ACÓRDÃO Nº 688/2019
Processo n.º 323/2019
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. O Ministério Público, ora recorrente, instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, contra a Freguesia de Sabroso de Aguiar (ora recorrida), uma ação administrativa especial de impugnação do procedimento concursal aberto pelo Aviso n.º 8225/2013, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 26 de junho de 2013, do subsequente despacho de contratação de 1 de setembro de 2013 do Presidente da Junta de Freguesia de Sabroso de Aguiar, bem como do subsequente contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado outorgado entre essa Freguesia e a trabalhadora A. (contrainteressada, ora recorrida), pedindo que fossem declarados nulos. Pedia igualmente a condenação da Freguesia a repor a situação que existiria se os atos em causa não tivessem sido praticados e a condenação do Presidente da Junta de Freguesia numa sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento da decisão judicial a emitir.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela veio a julgar esta ação de impugnação improcedente, através de sentença de 6 de fevereiro de 2019.
Nessa sentença, o Tribunal decidiu (fls. 184 e verso):
«Donde, nada mais resta ao Tribunal senão desaplicar a norma ínsita no n.º 2 do artigo 66.º da Lei n.º 66-B/2012, na parte em que, determinando a observância do disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da LVRC, impõe às autarquias locais a prévia obtenção de parecer favorável dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela administração pública para abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações públicas de emprego público por tempo indeterminado, determinado ou determinável, para carreira geral ou especial e carreiras que ainda não tenham sido objeto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente estabelecido, por violação do princípio da autonomia do poder local, consagrado nos artigos 6.º, n.º 1, e 235.º da CRP.»
2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, alínea a), da Constituição e dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 3, 78.º, n.º 4, e 75.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante designada por LTC), indicando como seu objeto a norma referida no ponto anterior.
3. Prosseguindo os autos para alegações, o Ministério Público aderiu à conclusão alcançada pelo tribunal a quo, no sentido da inconstitucionalidade (fls. 194-217), concluindo o seguinte (fls. 215-217):
«5. Conclusões:
5.1. O princípio da autonomia local, no quadro da sua consagração constitucional, constitui-se como um dos pilares essenciais da organização territorial da República Portuguesa, intimamente ligado à gestão democrática da República, e enquanto tal considera-se como um elemento estruturante do Estado de Direito Democrático.
5.2. O princípio da autonomia local consagrado constitucionalmente consubstancia-se numa dimensão alargada de autonomia composta por diversos elementos constitutivos, garantes de uma efetiva capacidade de concretização e execução das suas atribuições e competências na prossecução dos interesses próprios da população perante quem são responsáveis, sem interferências ou condicionamentos do Governo.
5.3. É no âmbito da autonomia em matéria de pessoal que se insere a competência das autarquias para decidir e gerir um "quadro de pessoal próprio, nos termos da lei", conforme n.° 1 do artigo 243° da CRP, sendo aplicável, nos termos do n.° 2 do mesmo artigo, aos trabalhadores em funções públicas das autarquias o regime dos funcionários do Estado, com as necessárias adaptações, nos termos da lei.
5.4. A garantia de um corpo próprio de trabalhadores das autarquias, não dependentes da administração do Estado é instrumental face à execução das atribuições das autarquias.
5.5. A prossecução dos interesses próprios das populações locais pelas autarquias tem que ser conjugada com a prossecução do interesse nacional pelo Estado.
5.6. Os poderes e competências constitutivos da autonomia local podem ser condicionados ou comprimidos por lei, mas somente quando um interesse nacional ou supralocal o justificar, nunca podendo ser atingido o núcleo essencial da garantia da autonomia autárquica.
5.7. O interesse público que subjaz à finalidade do n.° 2 do artigo 66.° da Lei n.° 66-B/2012, que impõe a obtenção de parecer prévio favorável do membro do Governo responsável pelas finanças e pela Administração pública para que as autarquias possam abrir procedimento de contratação de trabalhadores, consubstancia-se no equilíbrio das contas do sector público, quanto aos gastos com o pessoal, no âmbito do contexto económico-financeiro do país que, à data, se encontrava sob resgate e a execução do Programa de Assistência Económica e Financeira acordado entre as autoridades portuguesas, a União Europeia e o FMI.
5.8. O cumprimento desta finalidade pelas autarquias locais traduz-se na sua sujeição às regras estipuladas no referido artigo 66° para o controlo do recrutamento de trabalhadores nas autarquias locais.
5.9. A exigência de o parecer prévio, vinculativo, do governo para a abertura do procedimento concursal, para além de nos parecer desnecessária e desproporcional face à finalidade das medidas legislativas em causa, consubstancia uma interferência do Governo nas competências das autarquias que condicionam e constrangem a sua autonomia constitucionalmente garantida.
5.10. Tanto mais que este parecer prévio não se configura no âmbito da tutela administrativa das autarquias, prevista no artigo 242° da Constituição da República Portuguesa.
5.11 A gestão do quadro do pessoal, sendo instrumental da concretização dos demais poderes, consubstancia-se como essencial na concretização das deliberações e opções das autarquias, não podendo estas ser condicionadas pelo teor positivo ou negativo de um parecer prévio do Governo.
5.12 Assim, a norma constante do n.° 2 do artigo 66.° da Lei n.° 66-B/2012, na parte em que, determinando a observância do disposto nos n.°s 6 e 7 do artigo 6.° da LVCR, impõe às autarquias locais a prévia obtenção de parecer favorável dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela Administração Pública para abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações jurídicas de emprego público por tempo indeterminado, determinado ou determinável, para carreira geral ou especial e carreiras que ainda não tenham sido objeto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente estabelecido, viola o princípio da autonomia do poder local consagrado no n.° 1 do artigo 6.° e artigos 235.° da Constituição da República Portuguesa.»
4. Notificadas para tal, as recorridas não contra-alegaram.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
a) Delimitação do objeto do recurso
5. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, segundo a qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
No caso dos autos, o tribunal a quo determinou a desaplicação da «norma ínsita no n.º 2 do artigo 66.º da Lei n.º 66-B/2012, na parte em que, determinando a observância do disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da LVRC [Lei que estabelece os regimes de Vinculação, de Carreiras e de Remunerações da Função Pública], impõe às autarquias locais a prévia obtenção de parecer favorável dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela administração pública para abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações públicas de emprego público por tempo indeterminado, determinado ou determinável, para carreira geral ou especial e carreiras que ainda não tenham sido objecto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente estabelecido» (cfr. pp. 29-30 da sentença de 6 de Fevereiro de 2019 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, fls. 184 e verso).
6. É este o teor dos artigos 66.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2013 (sublinhando-se o proémio do n.º 2):
Artigo 66.º
Controlo do recrutamento de trabalhadores nas autarquias locais
1 - As autarquias locais não podem proceder à abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações jurídicas de emprego público por tempo indeterminado, determinado ou determinável, para carreira geral ou especial e carreiras que ainda não tenham sido objeto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente estabelecida, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Em situações excecionais, devidamente fundamentadas, o órgão deliberativo, sob proposta do respetivo órgão executivo, pode, ao abrigo e nos termos do disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 34/2010, de 2 de setembro, 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro, e pela presente lei, autorizar a abertura dos procedimentos concursais a que se refere o número anterior, fixando, caso a caso, o número máximo de trabalhadores a recrutar e desde que se verifiquem os seguintes requisitos cumulativos:
a) Seja imprescindível o recrutamento, tendo em vista assegurar o cumprimento das obrigações de prestação de serviço público legalmente estabelecidas e ponderada a carência dos recursos humanos no setor de atividade a que aquele se destina, bem como a evolução global dos recursos humanos na autarquia em causa;
b) Seja impossível a ocupação dos postos de trabalho em causa nos termos previstos nos n.ºs 1 a 5 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 34/2010, de 2 de setembro, 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro, e pela presente lei, ou por recurso a pessoal colocado em situação de mobilidade especial ou outros instrumentos de mobilidade;
c) Seja demonstrado que os encargos com os recrutamentos em causa estão previstos nos orçamentos dos serviços a que respeitam;
d) Sejam cumpridos, pontual e integralmente, os deveres de informação previstos no artigo 50.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, alterada pelas Leis n.ºs 22-A/2007, de 29 de junho, 67-A/2007, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 55-A/2010, de 31 de dezembro, 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 22/2012, de 30 de maio, e na Lei n.º 57/2011, de 28 de novembro;
e) Seja demonstrado o cumprimento das medidas de redução mínima, estabelecidas tendo em vista o cumprimento do PAEF, considerando o número de trabalhadores em causa no termo do ano anterior.
3 - A homologação da lista de classificação final deve ocorrer no prazo de seis meses a contar da data da deliberação de autorização prevista no número anterior, sem prejuízo da respetiva renovação, desde que devidamente fundamentada.
4 - São nulas as contratações e as nomeações de trabalhadores efetuadas em violação do disposto nos números anteriores, sendo aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos n.ºs 6, 7 e 8 do artigo 9.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, alterada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, havendo lugar a redução nas transferências do Orçamento do Estado para a autarquia em causa de montante idêntico ao despendido com tais contratações ou nomeações, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 92.º da lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 52/2011, de 13 de outubro.
5 - O disposto no presente artigo não prejudica o disposto no artigo seguinte, que constitui norma especial para autarquias locais abrangidas pelo respetivo âmbito de aplicação [Artigo 67.º Recrutamento de trabalhadores nas autarquias locais em situação de desequilíbrio financeiro estrutural ou de rutura financeira].
6 - O disposto no presente artigo é diretamente aplicável às autarquias locais das regiões autónomas.
7 - Até ao final do mês seguinte ao do termo de cada trimestre, as autarquias locais informam a DGAL do número de trabalhadores recrutados nos termos do presente artigo.
8 - O disposto no presente artigo tem caráter excecional e prevalece sobre todas as disposições legais, gerais ou especiais, contrárias.
9 - O disposto no presente artigo aplica-se, como medida de estabilidade orçamental, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 4.º e no n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, alterada pelas Leis n.ºs 22-A/2007, de 29 de junho, 67-A/2007, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 55-A/2010, de 31 de dezembro, 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 22/2012, de 30 de maio, conjugados com o disposto no artigo 86.º da lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 52/2011, de 13 de outubro, e tendo em vista o cumprimento do PAEF.
Por seu turno, é este o teor dos nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, (Lei que estabelece os regimes de Vinculação, de Carreiras e de Remunerações da Função Pública, LVCR) alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 34/2010, de 2 de setembro, 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro, e pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que tem por epígrafe Gestão dos recursos humanos em função dos mapas de pessoal:
«6 - Em caso de impossibilidade de ocupação de todos ou de alguns postos de trabalho por aplicação do disposto nos números anteriores, o órgão ou serviço, precedendo parecer favorável dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela Administração Pública, pode proceder ao recrutamento de trabalhadores com relação jurídica de emprego público por tempo determinado ou determinável ou sem relação jurídica de emprego público previamente estabelecida.
7 - O sentido e a data do parecer referido no número anterior é expressamente mencionado no procedimento de recrutamento ali em causa.»
Nenhum dos preceitos referidos se encontra hoje em vigor, embora fosse vigente à data dos factos. A Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, tendo aprovado o Orçamento do Estado para 2013, tem uma vigência anual. A Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, foi revogada pelo artigo 42.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, que aprovou a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, com exceção das normas transitórias abrangidas pelos artigos 88.º a 115.º.
7. O objeto do processo que está na base do presente recurso versa sobre a validade da abertura do procedimento concursal comum para a constituição de uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado para a carreira de assistente operacional (que é considerada uma carreira geral, nos termos do artigo 49.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro) por parte de uma Freguesia – e dos atos jurídicos subsequentes. A questão passa, por isso, pela exigência legal da obtenção do parecer prévio previsto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 66.º da Lei n.º 12-A/2008 como requisito necessário para a abertura do referido procedimento concursal.
Tendo em conta a situação concreta do caso, a norma efetivamente desaplicada pela decisão recorrida é mais restrita do que resulta da formulação reproduzida supra («impõe às autarquias locais a prévia obtenção de parecer favorável dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela administração pública para abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações públicas de emprego público por tempo indeterminado, determinado ou determinável, para carreira geral ou especial e carreiras que ainda não tenham sido objeto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente estabelecido»). Efetivamente, no caso, estava apenas em causa a constituição de relações públicas de emprego público por tempo indeterminado (e não determinado ou determinável), para uma carreira geral (e não uma carreira especial ou carreira ainda não objeto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência). Assim, a norma desaplicada é aquela que impõe às autarquias locais a prévia obtenção de parecer favorável dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela administração pública para abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações públicas de emprego público por tempo indeterminado, para carreira geral, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente estabelecido.
O parâmetro a que o tribunal a quo recorre para fundar a desaplicação da norma foi o princípio da autonomia local, consagrado nos artigos 6.º, n.º 1, e 235.º da Constituição. Importa, por isso, começar por fazer o respetivo enquadramento constitucional deste princípio.
b) O princípio da autonomia local e a garantia de “pessoal próprio” das autarquias locais
8. Como o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar, a «autonomia local é um dos pilares fundamentais em que assenta a organização territorial da República Portuguesa, tal como resulta do artigo 6.º, n.º 1, da Constituição» (cfr. Acórdão n.º 494/2015, do Plenário, ponto 8, reafirmado, por exemplo, pelo Acórdão n.º 420/2018, do Plenário, ponto 18.2, e pelo Acórdão n.º 450/2019, do Plenário, ponto 18).
Neste âmbito, o Tribunal Constitucional afirmou, como enquadramento geral, no seu Acórdão n.º 494/2015, do Plenário, ponto 8, que:
«(…) [A] autonomia local deve ser associada ao princípio constitucional geral da unidade do Estado e, lida em contexto com a autonomia regional, o princípio da subsidiariedade e a descentralização administrativa (Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 232). A importância central desta matéria tem como consequência o tratamento jurisprudencial desenvolvido pelo Tribunal Constitucional sobre o alcance da garantia constitucional da autonomia local (cfr. A. Maurício, “A garantia constitucional da autonomia local à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, pp. 625-657). O princípio da autonomia local, de que importa agora tratar, é desenvolvido na Constituição no seu título VIII, relativo ao Poder local, da parte III (Organização do poder político). O enquadramento supralegal das autarquias locais é, ainda, completado pela Carta Europeia da Autonomia Local, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 28/90, de 23 de outubro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 58/90, de 23 de outubro, vigente na nossa ordem jurídica por força do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição.»
Ainda no âmbito de um enquadramento ao regime constitucional das autarquias locais, recorre-se ao Acórdão n.º 420/2018, do Plenário, ponto 18.2:
«(…) [O] princípio da autonomia local [apresenta-se], no quadro jurídico-constitucional português, como um princípio jurídico ordenador e estruturante da organização – política, administrativa, territorial (qualificando a autonomia municipal como autonomia político-administrativa, André Folque, A Tutela Administrativa nas Relações entre o Estado e os Municípios (Condicionalismos Constitucionais), Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 116 e ss.) – do Estado português (sobre o tema, desenvolvidamente, José de Melo Alexandrino, Direito das Autarquias Locais, in Paulo Otero/Pedro Gonçalves (coord.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Volume IV, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 11-299, em especial, pp. 77 e ss.), compreensivamente entendido na relação com outros princípios fundamentais (de que se destacam os princípios da descentralização administrativa, da unidade do Estado, do Estado de direito democrático, da democracia, do pluralismo, da participação, da subsidiariedade), a que a Constituição se refere como dimensão da organização do Estado unitário (artigo 6.º, n.º 1) e componente da organização democrática do Estado (artigo 235.º, n.º 1), estabelecendo, a seu respeito, reservas de lei (designadamente nos artigos 236.º, n.ºs 3 e 4, 237.º, n.ºs 1 e 2, 238.º, n.ºs 2 e 4, 239.º, n.º 4, 240.º, n.º 2, 242.º, n.ºs 1 e 2, e 243.º), em especial, reservas de competência legislativa parlamentar, absolutas e relativas (artigo 164.º, alínea l), m), n) e r) e artigo 165.º, n.º 1, alíneas q), r) e aa)) e erigindo a garantia da autonomia das autarquias locais a limite material de revisão constitucional (artigo 288.º, alínea n)).
O princípio da autonomia local (cujas fontes não se esgotam no quadro jurídico-constitucional) encontra, assim, na Constituição o acolhimento devido a um princípio fundamental que se revela em diversas vertentes, como, aliás, reconhecido na jurisprudência constitucional que se tem pronunciado sobre a garantia constitucional da autonomia do poder local.»
Desenvolvendo a garantia constitucional da autonomia do poder local, o Acórdão n.º 450/2019, do Plenário, ponto 18, esclarece que:
«Na arquitetura dos poderes que integram o Estado unitário e na correlação entre eles estabelecida, o princípio constitucional da autonomia local (…), assume, nos termos da própria Constituição, uma vertente garantística: ao estabelecer que a “organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais”, enquanto “pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas”, o artigo 235.º da Constituição “tem um sentido de garantia institucional, assegurando a existência de administração local autárquica autónoma” em todo o território nacional (Acórdão n.º 296/2013 [ponto 12]).
O recorte desta garantia institucional e a definição do seu exato âmbito têm subjacente a ideia de que as autarquias locais têm por objetivo, “a prossecução de interesses próprios das populações respetivas (artigo 235.º, n.º 2)”; e que, tal como decorre do artigo 3.º, n.º 1, da Carta Europeia da Autonomia Local, tal objetivo “pressupõe e exige, entre outros, o direito e a capacidade de as autarquias regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob a sua responsabilidade e no interesse das respetivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos” (Acórdão n.º 296/2013 [ponto 12]). »
Efetivamente, como logo referido no Acórdão n.º 296/2013, do Plenário, pontos 12-13:
«Como sintetiza Melo Alexandrino, “a Constituição é relevante para o direito das autarquias locais pelo menos por três ordens de razões. A primeira porque é na Constituição que estão definidos os valores e os princípios estruturantes do direito local (…). A segunda porque a Constituição de 1976 teve uma clara intenção de definir expressamente a organização do poder político ao nível local, elevando por isso os órgãos do poder local a órgãos constitucionais e revestindo-os de um sistema de garantias constitucionais similares às aplicáveis aos órgãos de soberania e aos órgãos das regiões autónomas (…). A terceira porque a constituição regulou exaustivamente inúmeras outras facetas da administração e do regime local, naquilo que podemos qualificar como direito constitucional local” (J. de Melo Alexandrino, “Direito das Autarquias Locais”, Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. IV, 2010, p. 29).
De facto, a existência de uma garantia constitucional de autarquias locais, constante no artigo 235.º, n.º 1, da CRP, tem um sentido de garantia institucional, assegurando a existência de administração local autárquica autónoma. A garantia da autonomia local é um limite ao próprio poder de revisão constitucional (artigo 288.º, alínea n), da CRP) e tem um âmbito de proteção amplo.
13. O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 432/93 assinala o primeiro teste da consistência do conceito de autonomia local na jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. Artur Maurício, “A Garantia Constitucional da Autonomia Local à Luz da Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro Cardoso da Costa, p. 635). Nessa ocasião, o Tribunal sublinhou que as autarquias locais são justificadas pelos valores da liberdade e da participação e concorrem para a organização democrática do Estado, conformando um “âmbito de democracia”. Mais se salientou, então, que a Constituição não traça para as autarquias locais um “figurino de mera administração autónoma do Estado”, pois constituem “uma estrutura do poder político”, assumindo as normas que organizam o seu poder uma “justificação eminentemente democrática” e fundando-se o poder autárquico numa “ideia de consideração e representação aproximada de interesses”.
(…).»
No entanto, como se esclarece no Acórdão n.º 494/2015, do Plenário:
«10. A prossecução dos interesses próprios das populações locais pelas autarquias tem que ser conjugada com a prossecução do interesse nacional pelo Estado. De facto, como o Tribunal Constitucional já afirmou, “como as autarquias locais integram a administração autónoma, existe entre elas e o Estado uma pura relação de supraordenação-infraordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos (os interesses nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia-subordinação que fosse dirigida à realização de um único e mesmo interesse - o interesse nacional, que, assim, se sobrepusesse aos interesses locais” (Acórdão n.º 379/96, n.º 5.3.). Como nota André Folque, quando “a autonomia municipal postula interesses próprios e quando se fala na concorrência da dimensão nacional com a dimensão local, isso não corresponde a uma sobreposição de atribuições. De outro modo, seria preterida a esfera de interesses próprios (art. 235.º, n.º 2)” (A tutela administrativa nas relações entre o Estado e os Municípios, Coimbra Editora, 2004, pp. 130-131).
Sendo certo que “as atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei” (artigo 237.º, n.º 1, da Constituição), é nesse contexto que o legislador deve balancear a prossecução de interesses locais e do interesse nacional ou supralocal, gozando de uma vasta margem de autonomia. No entanto, ao desempenhar essa tarefa, “o legislador não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem antes que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer os interesses próprios (privativos) das respetivas comunidades locais” (Acórdão n.º 379/96, n.º 5.2., e Acórdão n.º 329/99, n.º 5.4.).
Assim, na síntese efetuada por Artur Maurício sobre a jurisprudência relativa à garantia da autonomia local: “a autonomia do poder local vem sendo essencialmente concebida como uma garantia organizativa e de competências, reconhecendo-se as autarquias locais como uma estrutura do poder político democrático e com um círculo de interesses próprios que elas devem gerir sob a sua própria responsabilidade”, só podendo a “restrição legal desses interesses (…) ser feita com o fim da prossecução de um interesse geral, que ao legislador compete definir, não podendo, de todo o modo, ser atingido o núcleo essencial da garantia da administração autónoma”. “Nos âmbitos que considera abertos à concorrência do Estado e das autarquias vem ainda o Tribunal entendendo (…) que são constitucionalmente legítimas compressões da autonomia local, não deixando, contudo, de fazer passar as medidas legislativas ou regulamentares em causa pelo crivo da adequação e da proporcionalidade” (ob. cit., pp. 656-657).»
9. A questão colocada no presente processo está relacionada com um dos elementos constitutivos da autonomia local – a garantia de que as autarquias terão «quadros de pessoal próprio» (artigo 243.º, n.º 1, da Constituição).
Este elemento da autonomia foi desenvolvido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 494/2015, do Plenário, citado na decisão a quo, como justificação da desaplicação da norma em causa (embora, por lapso, a decisão o identifique como Acórdão n.º 949/2015), afirmando-se, nos pontos 11-12:
«11. A autonomia das autarquias locais, intrinsecamente relacionada com a gestão democrática da República, tal como constitucionalmente desenhada, pressupõe um conjunto de poderes autárquicos que asseguram uma sua atuação relativamente livre e incondicionada face à administração central no desempenho das suas atribuições, visando a prossecução do interesse da população local. Com o objetivo de assegurar essa liberdade de atuação, a Constituição consagra diversas dimensões ou elementos constitutivos da autonomia local. Aí se inscreve, nomeadamente, a autonomia de organização (artigo 237.º, n.º 1), a autonomia orçamental (artigo 237.º, n.º 2), a autonomia patrimonial e financeira (artigo 238.º, n.º 1 a 3), a autonomia fiscal (artigo 238.º, n.º 4, e artigo 254.º), a autonomia referendária (artigo 240.º, n.º 1), a autonomia regulamentar (artigo 241.º) e a autonomia em matéria de pessoal (artigo 243.º). Como António Cândido de Oliveira refere, existe um «conjunto de poderes constitucionalmente garantidos», tais como «o poder de dispor de órgãos próprios eleitos democraticamente; o poder de dispor de património e finanças próprias; o poder de dispor de um quadro de pessoal próprio; o poder regulamentar próprio; o de exercer sob responsabilidade própria um conjunto de tarefas adequadas à satisfação dos interesses próprios das populações respetivas», que «garante à administração local uma situação de não submissão em relação à administração do Estado», e constitui «aquilo a que poderíamos chamar a vertente de defesa da autonomia local» (Direito das Autarquias Locais, Coimbra Editora, 2013, pp. 92- 93).
O condicionamento ou compressão da autonomia local (nomeadamente dos seus elementos) pode apenas decorrer da lei, quando um interesse público nacional ou supralocal o justificar, e sempre com a ressalva do seu núcleo incomprimível. Efetivamente, «a autonomia municipal não pode afetar a integridade da soberania do Estado. De facto, os poderes locais também são, por natureza, limitados, pois não podem ser exercidos para além do âmbito de interesses (necessariamente locais) que os justificam, não podendo invadir espaços de deliberação ou atuação que devem permanecer reservados à esfera da comunidade nacional» (cfr. M. Lúcia Amaral, A Forma da República, Coimbra Editora, 2012, p. 385).
12. É neste contexto que deve ser entendida a autonomia local em termos de existência de «quadros de pessoal próprio, nos termos da lei» (artigo 243.º, n.º 1), sendo aplicável aos trabalhadores em funções públicas das autarquias o regime aplicável aos do Estado «com as necessárias adaptações, nos termos da lei» (artigo 243.º, n.º 2). Trata-se de um elemento da autonomia, constitucionalmente protegido, relacionado com o poder de auto-organização dos serviços (M. J. L. Castanheira Neves, Governo e administração local, Coimbra Editora, 2004, p. 276). A garantia de um corpo próprio de trabalhadores das autarquias, não dependentes da administração do Estado é instrumental face à execução das atribuições das autarquias visando a prossecução dos interesses próprios das respetivas populações (A. Cândido de Oliveira, ob. cit., p. 202). Só dessa forma se garante o caráter autónomo da administração local, consagrado na Constituição.
Decorre, portanto, da garantia de autonomia local que as autarquias possam assumir o papel de entidade empregadora pública, de forma autónoma face ao Estado, quer relativamente às relações individuais de trabalho com os trabalhadores em funções públicas, quer, na configuração atualmente existente na lei, em relação às relações coletivas, quanto à celebração de acordos coletivos de trabalho com as associações sindicais representativas dos respetivos trabalhadores.»
Após este enquadramento relativo à autonomia local e à garantia de que as autarquias terão «pessoal próprio» (artigo 243.º, n.º 1, da Constituição), é chegado o momento de atender ao regime em causa no presente processo.
c) O regime de “Controlo do recrutamento de trabalhadores nas autarquias locais” previsto na Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2013
10. No contexto do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado, em maio de 2011, entre as autoridades portuguesas, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI, para o período 2011-2014, várias medidas foram adotadas pelo legislador português no âmbito da Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2013 (Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro). Uma dessas medidas consta, precisamente do artigo 66.º desta lei, como afirmado pelo seu n.º 9 («O disposto no presente artigo aplica-se, como medida de estabilidade orçamental (…) tendo em vista o cumprimento do PAEF»), estabelecendo um regime de «Controlo do recrutamento de trabalhadores nas autarquias locais».
Este regime vedava, de uma forma geral, às autarquias locais a possibilidade de «proceder à abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações jurídicas de emprego público por tempo indeterminado, determinado ou determinável, para carreira geral ou especial e carreiras que ainda não tenham sido objeto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente estabelecida» (artigo 66.º, n.º 1), com algumas exceções.
Uma delas era a possibilidade de em «situações excecionais, devidamente fundamentadas», o órgão deliberativo da autarquia, sob proposta do respetivo órgão executivo, autorizar a abertura dos referidos procedimentos concursais, «fixando, caso a caso, o número máximo de trabalhadores a recrutar» (artigo 66.º, n.º 2). Tal só seria possível «ao abrigo e nos termos do disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 34/2010, de 2 de setembro, 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro» e pela própria Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o que significa, na interpretação do tribunal a quo, que o recrutamento devia ser precedido da obtenção de «parecer favorável dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela Administração Pública», sendo que o «sentido e a data do parecer referido (…) é expressamente mencionado no procedimento de recrutamento ali em causa».
Para além disso, neste caso, a possibilidade de abertura de procedimentos concursais dependia ainda da verificação dos seguintes requisitos cumulativos:
«a) Seja imprescindível o recrutamento, tendo em vista assegurar o cumprimento das obrigações de prestação de serviço público legalmente estabelecidas e ponderada a carência dos recursos humanos no setor de atividade a que aquele se destina, bem como a evolução global dos recursos humanos na autarquia em causa;
b) Seja impossível a ocupação dos postos de trabalho em causa nos termos previstos nos n.ºs 1 a 5 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 34/2010, de 2 de setembro, 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro, e pela presente lei, ou por recurso a pessoal colocado em situação de mobilidade especial ou outros instrumentos de mobilidade;
c) Seja demonstrado que os encargos com os recrutamentos em causa estão previstos nos orçamentos dos serviços a que respeitam;
d) Sejam cumpridos, pontual e integralmente, os deveres de informação previstos no artigo 50.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, alterada pelas Leis n.ºs 22-A/2007, de 29 de junho, 67-A/2007, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 55-A/2010, de 31 de dezembro, 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 22/2012, de 30 de maio, e na Lei n.º 57/2011, de 28 de novembro;
e) Seja demonstrado o cumprimento das medidas de redução mínima, estabelecidas tendo em vista o cumprimento do PAEF, considerando o número de trabalhadores em causa no termo do ano anterior.»
As contratações e as nomeações de trabalhadores efetuadas em violação destas regras eram consideradas nulas, fazendo incorrer os seus autores em responsabilidade civil, financeira e disciplinar e originando «redução nas transferências do Orçamento do Estado para a autarquia em causa de montante idêntico ao despendido com tais contratações ou nomeações» (artigo 66.º, n.º 4, da Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2013).
12. Note-se que o regime decorrente do artigo 66.º da Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2013 não se aplicava a todas as autarquias, constituindo o artigo 67.º da mesma Lei «norma especial para autarquias locais abrangidas pelo respetivo âmbito de aplicação» (artigo 66.º, n.º 5). Este regime especial era aplicável aos municípios que se encontrassem em situação de desequilíbrio financeiro estrutural ou de rutura financeira, nos termos do artigo 41.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, que aprovou a Lei das Finanças Locais, alterada pelas Leis n.ºs 22-A/2007, de 29 de junho, 67-A/2007, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 55-A/2010, de 31 de dezembro, 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 22/2012, de 30 de maio, bem como às «autarquias com endividamento líquido superior ao limite legal de endividamento em 2012, ainda que não tenha sido declarada a situação de desequilíbrio financeiro estrutural ou de rutura financeira» (artigo 67.º, n.º 1 e 2, da Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2013).
Ao analisar a constitucionalidade da norma objeto do presente processo é necessário, assim, ter em conta de que ela apenas era aplicável às autarquias locais que não se encontravam em situação de desequilíbrio financeiro estrutural ou de rutura financeira nem tinham um endividamento líquido superior ao limite legal de endividamento em 2012.
d) Análise do problema da constitucionalidade da norma objeto de fiscalização: A autonomia local e a contratação de “pessoal próprio”
13. Sobre a garantia de «quadros de pessoal próprio» das autarquias (artigo 243.º, n.º 1, da Constituição) como um dos elementos constitutivos da autonomia local da República Portuguesa já se pronunciou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 494/2015, do Plenário, cuja fundamentação se reproduz e acompanha (pontos 16 a 18, sublinhados aditados):
«16. A autonomia em matéria de pessoal é um dos “elementos” constitutivos da autonomia local consagrada na Constituição (Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Coimbra Editora, 2010, p. 750) e abrange o poder de as autarquias disporem de “quadros de pessoal próprio”, ou seja, distintos dos do Estado ou das Regiões (artigo 243.º, n.º 1, da Constituição).
A existência de mapas de pessoal próprio significa que os trabalhadores “das autarquias não são funcionários do Estado, mas delas mesmas; cada autarquia tem um corpo próprio de funcionários, independente do Estado e das demais autarquias. Por outro lado, as autarquias podem criar autonomamente, nos limites da lei, os seus quadros de pessoal necessário para a gestão das suas atividades, segundo o princípio da liberdade de escolha do sistema de organização” (Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, p. 750). Como se afirma no Preâmbulo da Carta Europeia de Autonomia Local, esta “supõe a existência de autarquias locais dotadas de órgãos de decisão constituídos democraticamente e beneficiando de uma ampla autonomia quanto às competências, às modalidades do seu exercício e aos meios necessários ao cumprimento da sua missão”. Estabelece o artigo 9.º, n.º 1, desta Carta que “as autarquias locais têm direito, no âmbito da política económica nacional, a recursos próprios adequados, dos quais podem dispor livremente no exercício das suas atribuições”. Nestes recursos incluem-se os recursos financeiros, mas também os recursos humanos necessários e adequados à “prossecução dos interesses próprios das populações”.
Aos trabalhadores em funções públicas das autarquias locais é aplicável o mesmo regime jurídico do dos trabalhadores do Estado, “com as adaptações necessárias, nos termos da lei” (artigo 243.º, n.º 2) “tanto no que respeita ao regime constitucional como no que se refere ao regime legal”. As “adaptações necessárias” salvaguardam, no entanto, “regimes próprios referentes à constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na administração local” e a “autonomia contratual” (Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., p. 750). Assim, “a equivalência de regimes jurídicos não obsta a que o legislador disponha de modo diverso para os trabalhadores da administração local. Não exclui a diferenciação de regimes laborais. Não por acaso, por isso, o n.º 2 alude às ‘necessárias adaptações’” (J. Miranda/ A. Fernanda Neves, anotação ao artigo 243.º, in Constituição Portuguesa Anotada, J. Miranda/ R. Medeiros (org.), t. III, Coimbra Editora, 2007, p. 508).
17. Como já se teve oportunidade de referir, a autonomia local, constitucionalmente garantida, visa “a prossecução de interesses próprios das populações respetivas” (artigo 235.º, n.º 2, da Constituição). É nesse contexto que a lei define as atribuições das autarquias (artigo 237.º, n.º 1), em domínios, áreas ou matérias determinadas, como o ordenamento do território, o ambiente, a cultura, a ação social, a proteção civil ou a educação (cfr. os artigos 7.º e 23.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais, aprovado em anexo à Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro). Paralelamente, a Constituição consagra dimensões ou elementos constitutivos da autonomia, decorrentes do princípio da autonomia local, que garantem que o desempenho pelas autarquias, como entes democráticos locais, das suas atribuições não se encontra indevidamente condicionado pelo Governo (a autonomia orçamental, regulamentar, ou de pessoal). A existência de órgãos das autarquias com legitimidade democrática direta – que são eleitos pela população local e perante esta responsáveis – seria incompatível com a sujeição da sua organização ou funcionamento a uma qualquer relação de hierarquia ou sujeição a tutela de mérito pela administração do Estado. Caso contrário, os titulares do poder local poderiam ser politicamente responsabilizados por opções que não foram por si livremente tomadas.
Encontrando-se a autonomia local, tal como consagrada na Constituição, funcionalmente ligada à prossecução dos interesses próprios das populações (artigo 235.º, n.º 2), também os elementos dessa autonomia, onde se insere a autonomia em matéria de pessoal, são instrumentais face às atribuições das autarquias e essenciais para a sua prossecução. Um desses elementos, a autonomia financeira das autarquias locais, já foi “pacificamente reconhecida como um pressuposto da autonomia local”, sem a qual “não há condições para uma efetiva autonomia”, pelo Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 631/99, n.º 5). Como se afirma no Acórdão n.º 398/2013, n.º 3, ainda quanto à proteção constitucional da autonomia financeira das autarquias locais:
“A consagração constitucional da autonomia local traduz (…) o reconhecimento da existência de um conjunto de interesses públicos próprios e específicos de populações locais, que justifica a atribuição aos habitantes dessas circunscrições territoriais do direito de decisão no que respeita à regulamentação e gestão, sob a sua responsabilidade e no interesse dessas populações, de uma parte importante dos assuntos públicos. Este reconhecimento tem pressuposta a ideia de que as autarquias locais têm de dispor de património e receitas próprias que permitam conferir operacionalidade e tornar praticável a prossecução do interesse público, concretamente, dos interesses específicos e próprios das respetivas populações. Assim, para que possam levar a cabo o conjunto de tarefas que estão incluídas nas suas atribuições e competências, é colocada à disposição das autarquias locais um conjunto de mecanismos legais e operacionais suscetíveis de as tornarem exequíveis, designadamente a possibilidade de disporem de património e receitas próprias, gozando, assim, de autonomia financeira.”
O mesmo raciocínio é aplicável à autonomia local em matéria de pessoal, constante no artigo 243.º da Constituição, e decorrente da consagração do princípio da autonomia local pelo artigo 6.º da Constituição.
18. A garantia institucional da autonomia local pressupõe, pois, que as autarquias disponham de recursos humanos próprios e que gozem de liberdade na sua gestão e organização dos seus serviços, tendo também consequências quanto ao regime legal aplicável. Efetivamente, a definição pelo legislador do regime aplicável aos trabalhadores em funções públicas das autarquias locais e a sua aplicação “têm um limite no princípio da autonomia das autarquias locais (artigos 6.º, 235.º e 237.º)”, de onde decorre “a salvaguarda da individualidade jurídica das autarquias como sujeitos empregadores, de que é expressão a referência, no n.º 1, a ‘quadros próprios’, e exclui o poder dispositivo do Governo sobre os respetivos trabalhadores ou a intervenção na gestão das respetivas relações de trabalho, sem prejuízo da verificação do cumprimento da lei em sede de tutela administrativa (artigo 242.º)” (J. Miranda/ A. Fernanda Neves, ob. cit., p. 508). Assim sendo, encontra-se abrangido pelo princípio da autonomia local, no que diz respeito ao elemento de autonomia em termos de pessoal, o poder das autarquias atuarem como empregadores públicos relativamente aos respetivos trabalhadores em funções públicas, inscritos em mapas de pessoal próprios, e de gerir o respetivo serviço, de forma autónoma, nos termos de um regime legal adaptado à sua situação (artigo 6.º, n.º 1, e no artigo 243.º, n.º 1 e 2, da Constituição).»
14. Encontra-se, assim, abrangido no âmbito da garantia constitucional de «quadros de pessoal próprio» das autarquias (artigo 243.º, n.º 1, da Constituição) o poder de gestão e planeamento dos recursos humanos afetos aos serviços autárquicos, nos termos da lei, aí se incluindo a abertura e condução de procedimentos concursais com vista à constituição de relações jurídicas de emprego público, nomeadamente destinados ao recrutamento de novos trabalhadores em funções públicas.
A afirmação de que estamos perante um dos elementos da autonomia não significa que se trate de uma área não regulável ou comprimível pelo legislador. Nesse contexto, como refere o Acórdão n.º 494/2015, do Plenário, ponto 20:
«Os elementos da autonomia (organizativa, financeira, regulamentar, ou de pessoal, por exemplo) encontram-se constitucionalmente garantidos enquanto tal (espaços de autonomia autárquica) e devem, como tal, ser respeitados. Não se aplica aqui, portanto, uma lógica de ‘condomínios de interesses’ locais e supra-locais, cujas articulações são modeláveis pelo legislador. Estando constitucionalmente consagrada uma determinada dimensão de autonomia das autarquias, como a sua autonomia em termos de pessoal, esta dificilmente acomodará uma solução de balanceamento ou ponderação de interesses através de mecanismos complexos de co-gestão ou co-decisão. O recurso a instrumentos deste género obrigaria as autarquias a co-gerir com a administração do Estado dimensões constitucionalmente consagradas da sua autonomia, o que implicaria o seu esvaziamento de facto.
Isto não significa que o princípio da autonomia local seja ilimitado e incomprimível. Os elementos da autonomia são objeto de regulação pelo legislador (artigo 237.º, n.º 1) que, nesse contexto, pode condicionar ou comprimir a esfera de atuação autónoma das autarquias, quando um interesse público de âmbito nacional o justificar e desde que respeite o núcleo incomprimível da autonomia.»
Assim, sendo certo que o legislador pode intervir nesta área, restringindo ou comprimindo a autonomia local, caberá ao Tribunal Constitucional controlar a existência de um interesse público de âmbito nacional ou supralocal que o justifique, a proporcionalidade dessa compressão e o respeito pela existência de uma autonomia local tal como constitucionalmente desenhada.
15. O facto de a Constituição consagrar as autarquias como empregadores autónomos, com “quadros de pessoal próprios”, significa que estas deverão ter a possibilidade de proceder à contratação de trabalhadores próprios, nos termos e com os limites legais e financeiros previamente impostos. Ora, tendo em conta o desenho da garantia de autonomia local neste âmbito, não pode sofrer contestação que constitui uma compressão deste elemento a imposição às autarquias locais da necessidade de prévia obtenção de parecer favorável dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela administração pública para abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações públicas de emprego público por tempo indeterminado, para carreira geral, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado.
Verificada a existência de uma compressão de um elemento da autonomia local, é necessário analisar se esta pode ser considerada constitucionalmente legítima. Tal acontece se considerarmos a compressão justificada por um interesse público supralocal relevante, no respeito pelo princípio da proporcionalidade.
Relativamente à norma objeto do presente processo, o legislador invocou expressamente, no texto legal, como interesse público justificador a estabilidade orçamental e a necessidade de cumprimento do PAEF (artigo 66.º, n.º 9, da Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2013). Aceita-se que estes objetivos, de índole nacional, podem justificar compressões à autonomia local, no quadro jurídico-constitucional, à luz dos princípios Estado unitário, da solidariedade e da leal cooperação entre entes administrativos da República Portuguesa.
16. No entanto, é necessário verificar igualmente se o princípio da proporcionalidade se encontra respeitado face ao grau de compressão do poder local que está envolvido.
É certo que a norma em causa era apta a alcançar os objetivos propostos constantes no artigo 66.º, n.º 9, da Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2013, pois restringia a abertura de concursos para a contratação de novos trabalhadores em funções públicas, o que significa um controlo do aumento das despesas públicas.
Já em termos de ponderação do nível de compressão da autonomia local, deve-se referir que a solução normativa tinha um carácter excecional (artigo 66.º, n.º 8) e transitório (porque constante de uma lei orçamental, necessariamente de vigência temporária).
Apesar disso, é de notar o grau intenso de interferência dos membros do Governo sobre a autonomia local decorrente da norma objeto de análise. Dependendo a abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações jurídicas de emprego público, no âmbito da administração autárquica, obrigatoriamente, da concordância dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública, a ausência dessa anuência acarreta necessariamente a impossibilidade da contratação dos trabalhadores em causa. A falta deste parecer levava à cominação da nulidade de todo o procedimento, fazendo incorrer os seus autores em responsabilidade civil, financeira e disciplinar, bem como a redução nas transferências do Orçamento do Estado para a autarquia em causa em montante idêntico ao assim gasto.
É também relevante que o conteúdo do parecer em causa não se encontra limitado a questões de legalidade, o que significa que a norma atribui ao Governo o poder de condicionar decisivamente a decisão autárquica formulando juízos de mérito, conveniência ou oportunidade relativamente à abertura do concurso. Ora, como se expõe no Acórdão n.º 494/2015, do Plenário, pontos 23-24:
«No domínio da gestão de pessoal – porque se trata de um elemento constitutivo da autonomia local – é dificilmente justificável a existência de mecanismos de codecisão ou ponderação administrativa de interesses, cabendo a sua regulação e eventual compressão ao legislador democrático, dentro dos limites constitucionais. As autarquias, ao atuarem neste contexto estão a exercer a sua autonomia constitucionalmente protegida – que não pode ficar dependente de autorização, confirmação ou outro tipo de controlo estatal do mérito da sua atuação. O propósito da consagração constitucional da existência de pessoal próprio, dotado de um regime legal adaptado à realidade autárquica, é precisamente a garantia do caráter autónomo da administração local, permitindo às autarquias não depender da hierarquia da administração central no seu relacionamento (singular ou coletivo) com os respetivos trabalhadores.
(…) a mera inexistência da faculdade dos membros do Governo de dar ordens ou emitir diretivas à entidade autárquica não basta para se considerar respeitada a garantia da autonomia local. Se a Constituição limita a tutela administrativa sobre as autarquias à ‘verificação do cumprimento da lei’, pode daí retirar-se uma conclusão mais abrangente: a rejeição constitucional de uma intervenção controladora do mérito da atuação autárquica no que respeita aos seus poderes de autonomia.»
17. A norma decorrente dos nos n.os 6 e 7 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, consagra um poder de intervenção governamental quanto à abertura de procedimentos concursais para a constituição de relações jurídicas de emprego público que está previsto no âmbito da administração direta e indireta do Estado – onde pode encontrar justificação nos poderes de direção e de superintendência que sobre estas o Governo exerce. No entanto, a norma objeto de fiscalização de constitucionalidade manda aplicar esse regime à administração autárquica, que tem garantias especiais de autonomia consagradas no texto da Lei Fundamental, nomeadamente em termos de ter «quadros de pessoal próprio», não respeitando o estatuto próprio do poder local previsto na Constituição.
Suscita-se aqui, neste âmbito, a problemática da tutela administrativa do Governo sobre as autarquias locais. Efetivamente, limitando a Constituição a tutela neste caso à «verificação do cumprimento da lei» (artigo 242.º, n.º 1), a considerar-se que estamos em presença de uma forma de tutela do mérito da atuação dos poderes locais, esta seria indubitavelmente inconstitucional.
Analisando o conteúdo e o alcance da solução normativa em presença, pode concluir-se que dela resulta o estabelecimento de uma relação tutelar (ou, pelo menos, para-tutelar), atribuindo ao Governo o poder de condicionar a prática de atos na gestão das autarquias. A lei atribui competência a membros do Governo para a emissão de um parecer necessário (e necessariamente favorável) para que as autarquias exerçam o seu poder de abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações jurídicas de emprego público. É um poder governamental de controlo prévio sobre a atuação do empregador público autárquico que não se limita a um mero controlo de legalidade – sendo, por isso, violadora da Constituição.
18. É importante ter em conta que existiam formas alternativas de a lei prosseguir os interesses públicos em causa, restringindo, condicionando ou limitando o poder dos empregadores públicos autárquicos de abertura e condução de procedimentos concursais de emprego público dentro dos limites da Constituição. Por exemplo, seria possível estabelecer um procedimento administrativo mais exigente, com o envolvimento do órgão deliberativo autárquico, ou impondo condicionalismos orçamentais ou financeiros, que garantam a sua compatibilidade com o objetivo da contenção da despesa pública. Nesse caso, terá o Governo legitimidade para, no exercício dos seus poderes de controlo, averiguar do cumprimento das restrições legais. A lei também pode impor deveres de reporte de informações detalhadas sobre o pessoal das autarquias à administração central. Estes são instrumentos admissíveis para o equilíbrio entre a prossecução dos interesses públicos supralocais e a autonomia local em termos de pessoal (artigo 6.º, n.º 1, e artigo 243.º, n.º 1 e 2, da Constituição).
Neste contexto, a Lei das Finanças Locais vigente à época (a Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, alterada pelas Leis n.ºs 22-A/2007, de 29 de junho, 67-A/2007, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 55-A/2010, de 31 de dezembro, 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 22/2012, de 30 de maio) previa, no seu artigo 4.º, n.º 7, que «com vista a assegurar a consolidação orçamental das contas públicas, em situações excecionais e transitórias, podem ser estabelecidos, por lei, limites à prática de atos que determinem a assunção de encargos financeiros com impacte nas contas públicas pelas autarquias locais, designadamente: a) O recrutamento de trabalhadores;». E o n.º 8 do mesmo preceito previa a possibilidade de se estabelecerem, «por lei, deveres de informação e reporte tendo em vista habilitar as autoridades nacionais com a informação agregada relativa, nomeadamente, à organização e gestão de órgãos e serviços das autarquias locais, ao recrutamento de trabalhadores e à celebração de contratos de aquisição de serviços pelos vários órgãos e serviços das autarquias locais».
É também a essa luz que deve ser lido o regime estabelecido no artigo 67.º, n.º 1, da Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2013, que impedia as autarquias em situação de desequilíbrio financeiro estrutural ou de rutura financeira ou equivalente violação das regras orçamentais proceder à abertura de «procedimentos concursais com vista à constituição de relações jurídicas de emprego público por tempo indeterminado, determinado ou determinável, para carreira geral ou especial e carreiras que ainda não tenham sido objeto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente constituída». O regime assim estabelecido, no entanto, era bastante próximo do consagrado para as restantes autarquias, prevendo, no artigo 67.º, n.º 3, a possibilidade de abertura de concurso após uma autorização excecional e fundamentada dos «membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração local (…) ao abrigo e nos termos do disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro», desde que verificado um conjunto de requisitos em tudo idênticos aos constantes no artigo 66.º, n.º 2, da mesma Lei. As contratações e as nomeações de trabalhadores efetuadas em violação deste regime eram, também neste caso consideradas nulas, fazendo incorrer os seus autores em responsabilidade civil, financeira e disciplinar (artigo 67.º, n.º 6).
Assim, apesar da existência de algumas especificidades e diferenças, o regime aplicável à abertura de concurso por parte das autarquias em situação de desequilíbrio financeiro estrutural ou de rutura financeira, em aspetos centrais – onde se justificaria um regime de controlo dos gastos públicos mais exigente –, é muito próximo da norma objeto do presente recurso, aplicável às restantes autarquias. O legislador não tomou em conta as situações diferenciadas das autarquias neste caso.
19. Resta-nos, pois, concluir que a norma objeto de fiscalização se traduz na atribuição de um poder absoluto de “veto” ou “bloqueio” ao Governo, que pode objetar ao procedimento, caso não concorde com o mérito das soluções preconizadas pelo empregador público local, o que se revela como uma forma constitucionalmente censurada de tutela.
Daqui decorre a inconstitucionalidade da norma que impunha às autarquias locais a necessidade de prévia obtenção de parecer favorável dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela administração pública para abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações públicas de emprego público por tempo indeterminado, para carreira geral, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado, decorrente da interpretação do n.º 2 do artigo 66.º da Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2013, na parte em que determinava a observância do disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, por violação do princípio da autonomia local, consagrado no artigo 6.º, n.º 1, da Constituição.
III. Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar inconstitucional a norma que impunha às autarquias locais a necessidade de prévia obtenção de parecer favorável dos membros do Governo responsáveis pelas finanças e pela administração pública para abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações públicas de emprego público por tempo indeterminado, para carreira geral, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado, decorrente da interpretação do n.º 2 do artigo 66.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, na parte em que determina a observância do disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 34/2010, de 2 de setembro, 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro, por violação do princípio da autonomia local, consagrado no artigo 6.º, n.º 1, da Constituição, e,
b) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Sem custas ex vi artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais.
Lisboa, 3 de dezembro de 2019 - Maria de Fátima Mata-Mouros - João Pedro Caupers - Claudio Monteiro - José Teles Pereira - Manuel da Costa Andrade