ACÓRDÃO Nº 578/2019
Processo n.º 175/19
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, provenientes do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., por sentença de 28 de dezembro de 2018, decidiu-se recusar a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 2.º, n.º 8, do Regime do Fundo de Garantia Salarial (“RFGS”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, bem como julgar procedente a ação instaurada pela ora recorrida contra o Fundo de Garantia Salarial (“FGS”), condenando-se este a «praticar o ato administrativo devido de deferir os pedidos de pagamento de créditos laborais apresentado pela Autora, até ao limite legalmente estabelecido».
2. Conforme decorre dos autos, por decisão de 16 de julho de 2015, proferida no âmbito do processo n.º 2394/14.1T8OAZ, que correu termos no Tribunal Judicial de Aveiro, foi declarada a insolvência da B., Lda., entidade patronal da ora recorrida.
Por decisão de 3 de março de 2017, proferida no âmbito do aludido processo, a recorrida viu reconhecido um crédito salarial, no valor de € 6.930,53 e, em 25 de Setembro de 2017, requereu junto do FGS o pagamento dos créditos salariais que detinha junto da sua ex-entidade patronal, no valor total de € 12.700,19, proveniente de retribuições, subsídio de férias, subsídios de natal, indemnização/compensação por cessação do contrato de trabalho – ocorrida em 1 de outubro de 2015 – e emergentes da violação do mesmo contrato.
Este pedido foi indeferido, em 9 de outubro de 2017, por despacho do Presidente do Conselho de Gestão do FGS com o seguinte fundamento: «O requerimento não foi apresentado no prazo de 1 ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, nos termos do n.º 8 do artigo 2.º do Dec.-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril».
A ora recorrida instaurou a presente ação administrativa especial contra o FGS, com vista a impugnar este despacho e a obter a condenação do Fundo no pagamento da totalidade das respeitantes a créditos laborais, a que entendia ter direito (uma vez que considera que o prazo de caducidade em causa «tem início a partir do momento em que a sentença relativa à verificação ulterior de créditos de 03/03/2017 […] transitou em julgado» – cf. fls. 3-4 e 9-10).
Por sentença de 28 de dezembro de 2018, a ação foi julgada procedente, tendo o tribunal recorrido decidido recusar a aplicação do disposto no n.º 8 do artigo 2.º do RFGS (cf. ponto 1, supra).
3. Notificado desta decisão, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), para apreciação da inconstitucionalidade da norma cuja aplicação foi recusada pela sentença recorrida «com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos princípios da igualdade, certeza e segurança jurídica».
4. Admitido o recurso e subido os autos, foi determinado prosseguimento do processo para alegações.
Apenas o Ministério Público apresentou alegações, que concluiu do seguinte modo:
«1 – A norma do artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão é inconstitucional, por violação dos artigos 2º, 13.º e 59º, nºs 1, alínea a), e 3, da Constituição.
2 – Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. A decisão recorrida recusou a aplicação da norma do artigo 2.º, n.º 8, do RFGS nos termos decididos pelo Acórdão n.º 328/18 (acessível, assim como os demais acórdãos adiante citados, a partir da hiperligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ), que transcreveu e a cujos fundamentos aderiu. Nesse aresto, retificado pelo Acórdão n.º 447/2018, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional, «a norma contida no artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão». Tal juízo de inconstitucionalidade veio a ser posteriormente reiterado nos Acórdãos n.ºs 583/2018 e 251/19, e nas Decisões Sumárias n.os 111/2019 e 114/2019 (estas últimas acessíveis a partir da hiperligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/ ).
No referido Acórdão n.º 328/18 pode ler-se o seguinte:
«2.4. Estabelece o artigo 59.º da CRP:
Artigo 59.º
(Direitos dos trabalhadores)
1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna;
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3. Os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei.
Reafirmando, neste específico domínio, o princípio da igualdade no corpo do n.º 1, a lei fundamental afirma, na alínea a), o direito à justa retribuição do trabalho, cujo destaque encontra evidente justificação. Nas palavras do Acórdão n.º 257/2008 (ponto 13):
“[…]
Na verdade, a retribuição da prestação laboral, quer na sua causa, quer na sua destinação típica, está intimamente ligada à pessoa do trabalhador. Ela é a contrapartida da disponibilização da sua energia laborativa, posta ao serviço da entidade patronal. Ela é também, por outro lado, o único ou principal meio de subsistência do trabalhador, que se encontra numa situação de dependência da retribuição auferida na execução do contrato para satisfazer as suas necessidades vivenciais.
É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam, para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais ativas.
É, na verdade, esta perspetiva valorativa que levou à consagração do direito à retribuição do trabalho entre os direitos dos trabalhadores enumerados no n.º 1, alínea a), do artigo 59.º da CRP, por forma a ‘garantir uma existência condigna’ – direito este já expressamente considerado pelo Tribunal Constitucional como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão n.º 379/91). Por outro lado, no n.º 3 do mesmo preceito estabelece-se que ‘os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei’.
Esta previsão constitucional de garantias especiais para créditos salariais seguramente que, não só justifica, como impõe, regimes consagradores da sua discriminação positiva, em relação aos demais créditos sobre os empregadores (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 777).
[…]
Como a norma [da alínea a) do n.º 1] expressamente acentua – nos seus próprios termos, tem-se em vista ‘garantir uma existência condigna’ –, o reconhecimento de tal direito exprime o valor básico da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), constituindo, no seu específico âmbito de proteção, um instrumento do preenchimento das condições materiais da realização deste valor. E o relevo nuclear do direito à (justa) remuneração do trabalho é atestado pela vinculação do legislador ao estabelecimento de garantias especiais para os salários (n.º 3 do artigo 59.º).
[…]”.
Por outro lado, “é pacífico na doutrina, e este Tribunal tem também afirmado, que o direito à retribuição é um direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (v., entre muitos, os Acórdãos n.ºs 620/2007 e 396/2011), que, de resto, o Estado tem o dever de proteger (cfr. artigo 59.º, n.º 2, da Constituição)” (Acórdão n.º 510/2016).
2.4.1. A proteção da retribuição inclui, nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição, a previsão de “garantias especiais”, cuja modelação cabe ao legislador, que, para o efeito, goza de “ampla liberdade” (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1166). Não obstante, a instituição do mecanismo do Fundo de Garantia Salarial (para além de – como vimos – consistir numa obrigação para o Estado Português decorrente do Direito da União) não pode deixar de ser vista como concretização de uma das garantias a que se refere aquele n.º 3 (nesse sentido, v. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 777).
Não é inócua a apontada ligação entre o mecanismo do FGS e a norma do n.º 3 do artigo 59.º da CRP. Tratando-se de uma das garantias ali previstas, ao escolher (apesar de, nessa escolha, se encontrar vinculado pelo Direito da União) instituir o FGS como uma das garantias especiais da retribuição, o legislador está vinculado à construção de um regime que lhe assegure um mínimo de efetividade, sem a qual resultaria esvaziada de sentido a norma constitucional, com respeito pela igualdade (artigos 13.º e 59.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, tratando-se de atribuir, no apontado contexto, um direito a uma prestação pecuniária, e de limitar no tempo a efetividade desse direito pelo não exercício, tal atribuição deve operar, na compaginação destas duas vertentes, segundo regras claras, certas e objetivas – exigência decorrente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
2.5. Tendo presentes as linhas essenciais do NRFGS – em particular a norma objeto do presente recurso (cfr. itens 2.1. e 2.2., supra) – verificam-se aporias que o afastam do padrão de efetividade e certeza acabado de traçar.
De acordo com o sentido das normas relevante para a presente decisão (cfr. item 2.2., supra), a declaração de insolvência faz nascer o direito ao acionamento do FGS. Sucede que a declaração judicial constitui um momento num processo judicial contraditório, de cujos termos o trabalhador tem (ou pode ter) unicamente o domínio do impulso processual inicial, sendo que, subsequentemente, o desenvolvimento do processo como que lhe “sai das mãos”, sendo muito limitada a respetiva capacidade de determinar no elemento tempo os ulteriores passos processuais até à efetiva declaração do devedor em estado de insolvência. De facto, basta pensar que, não sendo um dos casos excecionais de dispensa da audiência do devedor (artigo 12.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE), há lugar à citação deste, que poderá ser mais ou menos demorada, podendo ser apresentada oposição e realizada audiência de julgamento, gerando-se uma dilação assinalável entre o pedido de declaração da insolvência e essa mesma declaração – circunstâncias das quais o caso dos autos constitui, aliás, exemplo vivo, tendo a declaração de insolvência ocorrido cerca de seis meses e meio após ter sido requerida pelo primeiro Recorrente. Ou seja, pegando precisamente no exemplo que os autos ilustram, observamos que se consumiu mais de metade do prazo de acionamento do FGS em vicissitudes processuais que o trabalhador credor da insolvente não esteve em condições de dominar, sendo certo que a declaração de insolvência foi pedida decorridos que foram menos de seis meses do prazo de um ano previsto no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS.
Não estamos – deve sublinhar-se – perante a questão, sucessivamente apreciada pela jurisprudência europeia, de saber se o legislador pode fixar prazos mais ou menos alargados para o exercício do direito ao acionamento do FGS, sob pena de caducidade ou prescrição: ninguém aqui discute a existência de prazos nem o prazo em concreto estabelecido na norma referenciada na decisão.
O que está em causa é saber se, na contagem desse prazo, é possível incluir um período temporal (que, como vimos, pode ser assinalável) especificamente determinado e tendente à criação de um pressuposto essencial do direito ao acionamento do FGS (o período entre o pedido de declaração da insolvência e a sua efetiva declaração pelo tribunal competente), cujos termos escapam por completo ao controlo do trabalhador-credor, de tal forma que o mero decurso do tempo nessa fase processual provoque a extinção do direito. Assim se cria uma evidente antinomia: o trabalhador-credor de um empregador insolvente que queira ver tutelado o direito à prestação pelo FGS vê-se obrigado a pedir a declaração de insolvência e, a partir desse momento, as vicissitudes próprias do processo que fez nascer com essa finalidade, comprometem o exercício desse mesmo direito, sem que um comportamento alternativo lhe seja exigível – rectius, possa por ele ser adotado – no sentido de evitar essa preclusão.
Ao fazer nascer, ainda que potencialmente, na própria condição de realização de um direito a causa da sua extinção, à qual o respetivo titular se vê impossibilitado de obstar, o legislador deixa de conferir à retribuição – e ao “remédio” (talvez mais até ao paliativo) para a sua perda – a tutela que lhe era devida nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição. Sendo certo que o sistema do FGS “pressupõe um nexo entre a insolvência e os créditos salariais em dívida” (acórdão do TJUE de 28 de novembro de 2013, cfr. supra 2.3.2.3.), seria o próprio processo judicial com aptidão para estabelecer o referido nexo que constituiria causa da preclusão do direito.
Geram-se, por outro lado, diferenciações arbitrárias na concessão (na realização) daquele direito a distintos titulares, subordinado que fica este à duração maior ou menor da fase inicial dos processos de insolvência, em função de ter sido deduzida oposição, da duração das audiências de julgamento, das diferentes capacidades de resposta dos tribunais, etc. Tudo fatores alheios à vontade do trabalhador-credor e que, por isso mesmo, não suportam a afirmação de existência de algo semelhante a um “domínio do facto” por este, cujo efeito de condicionamento do respetivo direito não encontra justificação na tutela de qualquer outro valor que possamos considerar relevante no confronto com a necessidade de tutela da retribuição que se verifica no contexto apontado.
A este respeito, não releva, propriamente, de forma direta, a qualificação do prazo como de caducidade ou de prescrição – questão que, na ausência de uma opção legal expressa, se prefigura como de âmbito fundamentalmente doutrinário que, em todo o caso, nos aparece aqui ligada a uma opção interpretativa do direito infraconstitucional –, relevando antes a circunstância de, no contexto descrito, a contagem de tal prazo ocorrer sem qualquer suspensão ou interrupção, gerando um sinal – rectius, potenciando um efeito – de valor contrário ao próprio direito.
Note-se, todavia – sublinhando o sentido atuante que a qualificação jurídica do prazo aqui acabou por assumir –, que o Fundo, na fundamentação da respetiva posição de indeferimento da pretensão dos ora Recorridos (cfr. item 1.2.1. supra) – e sublinha-se, pois, que foi nesse quadro que a decisão recorrida, como não podia deixar de ser, se forjou –, qualificou expressamente o prazo em causa no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS como de caducidade, referindo-lhe expressamente a circunstância, que é própria do regime da caducidade nos termos do artigo 328.º do CC, de só comportar suspensão ou interrupção mediante previsão legal, no caso inexistente. E, de facto, é neste contexto que se afirma que, “[e]m matéria de contagem do prazo de caducidade[,] aplicam-se, em princípio, tal como na prescrição, as regras gerais, com uma importante diferença. Na caducidade vale muito mais plenamente o princípio segundo o qual o tempo se conta ininterruptamente”, já que, “[…] como resulta do artigo 328.º do CC, ‘o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe, senão nos casos em que a lei o determine’. Assim, se a lei, em cada caso concreto, não admitir, expressamente, a suspensão e a interrupção do prazo de caducidade (ou algum destes institutos), o prazo corre sempre sem intermitências de qualquer ordem” (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2007, p. 703). Ora, tendo sido a invocação, por parte do FGS, desta característica do regime da caducidade que conduziu à construção do indeferimento (por inexistir previsão legal a permitir a suspensão ou a interrupção do decurso do prazo), não poderia a decisão recorrida, ao sindicar esse indeferimento, deixar de pressupor essa interpretação e construir em função dela a questão de inconstitucionalidade que constituiu a respetiva ratio decidendi.
Porém, não é irrelevante a pouca clareza do regime legal, espelhada na norma em causa, considerada em si mesma ou sistematicamente inserida no diploma que a contém. O elemento de incerteza deste regime (evidenciado à saciedade, nestes autos, pelas posições assumidas na decisão recorrida, nas alegações e contra-alegações de recurso e no item 2.2., supra) compromete seriamente a efetividade da tutela que corresponde ao mecanismo do FGS, apresentando-se o complexo normativo do NRFGS, ao gerar estas interpretações díspares, com uma consistência pouco definida – para não dizer insuportavelmente ambígua –, cuja interpretação muito dificilmente assumirá um sentido minimamente claro, gerador de segurança nos destinatários beneficiários do seu âmbito de proteção. Isto ao ponto d[e] estes não disporem, consistentemente, da possibilidade de, agindo com normal diligência, anteverem com suficiente segurança o comportamento que devem adotar para formular atempadamente a sua pretensão junto do FGS, assim se comprometendo as exigências mínimas de certeza decorrentes do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
2.5.1. Aliás, em hipóteses como a dos presentes autos, pode mesmo dizer-se, tomando de empréstimo as palavras do acórdão do TJUE de 16 de julho de 2009, no caso Visciano (referido supra no item 2.3.2.1.), que a configuração do prazo pode tornar “[…] impossível na prática ou excessivamente difícil” o exercício do direito do trabalhador credor, além de que – como justamente se assinalou naquela decisão – “[…] uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica pode constituir uma violação do princípio da efetividade, uma vez que a reparação dos danos causados a particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um Estado‑Membro pode, na prática, ser extremamente dificultada se estes não puderem determinar o prazo de prescrição aplicável, com um razoável grau de certeza”.
2.6. As razões que antecedem são, pois, aptas a fundar um juízo de censura constitucional à norma sub judicio, confirmando a esse respeito a decisão recorrida. (…)»
6. A situação subjacente aos presentes autos não é inteiramente idêntica à que estava em causa no caso do Acórdão n.º 328/18 (cf. o ponto 2.1. da Fundamentação)
Com efeito, no circunstancialismo subjacente a este aresto, o contrato de trabalho dos aí autores havia cessado em 04/03/2014 e, posteriormente, em 26/08/2014, foi requerida a insolvência da entidade patronal, que veio a ser decretada em 17/03/2015. Em 05/11/2015 os mesmos autores reclamaram os seus créditos na insolvência e, no mesmo dia, requereram ao FGS o pagamento dos créditos emergentes dos contratos de trabalho que não haviam sido pagos. Este último requerimento foi indeferido em 26/05/2016 com fundamento no artigo 2.º n.º 8, do RFGS (em vigor desde 04/05/2015; cf. o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril; v., também, as normas transitórias dos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do mesmo diploma).
Atentos estes factos, o Tribunal Constitucional considerou que o que estava em causa, como pressuposto do problema de constitucionalidade submetido à sua apreciação, era saber se, na contagem do prazo previsto no artigo 2.º, n.º 8, do RFGS «é possível incluir um período temporal (…) especificamente determinado e tendente à criação de um pressuposto essencial do direito ao acionamento do FGS (o período entre o pedido de declaração da insolvência e a sua efetiva declaração pelo tribunal competente), cujos termos escapam por completo ao controlo do trabalhador-credor, de tal forma que o mero decurso do tempo nessa fase processual provoque a extinção do direito», por entender que assim se criava «uma evidente antinomia: o trabalhador-credor de um empregador insolvente que queira ver tutelado o direito à prestação pelo FGS vê-se obrigado a pedir a declaração de insolvência e, a partir desse momento, as vicissitudes próprias do processo que fez nascer com essa finalidade, comprometem o exercício desse mesmo direito, sem que um comportamento alternativo lhe seja exigível – rectius, possa por ele ser adotado – no sentido de evitar essa preclusão.».
7. No caso sub iudicio, a cessação do contrato de trabalho e a declaração de insolvência do antigo empregador ocorreram, respetivamente, em 01/10/2015 e em 16/07/2015 (cf. ponto 2, supra), portanto, já depois da entrada em vigor do RFGS.
Daí ser manifesto que o tribunal recorrido partiu implicitamente de um pressuposto diferente do considerado no Acórdão n.º 328/2018, a saber: o de que o direito ao acionamento do FGS depende não apenas da declaração de insolvência, como também do reconhecimento dos créditos reclamados pelo trabalhador-credor no âmbito da insolvência (e não apenas da reclamação de créditos deduzida na sequência da declaração de insolvência e em que o trabalhador não foi parte – cf. a alínea b) do artigo 5.º, n.º 2, do RFGS) constitui pressuposto da apresentação do pedido junto do FGS tendo em vista a satisfação dos créditos laborais especialmente garantidos (v. situações semelhantes à dos presentes autos, nos Acórdãos n.ºs 583/2018 e 251/2019).
Foi por essa razão que, aderindo aos fundamentos do Acórdão n.º 328/2018, o mesmo tribunal recusou a aplicação da norma do n.º 8 do artigo 2.º do RFGS, considerando que, também no caso vertente, «a Autora estava mesmo condicionada pelo andamento do processo de insolvência para poder exercer o direito de pedir o pagamento dos seus créditos pelo fundo».
Face àquele pressuposto – que o Tribunal Constitucional não pode sindicar –, verifica-se, na perspetiva do tribunal a quo, também uma situação em que as vicissitudes próprias do processo de insolvência condicionam a observância de requisitos «para o exercício do direito [ao pagamento dos créditos laborais reclamados] que não está na mão do seu titular fazer preencher, de tal maneira que não está garantido que o seu titular possa ter a oportunidade legal de exercer o direito dentro do prazo» (cf. pág. 17 da decisão recorrida).
Nessa medida – isto é, dado o entendimento do direito infraconstitucional feito pelo tribunal a quo –, o problema de constitucionalidade ora em análise coloca-se nos mesmos termos em que foi apreciado no Acórdão n.º 328/2018: uma situação em que vicissitudes próprias do processo de insolvência (nomeadamente, o reconhecimento de créditos laborais) que “escapam por completo ao controlo do trabalhador-credor” determinam a impossibilidade de exercício do direito à proteção dos créditos laborais no prazo de um ano que o RFGS estabelece para o exercício do direito à satisfação dos créditos laborais especialmente garantidos.
Assim, os fundamentos em que assentou a referida jurisprudência são transponíveis para a questão dos autos, não havendo razão para alterar o juízo de inconstitucionalidade então alcançado, que deverá ser aqui reiterado.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, com fundamento na alínea a) do n.º 1 e no n.º 3 do artigo 59.º da Constituição, o n.º 8 do artigo 2.º do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, reconhecidos no processo de insolvência, cominado naquele preceito legal, é um prazo de caducidade, insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão; e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 17 de outubro de 2019 - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Mariana Canotilho - Manuel da Costa Andrade