da República Portuguesa, como se vem defendendo em diversos acórdãos deste
Tribunal Constitucional (cfr. Ac.76/85, 109/88 e
236/86).
Como se
defende, igualmente, no Acórdão deste Tribunal n.º 425/2000, "embora seja indiscutível que o direito
de propriedade, no seu núcleo essencial, é um direito análogo aos direitos,
liberdades e garantias, as condições constitucionalmente exigidas para as leis restritivas apenas
valem nesse domínio na dimensão em que o direito de propriedade tiver essa
natureza análoga.”
No
entanto, o direito de propriedade - cuja conceptualização constitucional é
distinta dos conceito e definição civilistas – só beneficia desse estatuto
quando e enquanto se reconduz à ideia de dignidade humana, dado este direito
estar constitucionalmente ligado ao estatuto económico e consubstanciar em si
mesmo um elemento objetivo, de instrumento de prossecução dos fins económicos e
sociais visados pela Constituição, o que determina que o seu exercício esteja
condicionado por esta função.
O âmbito
de aplicação do regime dos direitos liberdades e garantias ao direito de
propriedade restringe-se apenas a uma parte, ao seu núcleo essencial e não à
sua integralidade.
Como se
refere no Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 236/86, de 9 de julho, “Desta maneira, o artigo 62º, nº 1, da CRP,
ao dispor que «a todos é garantido o direito à propriedade [...] nos termos da
Constituição», delineia um direito fundamental não absoluto, mas logo à
nascença encurtado na sua textura essencial, (… )ora pelas normas que na
própria CRP estabelecem o dever de pagar impostos (v. em especial, o artigo
106º, nºs 2 e 3), ora pelos preceitos que pressupõem a possibilidade de
sancionamento, no campo do direito sancionatório público, de quem quer que se
furte ao cumprimento desse dever tributário (cf., em particular, o mesmo artigo
106º, nºs 1, 2 e 3)”.
2.4 Podemos, pois, considerar que este direito contém
em si mesmo limites imanentes “(…) sobretudo quando posto em confronto com
outros bens constitucionalmente tutelados, de modo que certas medidas
legislativas, ainda que se traduzam num prejuízo para a propriedade, não violam
o n.º 1 do artigo 62.º da Constituição”, sendo admissível defender-se que não
se suscita, aqui, , uma questão de restrição de
direitos fundamentais.
Neste
sentido o já referenciado Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 236/86, de 9
de julho diz: “O direito à propriedade
privada previsto no artigo 62º, nº 1, da CRP - já atrás se disse - é um direito
fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias previstos
no título II da parte I da CRP, estando sujeito, como afirma o Provedor de
Justiça, ao regime expresso no artigo 18º, nos 2 e 3, da CRP (assim o entendeu,
aliás, a Comissão Constitucional, no parecer nº 3/78, edição oficial, vol. 4º,
p. 221, e o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 25/85, Diário da República,
2ª série, nº 98, de 29 de abril de 1985).
No entanto, não há que situar de imediato a
questão nos quadros do artigo 18º, nos 2 e 3, da CRP para apurar se a redução
do direito de propriedade anteriormente assinalada obedece ou não ao regime de
restrições ali previsto para os direitos fundamentais. É que estes direitos, declarados
pela própria CRP e por ela moldados, não têm necessariamente uma dimensão
absoluta, mas, à partida, apenas o alcance que a Lei Fundamental,
sistematicamente interpretada, lhes tiver dado. Ou, como escreve Vieira de
Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, p. 215):
«os direitos fundamentais têm os seus limites imanentes, isto é, as fronteiras
definidas pela própria Constituição, que os cria ou recebe».”
2.5 A aplicação do regime de direitos, liberdades e
garantias ao direito de propriedade, decorrente da sua caraterização como
direito análogo aos direitos liberdades e garantias, abrange a ponderação
relativa à consideração como matéria pertencente a reserva relativa da
competência da Assembleia da República, nos temos da alínea b) do n.º 1 do
artigo 165º da Constituição da República Portuguesa.
Contudo, como defende Ana Luísa Pinto, “a
jurisprudência constitucional tem tido o cuidado de salientar que a extensão do
regime só se justifica quando estejam em causa "intervenções legislativas
que contendam com o núcleo essencial dos «direitos análogos», por aí se
verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a atividade
legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias" —
afirmação constante do acórdão n.º 373/91, repetida em decisões posteriores,
como o acórdão n.º 431/94”.
No mesmo
sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 157/99, ao dizer que "apesar de o direito de propriedade ser
um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a
legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar"
destes últimos, mas apenas "as normas relativas à dimensão do direito de
propriedade que tiver essa natureza análoga.”
2.6. Assume, assim, especial relevância apurar na
apreciação concreta de cada caso, se se está face a uma dimensão do direito de
propriedade pertencente ou não ao seu núcleo essencial.
No caso
ora em apreço, o estabelecimento de uma sanção pecuniária compulsória para os
casos de incumprimento de uma decisão judicial relativa ao pagamento em conta
corrente tem como objetivo assumido pelo legislador “uma dupla finalidade de
moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o
respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado
se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de
abstenção infungíveis”, como melhor se explicitou no ponto 2.1 das presentes alegações.
Em certa
medida, esta norma consubstancia a promoção e defesa de um princípio
constitucionalmente consagrado relativo aos Tribunais, previsto no artigo 205º
da Constituição da República Portuguesa, o qual ao estabelecer, no seu n.º
2 que “as decisões dos tribunais são obrigatórias
para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer
outras autoridades, dispõe no n.º 3 que “ a
lei regula os termos da execução das decisões dos tribunais relativamente a
qualquer autoridade e determina as sanções a aplicar aos respetivos
responsáveis pela sua inexecução”.
O
estabelecimento de uma sanção pecuniária compulsória devida pelo incumprimento
de uma decisão judicial transitada em julgado, nos termos previstos no n.º 4 do
artigo 829º A do Código Civil, não se inclui no núcleo essencial do direito de
propriedade, porquanto não se pode considerar estar em causa matéria relativa à
dignidade da pessoa humana.
O direito
de propriedade, na dimensão assumida pelo preceito em causa, contém em si mesmo
limites imanentes, que decorrem, para além do mais, do facto deste normativo
dar luz ao preceito constitucional relativo aos Tribunais, previsto no artigo
205º da Constituição da República Portuguesa.
Assim, o
direito de propriedade, na dimensão assumida neste caso concreto, não se
constitui como um direito fundamental análogo aos direitos liberdades e
garantias, pelo que não lhe é aplicável o regime dos direitos liberdades e
garantias previsto na Constituição da República Portuguesa.
E, assim
sendo, não estamos perante matéria pertencente à reserva relativa da
competência da Assembleia da República, nos termos da alínea b) do artigo 165º
da Constituição da República Portuguesa.
Pelo que n.º 4 do artigo n.º 4 do artigo 829º do
Código Civil, aditado pelo Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho, que
introduziu alterações nos Códigos Civil e Comercial e legislou em matéria de
negócios usurários, taxas de juro, cláusulas penais e sanções pecuniárias
compulsórias, tendo sido emitido pelo Governo não padece de
inconstitucionalidade orgânica, nos termos da alínea b) do artigo 165º da
Constituição da República Portuguesa.
2.7 O conceito legal e doutrinário de sanção
pecuniária compulsória, designadamente na perspetiva consagrada no n.º 4 do
artigo 829º do Código Civil, em nada se pode confundir com o conceito e
definição de impostos, taxas e demais contribuições financeiras, enquanto
matéria pertencente à reserva relativa da competência da Assembleia da
República, nos termos da alínea i) do artigo 165º da Constituição da República
Portuguesa.
Aliás, o
recorrente, nas suas sumariíssimas alegações, não adianta qualquer argumento ou
sequer, referência quanto a esta matéria, ainda que tenha referenciado a alínea
i) no seu requerimento.
Pelo que,
também a esta luz, não se verifica qualquer inconstitucionalidade orgânica
quanto ao n.º 4 do artigo 829º do Código Civil.
3. CONCLUSÕES:
3.1. O n.º 4 do artigo 829º-A do Código Civil,
introduzido pelo Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho foi aditado ao Código
Civil pelo Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho - que introduziu alterações
nos Códigos Civil e Comercial e legislou em matéria de negócios usurários,
taxas de juro, cláusulas penais e sanções pecuniárias compulsórias - tendo sido
emitido pelo Governo.
3.2 Este normativo estabelece que quando for
estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro
corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data
em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos
juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver
lugar.
3.3 Ao estabelecer esta sanção
pecuniária compulsória o legislador teve como objetivo uma dupla finalidade de
moralidade e de eficácia, visando o reforço da soberania dos tribunais, o
respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, e por outro lado, o
favorecimento da execução específica das obrigações de prestação de facto ou de
abstenção infungíveis.
3.4. O direito de propriedade previsto no artigo 63º
da Constituição da República Portuguesa não pertencendo ao catálogo dos
direitos liberdades e garantias, mas sendo reconhecido como um direito
fundamental, pode beneficiar do estatuto de direito análogo aos direitos
liberdades e garantias para os efeitos do artigo 17º da Constituição da
República Portuguesa.
3.5 No entanto, o âmbito de aplicação
do regime dos direitos liberdades e garantias ao direito de propriedade
restringe-se apenas a uma parte, ao seu núcleo essencial e não à sua
integralidade.
3.6 O direito de propriedade não sendo um direito
absoluto contém em si mesmo limites imanentes definidos pela própria CRP.
3.7 O estabelecimento de uma sanção pecuniária
compulsória devida pelo incumprimento de uma decisão judicial transitada em
julgado, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 829º-A do Código Civil, não se
inclui no núcleo essencial do direito de propriedade, porquanto não se pode
considerar estar em causa matéria relativa à dignidade da pessoa humana.
3.8 O direito de propriedade, na dimensão assumida
pelo preceito em causa, contém em si mesmo limites imanentes, que decorrem,
para além do mais, do facto deste normativo dar luz ao preceito constitucional
relativo aos Tribunais, previsto no artigo 205º da Constituição da República
Portuguesa.
3.9 Assim, o direito de
propriedade, na dimensão assumida neste caso concreto, não se constitui como um
direito fundamental análogo aos direitos liberdades e garantias, pelo que não
lhe é aplicável o regime dos direitos liberdades e garantias previsto na Constituição
da República Portuguesa.
3.10 E, assim sendo, não estamos perante matéria
pertencente à reserva relativa da competência da Assembleia da República, nos
termos da alínea b) do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa.
3.11 Pelo que o n.º 4 do artigo
829º-A do Código Civil, aditado pelo Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho,
que introduziu alterações nos Códigos Civil e Comercial e legislou em matéria
de negócios usurários, taxas de juro, cláusulas penais e sanções pecuniárias
compulsórias, tendo sido emitido pelo Governo não padece de
inconstitucionalidade orgânica, nos termos da alínea b) do artigo 165º da
Constituição da República Portuguesa.
3.12 O conceito legal e doutrinário de sanção
pecuniária compulsória, designadamente na perspetiva consagrada no n.º 4 do
artigo 829º do Código Civil, em nada se pode confundir com o conceito e
definição de impostos, taxas e demais contribuições financeiras, enquanto
matéria pertencente à reserva relativa da competência da Assembleia da República,
nos termos da alínea i) do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa.
3.13 Pelo que, também a esta luz,
não se verifica qualquer inconstitucionalidade orgânica quanto ao n.º 4 do
artigo 829º do Código Civil introduzido pelo aditado pelo Decreto-Lei n.º
262/83, de 16 de junho, da competência do Governo.»
Cumpre
apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A. Da delimitação do objeto do recurso
5. Tal como delimitado no requerimento
de interposição, o objeto do presente recurso é integrado pela norma constante
do n.º 4 do artigo 829.º-A do
Código Civil, aditado pelo Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho de 1983,
considerada pelo recorrente organicamente
inconstitucional por violação da reserva relativa de competência da
Assembleia da República estabelecida nas alíneas b) e i) do artigo 165.º
da Constituição, assim como do princípio da separação dos poderes do Estado.
Apesar
de ter questionado apenas, no requerimento de interposição, a
constitucionalidade da norma correspondente ao n.º 4 do 829.º-A do Código Civil, o recorrente procedeu, nas alegações que apresentou, à
ampliação do objeto do recurso, passando a incluir nele «as normas» — todas as normas — constantes do referido artigo.
Dispõe
o artigo 829.º-A do Código Civil:
Artigo 829.º-A
(Sanção pecuniária
compulsória)
«1 - Nas
obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas
que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o
tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma
quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração,
conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
2 - A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será
fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que
houver lugar.
3 - O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes
iguais, ao credor e ao Estado.
4 - Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer
pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5%
ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os
quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização
a que houver lugar».
Enquanto
os n.ºs 1 e 2 do artigo 829.º-A se referem à sanção pecuniária compulsória judicial, fixada a requerimento do
credor e com o intuito de compelir o devedor ao cumprimento de uma obrigação de
prestação de facto infungível, o
respetivo n.º 4 — o único, além do mais, aplicado na decisão recorrida — prevê
a chamada sanção pecuniária compulsória
legal, que se concretiza num adicional automático de juros à taxa anual de
5%, aplicável ope legis
em razão do trânsito em julgado de sentença que condene o devedor no
cumprimento de determinada obrigação pecuniária.
Ora,
constitui entendimento reiteradamente expresso por este Tribunal que, ao
enunciar no requerimento de interposição de recurso a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada, o
recorrente delimita, em termos definitivos, o respetivo objeto, não lhe sendo
lícito ampliá-lo (mas apenas restringi-lo) em momento ulterior, designadamente
nas alegações produzidas (cf. Acórdãos n.º 487/2008 e 283/2014).
Encontrando-se
o recorrente impedido de proceder, em sede de alegações, à reconfiguração ou
ampliação do objeto do recurso, este não poderá incluir as normas constantes
dos n.ºs 1 a 3 do artigo 829.º-A do Código Civil — as quais, repete-se, não
foram além do mais aplicadas pelo Tribunal recorrido.
É, portanto, apenas o n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil que cumpre seguidamente confrontar com o âmbito
material da reserva relativa de competência da Assembleia da República
estabelecida nas alíneas b) e i) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição.
B. Do
mérito
6. A questão de constitucionalidade que integra o
objeto do presente recurso consiste em saber se a norma do n.º 4 do artigo
829.º-A do Código Civil padece de inconstitucionalidade orgânica, decorrente da
invasão do âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República
em matéria de direitos liberdades garantias (alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição) e/ou em matéria fiscal
(alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º
da Constituição), que concretiza e densifica o princípio da separação dos
poderes do Estado, consagrado no artigo 111.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Para responder a tal questão, importa fazer um enquadramento, ainda que
breve, do instituto da sanção pecuniária compulsória contemplado no artigo 829.º-A do Código Civil.
Como
bem refere a recorrente, a figura da sanção
pecuniária compulsória foi introduzida no ordenamento jurídico português
através do Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho, que aditou ao Código Civil o
seu atual artigo 829.º-A.
A
finalidade de tal aditamento encontra-se clarificada no próprio preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 262/83, onde pode ler-se o seguinte:
«Autêntica inovação, entre nós, constituem as sanções compulsórias
reguladas no artigo 829.º-A. Inspira-se a do n.º 1 desse preceito no modelo
francês das astreintes, sem todavia
menosprezar alguns contributos de outras ordens jurídicas; ficando-se pela
coerção patrimonial, evitou-se contudo atribuir-se-lhe um caráter de coerção
pessoal (prisão) que poderia ser discutível face às garantias constitucionais.
A sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de
moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o
respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado
se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de
abstenção infungíveis.
Quando se trate de obrigações ou de simples pagamentos a efetuar em
dinheiro corrente, a sanção compulsória - no pressuposto de que possa versar
sobre quantia certa e determinada e, também, a partir de uma data exata (a do
trânsito em julgado) - poderá funcionar automaticamente. Adota-se, pois, um
modelo diverso para esses casos, muito similar à presunção adotada já pelo
legislador em matéria de juros, inclusive moratórios, das obrigações
pecuniárias, com vantagens de segurança e certeza para o comércio jurídico».
Na
concretização de tal propósito, o artigo 829.º-A acolheu duas distintas
modalidades de sanção pecuniária compulsória, tendo em conta o tipo de obrigação cujo cumprimento se
destina promover: a primeira, de natureza judicial, fixada pelo tribunal a
requerimento do credor quando em causa esteja o cumprimento de obrigações de
prestação de facto infungível; a segunda, de natureza legal, previamente fixada
por lei e de funcionamento automático, aplicável em caso de condenação no
cumprimento de uma obrigação pecuniária de quantia certa.
A
principal diferença entre as referidas espécies — previstas, respetivamente,
nos n.ºs 1 e 4 do artigo 829.º-A do Código Civil — reside, assim, na
circunstância de a primeira depender da iniciativa do credor e carecer de ser
fixada judicialmente, de forma casuística e segundo critérios de equidade, ao
passo que a segunda — também designada de juros compulsórios legais — opera automaticamente e pelo valor resultante
da taxa anual legalmente fixada para o efeito, acrescendo a qualquer outra
indemnização, incluindo moratória, a que haja lugar, sem qualquer outro
pressuposto ou condição para além do trânsito em julgado da sentença que
condene o devedor no cumprimento de obrigação pecuniária.
A
finalidade de ambas as sanções é, no entanto, a mesma: «levar o devedor a
encarar as coisas a sério e a não desprezar o interesse do credor e o tribunal»
(Calvão da
Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, 1987,
p. 456). É essa, de resto, a razão que tem levado a maioria da doutrina e da jurisprudência a
considerar que os juros adicionais de 5% ao ano, previstos no n.º 4 do artigo
829.º-A do Código Civil, se destinam, em parte
iguais, ao credor e ao Estado, encontrando-se também eles sujeitos ao
regime estabelecido no respetivo n.º 3 (idem,
p. 458, e, no mesmo sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de
setembro de 2019, acessível em www.dgsi.pt).
No caso
presente, não está em causa a avaliação das particularidades específicas do
regime previsto para a sanção pecuniária compulsiva legal ou respetivo âmbito
de aplicação, definido no n.º 4 do artigo 829.º-A em função da natureza pecuniária da obrigação a que vai associada.
Do que se
trata é de saber se, ao instituir o adicional devido pelo não cumprimento
atempado da obrigação pecuniária a que o devedor se encontra adstrito, o
Governo exerceu uma competência legislativa reservada à Assembleia da
República, designadamente por força das alíneas b) e i) do respetivo
artigo 165.º da Constituição.
7. Seja qual for a categoria
que se tome por referência - imposto, taxa ou demais contribuições financeiras a favor das
entidades públicas, resulta do regime acima exposto que a sanção pecuniária compulsória
prevista no n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil não tem qualquer afinidade com o conceito de tributo, a partir do qual se recorta a reserva relativa de competência da
Assembleia da República constante da alínea i)
do artigo 165.º da Constituição.
Não tem logo no plano subjetivo, uma vez que o tributo
consiste numa prestação exigida a favor de entidades que desempenham funções ou tarefas públicas - o que exclui qualquer possibilidade de alocação,
ainda que parcial, à satisfação de interesses titulados por particulares - a
detentores de capacidade contributiva (imposto) ou a beneficiários ou
causadores de uma prestação administrativa específica (taxa e contribuição
financeira) - o que supõe coisa diferente do estatuto de sujeito passivo de uma obrigação civil de natureza pecuniária
reconhecida por sentença transitada em julgado.
E também não tem no
plano funcional, desde logo porque a
finalidade dos tributos não reveste natureza coercitiva, repressiva ou sancionatória.
Como nota a
este respeito José Casalta Nabais, «[…] do
ponto de vista teleológico ou finalista, os tributos são exigidos pelas […]
entidades que exerçam funções ou tarefas públicas para a realização dessas
mesmas funções ou tarefas desde que não tenham caráter sancionatório. O que
significa que os tributos podem ter uma finalidade não apenas financeira ou
fiscal, mas também outras finalidades, como as económicas ou sociais, excluída
que esteja [...]a função sancionatória» (in Sobre o Regime Jurídico das Taxas, in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_Taxas_contribuicoes_financeiras.pdf,
p. 14).
É quanto
basta para se concluir que a sanção
pecuniária compulsória prevista no n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil
não tem natureza tributária, não se
incluindo, por isso, no âmbito da reserva relativa da competência da Assembleia
da República estabelecida na alínea i)
do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
8. De acordo com a recorrente, a sanção pecuniária compulsória
prevista no n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil consubstancia, em qualquer
caso, uma afetação do direito de
propriedade e, na medida em que este tem natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias, apenas poderia ter sido introduzida no ordenamento
jurídico através do exercício da competência legislativa do Governo mediante
prévia lei de autorização parlamentar. É o que crê resultar do âmbito material
da reserva relativa de competência da Assembleia da República estabelecida na
alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição, em concatenação com o disposto no n.º 1 do respetivo artigo 62.º
Será assim?
Constitui
entendimento pacífico deste Tribunal que, por força da conjugação dos artigos
17.º e 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, se encontram
sob reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República as
intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos
«direitos análogos» aos direitos,
liberdades e garantias, por se verificarem, relativamente àqueles, as mesmas
razões de ordem material que justificam a iniciativa legislativa parlamentar no
tocante aos segundos (cf., entre outros, Acórdãos n.ºs 373/91, 431/94 e
491/02).
Vista
a esta luz, a tese da recorrente parece assentar em dois pressupostos, ambos
essenciais à formulação de um juízo positivo de inconstitucionalidade: o
primeiro é que, no âmbito material da garantia do direito fundamental à
propriedade privada, se incluiu a diminuição patrimonial decorrente da
obrigação de pagamento da sanção pecuniária compulsória legal; o segundo é que
esta dimensão daquele direito dispõe de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias.
Mais até do
que a primeira, é a segunda das premissas implícitas no argumento da recorrente
que suscita inultrapassáveis dificuldades.
Vejamos mais
de perto.
9. A proteção do direito à propriedade encontra-se consagrada no artigo
62.º da Constituição, cujo n.º 1 dispõe que «[a] todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua
transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição».
Na delimitação do âmbito e alcance desta garantia, a jurisprudência
constitucional vem partindo da ideia segundo a qual o conceito
constitucionalmente relevante de propriedade privada não tem um conteúdo
idêntico ou sobreponível ao seu correspondente conceito jus-civilístico. Assim é porque «o direito de propriedade a que
se refere aquele artigo da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a
propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos
que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como,
designadamente, os direitos de crédito e os “direitos sociais” – incluindo,
portanto, partes sociais como as ações ou as quotas de sociedades»
(Acórdão n.º 491/2002).
Esta tendência para fazer convergir o conceito constitucional de propriedade
com o de património (neste sentido,
na doutrina, Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade
do estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, pp. 548 e 559),
tem levado o Tribunal Constitucional a reconduzir ao objeto da garantia constitucional da
propriedade privada as participações
sociais (Acórdão n.º 391/2002), o direito à firma (Acórdão n.º 139/04), a
propriedade intelectual (Acórdão n.º 577/2011) e, no que para o presente caso
mais diretamente releva, os direitos de
crédito.
No que diz especificamente respeito à tutela constitucional dos direitos de
crédito, escreveu-se no Acórdão n.º 494/94:
«Da garantia
constitucional do direito de
propriedade privada, há de, seguramente, extrair-se a garantia (constitucional também) do
direito do credor à satisfação do seu crédito. E este
direito há de, naturalmente, conglobar a possibilidade da sua realização
coativa, à custa do património do devedor, como, de resto, se prescreve no
artigo 601º do Código Civil, que preceitua que "pelo cumprimento da
obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem
prejuízo dos regimes especiais estabelecidos em consequência da separação de patrimónios" (cf.,
neste sentido, acórdão n.º 349/91, publicado no Diário da República, II série, de 2 de dezembro de 1991).»
Da
inclusão dos direitos patrimoniais
privados, amplamente entendidos, no âmbito da garantia constitucional da
propriedade, a consequência que este Tribunal vem extraindo é, pois, a garantia
das posições jurídicas ativas de índole
patrimonial, mormente do direito do
credor à satisfação do seu crédito, nele incluindo a faculdade da sua
realização coativa à custa do património do devedor (neste sentido, vide ainda,
Acórdãos n.ºs 349/91, 516/94, 374/03, 273/04, 620/04 e 178/07 e
235/2011).
A
recondução dos direitos de crédito à garantia constitucional da propriedade
leva em conta que os créditos são parte
integrante do património do credor, constituindo-se como valor próprio e
autónomo, suscetível, além do mais, de oneração ou de transmissão através de
alienação ou por via hereditária.
Ora,
ao contrário do que sucede com os créditos, os débitos não constituem utilidades
ou situações que envolvam uma vantagem de natureza patrimonial. Pelo contrário, resultam de um dever jurídico de prestar, que recai
sobre o sujeito passivo da relação obrigacional em consequência de (e em
correspondência com) um direito subjetivo
à realização da prestação, que pertence ao credor.
Por
essa razão, pode, desde logo, duvidar-se da possibilidade de estender o âmbito
da garantia constitucional da propriedade às posições jurídicas passivas de natureza creditória, pelo menos em
termos que permitam discernir no n.º 1 do artigo 62.º da Constituição alguma
dimensão de tutela do estatuto patrimonial do devedor, quer nos
situemos ainda - como sucede no presente caso - no domínio dos mecanismos coercitivos destinados a
incentivar o pontual cumprimento da obrigação, quer nos encontremos já na fase
de realização coativa da prestação -
como ocorreu na situação apreciada no Acórdão n.º 478/2011 -, através do
recurso à ação executiva, que a ordem jurídica faculta ao credor em caso de
falta de cooperação do devedor, designadamente em virtude da ineficácia dos
meios compulsórios acionáveis previamente.
Confrontado,
no referido aresto, com a questão de saber se o regime legal da penhora é constitucionalmente sindicável à luz do direito de propriedade do devedor, o
Tribunal respondeu negativamente em termos que vale a pena recordar aqui:
«[...] a penhora não deve ser considerada nem como uma violação nem como
uma restrição do direito de propriedade constitucionalmente consagrado. Pelo
contrário, o que se pode retirar do direito de propriedade é antes um direito
do credor à satisfação dos seus créditos [...]».
Da
garantia constitucional da propriedade privada não parece poder retirar-se, assim,
pelo menos com segurança, qualquer espécie de tutela da dimensão patrimonial do
estado de sujeição ou subordinação que deriva do vínculo creditício, quer
esteja em causa a satisfação coerciva do direito do credor à custa da execução
do património do devedor, quer se trate, ao menos por identidade de razão, da
instituição de mecanismos coercitivos destinados a compelir o segundo ao
cumprimento da obrigação, ainda que consubstanciando uma diminuição
patrimonial de valor correspondente ao adicional devido pelo retardamento na
realização da prestação.
Mas
ainda que assim não fosse - isto é, mesmo que se admitisse que a inclusão dos
mecanismos de cobrança coerciva no âmbito dos direitos de natureza creditícia e destes no âmbito da garantia
institucional da propriedade privada poderia constituir base suficiente para
que nessa inclusão se considerassem igualmente implicados os instrumentos
coercitivos destinados a incentivar o devedor ao cumprimento célere de obrigações de natureza
pecuniária -, tal conclusão seria sempre insuficiente para ter por verificada a
invasão da reserva relativa de competência da Assembleia da República fixada na
alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição. E isto na medida em que, conforme vem este Tribunal
reiteradamente sublinhando, tal reserva apenas integra
as normas relativas às dimensões do direito de propriedade privada que tenham natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
10. O Tribunal Constitucional
dispõe de abundante jurisprudência quanto à caracterização do referente axiológico
e à identificação do critério estrutural a partir dos quais poderão
discernir-se no direito de propriedade dimensões de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias.
Partindo
sempre da ideia segundo a qual o direito de propriedade, na medida em que
constitui «um pressuposto da autonomia das pessoas», «alguma dimensão terá [...] que
permita a sua inclusão, pelo menos parcial, nos clássicos direitos de defesa» (Acórdão n.º 421/2009), o Tribunal vem reconhecendo
natureza análoga às projeções daquele direito que, por constituírem instrumento
indispensável à concretização dos projetos de vida que cada um traça livremente, se apresentem «essenciais à realização do Homem como pessoa»
(Acórdão n.º 329/99) ou, na formulação adotada no Acórdão n.º 374/03, denotem «“maior proximidade valorativa
ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana”(VIEIRA DE ANDRADE, obra citada, pág. 194, nota 60) e da
garantia da sua autonomia pessoal”».
No âmbito das relações obrigacionais - o único que aqui releva
-, tal entendimento levou o Tribunal a
considerar não incluída no âmbito da reserva de lei parlamentar decorrente da
alínea b) do artigo 165.º da Constituição a norma do Código Civil que
veio atribuir ao «promitente-comprador beneficiário da tradição do prédio ou fração,
de uma nova garantia», consistente no «direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do
incumprimento do promitente-vendedor», por estar em causa uma «dimensão que não é indispensável à [...] conceção
[do direito de propriedade
como garantia de “espaço de autonomia pessoal” (MARIA LÚCIA AMARAL, obra citada, pág.
542) ou “essencial à realização do Homem como pessoa” (Acórdão n.º
517/99)» (Acórdão n.º 374/03).
A segunda orientação que se extrai da jurisprudência constitucional diz
respeito à estrutura típica das faculdades que integram o direito de
propriedade suscetíveis de configurar-se como análogas às que integram os
direitos, liberdades e garantias. Deste ponto de vista, do que se trata é de
colocar em evidência «aquele
“radical subjetivo” que [...] aproxima [o direito de propriedade] dos direitos fundamentais subjetivos de
tipo clássico, negativos, diretamente invocáveis» (Parecer n.º 32/82 da
Comissão Constitucional). Esta «dimensão de direito subjetivo», que se
contrapõe à «dimensão institucional-objetiva» da garantia
reconhecida no artigo 62.º da Constituição, é integrada «precisamente como direito “clássico” de
defesa, [pelo] direito de cada um a não ser privado da sua propriedade senão por
intermédio de um procedimento adequado e mediante justa compensação» (Acórdão n.º 421/09).
11. Na modalidade em que surge consagrada no n.º 4 do artigo
829.º-A do Código Civil, a sanção pecuniária compulsória - vimo-lo já -
consiste num mecanismo coercivo destinado a compelir o dever ao cumprimento de obrigações de natureza pecuniária, decorrentes
de fonte contratual ou extracontratual, que tenham sido, em qualquer dos casos,
objeto de sentença condenatória transitada em julgado. Enquanto instrumento
coercitivo destinado a induzir o devedor ao cumprimento da obrigação a que está
adstrito e a acatar a condenação judicial, tal sanção - vimo-lo também - responde
a um duplo objetivo: assegurar, por um lado, a pronta e efetiva concretização
das decisões dos tribunais, e favorecer, por outro, o
cumprimento de obrigações pecuniárias judicial e definitivamente reconhecidas.
Ora,
apesar de incidir sobre o património do devedor, pressupondo uma diminuição de
valor pecuniário coincidente com aquele que resulta da incidência da taxa
legal, a sanção pecuniária compulsória devida pelo não cumprimento de obrigação
reconhecida por sentença transitada em julgado não integra, à luz dos critérios
identificados supra (ponto 10.), a
garantia da propriedade privada na dimensão daquele direito fundamental
qualificável como análoga aos direitos, liberdades e garantias.
Com
efeito, ao prever o adicional de juros de 5% pelo incumprimento de obrigações
pecuniárias decorrentes
de fonte contratual ou extracontratual, que tenham sido, em qualquer dos casos,
objeto de sentença condenatória transitada em julgado, o n.º 4 do artigo 829.º
do Código Civil não dispõe sobre qualquer posição subjetiva
individual suscetível de gerar direta e imediatamente para o Estado um
correlativo dever de abstenção; antes estabelece uma consequência patrimonial
derivada do não cumprimento atempado de obrigações pecuniárias resultantes de
decisão transitada, que se inscreve na conformação do estatuto obrigacional do sujeito
passivo de uma relação creditícia, o qual, por sua vez, se baseia
necessariamente em regras de direito ordinário, que não podem ser automaticamente ultrapassadas através da
invocação do direito de propriedade, designadamente no sentido que releva para
afirmar a existência de um vício orgânico
em face do que se dispõe na alínea b)
do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
Por
isso, se alguma dimensão o direito de propriedade tivesse que permitisse
sujeitar à incidência do n.º 1 do artigo 62.º da Constituição os efeitos
patrimoniais que a lei associa à condição de devedor inadimplente de uma
obrigação pecuniária, seguramente que se não trataria de uma projeção dotada de
suficiente densificação constitucional
em termos de poder concretizar-se, de «forma minimamente adequada, a partir da própria
Constituição» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, I vol., Coimbra, Coimbra Editora, 2014, p. 374). Do
mesmo modo que se não trataria de uma dimensão que
pudesse reconduzir-se «de modo imediato e essencial à ideia de dignidade
da pessoa humana» (José Carlos Vieira de Andrade, Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina,
2009, p. 186) ou que pudesse dizer-se «essencial à realização do
Homem como pessoa».
Do que, na realidade, se trataria sempre - na
verdade, trata - é (apenas) da conformação de uma posição jurídica passiva,
que releva do
âmbito das relações obrigacionais ou
creditórias no domínio da regulação do tráfico jurídico, e cujo conteúdo carece, por isso, de ser previamente determinado através de
indispensável intermediação legislativa.
12. Veja-se, por último, que o direito de propriedade privada não se
encontra garantido em termos absolutos, mas apenas, como resulta do n.º 1 do
artigo 62.º da Constituição, dentro dos limites e com as restrições previstas
quer na própria Constituição, quer na lei, quando aquela remeta para esta a
regulação de tais matérias. Ora, um desses limites decorre justamente do n.º 3
do artigo 205.º da Constituição, onde se estabelece que «[a] lei regula os termos da execução das decisões dos tribunais
relativamente a qualquer autoridade e determina as sanções a aplicar aos
responsáveis pela sua inexecução».
Concretizando
esta remissão para fonte legal, a
norma sindicada instituiu um mecanismo coercitivo de natureza patrimonial
destinado a garantir a atuação da decisão judicial no cumprimento de obrigações
de natureza pecuniária, que envolve a aplicação automática de uma sanção,
igualmente pecuniária, na hipótese de a simples previsão legal não ser
suficiente na consecução do acatamento da condenação principal.
Em
suma: a norma constante do n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil, aditado
pelo Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho — editado nos
termos da alínea a) do n.º 1 do
artigo 201.º da Constituição, na versão resultante da Lei Constitucional n.º
1/82, correspondente à alínea a) do
n.º 1 do artigo 198.º do texto atualmente em vigor — não padece
de inconstitucionalidade orgânica, nos termos da alínea b) do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez
que não contende com matérias respeitantes a direitos, liberdades e garantias.
Consequentemente,
inexiste qualquer violação do invocado princípio
da separação de poderes (artigos 2.º e 111.º da Constituição),
designadamente ao nível das competências legislativas (único em que, em face da
escassez de fundamentação da recorrente, a violação deste princípio poderia, em
abstrato, equacionar-se) atribuídas ao órgão legislativo em causa (artigo 198.º
da Constituição), na medida em que, como se viu, a reserva relativa de competência da
Assembleia da República não foi invadida pelo Governo quando, através do Decreto-Lei
n.º 262/83, aditou ao Código Civil o n.º 4 do seu atual artigo 829.º-A.
O recurso deverá, pois, ser julgado improcedente.
III – Decisão
Em face
do exposto, decide-se:
a) Não julgar organicamente inconstitucional a norma constante
do n.º 4 do artigo 829.º-A do
Código Civil, aditado pelo Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de junho;
e, em consequência,
b)
Julgar improcedente o
presente recurso.
Lisboa, 17 de
abril de 2020 – João Pedro Caupers
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido.
O
aresto parte da premissa, que não me merece nenhuma objeção, de que para
concluir que a norma sindicada nos presentes autos invade a reserva relativa de
competência da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e
garantias, estabelecida pela alínea b)
do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, é indispensável que se verifiquem
dois pressupostos. Por um lado, que a sanção pecuniária compulsória legal,
prevista no n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil, constitua uma afetação
negativa do direito de propriedade, garantido pelo n.º 1 do artigo 62.º da
Constituição. Por outro lado, que a dimensão atingida do direito de propriedade
tenha natureza análoga aos direitos de liberdade, segundo o previsto no artigo
17.º da Constituição, que manda aplicar aos direitos de natureza análoga o
regime próprio dos direitos, liberdades e garantias. O juízo de não
inconstitucionalidade da maioria baseia-se no entendimento de que nenhum destes
pressupostos se verifica a respeito do objeto do presente recurso.
Quanto
ao primeiro pressuposto – diz-se −,
sendo embora certo que, segundo jurisprudência constante, os direitos de
crédito integram o conceito constitucional de propriedade, este não abrange os
débitos ou as obrigações, que por natureza constituem desvantagens patrimoniais,
nem os meios de tutela dos correlativos direitos de crédito, nomeadamente a
penhora e, por igualdade de razão, a sanção pecuniária compulsória legal.
Não
acompanho este raciocínio. Ainda que se aceite que a penhora não constitui uma afetação
negativa do direito de propriedade do devedor, por se tratar de um meio
necessário de realização coativa da obrigação, sem o recurso ao qual a garantia
geral dos créditos desvanece-se e as obrigações civis convertem-se em naturais,
daí não se segue que a sanção pecuniária compulsória legal não tenha nenhum
efeito ablativo que não esteja já contido
no débito que integra o lado passivo do património do devedor. Assim é pela
simples razão de que esta sanção, através da qual a lei reforça a tutela do credor,
constitui um novo débito, uma
desvantagem patrimonial que acresce ao passivo do devedor, sendo
precisamente essa afetação patrimonial negativa o meio de adstringi-lo ao
cumprimento. A igualdade de razão é de sentido exatamente contrário: se a
desvalorização de um crédito pecuniário a uma taxa de 5% ao ano constituiria
uma afetação negativa do direito de propriedade, como se depreende ser o
entendimento da maioria, e como decorre inequivocamente do reconhecimento
jurisprudencial de que os direitos de crédito integram o conceito
constitucional de propriedade, é certo que também o será a oneração do
património com um débito de idêntica espécie e valor. Na verdade, sendo o
dinheiro um bem fungível, é indiferente falar-se de redução de créditos ou de
acréscimo de débitos – trata-se, em todo o caso, da redução do património
líquido do devedor. Tanto basta, no meu entendimento, para concluir que a
sanção pecuniária compulsória legal constitui uma ablação da propriedade.
Porém,
o principal argumento da decisão diz respeito ao segundo pressuposto: o de que a dimensão do direito de propriedade
atingido pela norma sindicada tenha natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias. A maioria, louvando-se num lastro jurisprudencial significativo,
entendeu que a analogia de natureza entre uma certa dimensão ou faculdade de um
direito fundamental não incluído no catálogo de direitos, liberdades e
garantias e os direitos neste compreendidos se estabelece a partir de dois índices ou critérios. O primeiro é axiológico:
deve tratar-se de um direito ou faculdade recondutível
de «modo imediato e essencial à dignidade da pessoa humana» ou indispensável à
«realização do Homem como pessoa». O segundo é estrutural: deve tratar-se de um direito radicalmente subjetivo, ou
seja, de «direitos clássicos de defesa» que podem ser «diretamente invocáveis»
em juízo. A maioria não chega a tomar posição sobre a questão de saber se estes
critérios são alternativos ou cumulativos, porque conclui que em qualquer caso
a norma sindicada não tem natureza análoga aos direitos de liberdade.
Reconheço
que o critério axiológico tem algum respaldo jurisprudencial, mas parece-me
absolutamente insustentável. A noção de que a dicotomia constitucional entre
direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais se
pode basear na maior proximidade ou imediaticidade
tendencial daqueles em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana é
infirmada pela mais superficial leitura de ambos os catálogos de direitos
fundamentais. Para que o critério axiológico de divisão fizesse sentido, seria
necessário que todos os direitos de
liberdade consagrados no Título II e poucos
direitos sociais consagrados no Título III fossem recondutíveis
de «modo imediato e essencial» à dignidade da pessoa humana. Ora, abstraindo da
grande obscuridade do conceito de recondução «imediata e essencial» e dos
equívocos associados a uma compreensão hierárquica dos direitos fundamentais, é
impossível sustentar que o direito de acesso a dados informatizados (artigo 35.º,
n.º 1), o direito de resposta e retificação (artigo 37.º, n.º 4) ou o direito
de antena (artigo 40.º, n.º 1) têm uma carga axiológica tão grande ou maior,
segundo a dignidade da pessoa humana, do que o direito à saúde (artigo 64.º), o
direito à habitação (artigo 65.º) ou o direito à educação (artigo 73.º). A
graduação axiológica é ainda mais absurda no domínio dos direitos dos
trabalhadores, desde que, na revisão constitucional de 1982, estes foram
repartidos entre os dois catálogos; a liberdade sindical (artigo 55.º) e o
direito à greve (artigo 57.º) não são seguramente mais fundamentais do que o direito ao trabalho (artigo 58.º) ou os
direitos consagrados no n.º 1 do artigo 59.º − todos eles participam do
estatuto constitucional do trabalhador.
Resta
o critério estrutural, aquele que distingue direitos
de defesa, diretamente invocáveis em juízo, pelo facto de salvaguardarem da
agressão estatal bens que se encontram em poder do titular, de direitos positivos, de conteúdo
relativamente indeterminado, que dependem da atividade de prestação dos poderes
públicos. Só desta forma se pode compreender a existência de um regime
específico dos direitos de liberdade diretamente aplicável aos demais direitos
fundamentais que tenham natureza análoga. É claro que nem todas as dimensões ou
faculdades dos direitos de liberdade constituem direitos de defesa – visto que
compreendem também direitos a proteção estatal de «bens liberais» – e nem todas
as dimensões ou faculdades dos direitos sociais constituem direitos positivos –
visto que compreendem ainda os direitos de defesa de «bens sociais» em poder do
titular. O mais que se pode dizer é que predomina
nos direitos de liberdade a função
defensiva e nos direitos sociais a função
prestadora, de modo que o regime dos direitos, liberdades e garantias é
diretamente aplicável por via de regra aos direitos de liberdade e excecionalmente aos direitos sociais –
precisamente quando estes surgem nas vestes de direitos de defesa. Tudo isto
sem prejuízo de tal regime se aplicar ainda, com as adaptações necessárias,
sempre que logicamente possível e o princípio da unidade da constituição o
reclamar, às dimensões ou faculdades positivas dos direitos fundamentais, sejam
eles direitos de liberdade ou direitos sociais.
O
aresto rejeita que se trate neste caso da dimensão negativa, defensiva ou
«clássica» do direito de propriedade, invocando para o efeito, se bem vejo as
coisas, dois argumentos. O primeiro é o de que no direito de propriedade há que
distinguir uma «dimensão subjetiva» de uma «dimensão institucional-objetiva»,
identificando-se aquela com o direito a não ser privado da propriedade sem
justa indemnização e esta com o dever estatal de conservar a instituição da
propriedade privada. O segundo é o de que o direito de propriedade não tem
densidade suficiente, a nível constitucional, para se projetar sobre a matéria
do «estatuto obrigacional do sujeito passivo de uma relação creditícia». Estes
argumentos não são inteiramente compatíveis um com o outro, na medida em que o
segundo admite que o direito de propriedade possa desempenhar uma função
defensiva para além da mera exigência de justa indemnização nos casos de
requisição ou expropriação por utilidade pública, desde que o seu conteúdo
tenha densidade constitucional suficiente. É o argumento mais
promissor, superando a redução tradicional, que hoje se pode declarar
largamente ultrapassada, da proteção constitucional da propriedade a uma
garantia institucional que tem como único efeito jurídico proibir a abolição do
gozo privado de bens patrimoniais.
A
noção de que a garantia constitucional da propriedade não tem densidade
suficiente para determinar os regimes jurídicos da vida patrimonial,
nomeadamente de direitos reais e das obrigações, baseia-se na constatação
evidente de que a propriedade é um artefacto
jurídico. Trata-se, por outras palavras, de uma liberdade artificial, a
que se contrapõem as liberdades naturais
que incidem sobre bens cuja existência não depende do legislador, como a vida,
a personalidade, a expressão, a manifestação ou a religião. Ora, se a liberdade
que a propriedade torna possível – aquela que consiste no governo privado de
valores patrimoniais – é uma liberdade devida ao legislador ordinário, parece
impor-se a conclusão de que o direito fundamental de propriedade é, no fim de
contas, sobretudo um direito positivo
a que o legislador promova o acesso a um
qualquer regime de «propriedade
privada», sujeito à condição constitucional única de que garanta a «transmissão
em vida ou por morte» (artigo 61.º, n.º 1); daí a sua inclusão no catálogo do
Título III. E se o legislador pode criar com tanta liberdade, com a mesma
liberdade − praticamente total − pode conformar e modificar a
sua criação.
Não
é assim. Quando a constituição entra em vigor – a nossa como qualquer outra
numa democracia constitucional – já existe um
regime de propriedade privada, uma ordenação jurídica da vida patrimonial,
de modo que o suposto dever positivo do legislador não tem alcance prático
nenhum. Ainda que tivesse, o direito de propriedade, ao contrário dos direitos
a prestações continuadas como os
cuidados de saúde ou a habitação social, impõe deveres positivos de execução instantânea: a aprovação de leis que,
nos vários domínios da vida patrimonial, garantam o acesso à propriedade. O
direito de propriedade tem, assim, evidentes afinidades com aqueles direitos de
liberdade que incidem sobre bens constituídos por normas legais, como o direito
ao juiz natural ou o direito a um processo equitativo. Uma vez constituídos
tais bens, uma vez tornado possível o gozo da liberdade artificial em causa, o
direito fundamental passa a incidir sobre um bem que já se encontra no poder do
titular, passando a desempenhar a título principal a função clássica de defesa. As alterações ao regime, na medida em
que afetem negativamente a posição dos sujeitos, são agressões do poder público
e como tal devem ser enquadradas. É certo que o legislador goza de uma ampla
liberdade de conformação política do regime legal da propriedade, nomeadamente
quando altera a composição dos conflitos de interesses dos sujeitos da vida
patrimonial – v.g., entre
proprietários e possuidores, credores e devedores, lesantes e lesados,
promitentes e promissários. Só que esta não é uma
liberdade anómica,
em virtude da indeterminação constitucional do direito de propriedade, mas uma
liberdade radicada na legitimidade democrática do legislador para rever as
opções legais vigentes, liberdade essa que, como a generalidade das restrições
de direitos de defesa, é regulada e limitada pelo regime dos direitos,
liberdades e garantias.
Um
dos aspetos mais salientes desse regime é a reserva de lei parlamentar
consagrada na alínea b) do n.º 1 do
artigo 165.º da Constituição. Se concebermos a dicotomia entre direitos de
liberdade e direitos sociais a partir da distinção entre direitos predominantemente negativos e positivos,
o único critério coerente e razoável, a divisão constitucional de competência
legislativa em matéria de direitos fundamentais adquire uma pertinência
luminosa. Por um lado, a função clássica da instituição parlamentar –
democrática, representativa e deliberativa − é a proteção das liberdades contra os excessos do poder executivo; os
direitos negativos são reserva natural da lei formal em sentido estrito. Por
outro lado, o processo histórico de alargamento da intervenção estatal nos
domínios económico e social ditou a necessidade de um «legislador motorizado»;
os direitos positivos têm a ganhar com esta possibilidade de produção normativa
através de decretos. Na ordem constitucional portuguesa, esta divisão de
competências tem a particularidade de respeitar ao próprio poder legislativo,
visto que o Governo, para além de poder legislar mediante autorização da
Assembleia da República, tem competência legislativa própria. Esta competência
faz tanto mais sentido quanto diga respeito a um domínio – os deveres
constitucionais de facere
– para o qual o executivo tem particular aptidão funcional.
Sendo
o direito de propriedade, nas suas principais dimensões, um direito análogo aos
demais direitos de liberdade, um direito fundamental cuja função predominante é
defensiva, é natural que boa parte da legislação que lhe diga respeito integre
o domínio da reserva de competência estabelecida pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
Esta conclusão está de acordo com a noção clássica de que a matéria por
excelência da reserva de lei é definida pela cláusula da «liberdade e
propriedade», com particular incidência nos domínios do direito penal, do
direito fiscal, do direito de polícia e – para o que agora interessa − do
direito civil. Está claro que o sentido da reserva de lei parlamentar não mais
é o da oposição e do compromisso entre a sociedade e o executivo, entre
legitimidade representativa e dinástica, característicos das monarquias
constitucionais oitocentistas; os parlamentos e os governos são, nas modernas
democracias, criaturas da ordem constitucional destinadas exclusivamente ao
desempenho das funções do poder público. Porém, a reserva de lei presta-se
naturalmente a ser reinterpretada, segundo um princípio de adequação funcional, como vocação do legislador parlamentar para
acautelar a vertente defensiva de direitos fundamentais. Este é o seu domínio
privilegiado na tradição do constitucionalismo.
Ora,
ao criar, através de decreto-lei simples, o regime da sanção compulsória legal,
um regime que debilita expressivamente a posição patrimonial do devedor com a
finalidade de reforçar a tutela dos direitos de crédito, o legislador executivo
invadiu esse domínio reservado. A norma sindicada nos presentes autos é, assim,
no meu juízo, organicamente inconstitucional.
Gonçalo
de Almeida Ribeiro