ACÓRDÃO Nº 394/2019
Processo n.º 471/2017
Plenário
Relator: Conselheiro João Pedro Caupers
(Conselheira Maria Clara Sottomayor)
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Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
A., nascida em 1 de dezembro de 1968, propôs no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, em 6 de maio de 2016, uma ação de investigação de paternidade contra B., pedindo que se declare que é filha do réu e se ordene o averbamento deste facto no seu registo de nascimento, omisso quanto à paternidade. Alegou, para tanto, no essencial, que a sua mãe trabalhou como criada de servir na casa da mãe do réu, nos anos de 1967 e 1968, tendo mantido com este, que aí residia, relações sexuais, com total exclusividade, nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu nascimento.
Reconhecendo que, à data da instauração da ação, já havia decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil (doravante citado como “CC”), aplicável ex vi do artigo 1873.º do mesmo código, a autora suscitou a questão da inconstitucionalidade daquela primeira norma, na parte em que precisamente prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação de investigação da paternidade, contado da maioridade ou emancipação do investigante. A seu ver, o estabelecimento desse prazo, ou de qualquer outro, constitui «uma restrição desproporcionada ao direito à identidade pessoal, ao direito à integridade moral e ao direito de constituir família», ocorrendo, por isso, violação das normas dos artigos 18.º, n.º 2, 26.º e 36.º, n.º 1, da Constituição.
O réu, citado para o efeito, não contestou.
Por decisão de 26 de setembro de 2016, logo proferida no despacho saneador, o Tribunal não julgou inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do CC, na parte sindicada, invocando para o efeito, designadamente, a jurisprudência do Acórdão n.º 401/2011 do Tribunal Constitucional, que assim decidiu. Em consequência, conheceu oficiosamente da exceção perentória de caducidade do direito de ação (artigo 333.º, n.º 1, do CC), que julgou verificada em 1 de dezembro de 1996, e absolveu o réu do pedido.
A autora, inconformada, recorreu da sentença para o Tribunal da Relação de Guimarães, invocando de novo a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 1817.º do CC. O réu, então recorrido, contra-alegou em sentido contrário, mas o tribunal de recurso, por Acórdão de 2 de fevereiro de 2017, deu razão à recorrente, julgando inconstitucional a referida norma legal, quando aplicada, como era o caso, às ações de investigação da paternidade. Entendeu o Tribunal da Relação, na síntese aí elaborada pelo relator, que «[o] estabelecimento do prazo de 10 anos para instaurar a acção de investigação da paternidade viola a exigência de proporcionalidade consagrada no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, e constitui, no estado actual do conhecimento científico, restrição injustificada do direito ao conhecimento das origens genéticas», com consagração nos artigos 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental. Em consequência, revogou a decisão absolutória da 1.ª instância, julgou improcedente a exceção de caducidade e ordenou o prosseguimento dos autos.
O Ministério Público recorreu desse acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (doravante citada como “LTC”), tendo a 2.ª secção deste Tribunal, a quem os autos foram distribuídos, decidido, por maioria, no Acórdão n.º 488/2018, julgar inconstitucional «a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa», negando, em consequência, provimento ao recurso.
O Ministério Público interpôs deste último acórdão novo recurso, agora para o Plenário do Tribunal Constitucional, nos termos do n.º 1 do artigo 79.º-D da LTC, invocando que a sua 2.ª secção, nessa decisão, julgou a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 1817.º, n.º 1, do CC, em sentido divergente do anteriormente adotado quanto à mesma norma, quer pelo Plenário do Tribunal, no Acórdão n.º 401/2011, quer pelas suas diferentes secções, nos acórdãos que, desde então, têm vindo a aplicar, sem desvios, o julgamento de não inconstitucionalidade aí firmado, sendo disso exemplo os Acórdãos n.ºs 529/2014, 626/2014, 151/2017 e 813/2017.
O recurso foi admitido, tendo o Ministério Público, notificado para o efeito, alegado, em conclusão, pelas razões constantes da «abundante, uniforme, mas não unânime» jurisprudência firmada no Acórdão n.º 401/2011 e nos acórdãos seguintes, que «a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, não viola as disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional».
A recorrida A. contra-alegou, concluindo, por seu lado, o seguinte:
«1.º Na acção de investigação de paternidade estamos perante interesses inalienáveis, de natureza pessoalíssima;
2.º O investigante está a defender o direito à sua verdade biológica e pretende ver esclarecida a sua posição social e jurídica, seja em relação ao agregado familiar em que se integra, seja ao meio social em que se insere;
3.º Assim, o estabelecimento de um prazo de caducidade que condiciona a instauração da acção traduz uma restrição desproporcionada ao direito à identidade pessoal (onde se inclui a identidade genética), ao direito à integridade pessoal, não dissociável do direito ao desenvolvimento da personalidade e do direito ao conhecimento das próprias raízes, e ao direito a constituir família e é inconstitucional».
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Conhecimento do recurso
A lei admite a interposição de recurso para este Plenário da decisão do Tribunal Constitucional que julgue a questão da inconstitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adotado, quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções (artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC).
O Acórdão n.º 488/2018, de que vem interposto o presente recurso, julgou inconstitucional «a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa».
Como alegado pelo Ministério Público, em fundamento do recurso, esta mesma questão de inconstitucionalidade foi anteriormente apreciada pelo Plenário do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 401/2011, que, diferentemente, não julgou inconstitucional «a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante» (no mesmo sentido, em aplicação desta jurisprudência, os Acórdãos n.ºs 445/2011, 446/2011, 476/2011, 545/2011, 77/2012, 106/2012, 231/2012, 247/2012, 515/2012, 166/2013, 750/2013, 373/2014, 383/2014, 529/2014, 547/2014, 704/2014, 302/2015, 594/2015, 626/2015, 424/2016, 151/2017 e 813/2017).
Verifica-se, pois, oposição de julgados, quanto à mesma norma, justificando-se, por isso, o conhecimento do recurso.
2. Mérito do recurso
2.1. A tese do acórdão recorrido
No entendimento do Acórdão n.º 488/2018, é «necessário ‘um novo olhar’ sobre a constitucionalidade da existência de um prazo de caducidade para as ações de investigação da paternidade, em face do crescente valor dos bens jurídicos pessoalíssimos sacrificados pela caducidade, e cuja necessidade de compressão cada vez menos se reconhece, quer na ordem jurídico-constitucional, quer na consciência coletiva», militando no mesmo sentido «a preocupação crescente com a verdade e a transparência nas relações familiares e nas relações entre o Estado e os cidadãos».
De acordo com o mesmo aresto, nem o legislador, nem o próprio Tribunal Constitucional se têm revelado indiferentes à intensificação desses sinais de mudança, como se confirma pelo disposto nos artigos 6.º, n.º 1, da Lei n.º 143/2015, de 8 de setembro, e 1990.º-A do CC, que, inovatoriamente, reconhecem às pessoas adotadas, com idade superior a 16 anos, o direito de solicitarem ao organismo da segurança social a identidade dos seus pais biológicos, e pelo Acórdão n.º 225/2018, que, no âmbito da apreciação da constitucionalidade da Lei da Procriação Medicamente Assistida declarou a inconstitucionalidade do princípio-regra do anonimato dos dadores de gâmetas, alterando, assim, a sua jurisprudência anterior no que respeita ao direito da pessoa concebida por procriação medicamente assistida conhecer as suas origens biológicas.
Nesse contexto, sustenta-se, há que proceder a «novas ponderações valorativas» acerca da proporcionalidade da restrição dos direitos fundamentais sacrificados pela norma do n.º 1 do artigo 1817.º do CC.
Em cumprimento desse propósito, a decisão recorrida reavalia, no atual contexto científico, cultural e económico-social – que, defende, não pode deixar de ter influência na apreciação jurídico-constitucional das normas legais vigentes -, o peso relativo dos direitos e interesses contrapostos que são sacrificados e protegidos pelos prazos de caducidade.
Por razões adiante melhor analisadas, a decisão conclui que o exercício do direito à identidade pessoal, na dimensão do direito ao conhecimento da paternidade biológica, e do direito a constituir família, consagrados, respetivamente, nos artigos 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da Constituição, são insuscetíveis de qualquer compressão temporal, revelando-se sempre desproporcional, à luz do disposto no artigo 18.º da mesma Lei Fundamental, o estabelecimento, nesse domínio, de prazos de caducidade, cujo decurso tem o grave efeito jurídico de extinguir esses mesmos direitos fundamentais.
A linha de argumentação desenvolvida em apoio dessa solução, dita de «imprescritibilidade» do direito de ação, assenta fundamentalmente na ideia de um maior merecimento jurídico-constitucional dos «direitos dos filhos» relativamente aos «direitos dos investigados»: «[a] natureza pessoalíssima dos direitos dos filhos, que decorrem da intimidade mais profunda do ser humano e da sua necessidade afetiva e social mais definidora da sua humanidade e personalidade faz com que, na operação de balanceamento entre posições contrapostas, os direitos dos filhos sejam, na hierarquia axiológica da Constituição, em que a dignidade da pessoa humana ocupa o topo (artigo 1.º da Constituição), de superior valia em relação aos direitos dos investigado», lê-se no acórdão ora em reapreciação.
E essa é também, no essencial, a perspetiva com que a doutrina invocada na decisão recorrida encara o problema, decorrendo de uma leitura transversal das posições que convergem na defesa da «abolição absoluta dos prazos de caducidade para o filho investigar [os] vínculos de filiação» a mesma ideia de prevalência dos direitos fundamentais assegurados pela ação de investigação da paternidade sobre os direitos e interesses tutelados com a consagração do respetivo prazo de caducidade.
Em recente artigo doutrinário, citado na decisão recorrida, Joaquim de Sousa Ribeiro, com a autoridade decorrente do facto de ter participado diretamente, na qualidade de juiz conselheiro deste Tribunal, na discussão que deu origem ao Acórdão n.º 401/2011, sublinha, em constância argumentativa, «a natureza e o grau de merecimento de tutela dos direitos do investigante, quando confrontados com os interesses contrários do investigado», o desnível existente entre o que encontramos do «lado do filho» e do «lado do investigado»: ali, «radicais subjectivos, bens constitutivos da zona mais nuclear do substrato da (…) personalidade própria [do filho]», constitucionalmente protegidos pelos «direitos (…) à plena identidade pessoal, a constituir família e ao desenvolvimento da personalidade (…), que exprimem imperativos axiológicos imediatamente decorrentes da dignidade da pessoa humana»; aqui, «os direitos à reserva da intimidade privada e ao desenvolvimento da personalidade», traduzindo-se o primeiro no «direito a não ver o seu comportamento passado, na esfera íntima do relacionamento sexual, revelado e exposto, com efeitos perturbadores para a sua vida atual, sobretudo em caso de constituição de um vínculo matrimonial e familiar», e o segundo no «direito em não se vincular, com eficácia jurídica, a uma paternidade biologicamente comprovável». E assertivamente resolve a «operação de balanceamento» assim equacionada em favor dos direitos do investigante, posto que «o investigado não é titular de direitos pessoais que, na sua expressão concreta, possam ser vistos como a contraface simetricamente homóloga, no mesmo plano valorativo, dos direitos do filho, em termos de justificarem a amputação que estes sofrem com a caducidade» (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 147.º, n.º 4009, março-abril, 2018).
Por isso – e este é também o ponto fundamental da argumentação do Acórdão recorrido – entende-se que o legislador não incorre em violação da «proibição de ingerência excessiva» na esfera jurídico-constitucional do investigado quando não estabelece prazos de caducidade; ao contrário, se o fizer, já viola a «proibição de insuficiência de tutela» dos direitos do filho, condenando este último, «contra vontade, a ter a sua identidade pessoal amputada de um elemento constitutivo e a ter definitivamente prejudicada a plena dignidade da sua auto-representação social».
Numa frase, o que o filho perde, em identidade e liberdade de ser, com o estabelecimento de prazos de caducidade, é desproporcionalmente mais valioso do que aquilo que o pretenso pai ganha em segurança e privacidade com tal compressão temporal, não havendo razão jurídico-constitucional válida que justifique tamanha perda e imponha tão diminuto ganho, mesmo considerando o interesse público da certeza e segurança jurídica que os prazos de caducidade visam em geral proteger.
Será assim?
2.2. O problema da constitucionalidade dos prazos de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade
2.2.1. Como se afirma na decisão recorrida, ninguém levanta dúvidas sobre a proteção constitucionalmente reconhecida à pretensão material que está subjacente à instauração de uma ação de investigação da paternidade. Por via desta ação – e só desta ação – o investigante fica a saber se a pessoa a quem atribui a sua paternidade é, efetivamente, seu pai biológico, e, sendo-o, vê constituído, com efeitos retroativos (artigo 1797.º, n.º 2, do CC), o vínculo jurídico da filiação relativamente a este último, passando, em consequência disso, a ser titular e sujeito passivo, respetivamente, do complexo de direitos e obrigações, de natureza pessoal e patrimonial, que integram o conteúdo dessa relação jurídica bilateral - relação jurídica que encontra a sua matriz normativa no princípio segundo o qual «pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência» (artigo 1874.º, n.º 1, do CC).
O Tribunal Constitucional, desde o primeiro momento em que foi chamado a apreciar o problema da conformidade constitucional de normas que estabelecem prazos de caducidade para as ações de investigações da paternidade, reconheceu que, através destas ações judiciais, se exerce um verdadeiro direito fundamental – o direito ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade biológica -, que se pode extrair «seja do direito à integridade pessoal, e em particular à integridade ‘moral’ (artigo 25.º, n.º 1), seja do direito à ‘identidade pessoal’» (Acórdão n.º 99/1988). E explicou porquê:
«De facto, a ‘paternidade’ representa uma ‘referência’ essencial da pessoa (de cada pessoa), enquanto suporte extrínseco da sua mesma ‘individualidade’ (quer ao nível biológico, e aí absolutamente infungível, quer ao nível social) e elemento ou condição determinante da própria capacidade de auto-identificação de cada um como ‘individuo’ (da própria ‘consciência’ que cada um tem de si); e, sendo assim, não se vê como possa deixar de pensar-se o direito a conhecer e ver reconhecido o pai (…) como uma das dimensões dos direitos constitucionais referidos, em especial do direito à identidade pessoal, ou uma das faculdades que nele vai implicada».
Nesse aresto discutia-se a inconstitucionalidade das normas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 1817.º do CC, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, que fixavam em seis meses e um ano, respetivamente, o prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade, em caso de existência de escrito no qual o pretenso pai declarasse inequivocamente a paternidade (n.º 3) e de tratamento do investigante como filho pelo pretenso pai (n.º 4).
O reconhecimento da natureza jusfundamental dos direitos que o autor, nas ações de investigação da paternidade, pretende ver tutelado, foi sucessivamente reiterado, com tal enquadramento constitucional, nos Acórdãos n.ºs 413/1989, 451/1989, 311/1995 e 506/1999, a respeito da norma do n.º 1 do artigo 1817.º do CC, que, nessa mesma redação, fixava em dois anos o prazo de caducidade para o exercício do direito de ação, fazendo coincidir o seu termo inicial, tal como ainda hoje sucede, com a data em que o investigante atinge a maioridade ou emancipação.
O juízo de não inconstitucionalidade que foi formulado em todos estes acórdãos não decorreu, pois, de uma qualquer desconsideração ou minimização valorativa, no plano constitucional, dos direitos do investigante, em relação aos direitos do investigado e ao interesse público da segurança jurídica.
O que sucedeu nessa fase inicial da jurisprudência constitucional e marcou toda a jurisprudência ulterior do Tribunal Constitucional sobre o tema é que se atendeu ao facto de estar em causa o exercício do direito de ação, o que, sem importar desvios substanciais na parametrização constitucional da norma sindicada, permitiu considerar, na avaliação do problema da constitucionalidade dos prazos de caducidade do direito de ação de investigação da paternidade, elementos de ponderação que essencialmente relevam da própria configuração jurídico-constitucional do direito de ação em geral (artigo 20.º da Constituição).
Nessa linha de abordagem, o citado Acórdão n.º 99/1988, invocando uma classificação estabelecida na doutrina, começou por distinguir, no seio das normas legais respeitantes a direitos fundamentais, as «normas restritivas» de direitos e as normas «condicionadoras» do respetivo exercício, sustentando que, enquanto as primeiras «encurtam ou estreitam o (…) conteúdo e alcance [do direito fundamental], as segundas «não visam aquele objectivo da redução das faculdades ou potencialidades integradoras do direito em causa», limitando-se, antes, a «definir pressupostos ou condições do seu exercício», muitas vezes essenciais à própria efetivação do direito, como era o caso do direito ao reconhecimento jurídico da paternidade biológica.
Na primeira categoria seria possível incluir a norma constante da versão originária do artigo 1860.º do CC, em que se previam diversas «causas de admissibilidade» da ação de investigação da paternidade «ilegítima»: «na ausência de uma daquelas “causas”, na verdade, ficava a priori precludida a faculdade de investigar a paternidade; podia, por isso, afirmar-se que se estava perante uma “restrição” a essa faculdade, isto é, perante um encurtamento ou estreitamento do próprio “conteúdo” do direito constitucional ao reconhecimento da paternidade», o que determinou a sua abolição na revisão do código, em 1977.
Na segunda categoria, as normas que estabelecem prazos de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade, como as do artigo 1817.º do CC, aí sindicadas, pois que nelas se «não [consignam] quaisquer condições ‘materiais’ e ‘permanentes’ da admissibilidade da acção de investigação (…), mas tão-só uma condição ‘temporal’ dessa admissibilidade (…), a qual de modo algum fecha ab initio a possibilidade da investigação e o correspondente reconhecimento do direito, e simplesmente contende, por consequência, com o ‘exercício’ deste último, obrigando a que o mesmo tenha lugar em certo tempo».
Adotando uma perspetiva substancial das coisas, defende o mesmo acórdão que, apesar da diferença acima destacada, tanto as normas restritivas do conteúdo dos direitos fundamentais como as normas condicionadoras do respetivo exercício, devem estar sujeitas ao mesmo padrão de controlo «material» ou «substantivo» de proporcionalidade imposto pelo artigo 18.º da Constituição. Aplicando-o ao caso, o Tribunal concluiu pela sua observância, considerando que o equilíbrio gizado pelas normas fiscalizadas entre o direito do filho e o conjunto de interesses assegurados pelos prazos de caducidade aí estabelecidos não era desproporcionado, «quer considerado o estabelecimento, em si, de prazos de caducidade, quer considerada a duração de tais prazos» (itálico acrescentado).
Interessa destacar nessa jurisprudência a defesa, ainda que implícita, do entendimento de que o direito de acesso aos tribunais não exclui o estabelecimento de prazos de caducidade, mesmo quando os direitos substantivos que se pretendam ver judicialmente garantidos assumam a natureza de direitos fundamentais, como se reconheceu ser o caso. Ponto é que, desde logo, se perfilem, face a eles, outros direitos e interesses igualmente merecedores de tutela constitucional, e que a proteção dada a estes últimos, por via dos prazos de caducidade, seja adequada e proporcional, como imposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, julgado aplicável.
2.2.2. A conclusão de que as diferentes normas do artigo 1817.º do CC observaram o padrão normativo consagrado nesse preceito constitucional, a que chegou o Acórdão n.º 99/1988, e as decisões que reiteraram essa jurisprudência, foi infirmada pelos Acórdãos n.ºs 456/2003, 486/2004 e 11/2005, tendo o primeiro julgado inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 1817.º do CC e os dois últimos a norma do n.º 1 do mesmo preceito legal. No seguimento desta jurisprudência, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 23/2006, veio declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade deste último preceito legal, na redação do Decreto-Lei n.º 496/77, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo código, na medida em que prevê para a caducidade do direito de investigar a paternidade um prazo de dois anos contado a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.
Apesar desta importante viragem, a verdade é que não foram controvertidos ou, sequer, questionados os pressupostos jurídicos de que o Tribunal Constitucional partiu, naquele primeiro conjunto de decisões, no que respeita à liberdade aí reconhecida ao legislador de regular no tempo o exercício do direito de ação de investigação da paternidade, dirigindo-se o controlo apenas à forma como essa liberdade foi exercida, em relação a determinados aspetos de regime, particularmente sensíveis, como a duração do prazo e o seu termo inicial.
Mesmo então, o certo é que não se deixou de afirmar que «o regime de imprescritibilidade [não é] a única alternativa pensável ao regime [aí consagrado]» (Acórdão n.º 486/2004), o que traz implícito o reconhecimento de que o legislador tem possibilidade de escolha na regulamentação temporal do exercício do direito de ação, mesmo quando estão em causa ações que visam especificamente tutelar os direitos fundamentais do autor ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico.
2.2.3. Em 2009, o legislador usou da margem de liberdade que lhe foi reconhecida – ou, pelo menos, não negada – pela jurisprudência constitucional, quando, na sequência da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 1 do artigo 1817.º do CC, alterou o regime aplicável às ações de investigação da paternidade, através da Lei n.º 14/2009, ampliando o prazo de caducidade de dois para dez anos e eliminando o esquema «cego» de contagem até então vigente, que desconsiderava a possibilidade efetiva da sua instauração, traços que, na leitura do Tribunal Constitucional, desprotegiam intoleravelmente o direito fundamental do autor (investigante) ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade biológica.
O Tribunal Constitucional, chamado a fiscalizar a constitucionalidade do novo regime legal, que se mantém inalterado até hoje, concluiu, no Acórdão n.º 401/2011, que o mínimo constitucionalmente exigido se mostrava satisfeito; mais do que isso era uma opção do legislador, a que este, porém, não estava obrigado.
Neste sentido, lê-se no citado acórdão:
«Apesar da inexistência de qualquer prazo de caducidade para as acções de investigação da paternidade, permitindo que alguém exerça numa fase tardia da sua vida um direito que anteriormente negligenciou, poder corresponder a um nível de protecção máximo do direito à identidade pessoal, isso não significa que essa tutela optimizada corresponda ao constitucionalmente exigido.
Como já vimos, o direito ao estabelecimento do vínculo da filiação não é um direito absoluto que não possa ser harmonizado com outros valores conflituantes, incumbindo ao legislador a escolha das formas de concretização do direito que, dentro das que se apresentem como respeitadoras da Constituição, se afigure mais adequada ao seu programa legislativo. Assim o impõe a margem de liberdade que a actividade do legislador democrático reclama. Caberá, assim, nessa margem de liberdade do legislador determinar se se pretende atingir esse maximalismo, protegendo em absoluto o referido direito, ou se se opta por conceder protecção simultânea a outros valores constitucionalmente relevantes, diminuindo proporcionalmente a protecção conferida aos direitos à identidade pessoal e da constituição da família.
Ao ter optado por proteger simultaneamente outros valores relevantes da vida jurídica através da consagração de prazos de caducidade, o legislador não desrespeitou, as fronteiras da suficiência da tutela, uma vez que essa limitação não impede o titular do direito de o exercer, impondo-lhe apenas o ónus de o exercer num determinado prazo.
É legítimo que o legislador estabeleça prazos para a propositura da respectiva acção de investigação da paternidade (…). Necessário é que esse prazo, pelas suas características, não impossibilite ou dificulte excessivamente o exercício maduro e ponderado do direito ao estabelecimento da paternidade biológica.
Por isso, o que incumbe ao Tribunal Constitucional verificar é se, na modelação desses prazos, o legislador ultrapassou a margem de conformação que lhe cabe».
Analisando em perspetiva a posição assim expressa, que claramente integra no âmbito da autonomia conformadora do legislador a fixação de limites temporais ao exercício do direito de ação de investigação da paternidade, verifica-se que o Tribunal Constitucional, nesse Acórdão n.º 401/2011, se limitou a aplicar uma jurisprudência que já vinha de trás.
Com efeito, o juízo de não inconstitucionalidade formulado nos Acórdãos n.ºs 99/1988, 413/1989, 451/1989, 311/1995 e 506/1999 e o juízo oposto de inconstitucionalidade formulado nos Acórdãos n.ºs 456/2003, 486/2004, 11/2005 e 23/2006 apenas constituíram o resultado divergente de avaliações feitas à luz do mesmo critério fundamental de apreciação que, volvidos alguns anos, veio a ser expressamente enunciado no Acórdão n.º 401/2011, em matéria de regulação temporal do exercício do direito de ação de investigação da paternidade - o da suficiência da proteção concedida pelo legislador ao direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade biológica, sendo que em nenhum deles se havia posto em causa, como sublinhado, o pressuposto de autonomia legislativa que dá sentido a esse tipo de controlo.
Também Gomes Canotilho e Vital Moreira acentuam, em anotação ao artigo 20.º da Constituição, que o problema constitucional suscitado pelos prazos legais de caducidade para o exercício do direito de ação não reside na possibilidade do seu estabelecimento, mas na intensidade restritiva dos seus efeitos. Na leitura que fazem da Constituição, «(…) o direito de acesso aos tribunais não exclui (…) o estabelecimento de prazos de caducidade, para levar as questões a tribunal (…)». Essencial é que «os prazos não sejam arbitrariamente curtos ou arbitrariamente desadequados, dificultando irrazoavelmente a acção judicial (…)» (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 409).
Aceita-se, pois, que o Estado, através do legislador, possa estabelecer prazos de caducidade para o exercício do direito de ação em geral, o que significa fixar limites (temporais) à tutela jurisdicional efetiva que, por força desse mesmo normativo constitucional, deve prestar aos «direitos e interesses legalmente protegidos» dos seus cidadãos, em que se incluem, na linha da frente, os direitos fundamentais. O que não pode é agir arbitrariamente, fixando prazos sem motivo constitucionalmente atendível ou de duração insuficiente, sob pena de deixar desprotegido o direito a que se reporta a providência de tutela jurisdicional constitucionalmente garantida.
Como decorre do balanço feito no Acórdão n.º 8/2012, também o Tribunal Constitucional tem entendido que «as normas de direito ordinário que estabelecem prazos para a interposição de ações em tribunal não infringem qualquer norma ou princípio constitucional, na medida em que apenas revelam escolhas legítimas do legislador quanto aos vários modos pelos quais podem ser prosseguidos os diferentes valores que a Constituição inscreve, em última análise, no seu artigo 20.º. (…)». De acordo com o mesmo aresto, a jurisprudência constitucional apenas tem aposto a essa liberdade um limite: «A harmonização entre as diferentes exigências constitucionais (…) deixa de ser côngrua sempre que se demonstrar que, ao fixar um certo prazo de caducidade de uma ação, o legislador ordinário ofendeu uma posição jurídica subjetiva constitucionalmente tutelada, diminuindo, de modo juridicamente censurável, as possibilidades de exercício de um direito que a CRP consagra».
2.3. A autonomia do legislador na conformação normativa do direito de ação e o controlo negativo de constitucionalidade
No pressuposto da autonomia do legislador na concreta conformação normativa do dever estadual de proteção jurisdicional dos direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional, quer nos acórdãos que especificamente se debruçaram sobre os prazos de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade (ponto 2.2.), quer nos acórdãos que se debruçaram sobre prazos de caducidade do direito de ação em geral (cfr., entre outros, Acórdãos n.ºs 299/1995, 70/2000, 247/2002, 8/2012 e 680/2015), sempre controlou a adequação e suficiência de tais prazos, o mesmo é dizer, apreciou se os prazos concretamente em causa não limitariam excessivamente a afirmação da pretensão substantiva por eles condicionada.
O Acórdão n.º 70/2000 esclareceu, de modo particularmente claro, a forma como esse controlo devia ser genericamente exercido:
«[O] que então interessa apurar é se esse prazo se mostra necessário e proporcionado. (…) [Se] o prazo de caducidade for inadequado ou desproporcionado, ‘em termos de dificultar gravemente o exercício concreto do direito’, estar-se-á ‘perante uma restrição ao direito de acesso aos tribunais, e não em face de um simples condicionamento ao exercício desse direito’. Pois bem: este Tribunal tem sublinhado que há que confiar na sabedoria do legislador, já que, no exercício da sua liberdade de conformação, normalmente, ele sabe encontrar as melhores soluções.
Por isso, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal só deve censurar as decisões legislativas manifestamente arbitrárias ou excessivas (…).
Apreciada a esta luz, a norma (…) só será, então, constitucionalmente ilegítima, se a fixação de um prazo de caducidade para a propositura da acção destinada ao reconhecimento de direitos (…) for, de todo, desnecessária, irrazoável ou excessiva, por não existirem razões que tal justifique. Ou, então, se esse prazo for de tal modo exíguo que inviabilize ou torne particularmente oneroso o exercício do direito» (itálico acrescentado).
Afigura-se ser de acolher, pelo menos em tese geral, a ideia solidamente reiterada na jurisprudência constitucional segundo a qual assiste ao legislador autonomia na concreta conformação normativa do exercício do direito de ação, mesmo quando está em causa a tutela jurisdicional de direitos fundamentais. E, naturalmente, são também de aceitar as consequências que decorrem dessa ideia fundamental para o tipo de controlo que o Tribunal Constitucional, enquanto órgão de fiscalização da constitucionalidade das opções normativas tomadas pelo legislador, está autorizado a exercer nesse domínio particular. Tal ideia tem, aliás, apoio na doutrina.
Refletindo sobre o dever geral de proteção dos direitos fundamentais que recai sobre o Estado contra ações ou omissões de terceiros, Reis Novais salienta precisamente a autonomia que assiste ao legislador na escolha da forma mais adequada de efetivar esse dever.
Na sua perspetiva, poderá deduzir-se da Constituição a existência de um dever geral de proteção (artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, in fine), dever que é «uma consequência primária de atribuição ao Estado do monopólio da utilização da força» e se traduz «numa obrigação abrangente de o Estado conformar a sua ordem jurídica de tal forma que nela e através dela os direitos fundamentais sejam garantidos e as liberdades neles sustentadas possam encontrar efectivação». Porém, «salvo casos em que essa obrigação esteja excepcionalmente determinada ou em que a omissão estatal se traduza numa lesão evidente dos direitos fundamentais, por violação da Untermaßverbot [proibição de proteção deficiente], a decisão última sobre o se, o quando e, sobretudo, o como da protecção do direito fundamental contra agressões de terceiros cabe na margem de decisão política do legislador (…)» - cfr. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 88-89. E justifica-se que assim seja.
Como é sabido, a Constituição, ignorando características de diferenciação que comprometam a sua própria ordem de valores, reconhece a todos os cidadãos os mesmos direitos fundamentais e impõe ao Estado a defesa transversal, por via legal, administrativa e jurisdicional, não apenas desses direitos, mas também dos interesses de toda uma comunidade. A concretização dessa insubstituível função garantística impõe uma difícil tarefa de harmonização normativa, que necessariamente reclama a tomada de opções complexas, que só o legislador democraticamente eleito está habilitado a tomar, ainda que no respeito pelo conjunto de princípios e normas consagrado na Constituição.
Ao poder constituinte cabe a definição proclamatória dos direitos e valores a que o poder constituído deve obediência; compete a este último a árdua incumbência de dar a todos eles efetividade no plano da vida, designadamente por via do direito de ação, que é a forma mais apropriada de defesa contra agressões alheias consentida num Estado de Direito.
Ora, ninguém, em consciência, pode contestar que o cumprimento desse dever de proteção, atenta a extensão e heterogeneidade dos bens constitucionalmente protegidos, a multiplicidade dos contextos situacionais em que os mesmos se revelam e a impossibilidade de dar a todos eles e ao mesmo tempo proteção absoluta, exige decisões integradas, conciliatórias e prospetivas.
É, pois, ao legislador que primariamente cabe, no cumprimento do mandato popular que lhe foi concedido, avaliar à luz do interesse público as implicações das suas escolhas e dimensionar, com respeito pela Constituição, a medida de tutela jurisdicional que deve conceder a cada um desses direitos e valores.
E é disso que precisamente se trata quando falamos do direito de ação e da forma como o legislador regula o respetivo exercício, estabelecendo-lhe condições e limites, designadamente de ordem temporal.
Através da ação (civil), o particular manifesta perante o Estado uma pretensão de tutela jurisdicional para uma determinada relação material de direito privado, que opõe autor e réu (Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1963, pp. 4-5). Todavia, os problemas respeitantes à concreta configuração legal do direito de intentar em juízo essa ação (direito de ação) dizem já respeito à relação que se estabelece entre o Estado, que tem o dever de proteger os direitos fundamentais, designadamente por meio dos tribunais, e os cidadãos, os quais, por sua vez, têm o direito a obter do Estado a tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos fundamentais – artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição.
O Acórdão n.º 299/1995, já acima referido, chamou precisamente a atenção para essa importante distinção de planos, ao salientar, na esteira do ensinamento de Manuel de Andrade aí transcrito, que «na acção se podem surpreender dois sentidos ou direcções: a acção em sentido material e a acção em sentido processual. À luz deste entendimento, o direito de acção que assegura a tutela dos direitos subjectivos não pode confundir-se com a essência substantiva destes mesmos direitos, porque representam direitos distintos, com sujeitos passivos também diversos».
Aplicando às ações de investigação da paternidade as conclusões que esse mesmo acórdão extraiu deste entendimento para o tipo de ação aí em discussão, pode dizer-se que, no plano do direito substantivo, a relação jurídico-material tem por sujeito passivo o pretenso pai; já no plano do direito processual de ação, a posição do sujeito passivo é ocupada pelo Estado, que está constitucionalmente obrigado a criar as condições necessárias à efetivação do direito do autor ao conhecimento e reconhecimento jurídico da sua paternidade.
Embora invocando o caráter pluridimensional do problema jurídico-constitucional subjacente ao dever estadual de proteção dos direitos fundamentais, no domínio das relações dos cidadãos entre si, assente numa «relação tripolar cidadão-Estado-terceiro», outro não é, no essencial, o entendimento de Reis Novais sobre a matéria. Aqui, sustenta o mesmo autor, o Estado vê-se forçado a considerar «diferentes interesses de liberdade e, eventualmente, a arbitrar um conflito de liberdades». O dever de proteção que sobre aquele recai, nesse domínio, «[é] susceptível de concretização numa multiplicidade de intervenções, dependendo de uma avaliação de ponderação e concordância prática e concreta entre valores e de juízos de prognose relativamente às medidas a tomar», para o que necessariamente lhe assiste, defende, uma margem de conformação maior do que aquela que detém quando prossegue o interesse público, atenta a forte resistência defensiva que o direito fundamental, neste diferente contexto dialético, oferece à realização daquele interesse (ob. cit. 92-93).
Ora, a decisão sobre a questão de saber se um determinado direito de ação pode ser exercido a todo o tempo ou, pelo contrário, deve estar sujeito a prazos de caducidade, é uma decisão essencialmente política, no sentido em que pressupõe complexas ponderações valorativas sobre o impacto que tal medida pode ter, em cada momento, sobre a relação dos cidadãos entre si e o funcionamento da sociedade em geral – se a ausência de prazos de caducidade inegavelmente serve valores de justiça, compromete, por certo, o valor da estabilidade e segurança das situações jurídicas. Como é sabido, a resolução desta equação básica está presente na generalidade das decisões que o legislador deve tomar, mas assume presença constante na conformação normativa do direito de ação, que estruturalmente visa a conciliação desses dois valores fundamentais da ordem jurídica.
E não se vê razão para afastar a legitimidade constitucional dessa ponderação política quando os direitos substantivos implicados na providência de tutela jurisdicional sob regulação assumem a natureza de direitos fundamentais.
A única referência da Constituição a respeito da tutela jurisdicional no tempo de direitos fundamentais consta do n.º 5 do seu artigo 20.º, que impõe ao legislador, em matéria de direitos, liberdades e garantias pessoais, a consagração de «procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade», de modo a conferir-lhes «tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos».
Embora expressa a respeito de um tipo específico de instrumentos processuais de tutela, capaz de impedir a consumação da lesão do direito, matéria cautelar que não está aqui em causa, a mensagem vinculativa a reter é a de uma proteção jurisdicional concedida a tempo de assegurar a efetiva satisfação dos bens jurídicos pessoais que o direito fundamental visa proteger; não a todo o tempo e independentemente do impacto negativo que a tutela do direito pode ter sobre outros direitos ou valores constitucionalmente protegidos.
Como sublinha o autor que vimos acompanhando, acerca da posição jurídico-constitucional dos cidadãos face ao dever estadual de proteção, «a única pretensão subjectiva geral (…) necessariamente existente é a de que a margem de conformação ou discricionariedade de que o Estado dispõe neste domínio seja correctamente exercida, no sentido de que as medidas tomadas pelos poderes públicos responsáveis pelo dever de protecção não sejam completamente inidóneas ou insuficientes».
Procurou-se demonstrar que é precisamente com esse sentido e alcance que o Tribunal Constitucional vem exercendo os seus poderes de fiscalização em relação aos prazos de caducidade fixados pelo legislador para o exercício do direito de ação em geral e para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade em particular.
Em relação a uns e outros, o Tribunal limitou-se a verificar se havia razões constitucionalmente atendíveis que justificavam o seu estabelecimento e se o prazo de caducidade concretamente estabelecido impedia ou tornava particularmente oneroso o exercício do direito a que se reportava a pretensão de tutela jurisdicional.
E, como se reconhece na decisão recorrida, essa tem sido também a perspetiva de análise que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem essencialmente adotado quando, face às distintas soluções adotadas nas ordens jurídicas dos diferentes Estados, se pronuncia sobre aquelas que consagram limitações temporais ao exercício do direito de investigação da paternidade com os princípios da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). Para esse Tribunal, como sublinha o Acórdão n.º 401/2011, «a existência de um prazo limite para a instauração duma acção de reconhecimento judicial da paternidade não é, por si só, violadora da Convenção, importando verificar se a natureza, duração e características desse prazo resultam num justo equilíbrio entre o interesse do investigante em ver esclarecido um aspecto importante da sua identidade pessoal, o interesse do investigado e da sua família mais próxima em serem protegidos de demandas respeitantes a factos da sua vida íntima ocorridos há já muito tempo, e o interesse público da estabilidade das relações jurídicas».
A generalidade das decisões que concluíram pela violação do artigo 8.º da CEDH, que proíbe ingerências arbitrárias dos Estados na esfera da vida privada e familiar dos cidadãos, foram ditadas pelo facto de as legislações nacionais aí apreciadas consagrarem prazos de ação judicial demasiado rígidos e inflexíveis, sem atender às circunstâncias do caso e à impossibilidade, prática ou jurídica, da sua observância. Considerou-se que, agindo desse modo, o Estado estava a violar a obrigação positiva, que também decorre daquele preceito, de assegurar aos seus cidadãos meios efetivos de obtenção do reconhecimento jurídico da paternidade biológica, dimensão integrante da vida privada e familiar destes últimos (cfr., entre outros, caso Phinikaridou v. Chipre, 20 de dezembro de 2007, caso Backlund v. Finlândia, 6 de julho de 2010, caso Grönmark v. Finlândia, 6 de julho de 2010, caso Laakso v. Finlândia, 15 janeiro 2013, e caso Röman v. Finlândia, 29 janeiro de 2013). Em contraponto, não se julgou incompatível com o direito à vida privada e familiar dos autores o estabelecimento de prazos que, sem incorrer nos apontados vícios de automatismo ou rigidez, são justificados pela necessidade de defesa do interesse público na (atempada) definição das relações jurídicas familiares e do próprio direito à vida privada e familiar dos putativos pais. No entendimento do TEDH, expresso na sua decisão de 3 de outubro de 2017, no caso Silva e Mondim Correia v. Portugal, é precisamente o que sucede com o prazo de caducidade previsto na norma ora em apreciação do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil português.
Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber se, estando em causa os direitos fundamentais à identidade pessoal, na dimensão do direito ao conhecimento da paternidade biológica, e à constituição de família, será de afastar a jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, e a própria jurisprudência do TEDH, pois que em relação a estes «direitos pessoalíssimos» o legislador não poderia, desde logo, fixar limites temporais ao exercício do respetivo direito de ação, por se tratar de matéria já ponderada e decidida pelo poder constituinte em sentido contrário.
A esta questão central dedicaremos os pontos seguintes.
2.4. Os direitos fundamentais à identidade pessoal e à constituição de família
2.4.1. Segundo o Acórdão n.º 488/2018, decorre das normas constitucionais consagradas nos artigos 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da Constituição, interpretadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), que «as ações de investigação da paternidade devem poder ser instauradas a todo o tempo, sendo constitucionalmente ilegítima qualquer limitação temporal para o exercício destes direitos».
Na sua perspetiva, a Constituição - que extrai do princípio da dignidade da pessoa humana a base de sustentação de todo o seu quadro de valores e direitos - não pode aceitar que o direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade biológica, essencial à dignidade do ser humano, se possa extinguir por efeito do decurso de um prazo de caducidade, seja ele qual for. Não há direito nem valor que o justifique, incluindo aqueles que a jurisprudência constitucional tem invocado para o efeito.
Toda a argumentação constitucionalmente relevante parte, assim, de uma ideia fundamental: a da prevalência, na valoração constitucional, dos «direitos do filho» - a saber quem é o seu pai e estabelecer com ele o correspondente vínculo jurídico de filiação - sobre os «direitos do pai» e demais interesses tutelados pelo estabelecimento de um prazo de caducidade.
Por esta ordem, far-se-á também a sua análise, impondo-se, contudo, preliminarmente, uma precisão, não só de ordem semântica.
Admitindo-se que o decurso de um prazo de caducidade possa inviabilizar, no limite, a constituição do vínculo jurídico de filiação entre duas pessoas que são, efetivamente, pai e filho (facto facilmente comprovável através de exames científicos), não é esta a única hipótese coberta pela regra da caducidade. Nela se inclui também a situação inversa, aquela em que a pessoa contra quem se pretende instaurar a ação de investigação da paternidade (o réu) não é o pai biológico do autor.
Relembre-se que a ação de investigação de paternidade, que tem por causa de pedir o facto biológico da procriação, visa, desde logo, apurar se aquele a quem se imputa a qualidade de pai o é efetivamente. A constituição do vínculo jurídico da filiação depende da demonstração em juízo desse facto (constitutivo) essencial – se provado, a ação procede; se não, a ação naufraga.
Na ponderação do legislador, ter-se-ão, pois, considerado, não apenas «os direitos do pai», mas também os direitos de quem pode não o ser, o que amplia, em correspondência, o âmbito dos interesses a ponderar na própria decisão da questão da inconstitucionalidade da solução legal de fixar limites temporais ao exercício do direito de ação de investigação da paternidade.
Por isso, o confronto que, para efeitos de análise, se deve estabelecer, é entre os «direitos do investigante» - que é aquele que imputa ao réu a sua paternidade biológica e, com este fundamento, pede o reconhecimento da constituição do correspondente vínculo jurídico de filiação - e os «direitos do investigado», que é aquele contra quem esse mesmo facto é imputado, com vista a obter tal reconhecimento jurídico.
2.4.2. Começando pela posição jurídico-constitucional do investigante, é ponto assente na jurisprudência constitucional, como vimos, que o direito ao conhecimento da paternidade biológica, assim como o direito ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, cabem no âmbito de proteção, quer do direito fundamental à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição), quer do direito fundamental a constituir família (artigo 36.º, n.º 1, da Constituição) – cfr., por todos, Acórdão n.º 401/2011 (ponto 6).
A identidade de cada pessoa é geneticamente determinada pelos seus progenitores e constrói-se, individualmente e em sociedade, tendo por referência central este vínculo biológico de origem, que é, na verdade, insubstituível. Por isso, nunca o Tribunal Constitucional pôs em causa a natureza jusfundamental do direito que assiste aos cidadãos de conhecer essa dimensão constituinte e individualizadora de si próprio, nem a importância desse direito fundamental «pessoalíssimo» no complexo quadro axiológico-normativo da Constituição.
A própria lei evidencia sinais claros de compreensão da intensidade de tutela constitucional conferida ao direito ao conhecimento da paternidade biológica, sendo claramente dirigidos à sua efetivação determinados aspetos do regime geral da ação de investigação da paternidade, a que pertence a norma do n.º 1 do artigo 1817.º, ora em fiscalização: a legitimidade exclusiva do filho para a intentar, reservando-se a este, ainda que representado pela mãe, quando menor, a decisão pessoalíssima que o exercício do direito potestativo em causa traduz [artigos 1869.º e 1870.º do CC; cfr., ainda, artigos 1864.º e 1866.º, alínea b), do mesmo código, que, com a mesma finalidade de tutela, conferem legitimidade ao Ministério Público para instaurar a ação de averiguação oficiosa da paternidade, no prazo de dois anos sobre a data do nascimento da criança]; a ausência de «pressupostos» ou «causas» de admissibilidade da investigação da paternidade, contrariamente ao que sucedia, como vimos, até à reforma de 1977 do CC (cfr. artigo 1860.º na sua versão original, e atual artigo 1817.º); o estabelecimento de um regime de prova da paternidade biológica baseado em presunções legais apenas ilidíveis se houver «sérias dúvidas» sobre a paternidade do investigado (artigo 1871.º, n.ºs 1 e 2, do CC); enfim, a própria possibilidade de prossecução e transmissão da ação de investigação da paternidade pelos descendentes do filho, se este falecer na pendência da causa ou no prazo legalmente previsto para a sua instauração (artigo 1818.º do CC, aplicável ex vi do artigo 1873.º do mesmo código), incluindo-se assim no âmbito de proteção legal, não apenas a identidade do filho, mas também a identidade daqueles que deste descendam em linha direta, sem limite de grau.
Não há, pois, qualquer dúvida de que, pelo menos até ao esgotamento de todos os prazos de caducidade previstos no artigo 1817.º do CC (a eles voltaremos mais adiante), a opção do legislador foi a de conceder ao direito ao conhecimento da identidade da paternidade biológica uma proteção jurisdicional praticamente absoluta.
2.5. As diferentes perspetivas constitucionais sobre os prazos de caducidade da ação de investigação da paternidade
2.5.1. Para quem entenda que o problema constitucional ora em análise se reconduz, em primeira linha, ao controlo da suficiência da proteção do direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, enquanto componente essencial dos direitos à identidade pessoal e a constituir família, o legislador democrático está habilitado a adotar soluções, que, em função da salvaguarda de outros interesses constitucionalmente relevantes, e desde que não ponham em causa a efetiva possibilidade de exercício pleno do direito fundamental a proteger, consagrem uma tutela deste último com intensidade diferenciada, não impondo a Constituição como única solução legítima aquela que maximize a sua proteção.
Deste ponto de vista – assumido pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão 410/2011, e em linha com a jurisprudência constante do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos –, sendo a ação de investigação de paternidade o meio processual preordenado à tutela do direito ao conhecimento do progenitor na ordem jurídica portuguesa, a previsão de prazos legais preclusivos para a respetiva propositura só implicaria uma restrição ilegítima de tal direito caso os mesmos fossem totalmente injustificados ou se, pela sua duração, criassem dificuldades excessivas ao exercício daquele.
Ora, mesmo no exercício de um escrutínio constitucional mais apertado (strict scrutiny ou controlo total) – justificado em razão da proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento estatuída no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição –, não é isso que se verifica relativamente ao regime legal que resultou das alterações introduzidas pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril. Os prazos em causa – e muito concretamente o previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil – não impedem que o interessado, dispondo de um tempo de reflexão razoável, possa esclarecer as suas dúvidas quanto ao pretenso pai e, se for o caso, ver judicialmente reconhecida a sua ascendência biológica e estabelecido o vínculo jurídico de filiação, com todos os efeitos legais, entre si e aquele a quem é imputável o facto biológico da geração. Simultaneamente, os mesmos prazos acautelam que o esclarecimento e definição de um vínculo tão importante dos pontos de vista social e jurídico como a filiação não fique indefinidamente dependente da exclusiva vontade de um único interessado, em especial numa altura em que já não é possível a ação oficiosa de investigação de paternidade (cfr. o artigo 1866.º, alínea b), do Código Civil); e salvaguardam, minimamente, os direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar de potenciais investigados e seus familiares. Em ambos os casos estão em causa interesses constitucionalmente relevantes, respetivamente, a definição do estatuto pessoal da pessoa em matéria de filiação e direitos fundamentais de terceiros.
Tal como referido no Acórdão n.º 401/2011, «o prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação [– correspondente à solução legal prevista no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril –] não funciona como um prazo cego, cujo decurso determine inexoravelmente a perda do direito ao estabelecimento da paternidade, mas sim como um marco terminal de um período durante o qual não opera qualquer prazo de caducidade. Verdadeiramente, e apesar da formulação do preceito onde está inserido, ele não é um autêntico prazo de caducidade, demarcando antes um período de tempo onde não permite que operem os verdadeiros prazos de caducidade consagrados nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo» (v. idem, ibidem; no sentido de que o prazo em causa não é considerado «rígido», v. o § 65 da decisão proferida no Caso Silva e Mondim c. Portugal, cit.). Com efeito, importa não confundir a preclusão da possibilidade de intentar uma ação tendente ao reconhecimento de certo direito, com base em determinada causa de pedir, com a extinção do próprio direito a reconhecer.
Assim, na perspetiva ora considerada, a questão da eventual inconstitucionalidade do prazo de dez anos previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil – mas, como resulta claro da presente decisão, o mesmo vale para todos os demais prazos referentes à propositura da ação de investigação de paternidade – tem de ser equacionada nos seguintes termos: é constitucionalmente legítimo exigir a alguém que, considerando dispor dos dados disponíveis para o efeito e pretendendo ver reconhecido o seu direito ao conhecimento do pai biológico e estabelecida a relação de filiação em relação ao mesmo, intente a pertinente ação de investigação de paternidade dentro de um dado período de tempo, sob pena de deixar de o poder fazer, salvo a ocorrência de novas circunstâncias justificativas, de natureza objetiva ou subjetiva?
Como mencionado, tudo depende da razoabilidade do prazo e da relevância constitucional dos interesses subjacentes à imposição de tal ónus. Em todo o caso, cumpre reiterar que uma tal solução afirma igualmente, a priori, e durante todo o período de tempo correspondente ao decurso do prazo em análise, a prevalência do interesse do investigante sobre todos os demais.
Sucede que esta prevalência não implica nem é sinónimo de caráter absoluto. O reconhecimento de que assim é constitui, aliás, pressuposto essencial da existência de um espaço de livre conformação do legislador democrático neste domínio reconhecido pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e, bem assim, pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 401/2011.
A dedução em juízo da pretensão de conhecer o respetivo progenitor projeta-se necessariamente noutras esferas de interesse, nomeadamente do Estado e de terceiros, pelo que não são de excluir formas de tentar acomodar os vários interesses em presença. Com efeito, está em causa uma atuação individual com profundo significado pessoal, mas também com implicações sociais e jurídicas. Por isso mesmo, a perspetiva do indivíduo titular do direito fundamental em causa, embora decisiva – porque determinante –, não é necessariamente exclusiva – no sentido de deve ser a única a tomar em consideração. Há espaço para, sem deixar de proteger o seu direito, exigir ao respetivo titular que no exercício do direito em causa não desconsidere totalmente outros interesses. Na verdade, o livre e pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo só é possível no âmbito de uma comunidade, pelo que em razão de tal circunstância lhe podem ser exigidos deveres e, por maioria de razão, ónus (cfr. o artigo 29.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, relevante, nos termos do artigo 16.º, n.º 2, da Constituição, para a interpretação e integração dos preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais).
Por outras palavras, a Constituição portuguesa – e o mesmo é reconhecido com referência ao direito à identidade pessoal no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (cfr. o § 53 da decisão proferida no Caso Silva e Mondim c. Portugal, cit.) – rejeita uma compreensão dos direitos fundamentais individuais centrada exclusivamente no indivíduo. Diferentemente, este, sem perda da sua autonomia, é perspetivado como membro de uma comunidade, cabendo ao legislador democrático, assegurar-lhe o exercício pleno dos seus direitos individuais, harmonizá-los com os direitos de terceiros resolvendo eventuais colisões de direitos e, para além disso, estabelecer limitações que podem decorrer da consideração de interesses comunitários e de interesses de terceiros. Como se refere no Acórdão n.º 101/2009, a Constituição «supõe a pessoa integrada na realidade efetiva das suas relações familiares e humano-sociais».
Deste modo, a prevalência de um direito sobre outro que com ele colida num dado momento, não implica que este último não possa ser considerado para efeitos de graduação do nível de proteção do primeiro ao longo do tempo.
A liberdade de conformação do legislador democrático foi, por isso, justamente salientada no Acórdão n.º 401/2011:
«[A] inexistência de qualquer prazo de caducidade para as ações de investigação da paternidade, permitindo que alguém exerça numa fase tardia da sua vida um direito que anteriormente negligenciou, [pode] corresponder a um nível de proteção máximo do direito à identidade pessoal, [mas] isso não significa que essa tutela otimizada corresponda ao constitucionalmente exigido.
[O] direito ao estabelecimento do vínculo da filiação não é um direito absoluto que não possa ser harmonizado com outros valores conflituantes, incumbindo ao legislador a escolha das formas de concretização do direito que, dentro das que se apresentem como respeitadoras da Constituição, se afigure mais adequada ao seu programa legislativo. Assim o impõe a margem de liberdade que a atividade do legislador democrático reclama. Caberá, assim, nessa margem de liberdade do legislador determinar se se pretende atingir esse maximalismo, protegendo em absoluto o referido direito, ou se se opta por conceder proteção simultânea a outros valores constitucionalmente relevantes, diminuindo proporcionalmente a proteção conferida aos direitos à identidade pessoal e da constituição da família.
Ao ter optado por proteger simultaneamente outros valores relevantes da vida jurídica através da consagração de prazos de caducidade, o legislador não desrespeitou, as fronteiras da suficiência da tutela, uma vez que essa limitação não impede o titular do direito de o exercer, impondo-lhe apenas o ónus de o exercer num determinado prazo». (n.º 7)
Sendo certo que a identidade pessoal e a constituição de família na vertente aqui considerada do estabelecimento do vínculo de filiação são elementos conformadores da autodefinição da pessoa e, nessa medida, do desenvolvimento da sua personalidade, que é necessariamente dinâmico, não é menos certo que tal significado conformador decresce muito acentuadamente com a maturidade e a experiência de vida. Daí a importância decisiva de qualquer um dos limites temporais legalmente estabelecidos para o exercício do direito ao conhecimento da progenitura por via da ação de investigação de paternidade só poder operar depois de o interessado, dispondo das informações por si consideradas suficientes para o efeito, já ter a maturidade e a experiência da vida necessárias a poder tomar neste domínio uma decisão devidamente refletida e ponderada.
Essa foi uma avaliação feita pelo legislador em vista de um fim legítimo que o Tribunal, sem prejuízo de reconhecer como não sendo a única possível, não está em condições de contrariar com fundamento em juízos de inadequação, desnecessidade ou desequilíbrio. Com efeito, uma vez assegurada a referida possibilidade de exercício pleno daquele direito, cabe ao legislador democrático decidir se, em face da inconveniência da indefinição do estatuto pessoal do investigante, dos custos que uma dilação excessiva da iniciativa processual importam para a segurança da prova e do risco de lesão dos direitos de terceiros que afinal nenhuma relação biológica têm com o investigante, deve ser atribuído a este último, adicionalmente, a opção de intentar a ação de investigação de paternidade a todo o tempo. De resto, num Estado de direito democrático, a avaliação das mudanças operadas na consciência coletiva quanto à valoração de certos bens em face de outros e, bem assim, relativamente à preocupação com a verdade e a transparência mencionadas no acórdão recorrido, e a decisão sobre as consequências normativas a retirar de tais mudanças cabem exclusivamente ao legislador democraticamente eleito, e não ao julgador incumbido apenas de fazer respeitar os valores fundamentais pré-definidos na Constituição para a sociedade destinatária de tais escolhas político-jurídicas.
2.5.2. Numa outra perspetiva – mas que conduz a idêntica conclusão no caso vertente –, cumprirá salientar que o direito ao conhecimento da paternidade biológica, sendo uma importantíssima faculdade incluída no direito fundamental à identidade pessoal, como o Tribunal Constitucional e o próprio legislador reconhecem, não o esgota.
A identidade que a Constituição tutela é, como referido, dinâmica e evolutiva (o Tribunal Constitucional também já o disse – ponto 6. do Acórdão n.º 401/2011 e ponto 7. do recente Acórdão n.º 89/2019), promove o processo de livre realização pessoal do ser humano e incorpora no seu seio de proteção as opções fundamentais que, nesse percurso individual único e irrepetível, vão deixando marca indelével na identidade de cada um.
Como se afirmou no referido Acórdão n.º 89/2019, «o direito à identidade pessoal acompanha o que o seu titular, no exercício do direito ao livre desenvolvimento da personalidade – um e outro constitucionalmente consagrados (artigo 26.º, n.º 1) – vai progressivamente acrescentando à pessoa que é, ampliando-se o objeto de proteção em função das escolhas individuais livremente feitas por cada cidadão ao longo da sua vida, designadamente no plano pessoal e familiar».
Nesta perspetiva dinâmica da identidade pessoal, que é a adotada pela Constituição, não pode deixar de se reconhecer que o direito ao conhecimento da paternidade biológica, enquanto instrumento de definição e construção da identidade, vai assumindo ao longo da vida do filho diferentes configurações normativas, que acompanham e refletem os seus diferentes estádios de desenvolvimento e toda a sua progressão individual e social.
O ser humano, até por força da sua propulsão reintegrativa, busca no presente e, sobretudo, no futuro, as compensações necessárias ao seu reequilíbrio, face a perdas e insuficiências que possam ter marcado o seu passado desde o nascimento. Por isso e para isso, reforça os laços de parentesco que tem e conhece, forma novos e variados laços familiares, que se multiplicam, constrói e sedimenta relações de amizade, escolhe e exerce uma profissão, insere-se numa comunidade social e política, retirando do enorme leque de relações humanas que no seu percurso estabelece e mantém o caudal de afeto, força e esperança indispensável ao seu próprio desenvolvimento e ao daqueles que de si dependem. Tudo isso passa a fazer parte da identidade pessoal do filho, mesmo daquele que desconhece a identidade do pai biológico, e a ocupar, em medida considerável, o espaço da tutela constitucional que lhe é reconhecida pelo n.º 1 do artigo 26.º da Lei Fundamental.
O tempo – melhor, a inelutável passagem deste – é, pois, um facto que a ordem jurídica no seu todo, desde a Constituição à lei, não pode ignorar, mesmo no domínio constitucionalmente sensível do conhecimento das origens genéticas do ser humano, sendo certo que entre o nascimento e a morte deste ocorrem evoluções muitíssimo relevantes do ponto de vista do desenvolvimento da personalidade e da construção da identidade pessoal – pressupostos, de resto, e tutelados pela própria Lei Fundamental –, que não podem deixar de implicar o redimensionamento desse bem jurídico ao longo do tempo, na perspetiva do titular do direito fundamental que o protege. Vejamos, sucintamente, em que termos a Constituição o faz.
Os artigos 69.º e 70.º da Constituição destacam duas etapas ou fases fundamentais do processo de desenvolvimento humano, a da «infância» e a da «juventude», a que dedicam, respetivamente, regimes especiais de proteção. Nos termos do primeiro dos citados preceitos constitucionais, «as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral» (n.º 1), devendo o Estado, por força do segundo, adotar uma «política de juventude» que tenha como objetivos prioritários, designadamente, «o desenvolvimento da personalidade dos jovens» e «a criação de condições para a sua efectiva integração na vida activa» (n.º 2).
Ao consagrar tais diretrizes normativas, o que a Constituição pretende assegurar é que o processo de autonomização dos cidadãos se faça, em relação ao seu agregado familiar de origem, de forma gradual e sustentada, acautelando-se a montante o desenvolvimento são e equilibrado da personalidade das crianças e dos jovens.
Na conceção constitucional – e, convenhamos, na perceção intuitiva de todos nós –, a infância e a juventude são, pois, etapas fundamentais na estruturação e desenvolvimento da personalidade do indivíduo, que merecem, por isso, especial proteção da família e do Estado.
É, pois, também nesta fase da vida que o direito fundamental ao conhecimento da paternidade biológica assume, no sistema constitucional, especial força vinculativa, reconhecendo a Constituição, como reconhece, a importância que a presença dos pais e a interação com estes assume na estruturação e formação da personalidade do ser humano, enquanto indivíduo e membro de uma sociedade de homens e mulheres livres (artigo 68.º).
Pode antecipar-se que as coisas não se passam de modo essencialmente diferente no que respeita ao direito a constituir família.
Como se afirma no Acórdão n.º 401/2011, o direito fundamental a constituir família consagrado no n.º 1 do artigo 36.º da Constituição, não pode deixar de implicar para o Estado a obrigação de disponibilizar meios jurídicos que permitam a constituição do vínculo jurídico da filiação entre pais e filhos biológicos (ponto 6.).
O tratamento que a Lei Fundamental dá ao vínculo jurídico da filiação, uma vez constituído, mostra que a preocupação fundamental do poder constituinte subjacente à consagração dessa obrigação do Estado se projeta, mais uma vez, nas etapas iniciais do desenvolvimento da pessoa humana: o artigo 36.º determina que «os pais têm o direito e o dever de educação dos filhos» (n.º 5) e que «os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial» (n.º 6); o n.º 1 do artigo 67.º impõe ao Estado, no âmbito da proteção da família, o dever de «cooperar com os pais na educação dos filhos» [alínea c)]; o artigo 68.º reconhece a «insubstituível acção [dos pais] em relação aos filhos» e, mais uma vez, destaca o papel fundamental dos pais na educação dos filhos (n.º 1); finalmente, o artigo 69.º impõe ao Estado que assegure «especial protecção às crianças (…) por qualquer modo privadas de um ambiente familiar normal» (n.º 2).
Em concordância valorativa, o Código Civil, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 496/77, dedica praticamente todo o capítulo respeitante aos «efeitos da filiação» às «responsabilidades parentais» (cfr. artigos 1874.º e seguintes), que se traduzem no poder/dever dos pais de, «no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens» (artigo 1878.º, n.º 1) − obrigações jurídicas que, por funcionais, se vão gradualmente esbatendo com a passagem do tempo e a progressiva satisfação do bem jurídico que tutelam − o da estruturação equilibrada da personalidade de quem, como é próprio da natureza humana, progride em direção à autonomia.
A família que a Constituição pretende ver juridicamente reconhecida e protegida pelo legislador é, pois, aquela que, baseada ou não em laços de sangue, constituída ou não pelo casamento, proporcione aos seus membros e, em especial, aos mais frágeis dentre estes, como as crianças e os jovens, o auxílio e a assistência necessários ao seu desenvolvimento futuro.
Considerando o conceito aberto e funcional de família que a Constituição acolhe, patente nas normas constitucionais acima destacadas, parece claro que, a haver alguma obrigação constitucional sobre o exercício no tempo do direito de ação de investigação da paternidade, que é precisamente um meio de constituição de vínculos jurídicos familiares, ela vai no sentido de impor ao Estado o dever de assegurar a possibilidade da sua instauração nas fases da vida que mais reclamam a definição da relação jurídica de filiação.
Contrariamente ao que se sustenta na decisão recorrida, não decorre, pois, das normas constantes dos artigos 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da Constituição, que «as acções de investigação da paternidade devem poder ser instauradas a todo o tempo», mas apenas que o devem ser a tempo de garantir a tutela efetiva dos bens jurídicos pessoais (saúde, segurança, educação) que os direitos fundamentais ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade biológica visam fundamentalmente proteger. A Constituição estabelece, pois, nesta matéria, um limite mínimo de proteção jurisdicional que temporalmente coincide com as primeiras fases de vida do titular do direito, a da infância e juventude, não havendo sinais normativos que possam ser interpretados como denotando uma intencionalidade vinculativa de extensão ou maximização dessa proteção para toda a vida.
A comprovação de que assim é não resolve, contudo, o problema em análise.
Para efeitos de controlo da constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 1817.º do CC, não basta o reconhecimento de que a Constituição não proíbe, mesmo no domínio do direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade biológica, o estabelecimento de prazos de caducidade para o exercício do direito de ação.
Como decorre da leitura que o Tribunal Constitucional durantes décadas tem feito das normas constitucionais pertinentes, também aqui, sobretudo aqui, não pode o legislador agir arbitrariamente. Impõe-se, por isso, determinar a razão de ser e a finalidade do prazo de caducidade. A esta análise dedicaremos o ponto seguinte.
2.6. Razão de ser e finalidade do prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade; relevância constitucional
2.6.1. O decurso do prazo de caducidade para o exercício do direito de ação da investigação da paternidade implica o fim da tutela jurisdicional efetiva que a Constituição garante ao direito fundamental ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico. Isto significa que, persistindo o litígio substancial, o titular desses direitos não mais poderá saber se a pessoa a quem imputa a sua paternidade é efetivamente seu pai biológico e, em caso afirmativo, exercer em relação a ela os direitos (e obrigações) que integram o conteúdo próprio da relação jurídica de filiação.
Não havendo razões constitucionalmente aceitáveis que justifiquem o estabelecimento de prazos de caducidade, numa matéria que reconhecidamente interfere com zonas centrais de definição e realização da pessoa enquanto tal, parece claro que o legislador não poderá tomar essa opção.
Na tese do Acórdão recorrido, é o que acontece com o prazo de caducidade previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do CC, que não tem a sustentá-lo nenhuma razão com força constitucional suficiente para justificar tão graves efeitos preclusivos.
A seu ver, nenhum dos «argumentos» invocados pelo Acórdão n.º 401/2011 para justificar o estabelecimento desse prazo é constitucionalmente atendível: não o é o argumento que se prende com a necessidade de impedir a instrumentalização da ação de investigação da paternidade para a realização de um «objectivo egoístico e patrimonial do investigante, que apenas procura obter os efeitos sucessórios decorrentes da qualidade de herdeiro legitimário»; não o é o argumento da defesa da «segurança jurídica do investigado e dos seus herdeiros»; não o é o argumento que evoca a existência de um «pretenso ónus de diligência» do investigante e nem sequer aquele que defende «[os] direito[s] à privacidade e à paz familiar» do investigado. Vejamos se é de aceitar um tal entendimento.
A reavaliação do problema da inconstitucionalidade do prazo de caducidade para o exercício do específico direito de ação em análise, na perspetiva da sua justificação constitucional, não pode deixar de começar pela determinação da razão de ser e finalidade última da caducidade, que é uma das principais manifestações da repercussão do tempo nas relações jurídicas.
Com efeito, a caducidade, em sentido estrito, «exprime a cessação de situações jurídicas pelo decurso de um prazo a que estejam sujeitas», fazendo incidir contra elas a passagem do tempo (António Menezes Cordeiro, «Da caducidade no direito português», in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Coimbra, Almedina, 2007, p. 9). Reportando-se predominantemente a direitos de natureza potestativa, que têm por contraponto passivo, não uma «obrigação», mas um «estado de sujeição», ela tem a importante função de impelir as pessoas contra quem pode atuar de exercer esse tipo de direitos, «de modo a que eles não subsistam, pendentes, na ordem jurídica, com as sequelas da indefinição e incerteza» (ob. cit., p. 30).
Assumindo ou não um alcance punitivo ou responsabilizador, a função essencial da caducidade é, pois, a de garantir que a situação jurídica se defina dentro do prazo estabelecido. Aqui, o tempo assume relevância num momento em que os direitos ainda se não constituíram na esfera jurídica do titular do direito potestativo (que os pode vir a adquirir se quiser, reunidos que estejam os pressupostos de facto e de direito legalmente previstos para o efeito). Deste modo, a caducidade age sobre relações jurídicas que, podendo ou não vir a converter-se em relações obrigacionais, ainda não estão como tal definidas na ordem jurídica; não sobre relações que, como estas últimas, têm já um conteúdo jurídico estabelecido.
Como nota Menezes Cordeiro, desde o início do século XX que a doutrina se foi apercebendo da diferença que existia entre «a prescrição e a existência de prazos para o exercício de certas posições». Neste enquadramento, dá-se conta da forma expressiva como Guilherme Moreira, já em 1907, havia isolado do conceito de prescrição aquilo a que o próprio chamava «termo prefixado para o exercício de direitos». Explicava este autor que, «ao contrário da prescrição, o [termo prefixado para o exercício de direitos] não atinge os direitos subjectivos mas, apenas, os ‘poderes’ de os constituir, isto é, os direitos potestativos», domínio onde o factor tempo seria um «elemento essencial», o que explicaria o caráter «mais enérgico» do regime do «termo prefixado», quando comparado com o regime da prescrição (ob. cit., p. 16).
Sendo ainda hoje aceitável esse critério de distinção, como sustentado, é possível encontrar no atual regime da caducidade traços distintivos que efetivamente demonstram a especial força normativa que o tempo assume neste domínio. A título de exemplo, a lei admite que ocorra caducidade de direitos em matéria indisponível, ainda que só nos casos expressamente previstos (cfr. artigos 298.º, n.º 2, e 330.º, n.º 1, do CC), contrariamente ao que sucede com a prescrição, que apenas se aplica, como regra geral, aos direitos disponíveis, inclusive aos direitos da herança (cfr. artigo 298.º, n.ºs 1 e 3, 309.º e 322.º do CC); a caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes (artigo 333.º, n.º 1), contrariamente ao que sucede com a prescrição, que, não sendo aplicável a direitos indisponíveis, é suscetível de renúncia (artigo 302.º, n.º 1, do CC) e necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (artigo 303.º do CC); o prazo de caducidade também não se suspende nem interrompe (artigo 328.º), diferentemente do que acontece com o prazo de prescrição (artigos 318.º, 323.º e 325.º do CC).
Afigura-se que é essa mesma preocupação fundamental de oportuna definição de situações jurídicas pendentes de clarificação que justifica o estabelecimento do prazo de caducidade previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do CC e do regime especialmente «enérgico», acima descrito, a que este mesmo prazo está sujeito.
Ao consagrá-lo numa área tão sensível como essa, o legislador pretende que a relação jurídica de filiação se constitua o mais precocemente possível porque não é bom para as crianças e jovens, nem para a sociedade em geral, que a pessoa que tem a obrigação natural de lhes dar a proteção e o apoio necessários ao seu são desenvolvimento não seja oportunamente identificada e responsabilizada. Depois disso, ela já não terá a virtualidade de fazer retroagir no plano da vida os efeitos estruturantes e estabilizadores que a ordem jurídica lhe associa, sendo, pelo contrário, fonte de conflitos essencialmente patrimoniais, que precisamente decorrem da ausência do substrato afetivo que só o tempo e a entreajuda diária conferem às relações familiares, independentemente da existência ou não de laços de sangue.
Bem vistas as coisas, algumas das explicações que a jurisprudência constitucional tem, até hoje, dado a essa opção normativa - como a de evitar a instrumentalização do direito de ação para fins exclusivamente patrimoniais -, reconduzem-se a essa ideia matricial.
Não pode deixar de se reconhecer que a possibilidade de instauração a todo o tempo da ação de investigação da paternidade, inclusive após o falecimento do pretenso pai, afasta o meio judicial de tutela do seu objetivo principal, que é o de assegurar a constituição de laços familiares que efetivamente cumpram a sua função de proteção e apoio, apoio que, sendo também de ordem patrimonial, é, sobretudo, de ordem educacional e afetiva. Alguns dos autores que defendem a ausência de prazos de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação de paternidade reconhecem-no e, por isso, alvitram soluções, seja pela via do abuso de direito, seja pela via da cisão do estatuto pessoal e patrimonial do filho, que impeçam a descaraterização ou “patrimonialização” de uma relação jurídica que deve ser muito mais do que o exercício unilateral de direitos patrimoniais, designadamente de ordem sucessória (cfr. ponto 9., parágrafo primeiro, da decisão recorrida).
A norma do n.º 1 do artigo 1817.º do CC, estimulando o exercício do direito de ação no prazo de caducidade aí estabelecido, viabiliza a constituição da relação jurídica de filiação a tempo de assegurar ao filho, que então terá no máximo 28 anos de idade, a efetiva satisfação dos bens jurídicos pessoais tutelados pelos direitos que para si dela emergem. Deste modo, reconduz o direito de ação à sua função primária, que é a de garantir, por meio dos tribunais, isso mesmo.
Tanto bastaria para afastar a tese, sufragada pela decisão recorrida, da irrelevância constitucional das razões determinantes do estabelecimento do prazo de caducidade consagrado no n.º 1 do artigo 1817.º do CC.
2.6.2. Porém, mesmo analisando a questão na perspetiva da posição jurídico-constitucional do investigado, não é aceitável um tal entendimento. E para o demonstrar não é sequer preciso sair da zona jusfundamental em que se congregam os direitos que a mesma decisão invoca como insuscetíveis de compressão temporal, a do direito à identidade pessoal e a do direito à família.
É que as ações de investigação da paternidade, atentos os efeitos jurídicos constitutivos da sua procedência, não afetam apenas a identidade do investigante - que, para todos os efeitos jurídicos, passa a ser filho do investigado -, mas também a identidade deste último, que, com essa mesma amplitude jurídica, passa a ser pai do investigante.
A procedência da ação de investigação da paternidade determina a constituição da relação jurídica de filiação, que é, note-se, uma relação jurídica bilateral, com direitos e obrigações recíprocas, de natureza pessoal e patrimonial, para ambos os sujeitos da relação (pai e filho), especialmente para o primeiro, considerando o especial relevo legal conferido à matéria das «responsabilidades parentais». Tem, por isso, uma forte repercussão na vida pessoal, familiar, social e patrimonial do investigado.
Ora, se na fase da infância e juventude do filho a estabilidade do pai claramente não merece tutela constitucional, quando comparada com os prementes direitos do filho, já não é possível afirmar-se que esse valor seja constitucionalmente irrelevante quando o filho é já uma pessoa adulta e formada e o pai está numa fase avançada do seu percurso individual de vida.
Com efeito, tal percurso individual de vida tem precisamente nos direitos fundamentais à identidade e à família um importante instrumento constitucional de tutela. Também o pai biológico, como qualquer cidadão, foi construindo ao longo do tempo a sua identidade, pelas múltiplas vinculações, designadamente familiares, que estabeleceu, e donde extraiu, não apenas elementos fundamentais de autodefinição pessoal e social, mas também uma base de sustentação, pessoal e patrimonial, que é a sua e da família com quem estabeleceu uma relação efetiva - bens que, nesse específico contexto situacional e temporal, não podem deixar de beneficiar também da proteção dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º e 67.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Encarando o problema dos prazos de caducidade apenas sob o ponto de vista da relação pai-filho, pode questionar-se o mérito de uma solução legal que, impedindo o exercício do direito de ação do filho após um determinado prazo, acaba por beneficiar a posição jurídica de quem não o merece, na sub-hipótese, que também não é certa, de o pai ter conscientemente fugido às suas responsabilidades parentais; mas não se pode dizer que esta solução seja manifestamente carecida de base constitucional de apoio.
Por outro lado, deve também reconhecer-se que o mero prosseguimento das ações, atenta a natureza das questões de facto e de direito aí debatidas, produz, só por si, graves perturbações na vida pessoal e familiar do investigado, ainda que no final aquelas venham a ser julgadas improcedentes.
Na hipótese de o investigado não ser o pai biológico do investigante – também incluída no âmbito de incidência da norma do n.º 1 do artigo 1817.º do CC –, a pertinência constitucional do prazo de caducidade, avaliada à luz dos direitos fundamentais à identidade e à família, impõe-se com particular evidência. Com efeito, a passagem do tempo é aqui valorada pela lei em favor de um terceiro, o que reforça a justificação constitucional da solução de impedir que, decorrido esse prazo, sejam instauradas ações judiciais cujo prosseguimento tem, só por si, a virtualidade de colocar em crise aqueles direitos.
Contrariamente ao que se sustenta na decisão recorrida, a opção legal de estabelecer um prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade não é, pois, manifestamente infundada ou arbitrária, seja considerando o interesse público prosseguido, seja considerando os direitos fundamentais igualmente atendidos.
2.7. A adequação e proporcionalidade da opção de estabelecer o prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade
Finalmente, cumpre verificar se o estabelecimento do prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade restringe de forma manifestamente desadequada e desproporcional os direitos fundamentais ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade biológica do investigante, como a decisão recorrida igualmente sustenta. Agora já não está em causa a valia constitucional das razões da opção legal, mas a sua adequação e proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
Tal como se esclareceu, a fixação de limites temporais ao exercício do direito de ação de investigação da paternidade tem também por objetivo estimular a rápida instauração deste tipo de ações, de modo a não deixar desprotegidos os bens eminentemente pessoais que os direitos fundamentais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico protegem, o que vai ao encontro da preocupação constitucional, expressa nos artigos 36.º, n.ºs 5 e 6, 67.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), 68.º, n.º 1, 69.º e 70.º da Constituição, de envolver diretamente os pais no processo de desenvolvimento físico, psicológico e social dos filhos (cfr. ponto 2.5.2.)
Como também se defendeu, o estabelecimento de prazos de caducidade para o exercício desse direito de ação constitui paralelamente uma medida de política legislativa que encontra justificação na necessidade de proteção dos próprios direitos fundamentais do investigado à identidade e à família (artigos 26.º, n.º 1, e 36.º), que necessariamente comportam uma dimensão de tutela dirigida à definição jurídica da filiação e ao estabelecimento dos correspondentes laços familiares em condições de reciprocidade e plenitude.
É, pois, à luz destas duas finalidades que se deve aferir a adequação e proporcionalidade do prazo de caducidade fixado no n.º 1 do artigo 1817.º do CC.
Quanto ao primeiro requisito constitucional, o da adequação, parece claro que o prazo de caducidade estabelecido no n.º 1 do artigo 1817.º do CC é apto a assegurar a tutela jurisdicional efetiva (…), quer dos direitos fundamentais do investigante a saber quem é o seu pai e a estabelecer com ele o respetivo vínculo jurídico, quer dos direitos fundamentais do investigado a saber quem é o seu filho e a estabelecer com ele a correspondente relação jurídico-familiar.
Com efeito, ao fixar-se o termo final do referido prazo nos 28 anos de idade do investigante (ou nos 26, em caso de emancipação), garante-se, desde logo, que as ações de investigação da paternidade sejam instauradas na «infância» e «juventude» dos filhos, fases da vida de uma pessoa que, na avaliação do próprio poder constituinte, mais reclamam a intervenção protetora e educativa dos pais (artigo 68.º, n.º 1, 69.º e 70.º da Constituição). Por outro lado, assegura-se igualmente a inclusão identitária do próprio filho na esfera de vivência pessoal e familiar do pai, permitindo-se, em caso de procedência da ação, que o vínculo genético se possa ainda converter numa relação de proximidade histórico-existencial e de apoio recíproco, como é próprio das relações familiares.
A solução alternativa da ausência de prazos de caducidade para o exercício do direito de ação, não estando constitucionalmente vedada, poderia comprometer a realização dessas finalidades, sendo legítimo ao legislador escolher uma solução que, dentre as várias constitucionalmente admissíveis, se lhe afigure mais adequada à realização do interesse público, que passa pela constituição e estreitamento das relações familiares, e à compatibilização dos direitos fundamentais em presença, os do investigante e do investigado.
A possibilidade de instauração a todo o tempo da ação de investigação da paternidade comporta o risco de produção de um efeito inverso de inércia, que, mesmo não sendo suscetível de censura – e não se afigura que seja –, pode objetivamente comprometer a constituição atempada da relação jurídica de filiação, com graves custos para a sociedade, que tem na família o seu núcleo fundamental (cfr. artigo 67.º, n.º 1, da Constituição), e para cada um dos potenciais sujeitos dessa relação jurídica, que, recorde-se, não comporta obrigações para um só deles.
Em relação ao requisito da proporcionalidade stricto sensu, também não se afigura que a lei tenha ido longe de mais na concretização das finalidades visadas com o estabelecimento de um prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade.
É verdade que a observância do prazo de caducidade constitui, para o investigante, um verdadeiro ónus, o de intentar a ação de investigação da paternidade dentro do prazo legalmente previsto para efeito, sob pena de extinção dos direitos substantivos que através dela se pretendem assegurar - o direito ao conhecimento da paternidade biológica e o direito ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico. Porém, como vimos, estes direitos sofrem ao longo do tempo assinaláveis modulações e redimensionamentos, do ponto de vista dos bens jurídicos tutelados, que não podem ser desconsiderados.
Na infância e juventude, que são fases de crescimento e preparação para a autonomia de vida, o direito a ter um pai assume um conteúdo valorativo extremamente amplo e intenso, que inclui todos os bens pessoais indispensáveis ao desenvolvimento estruturado e equilibrado da pessoa em formação, designadamente os bens da segurança, saúde e educação.
Uma norma que, nessas fases decisivas, negasse o exercício do direito de ação de investigação da paternidade, deixaria desprotegidos todos esses bens jurídicos pessoais, afetando, na essência, o direito ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade (precisamente por esta razão, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional o prazo de caducidade de dois anos estabelecido pela anterior redação do n.º 1 do artigo 1817.º do CC).
Porém, com a passagem do tempo, este direito vai adquirindo novas cambiantes. Mostrando-se doutro modo assegurados esses mesmos bens jurídicos, seja pela restante família, seja pelo Estado, na falta ou incapacidade daquela, o direito ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade passa a assumir na fase adulta uma dimensão essencialmente patrimonial.
É que nesta fase já não é materialmente possível dar satisfação aos bens jurídicos pessoais tutelados por aqueles direitos, que, por isso, viram o seu conteúdo original irremediavelmente comprimido, não por força de qualquer norma, mas por efeito da mera passagem do tempo. Pura e simplesmente, deixou de fazer sentido falar em proteção, saúde e educação; a assistência tutelável por meio dos tribunais é, agora, exclusivamente patrimonial e assume a forma obrigacional de direito a alimentos, em vida do pai [artigos 2003.º, n.º 1, 2004.º, 2009.º, n.º 1, alínea c), e 2013.º, alínea a), do CC], e de direitos sucessórios, após a sua morte (artigo 2157.º, do mesmo código).
Vistas as coisas nesta perspetiva – e não se afigura que possam ser vistas noutra –, há que reconhecer que os bens jurídicos do filho concretamente atingidos pelo prazo de caducidade não assumem, na «hierarquia axiológica da Constituição», o valor (quase) absoluto que a decisão recorrida lhes atribui, mesmo quando confrontados com a esfera jurídico-constitucional do pai (cfr. ponto 2.6.2.).
E, sendo assim, também não há razão para concluir que as finalidades prosseguidas através do estabelecimento de prazos de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade são atingidas à custa de bens que, na perspetiva da Constituição, valem muito mais do que aqueles que, direta ou reflexamente, são tutelados por esses mesmos prazos.
Como se sustentou, o estabelecimento do prazo de caducidade visa também propiciar que as ações de investigação da paternidade sejam instauradas antes de o filho atingir a idade (fase) adulta, de modo a assegurar-se a tutela jurisdicional efetiva dos bens jurídicos pessoalíssimos protegidos pelos direitos fundamentais ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade que lhe assistem. Trata-se de um valor que, simultaneamente, assume enorme importância pública, considerando os efeitos intensamente positivos que para a sociedade decorrem da ação protetora e educacional dos pais em relação aos filhos e os efeitos intensamente negativos que a falta dessa intervenção provoca para a organização e desenvolvimento da sociedade, sendo sempre insuficientes as respostas subsidiárias asseguradas a esse nível pela família alargada e pelo próprio Estado.
Os direitos que o legislador pretende assegurar, em primeira linha, são, assim, os direitos fundamentais pessoais do próprio filho – o direito a crescer, senão com o afeto, que não pode ser imposto por lei, pelo menos com a proteção e a educação que os pais estão juridicamente obrigados a assegurar. A satisfação a tempo desses direitos fundamentais beneficiará, não apenas o titular, mas também toda a sociedade, que ficará desonerada dessa função de primeira assistência e beneficiará, ela própria, da «insubstituível acção dos pais em relação aos filhos» (artigo 68.º, n.º 1, da Constituição), o que é também um valor constitucional acrescentado à opção legal.
Por outro lado, a atempada constituição da relação jurídica de filiação, viabilizando a consolidação no tempo de uma relação juridicamente pautada pela observância de deveres recíprocos de respeito, auxílio e assistência (artigo 1874.º, n.º 1, do CC), acabará a seu tempo por beneficiar também o próprio pai e, mais uma vez, toda a sociedade, que poderá igualmente contar com a insubstituível ação cuidadora dos filhos em relação aos pais que dela careçam, por razões de doença ou idade avançada, o que, por sua vez, contribuirá para diminuir o risco de «isolamento» ou «marginalização social» a que a «terceira idade» está sujeita por força da sua maior fragilidade (cfr. artigo 72.º da Constituição).
Ora, comparando os benefícios, individuais e sociais, acima descritos, assegurados pelo prazo de caducidade, com os custos, essencialmente patrimoniais, sofridos pelo investigante por causa da sua inobservância, parece claro que não estamos perante uma medida legal desproporcional, e, muito menos, manifestamente desproporcional, como se sustenta no acórdão recorrido.
Indispensável é que esteja assegurado o exercício efetivo do direito de ação de investigação da paternidade dentro do prazo de caducidade legalmente previsto e em termos compatíveis com a natureza especialmente pessoal do direito fundamental a tutelar. E afigura-se que está, considerando a função essencialmente corretiva que os n.ºs 2 e 3 do artigo 1817.º do CC exercem na economia global do preceito.
Como o Acórdão n.º 401/2011 sublinhou, estas normas previnem a hipótese de não estarem reunidas as condições de facto e de direito necessárias ao exercício do direito de ação dentro do prazo (objetivo) de dez anos previsto no n.º 1 do mesmo preceito legal, aditando a este prazo mais três anos, que apenas começará a correr quando essas mesmas condições estiverem efetivamente verificadas. A extinção do direito ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico só operará depois de esgotados todos os prazos de caducidade previstos no artigo 1817.º do CC – o que constitui uma importante válvula de segurança do sistema.
Acresce que, de modo a adequar o funcionamento do prazo de caducidade à natureza pessoalíssima do direito que lhe está subordinado, o legislador optou pela utilização de conceitos abertos e indeterminados na fixação do termo inicial de alguns dos prazos de caducidade acrescidos previstos no artigo 1817.º do CC. Com efeito, de acordo com o n.º 3 deste preceito legal, aplicável ex vi do artigo 1873.º, a ação pode ainda ser proposta nos três anos posteriores ao conhecimento, pelo investigante, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de «factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação», designadamente quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso pai [alínea b)], e, em caso de inexistência de paternidade determinada, nos três anos seguintes ao conhecimento superveniente de «factos ou circunstâncias que possibilitem ou justifiquem a investigação» [alínea c)].
Desse modo, garante-se ao titular do direito fundamental virtualmente afetado pelo prazo de caducidade a possibilidade de instaurar a ação quando, uma vez decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do CC, surjam factos ou circunstâncias que tornem razoável o exercício tardio do direito de ação. A ausência de uma tipificação fechada dos factos ou circunstâncias justificativos da instauração da ação após o transcurso desse prazo permite ao aplicador do direito, em especial ao juiz, a formulação de juízos de ponderação suscetíveis de cobrir a especificidade de cada caso concreto sujeito à sua apreciação e integrar no conceito legal todos os factos e circunstâncias concretas, de natureza objetiva e/ou subjetiva, que possam justificar, à luz desse padrão de razoabilidade, o exercício do direito de ação após os 28 (ou 26) anos de idade do investigante.
O que a lei não consente – e a Constituição manifestamente não tutela – é o exercício arbitrário do direito de ação de investigação da paternidade a qualquer tempo. Se é verdade que a decisão de instaurar estas ações, atenta a sua natureza, convoca complexas e singularizadas valorações pessoais, com forte carga emocional, também é verdade que, estando em causa uma decisão que pode ter graves implicações, jurídicas e pessoais, para terceiros, é exigível que a essa complexa ponderação se siga uma tomada de decisão responsável e madura.
Ora, apesar de o regime jurídico aplicável prever essa possibilidade, certo é que, no caso que deu origem ao presente recurso, a autora não alegou quaisquer circunstâncias que pudessem justificar, à luz do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1817.º do CC, que tenha instaurado a ação de investigação da paternidade quase vinte anos depois de ter atingido a maioridade.
Por tudo quanto se disse, não se afigura que a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do CC, ao estabelecer o prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade, seja inconstitucional, conclusão que sai reforçada pelo facto de o efeito extintivo que lhe está associado apenas se produzir quando se esgotar, não apenas o prazo aí previsto, mas todos os outros que o mesmo preceito legal prevê, com grande amplitude, nos seus números 2 e 3.
III – Decisão
3. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante.
b) Conceder provimento ao recurso e revogar o Acórdão n.º 488/2018.
Sem custas.
Lisboa, 3 de julho de 2019 - João Pedro Caupers - Maria José Rangel de Mesquita - Fernando Vaz Ventura - Lino Rodrigues Ribeiro - Pedro Machete - José Teles Pereira - Maria de Fátima Mata-Mouros - Gonçalo Almeida Ribeiro (com declaração) - Claudio Monteiro (vencido, com os fundamentos da declaração anexa) - Joana Fernandes Costa (vencida, conforme declaração junta) - Maria Clara Sottomayor (vencida conforme declaração que junto) - Manuel da Costa Andrade (vencido nos termos da declaração que junto) - A Conselheira Catarina Sarmento e Castro, que já cessou funções no Tribunal Constitucional, ficou vencida. João Pedro Caupers
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevo o juízo de não inconstitucionalidade pelas seguintes razões.
O prazo para a propositura da ação de investigação da paternidade definido no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, ex vi do artigo 1873.º, realiza uma indispensável concordância prática entre o direito à identidade pessoal do investigante e o do investigado e seus familiares (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição). O primeiro tem um conteúdo positivo, correlativo do dever estatal de instituir um meio processual que possibilite a investigação e o estabelecimento da filiação biológica. O segundo tem um conteúdo negativo, correlativo do dever estatal de não interferência na formação e vivência da identidade pessoal dos indivíduos, nomeadamente no que respeita ao universo das suas relações familiares. Trata-se, assim, de uma verdadeira colisão de direitos fundamentais, em que a opção do legislador deve ser submetida a um escrutínio particularmente cuidadoso e severo, em virtude de nos situarmos – como se afirma na decisão – no domínio de incidência da proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da Constituição), domínio esse em que se pode suspeitar razoavelmente do cumprimento da promessa constitucional, solenemente firmada no n.º 1 do artigo 13.º, de que todos os cidadãos serão tratados pela lei como iguais.
É ponto assente que, gerando a procriação, ressalvado o caso especial da procriação medicamente assistida dita heteróloga, responsabilidades na esfera dos progenitores, que se reconduzem ao estatuto jurídico de mãe e pai, o interesse do descendente no estabelecimento da paternidade prevalece sobre um eventual interesse do progenitor de sentido contrário. Na verdade, o interesse do progenitor, manifestado no momento do nascimento ou no decurso da menoridade do descendente, em não assumir a condição de pai ou dela se desfazer, é ilegítimo e irrelevante, não merecendo tutela de espécie alguma. Não é de admirar, por isso mesmo, que a forma paradigmática de estabelecimento da paternidade – a presunção pater est quem justae nuptiae demonstrant – dispense absolutamente o consentimento do visado. A paternidade, não deixando de ser um direito, é sobretudo uma responsabilidade, pelo que não pode ser recusada ou renunciada.
Porém, nos casos em que a paternidade não se estabelece até o filho atingir a maioridade – ou seja, no decurso do período em que o estatuto jurídico de pai se reveste de importância máxima e em que por norma se sedimentam os laços afetivos e os demais aspetos essenciais da relação entre pai e filho −, a relevância e força relativa dos interesses de descendente e progenitor altera-se gradualmente perante a ordem constitucional. O interesse daquele perde a parcela da carga axiológica que a necessidade de proteção na infância e na juventude lhe dispensam (artigo 68.º, n.º 1, da Constituição), permanecendo exclusivamente aqueloutras que se prendem com a relevância que para a sua identidade pessoal representa o estabelecimento da filiação e com os direitos sucessórios atribuídos por lei aos descendentes. O interesse do progenitor em não ser pai, por outro lado, e o interesse dos seus parentes mais próximos em que não assuma essa condição a respeito de uma pessoa estranha à historicidade das suas relações familiares, legitima-se e adquire uma relevância crescente que acompanha o decurso do tempo.
Sem dúvida que nas etapas iniciais da vida adulta a posição relativa destes interesses continua desequilibrada a favor do descendente. Assim é por duas razões. Em primeiro lugar, porque tendo este sofrido a desvantagem de crescer sem pai, só agora terá a oportunidade de tomar uma decisão autónoma e refletida sobre a relação entre a verdade biológica e a sua identidade pessoal, sem descurar a ponderação dos direitos sucessórios, estes de natureza essencialmente patrimonial. Em segundo lugar, porque não decorreu tempo suficiente para que se tenham legitimamente consolidado representações familiares que integram a identidade pessoal do investigado e de que o investigante não participa, tanto mais que a maioridade se atinge numa fase da vida em que os papéis parentais têm ainda uma relevância social especial.
Os termos em que os interesses dos implicados se contrapõem, e bem assim o direito fundamental à identidade pessoal que deles releva, permite, no entanto, compreender a importância de que neste domínio se reveste o tempo: o decurso de um período longo sem que o investigante tenha agido com vista a atualizar o estado jurídico e o valor simbólico associados ao facto da progenitura fragiliza irremediavelmente o peso constitucional da sua pretensão e reforça o peso da pretensão oposta do investigado e de terceiros que integrem o universo das suas relações familiares. A inércia do investigante sinaliza um desinteresse pela «verdade biológica», estabelecendo-se reflexamente uma «verdade social» constitutiva da identidade pessoal do investigado e dos que lhe são mais próximos. Por tudo isto, creio que a fixação de um prazo razoável para instaurar a ação de investigação da paternidade, como me parece ser o de 10 anos sobre a maioridade ou a emancipação, com as ressalvas imprescindíveis para os casos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, é uma forma adequada, necessária e proporcional de realizar a concordância prática ditada pela natureza do problema.
Vou mais longe. Não basta afirmar que a solução consagrada na lei de fixação de um prazo de caducidade é constitucionalmente admissível; trata-se de uma imposição constitucional decorrente do dever estatal de não sacrificar integralmente o direito à identidade pessoal do investigado e seus familiares, radicada na «verdade social» que se estabelece gradualmente pelo decurso do tempo. Foi essa, de resto, a solução que o legislador encontrou para problemas homólogos em matéria de filiação, entre os quais se destaca a definição de um prazo para a impugnação da paternidade do marido da mãe na alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, que o Tribunal Constitucional julgou não inconstitucional nos Acórdãos n.ºs 589/2007, 593/2009, 179/2010, 446/2010 e, se bem que na perspetiva oposta da apreciação constitucional da própria possibilidade de impugnação quando se verifica posse de estado, no recente Acórdão n.º 308/2018.
Creio que o direito do descendente adulto ao estabelecimento da filiação tem exatamente o mesmo fundamento e peso constitucional do que o direito do pai que descobre não ser o progenitor do filho a impugnar a paternidade fundada na presunção matrimonial. Trata-se, nas duas situações, de colocar a ordem jurídica ao serviço da «verdade biológica», na medida − e apenas nessa estrita medida – em que tal facto, segundo o juízo insindicável do autor da ação, realize uma dimensão da sua identidade pessoal. E trata-se ainda, nas duas situações, de estabelecer um equilíbrio entre a pretensão legítima do autor ao reconhecimento oficial e integral dessa verdade na sua vida e a pretensão não menos legítima do réu e da sua família a que as suas próprias identidades pessoais se não encontrem eternamente submetidas ao domínio volitivo de terceiro. Ora, a concordância entre ambas pode fazer-se, unicamente, através de prazos razoáveis, como aqueles que a lei estabelece para as duas situações.
Gonçalo de Almeida Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender que as ações de investigação da paternidade não devem ser sujeitas a qualquer prazo, sob pena de violação do disposto nos artigos 20.º. n.º 1 e 26.º, n.º 1 da CRP.
Com efeito, o artigo 20.º, n.º 1 da CRP assegura a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, o que implica que a cada direito – e muito em especial a cada direito fundamental – tem de necessariamente corresponder uma ação. E o reconhecimento legal da paternidade é inequivocamente um elemento integrante do conteúdo do direito à identidade consagrado no artigo 26.º, n.º 1 da CRP.
Ora, nessa perspetiva, mesmo admitindo que a verdade biológica não é um valor constitucional absoluto – até porque não existem valores constitucionais absolutos - não encontro razões bastantes para justificar uma restrição ao acesso aos meios legais de tutela daquele direito fundamental, nomeadamente através do estabelecimento de um prazo legal de caducidade do direito de ação de dez anos, como faz o artigo 1817.º, n.º 1, do CC, na redação da Lei n.º 14/2009.
Não creio, nomeadamente, que o valor da segurança jurídica do investigado e dos seus herdeiros, que é recorrentemente invocado como ratio legis daquela restrição, seja suficientemente forte para prevalecer sobre o reconhecimento dos vínculos biológicos que contribuem para a definição da identidade pessoal, tanto do progenitor como do filho. Não é, desde logo, porque a ideia de estabilidade de um núcleo familiar assente no casamento em que essa conceção se fundamenta não encontra apoio numa interpretação atual dos conceitos constitucionais de família e de casamento. Mas não é, também, porque a mera expectativa dos herdeiros de vir adquirir o património do investigado por via sucessória não se encontra abrangida pelo âmbito de proteção da garantia constitucional da propriedade privada e não pode, em qualquer caso, sobrepor-se aos direitos pessoais do investigante.
Claudio Monteiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida.
1. Em discordância com a posição que fez vencimento, pronunciei-me pela inconstitucionalidade, por violação do direito à identidade pessoal e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, consagrados no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, da solução imposta pelo artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante.
Tal como, de resto, o faz a maioria, tenho por certo que o direito ao conhecimento da paternidade biológica e o direito ao estabelecimento do correspondente vínculo jurídico constituem refrações do direito à identidade pessoal, encarada «como o conjunto de atributos e características que permitem individualizar cada pessoa na sociedade e que fazem com que cada indivíduo seja ele mesmo e não outro, diferente dos demais» (Acórdão n.º 401/2011). E considero também que a identidade pessoal engloba, como seu «dado importantíssimo», a historicidade pessoal e esta, por sua vez, a verdade biográfica e o seu itinerário, elementos nos quais o conhecimento da ascendência assume uma relevância nuclear: uma vez que por essa via se alcança a «identidade daqueles que contribuíram biologicamente para a formação do novo ser» e de todos os seus eventuais descendentes, o estabelecimento da progenitura constitui um elemento indispensável «no processo de autodefinição individual», permitindo a cada um «encontrar pontos de referência seguros de natureza genética, somática, afetiva ou fisiológica», através do conhecimento das «origens do seu ser» (idem).
Embora o Tribunal tenha assinalado já a diferença existente entre o direito ao conhecimento da paternidade biológica e o direito ao estabelecimento do vínculo jurídico da filiação — considerando-os dimensões autónomas do direito à identidade pessoal (cf. Acórdão n.º 225/2018) —, entendo, porém, que tal distinção dificilmente poderá ser transposta para fora do âmbito do instituto da adoção (cf. artigo 1990.º-A do Código Civil, aditado pela Lei n.º 143/2015, de 8 de setembro) e do regime de utilização de técnicas de reprodução medicamente assistida com recurso à doação de gâmetas (cf. artigo 15.º da Lei n.º 32/2006, alterada pela Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto).
Estando em causa o estabelecimento da paternidade biológica de filho de pai incógnito, o conhecimento da progenitura e a constituição do correspondente vínculo jurídico são, à partida, indissociáveis: ao mesmo tempo que faculta o conhecimento da progenitura, a ordem jurídica impõe o reconhecimento judicial do correspondente vínculo jurídico (cf. artigo 1865.º, n.º 5, do Código Civil, e artigo 62.º, n.º 1, da Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro), sendo este, com todos os seus efeitos, que «confere ao indivíduo o estatuto inerente à qualidade de filho de determinadas pessoas», algo que, por nos distinguir e caracterizar perante os outros, se encontra igualmente abrangido pelo direito à identidade pessoal (Acórdão n.º 401/2011).
2. Com este significado, o direito ao conhecimento e ao reconhecimento judicial da paternidade biológica exerce uma dupla função normativa: trata-se de um direito que gera para o Estado não apenas o dever de omitir todas as ações suscetíveis de o suprimir ou afetar, como ainda o dever de participar e de intervir, promovendo-o e protegendo-o através da criação e manutenção dos pressupostos de facto e de direito necessários à respetiva defesa e satisfação (neste sentido, sobre a dupla função vinculativa dos direitos fundamentais, cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 1991, p. 139), designadamente perante a atuação (ou a omissão) de terceiros.
Nesta última aceção, o direito ao conhecimento e ao estabelecimento da paternidade biológica tem a estrutura dos direitos a prestações normativas, apresentando-se como um direito à edição de normas, tanto substantivas como procedimentais, que assegurem a possibilidade do respetivo exercício.
Sabendo-se que, nos casos em que o suposto pai recusa qualquer colaboração, a ação de investigação da paternidade corresponde ao único meio funcionalmente apto para assegurar efetivação do direito ao conhecimento da ascendência biológica e ao estabelecimento do correspondente vínculo jurídico (cf. Acórdão n.º 346/2015), a questão que aqui se coloca consiste em determinar se o conjunto de normas destinado a assegurar o cumprimento do imperativo constitucional de tutela ¾ no caso, o regime que resulta do artigos 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação conferida pela Lei n.º 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma ¾, assegura uma proteção suficientemente eficiente daquele direito ou, pelo contrário, carece de ser para esse efeito ampliado.
É justamente na resposta a essa questão que reside a minha divergência relativamente à posição sufragada pela maioria.
3. Tal como assumido no presente acórdão, partilho da ideia segundo a qual, no âmbito da concretização dos imperativos jurídico-constitucionais de tutela, o legislador dispõe, em regra, de uma ampla margem de discricionariedade: se o Estado se encontra obrigado a proteger, a decisão sobre como tal obrigação deverá ser satisfeita «é algo que “em primeira linha”, “em grande medida” ou “em essência”, cabe ao legislador» ordinário (Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, Tradução de Virgílio Afonso da Silva, Malheiros Editores, 2008, p.463). Por outras palavras: impondo a Constituição «“[…] a proteção como resultado, mas não a sua conformação específica”» (Claus-Wilhelm Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, Coimbra, Almedina, 2003, p. 122-123), fica, em regra, aberto ao legislador ordinário um amplo espaço de livre decisão quanto ao modo como o direito infraconstitucional deve ser especificamente conformado em ordem à realização daquele desiderato (idem, p. 119). Apenas em circunstâncias excecionais — que são, justamente, as do meio único — é que esse espaço é reduzido a zero.
O limite mínimo da margem de conformação que assiste ao legislador ordinário é dado, em qualquer caso, pelo princípio da proibição da insuficiência: excluída a possibilidade de realização dos imperativos constitucionais de tutela pelos órgãos jurisdicionais, apenas as soluções que coloquem a ordem jurídica aquém do nível mínimo de proteção imposto pela Lei Fundamental tornarão o resultado da intervenção do legislador ordinário constitucionalmente censurável.
Ora, é precisamente esse, segundo creio, o vício em que incorre a opção de sujeitar ao prazo de caducidade de 10 anos, contado a partir da maioridade ou da emancipação do investigante, a ação de investigação da paternidade, quando por este intentada.
4. Ao prazo de 10 anos estabelecido no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil o legislador fixou um dies a quo objetivo: tal prazo inicia-se com a sobrevinda da maioridade ou emancipação do investigante, independentemente do momento em que o mesmo teve conhecimento da identidade do pretenso progenitor.
Uma vez que, neste como em qualquer ou outro domínio, o exercício do direito de ação se encontra — e permanece —, em regra, inviabilizado enquanto existir — e persistir — o desconhecimento da identidade do sujeito que, de acordo com o pedido e a causa de pedir, está em posição de poder ser demandado pelo titular daquele direito, o prazo de 10 anos previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil não opera sozinho: a ele aditou o legislador os «verdadeiros prazos de caducidade consagrados nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo», destes, no essencial, resultando que, após o esgotamento do prazo de 10 anos previsto no n.º 1 — na hipótese mais frequente, depois de atingidos os 28 anos de idade —, o investigante poderá exercer judicialmente o direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade biológica desde que a ação seja intentada dentro dos três anos subsequentes ao momento em que teve conhecimento de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação (artigo 1817, n.º 3, alíneas b) e c), do Código Civil).
Para além de fazer recair sobre o investigante o ónus de demonstrar que apenas teve conhecimento dos factos justificativos da investigação em momento compatível com a observância do prazo de caducidade de três anos previsto no n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, a hipótese contemplada nas respetivas alíneas b) e c) funda-se exclusivamente em razões de superveniência subjetiva. Isto é, apenas assegura o direito de ação do investigante, após completados os 28 anos de idade, nos casos em que os factos determinativos da investigação, apesar de preexistentes, por alguma razão acabam por revelar-se somente depois de atingido aquele marco temporal; não nas hipóteses em que as razões subjacentes à instauração da ação de investigação da paternidade são objetivamente supervenientes, isto é, se verifiquem depois de o investigante ter completado os 28 anos de idade.
5. Convocando as diferentes perspetivas constitucionais sobre os prazos de caducidade em matéria de ação de investigação de paternidade, a razão de ser e a finalidade do regime acima descrito são esclarecidas e aceites pela maioria com base em dois argumentos essenciais. O primeiro prende-se com a tutela dos «direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar de potenciais investigados e seus familiares»: uma vez que o direito a conhecer e ver reconhecida a progenitura, apesar de constituir uma condição determinante da própria capacidade que cada um tem de autodefinir-se como indivíduo, não é o único que deve ser levado em conta, o legislador encontra-se constitucionalmente autorizado a resolver a colisão de direitos que deste modo de prefigura através do estabelecimento de prazos legais preclusivos do correspondente direito de ação, desde que, conforme se entendeu suceder com aquele que se encontra fixado no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, tais prazos não impeçam que o interessado, «dispondo de um tempo de reflexão razoável, possa esclarecer as suas dúvidas quanto ao pretenso pai e, se for o caso, ver judicialmente reconhecida a sua ascendência biológica e estabelecido o vínculo jurídico de filiação».
O segundo argumento prende-se com a própria relevância do conhecimento e reconhecimento da paternidade no âmbito do direito à identidade pessoal e com a sua alegada erosão por efeito da passagem do tempo: de acordo com a maioria, o direito ao conhecimento da paternidade biológica, enquanto instrumento de definição e construção da identidade, vai assumindo ao longo da vida do filho diferentes configurações normativas, ao ponto de implicar o redimensionamento desse bem jurídico — «o conhecimento das origens genéticas do ser humano» —, na perspetiva do titular do direito fundamental que o protege, e a correlativa diminuição da «especial força vinculativa» deste último.
Pelas razões que passarei a expor, considero que nenhum dos dois argumentos invocados pela maioria é suficientemente convincente para legitimar a sujeição do exercício do direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade biológica ao prazo de caducidade previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil: enquanto o segundo prova demais, o primeiro incorre no paradoxo de buscar na recusa de uma «compreensão dos direitos fundamentais centrada exclusivamente no indivíduo», à margem da sua condição de «membro de uma comunidade», o fundamento último para justificar a resolução da colisão dos direitos em confronto – isto é, o «direito do investigante a ver reconhecida a sua ascendência biológica e o estabelecimento do vinculo jurídico da filiação» e os direitos do investigado (e dos seus familiares) à «reserva da intimidade da vida privada e familiar» —, através da exclusão da possibilidade de exercício do primeiro após o respetivo titular haver completado 28 anos de idade, a não ser nas hipóteses — no essencial, de superveniência meramente subjetiva —, contempladas no n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil.
6. A partir do momento em que se assume que o conhecimento e o reconhecimento da progenitura biológica «representa[m] uma ‘referência’ essencial da pessoa (de cada pessoa) […] e elemento ou condição determinante da própria capacidade de autoidentificação de cada um como ‘indivíduo’ (da própria ‘consciência’ que cada um tem de si)» (Acórdão n.º 99/1988), muito dificilmente poderá deixar de se lhes reconhecer um valor intrínseco, a se, que não é, por isso, eliminável ou deflacionável, seja por (mero) efeito do decurso do tempo, seja em resultado da agregação de outras dimensões ou conteúdos à identidade pessoal, designadamente daqueles em que se projetam as escolhas que cada um vai fazendo ao longo da vida, em todos os planos — afetivo, social, profissional, etc. — em que lhe é assegurada a participação nos destinos da sua própria existência.
É verdade que a identidade pessoal, longe de constituir um dado, se encontra em permanente construção e esta em progressivo movimento. Ela é encarada por isso, também pela Constituição, como o resultado de um “fazer-se” contínuo, em que avultam as vivências afetivas, sociais e morais de que cada um é simultaneamente promotor e destinatário na relação que estabelece quotidianamente com os demais.
O facto de assim ser tem, todavia, um alcance bem diferente daquele que lhe é atribuído pela maioria: ao supor uma imagem ampla da pessoa, integrada na realidade efetiva das suas relações familiares e humano-sociais, o que a Constituição quer significar é que a tutela da identidade pessoal não pode deixar de acomodar também, e em simultâneo, as outras dimensões que codefinem o ser-pessoa enquanto «sujeito autónomo dotado de autodeterminação decisória» (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra, 2007, p. 463); não que o direito à historicidade pessoal, enquanto direito de cada ser humano a conhecer o seu património genético e a identidade dos seus progenitores, perca a sua condição de «dado importantíssimo», nuclearmente constitutivo da personalidade singular de cada indivíduo, ou deixe de assumir o seu lugar próprio na conformação da identidade do ser-pessoa: seja qual for o momento da idade adulta em que tal interrogação sobrevenha, «saber quem sou» continuará sempre a exigir «saber de onde venho» (cf. Guilherme de Oliveira, Caducidade das ações de investigação, em Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. I, Coimbra Editora, 2004, p. 51), independentemente do valor ou relevância dos demais conteúdos identitários que vão sendo continuamente alcançados em virtude da permanente comunhão com os outros.
7. Afastada a ideia de que, uma vez atingidos os 28 anos de idade, a relevância do direito ao conhecimento e ao estabelecimento do vínculo da paternidade perece ou diminui ao ponto de constituir fundamento apto a facultar ao legislador ordinário a eliminação do meio — repete-se, do único meio — pelo qual tal direito pode ser efetivado contra a vontade ou sem a colaboração do pretenso progenitor, o problema que se coloca é, invertidos os respetivos termos, aquele que o próprio acórdão não deixou de enunciar: será constitucionalmente tolerável privar definitivamente alguém, que completou já 28 anos de idade, do direito de conhecer e ver reconhecida a respetiva paternidade biológica pelo facto de não ter interposto a correspondente ação dentro dos três anos subsequentes ao momento em que teve conhecimento dos factos ou circunstâncias justificativos da investigação?
Para responder a essa questão há um dado que não pode deixar de ser em conta.
Fora dos casos de impugnação da paternidade [alínea a)], a possibilidade de efetivação do direito ao conhecimento e ao reconhecimento da ascendência biológica depois de o investigante ter completado 28 anos de idade encontra-se limitada as casos em que o conhecimento dos «factos ou circunstâncias que justifi[cam] a investigação» é posterior àquela data ou, inexistindo paternidade determinada, em que são supervenientemente conhecidos pelo investigante «os factos ou circunstâncias que possibilit[am] e justifi[cam] a investigação» da paternidade (cf. alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, respetivamente).
Sucede, contudo, que o exercício do direito à livre conformação da vida não pode deixar de supor um critério de autorevisibilidade, assumindo este, no domínio do conhecimento e do estabelecimento da ascendência, uma relevância, além do mais, particular: sem que nisso possa reconhecer-se qualquer censurável manifestação de livre arbítrio, pode muito bem suceder que o investigante, apesar de nunca se ter sentido suficientemente encorajado para enfrentar o repúdio ou a rejeição habitualmente implicados no estabelecimento jurídico da paternidade contra a vontade do progenitor biológico, se considere moralmente vinculado a fazê-lo depois de ele próprio se ter tornado pai, de modo a identidade pessoal dos respetivos descendentes, que compreende a verdade sobre as raízes familiares e genéticas, não seja afetada ou comprometida pelo desconhecimento da avoenga.
É justamente esta a compreensão de que penso dever partir-se na resolução do problema de colisão de direitos fundamentais que tipicamente emerge no domínio da investigação da paternidade: a colisão entre o direito do investigante, enquanto direito de proteção através de prestações normativas, e o direito do investigado, que se opõe àquele como um direito de não ingerência.
8. Tal como os demais casos de colisão de direitos, também este pressupõe a intervenção das regras do «direito constitucional de conflitos», que apontam, num primeiro momento, para uma ideia de harmonização e, no caso de isso ser necessário, para a «prevalência (ou relação de prevalência)» de um direito sobre o outro (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 7.ª edição, p. 1274), que poderá impor-se logo a nível legislativo.
Porque se trata aqui do conflito entre um direito fundamental, enquanto imperativo constitucional de tutela, e outro direito fundamental, na sua função de proibição de ingerência, haverá que ter presente o seguinte: na concretização dos imperativos de tutela, o legislador ordinário encontra-se vinculado não apenas pelo princípio da proibição da insuficiência — que, conforme se viu, fixa o ponto aquém do qual o nível de proteção se tornará jurídico-constitucionalmente censurável —, como ainda pelo princípio da proibição de excesso, funcionando este como limite máximo da moldura da discricionariedade.
Da relação entre a proibição de excesso como limite da interferência permitida e a proibição da insuficiência como a garantia do mínimo de proteção constitucionalmente imposto resulta, em primeiro lugar, que o direito a proteger através do cumprimento do imperativo constitucional deverá encontrar-se carecido de tutela; em segundo lugar, que os meios de direito ordinário mobilizados deverão ser adequados à proteção a realizar; e, por último, que a intervenção na esfera de terceiros por meio da qual a proteção se concretiza está obrigada a respeitar o princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da razoabilidade da interferência, devendo entender-se que a intervenção na esfera de terceiros por via da qual a proteção é assegurada ultrapassará os seus limites sempre que tal intervenção não for mais razoável, isto é, quando a proteção do direito em carecido de tutela não constituir já fundamento bastante para justificar a restrição do direito que com ele colide.
Sendo justamente neste terceiro plano que se joga a conformidade constitucional da norma fiscalizada, é especialmente importante ter presente que, no sopeamento para que remete o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, o que essencialmente importa é avaliar a força da razão para a intervenção e a robustez da razão invocável contra ela, o que pressupõe a consideração da intensidade das consequências da não-satisfação de um direitos em conflito e da importância da não-ingerência no direito colidente, devendo verificar-se, por último, se o peso da proteção do direito carecido de tutela justifica (ou continua a justificar) a ingerência no direito contraposto (a este propósito, vide Robert Alexy, ob. cit., p. 594).
Ora, quer se considere, como faz o acórdão, que, do lado do pretenso pai, estão em causa os «direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar» tanto do próprio como dos respetivos familiares, quer se siga o entendimento — que, aliás, perfilho — de que o direito do investigado em colisão é também o direito à identidade pessoal, mas aqui numa dimensão defensiva — isto é, enquanto direito a não ver ampliada a sua identidade pessoal e familiar através do adicionamento aos vínculos já existentes de um outro, não desejado —, a conclusão que penso impor-se é a mesma: o modo como o legislador resolveu a tensão entre a proibição do excesso de ingerência no direito do investigado e a proibição da insuficiência na proteção devida ao direito do investigante com mais de 28 anos de idade tem como resultado a inversão das posições tuteladas fora dos casos de superveniência subjetiva, o que, além de sobrevalorizar o peso da não-ingerência naquele primeiro direito — que, em ultima instância, é convertido no direito do investigado a não ser pai a partir de determinado momento da vida do pretenso filho —, subestima, de forma radical, o direito à identidade pessoal deste último, tanto mais quanto certo é que, para além do reconhecimento do vínculo jurídico da filiação, nele — e apenas nele — vai implicado também o direito de cada um ao conhecimento da respetiva ascendência genética e à localização no sistema de parentesco.
A hipervalorização da posição do investigado, expressa na garantia de que não será confrontado, a não ser em caso de superveniência subjetiva, com o estabelecimento coercivo de uma paternidade não desejada depois de o pretenso filho haver completado 28 anos de idade, tem como inevitável reverso a ablação do direito do investigante a ver completada a sua identidade pessoal — assim como a identidade pessoal dos respetivos descentes — através do conhecimento e do estabelecimento da progenitura, elemento que não só é nuclearmente constitutivo da personalidade de cada indivíduo, como é pressuposto da própria possibilidade que cada um tem de alcançar uma representação plena de si mesmo enquanto ser «único e irrepetível», de exercer a sua capacidade de autocompreender-se e de autodesignar-se, e de desenvolver a partir daí, em condições de potencial igualdade com os demais, o seu sentido de pertença a uma comunidade.
É por entender que a importância da proteção do direito do investigante ao conhecimento e estabelecimento da paternidade biológica e a intensidade das consequências da sua não-proteção continuam a justificar, mesmo depois de completados os 28 anos de idade, a ingerência no direito à identidade pessoal do investigado, na sua dimensão negativa ou defensiva, que me afasto da posição que obteve vencimento.
Joana Fernandes Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo sido eu a relatora do Acórdão recorrido n.º 488/18, da 2.ª Secção, fiquei vencida no Plenário em que se decidiu a oposição de jurisprudência, no qual fez vencimento a tese da constitucionalidade da norma contida no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na dimensão normativa que se reporta ao estabelecimento de qualquer prazo para a investigação da paternidade, a única que foi decidida pelo Acórdão n.º 488/18.
1. O Direito da Família é um ramo do direito constitucionalizado, enformado por princípios constitucionais e pelos direitos fundamentais dos membros da família como indivíduos. A Constituição de 1976 contemplou especialmente este ramo do direito, com o objetivo de substituir a família hierarquizada em função do género, em que o marido era o chefe da família e a mulher casada estava sujeita ao poder marital, por um modelo de família democrático, igualitário e participativo. Para o efeito, a Constituição assentou este novo modelo de família, entre outros, em três grandes princípios: o direito a constituir família e a procriar, independentemente da celebração de casamento (artigo 36.º, n.º 1, da CRP); o princípio da igualdade dos cônjuges (artigo 36.º, n.º 3, da CRP) e o princípio da proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (36.º, n.º 4, da CRP).
O reconhecimento judicial da paternidade é um instituto de direito da família que só ganha sentido quando articulado com o sistema de direitos fundamentais constitucionalmente protegido. À ideia de indivíduo como membro de uma família, que sacrifica ou aliena os seus direitos fundamentais por pertencer a uma família e nela desempenhar uma função, como era a situação jurídica das mulheres casadas, marcada por capitis diminutio, sucede o indivíduo, titular de direitos fundamentais, que passa a ser o centro da ordem jurídico-constitucional.
O princípio da proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) comporta uma dimensão formal (a abolição de expressões vexatórias, como a de filho ilegítimo ou filho de pai incógnito) e uma dimensão material, que se repercute na subjetivização de um conjunto de direitos fundamentais dos indivíduos, por exemplo, o direito à não discriminação em relação aos filhos nascidos dentro do casamento, o qual não pode deixar de incluir, para além da óbvia referência à igualdade nos direitos sucessórios, o direito a suprir a omissão provocada pela lei anterior à Constituição de 76, no que diz respeito ao estabelecimento da paternidade. Este direito depende da prova do facto biológico da procriação, que, sendo uma prova difícil por se tratar de um facto oculto, foi facilitada pela lei através de um conjunto de presunções ilidíveis pelo réu, mediante a prova de dúvidas sérias (artigo 1871.º do Código Civil). Foi a prova genética da paternidade com uma probabilidade bioestatística superior a 99, 5%, generalizada nos Tribunais de Família a partir do final da década de 90 do século XX, que permitiu revolucionar esta matéria.
Contudo, em 1977, o legislador democrático, ainda longe desta evolução científica, por receio do envelhecimento da prova e das ações designadas por «caça fortunas», limitou-se a revogar os pressupostos da admissibilidade da ação, consagrados no artigo 1860.º do Código Civil de 1966, mas manteve o prazo de caducidade de dois anos após a maioridade ou emancipação consagrado na versão originária do Código Civil de 1966, não abolindo, portanto, todas as barreiras jurídicas ao estabelecimento da paternidade dos filhos nascidos fora do casamento. Em 2009, na sequência do Acórdão deste Tribunal n.º 23/2006, que declarou inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 1817.º, por “excluir totalmente a possibilidade de investigar judicialmente a paternidade (ou a maternidade), logo a partir dos vinte anos de idade”, o legislador, por intermédio da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, veio alargar este prazo para dez anos após a maioridade ou emancipação, e estabelecer, também, um regime de prazos dies a quo subjetivo, cujo início de contagem se define a partir do conhecimento de “factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação” (artigo 1817.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código Civil). Este regime de prazos, embora mais generoso para o investigante, não conseguiu resolver o problema social dos filhos nascidos fora do casamento antes da Reforma de 1977. O prazo geral de dez anos continuou a ser manifestamente insuficiente, tanto mais que, na maioria dos casos, já tinha decorrido mesmo antes de 2009. Os prazos flexíveis reportam-se a factos difíceis de demonstrar. Por outro lado, muitas vezes o filho sempre soube quem era o seu pai, com quem até se relacionou. Contudo, não foi perfilhado, por razões de conveniência social, típicas das sociedades hierarquizadas em função do género e da classe social. Neste contexto, por respeito à privacidade dos seus pais, só intenta a ação após a morte de ambos ou após a morte da mãe, que, por ser mulher e mãe solteira, já sofreu de discriminação e devassa de privacidade em dimensão muito superior àquela que poderia vir a sofrer o progenitor investigado na ação.
Sendo o direito da família o ramo do direito civil mais permeável às mutações políticas e sociais, ainda assim, na ordem jurídica portuguesa, o legislador democrático procurou, nesta matéria da investigação da paternidade, soluções de compromisso, em que os direitos fundamentais dos filhos foram sacrificados para dar satisfação às forças conservadoras da sociedade, também presentes, sob a capa do conceito de segurança jurídica, no debate que trava o Acórdão que fez vencimento. Foi assim que em 1977 não foi alterado o prazo geral de caducidade para a interposição da ação de investigação da paternidade que vigorava no Código Civil de 1966 (em contraste com o prazo mais amplo estipulado no artigo 37.º do Decreto n.º 2, de 25 de dezembro de 1910, reportado não à menoridade do investigante, mas à data da morte do pretenso pai ou da pretensa mãe) e que, em 2009, apesar do regime instaurado ser mais generoso, o Parlamento não adotou a tese da imprescritibilidade.
As pessoas sem paternidade estabelecida, a maioria nascidas antes da Reforma de 1977, foram marcadas por uma infância e juventude que, em muitos casos, teve aspetos de pobreza e discriminação, e não estão organizadas em grupo de pressão política. Daí que o legislador não tenha estado atento ou até ignore esta situação e a necessidade de a corrigir por via legal. Neste quadro, tem sido particularmente importante, para a democratização da sociedade, o papel dos tribunais comuns na recusa de aplicação da norma, que estabelece prazos de caducidade para a investigação da paternidade, por violação do direito à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, conjugado com o artigo 36.º, n.º 1, ambos da CRP). Caberia, portanto, ao Tribunal Constitucional, por impulso dos tribunais comuns, fazer cumprir a Constituição em contraste com a “timidez” do legislador democrático que não conseguiu abandonar o sistema de prazos, já abolido noutros países congéneres do nosso, como a Espanha, a Itália, a Alemanha, o Brasil, e os países africanos de língua portuguesa (Cabo Verde e Angola) e Macau (embora em Macau a ação se dirijam apenas ao estabelecimento da filiação, sem os efeitos sucessórios correspondentes). Contudo, lamentavelmente, incumpriu agora o Tribunal Constitucional o papel que lhe cabe de guardião da Constituição e dos direitos fundamentais do indivíduo, cedendo às conceções conservadoras, que perpetuam a discriminação e a desigualdade social. Neste ponto, demonstra-se que estão os tribunais comuns, que têm recusado a aplicação da norma agora questionada, mais próximos da realidade social do país e com mais habilitações para serem intérpretes da sociedade e para protegerem os direitos fundamentais em causa.
Como se afirmou no Acórdão n.º 488/2018, por mim relatado, retratando a situação jurídica e social atual:
«A atestar esta falta de consenso e a necessidade social de uma posterior reponderação, surgem nos tribunais comuns, com frequência, ações de investigação da paternidade intentadas por pessoas nascidas antes da Reforma de 1977, época em que vigorava na ordem jurídica o princípio da proibição da investigação da paternidade e em que os filhos nascidos fora do casamento sofriam uma forte discriminação social e patrimonial. Esta realidade sociológica continua presente na sociedade portuguesa, com os filhos a interpor as ações de investigação da paternidade, fora do prazo legal, muitas vezes apenas após a morte da mãe, a fim de a proteger contra a devassa da sua vida privada normalmente implicada nestes processos, tendo em conta que até meados da década de noventa do século XX o uso de exames científicos se revelou ser muito restrito e de eficácia probatória reduzida (cf. Helena Machado, Moralizar para identificar, Cenários da Investigação Judicial da Paternidade, Centro de Estudos Sociais, Porto, 2007, pp. 22 e 158-163). Recentemente, o Acórdão n.º 225/2018 alterou a jurisprudência deste Tribunal no que diz respeito ao direito da pessoa concebida por PMA conhecer as suas origens e a identidade civil do dador de gâmetas, tendo sido declarado inconstitucional o princípio-regra do anonimato, visto como «uma afetação indubitavelmente gravosa dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados no artigo 26.º, n.º 1, da CRP». Também no domínio do direito positivo, o direito a conhecer as origens sofreu uma maior valorização com a Lei n.º 143/2015, de 8 de setembro, que reconhece às pessoas adotadas o direito de a partir dos 16 anos solicitarem ao organismo de segurança social a identidade dos seus pais biológicos (artigo 6.º, n.º 1, da citada lei e artigo 1990.º-A do Código Civil). Estas alterações normativas e jurisprudenciais, pese embora a diferença, também assinalada no Acórdão n.º 225/18, entre a ação da investigação da paternidade e o conhecimento da identidade civil do dador, não deixam incólume o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade.
É certo que o objeto da ação de investigação da paternidade dirige-se, não só ao conhecimento da identidade do progenitor biológico, mas também ao reconhecimento judicial do vínculo da paternidade com os respetivos efeitos jurídicos, tendo, portanto, implicações para terceiros (os herdeiros do pretenso pai) e para o investigado que estão ausentes na revelação da identidade do dador. Todavia, o estabelecimento da paternidade constitui um elemento relacionado com um aspeto da personalidade e da identidade pessoal de muito maior relevo (individual e de ordem pública) do que o mero conhecimento da identidade de um dador de gâmetas. A filiação fixa o lugar da pessoa no sistema de parentesco e confere-lhe um estatuto jurídico pessoal – o estado da pessoa. Por maioria de razão, perdem, assim, peso os argumentos para negar ao filho, autor da ação de investigação da paternidade, os seus direitos à identidade pessoal e ao reconhecimento da paternidade. Não por se tratar da procura da verdade biológica, pois esta não corresponde a qualquer imperativo constitucional autónomo nem exige uma tutela absolutizada, de nível máximo, mas por estar em causa um contexto situacional, em que a determinação da progenitura biológica consiste numa componente central da identidade pessoal e relacional do indivíduo, bem como da sua inserção na família e na sociedade, em termos que não têm qualquer paralelo com o conhecimento da identidade de um dador de gâmetas (destaque nosso).
De acordo com a orientação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/2009, «A identidade pessoa é um conceito referido à pessoa que se constrói ao longo da vida em vista das relações que nela se estabelecem, sendo que os vínculos biológicos são apenas um aspeto dessa realidade» (…) «Assim sendo, as posições jurídicas contidas no direito à identidade pessoal, como seja o direito ao conhecimento das origens genéticas, não têm necessariamente uma força jurídico-constitucional uniforme e totalmente independente dos diferentes contextos em que efetivamente se desenvolve essa identidade pessoal».
Ora, a relevância do contexto permite atribuir maior relevo ao conhecimento da identidade do progenitor biológico no âmbito da investigação da paternidade – em que está em causa, não apenas um contributo genético, mas o estado familiar da pessoa e, portanto, a sua vida de relação com os outros – do que na PMA heteróloga, em que o dador não assume o estatuto de pai. É que, como também se afirma no Acórdão n.º 101/2009, «A imagem da pessoa que a Constituição supõe não é apenas a de um indivíduo vivendo isoladamente possuidor de um determinado código genético; a Constituição supõe uma imagem mais ampla da pessoa, supõe a pessoa integrada na realidade efetiva das suas relações familiares e humano-sociais».
À luz destes valores jurídico-constitucionais é questionável que os argumentos que pesaram a favor da fixação de prazos de caducidade possam ainda hoje ser válidos, estando esvaziado ou, pelo menos, manifestamente reduzido o alcance axiológico dos argumentos da segurança jurídica e da proteção da reserva da intimidade da vida privada do investigado.
Neste novo contexto, está verificada a necessidade de a questão da constitucionalidade da norma constante do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil (na redação da Lei n.º 14/2009) ser revista por uma diferente composição do Tribunal Constitucional, ponderando-se agora, pela primeira vez, a questão mais geral da legitimidade constitucional de um prazo para o exercício da ação.
Torna-se, assim, claro que o regime fixado na lei n.º 14/2009, de 1 de abril, que manteve a fixação de um prazo geral de caducidade, não encontrou o seu «ponto de cristalização e de estabilização» (cf. Joaquim de Sousa Ribeiro, «A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade», RLJ, Ano 147.º, N.º 4009, Março-Abril, 2018) p. 238), sendo necessário «um novo olhar» sobre a constitucionalidade da existência de um prazo de caducidade para as ações de investigação da paternidade, em face do crescente valor dos bens jurídicos pessoalíssimos sacrificados pela caducidade, e cuja necessidade de compressão cada vez menos se reconhece, quer na ordem jurídico-constitucional, quer na consciência coletiva. No mesmo sentido milita a preocupação crescente com a verdade e a transparência nas relações familiares e nas relações entre o Estado e os cidadãos».
2. O acórdão que fez vencimento baseia o essencial da sua fundamentação na liberdade de conformação do legislador para estabelecer condições e limites de ordem temporal ao exercício do direito de ação, em confronto com o direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP.
Invoca, como referência, a jurisprudência do Tribunal Constitucional a propósito da fixação legal de prazos de caducidade para o exercício de direitos de crédito ou outros direitos patrimoniais (o Acórdão 8/2012 refere-se ao prazo de reclamação dos créditos em processo de insolvência; o Acórdão n.º 70/2000, ao prazo de caducidade para reconhecimento dos direitos constituídos com o deferimento tácito de um pedido de licenciamento de um loteamento; o Acórdão n.º 299/1995, ao prazo de caducidade do direito do locador à resolução do contrato de arrendamento; o Acórdão n.º 242/2002, ao prazo de caducidade do pedido de indemnização contra o Estado por privação da liberdade ilegal ou injustificada).
No debate sobre a concordância prática entre os direitos em conflito, nas normas que estipulam prazos de caducidade, o Acórdão que fez vencimento acaba por equiparar, na transposição que faz da jurisprudência citada para a questão da constitucionalidade da existência de um prazo de caducidade para as ações de investigação de paternidade – um direito fundamental pessoalíssimo e de grande transcendência para o indivíduo – com direitos de natureza patrimonial, o que representa um recuo na jurisprudência do Tribunal Constitucional.
A fundamentação, que estabelece a analogia entre os prazos para a interposição de ações de natureza patrimonial e os prazos da ação de investigação da paternidade, está em total contradição com a natureza pessoalíssima do direito fundamental – direito à identidade pessoal – em causa nas ações de investigação da paternidade, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, e com o princípio, constitucionalmente fundado, da primazia dos bens jurídicos pessoais sobre os bens jurídicos patrimoniais, conforme decorre do artigo 1.º da Constituição que consagra a dignidade da pessoa humana como o fundamento do Estado de Direito e foi também defendido no Acórdão n.º 23/2006. Todo o direito civil, e, por maioria de razão, o direito da família, atinente à parte mais íntima e profunda da vida das pessoas, foram afetados pelo movimento de despatrimonialização, que faz prevalecer os valores pessoais sobre os patrimoniais, tendo por consequência necessária, no domínio agora tratado, que da conformidade constitucional dos prazos das ações destinadas a fazer valer direitos patrimoniais nada pode ser deduzido para a análise das questões de constitucionalidade dos prazos para a ação de investigação da paternidade. É que o direito à identidade é um direito fundamental de que todas as pessoas são titulares por serem humanas, decorrendo do lado mais profundo da pessoa humana e da sua necessidade de autoconhecimento e autodefinição. Não se trata, assim, de um direito reduzido à tutela judicial efetiva, mas de um direito inerente à própria condição humana e que nenhum Estado tem legitimidade para negar ou condicionar pelo estabelecimento de prazos.
Esta comparação, a que procedeu o Acórdão que fez vencimento, com a tutela judicial que recebem os direitos patrimoniais, consiste numa apreciação manifestamente incorreta dos interesses ou valores em presença, e que desconsidera a perda que o prazo de caducidade do direito de ação determina para o investigante. Este, com a extinção, aos vinte e oito anos de idade, do direito a saber quem é o pai, sofre prejuízos não patrimoniais, que afetam o cerne da sua personalidade, liberdade, estado pessoal e identidade, de valor não mensurável, nem equiparável à perda patrimonial do autor que tardiamente exerce um direito de resolução do contrato de arrendamento ou um direito de reclamação de créditos.
3. O Acórdão, que agora fez vencimento, fundamenta a tese da constitucionalidade do prazo de caducidade na necessidade de incentivar os investigantes a intentar a ação o mais prematuramente possível a tempo de beneficiarem de proteção na infância e na juventude.
O presente Acórdão confunde o bem jurídico em causa – a identidade pessoal – com a proteção da infância e da juventude. Ou seja, não só não lhe atribui um peso diferenciado e mais valioso do que o atribuído aos bens jurídicos patrimoniais ou à propriedade, como vimos no ponto anterior, como o confunde com outros valores não abrangidos pela tutela constitucional da identidade pessoal, que se dirige tão-só ao direito que as pessoas têm, em qualquer idade, à verdade sobre o seu lugar no sistema de parentesco e à autodefinição de si mesmo/a. A dimensão funcional do efeito da filiação – as responsabilidades parentais – quando o/a investigante é menor de idade, nada tem a ver com o direito à identidade pessoal, que assume uma dimensão exclusiva do conhecimento das raízes e da autodefinição de si mesmo/a.
O Acórdão falha assim na identificação do bem jurídico protegido, que não é a proteção das crianças e dos jovens, mas a identidade pessoal ou a procura do lugar do indivíduo no sistema de parentesco, problema que geralmente afeta mais os adultos do que as crianças e os jovens, não se esbatendo a sua premência com a passagem do tempo, podendo constituir, pelo contrário, uma necessidade existencial de uma pessoa já idosa que quer deixar aos seus descendentes a sua filiação e apelidos de família, bem como a verdade sobre a sua história e a dos seus pais.
Já o Acórdão n.º 23/2006 assim definia o direito à identidade pessoal:
«Compreende-se, aliás, que seja assim, pois o direito à identidade pessoal inclui, não apenas o interesse na identificação pessoal (na não confundibilidade com os outros) e na constituição daquela identidade, como também, enquanto pressuposto para esta auto-definição, o direito ao conhecimento das próprias raízes. Mesmo sem compromisso com quaisquer determinismos, não custa reconhecer que saber quem se é remete logo (pelo menos também) para saber quais são os antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas e culturais, e também genéticas (cfr., aliás, também a referência a uma “identidade genética”, que o artigo 26.º, n.º 3, da Constituição considera constitucionalmente relevante). Tal aspecto da personalidade – a historicidade pessoal (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 179, falam justamente de um “direito à historicidade pessoal”) – implica, pois, a existência de meios legais para demonstração dos vínculos biológicos em causa (note-se, aliás, que os exames biológicos conducentes à determinação de filiação podem ser realizados, fora dos processos judiciais, e a pedido de particulares, sem qualquer limitação temporal, pelos próprios serviços do Instituto Nacional de Medicina Legal, nos termos do artigo 31.º do Decreto Lei n.º 11/98, de 24 de Janeiro), bem como o reconhecimento jurídico desses vínculos.
Deve, pois, dar-se por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade».
A presunção de que o estabelecimento da filiação tem a sua dimensão mais importante durante a menoridade, esquece que existem entre pais e filhos, em todas as fases da vida, deveres mútuos de respeito, auxílio e assistência (artigo 1874.º do Código Civil) e que esta solidariedade familiar se repercute em deveres de alimentos recíprocos entre pais e filhos adultos, segundo os artigos 1874.º, n.º 2 e 2009.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, em situações de insuficiência de meios para fazer face a necessidades básicas de sobrevivência, por exemplo, desemprego, velhice ou doença grave e prolongada. Por outro lado, os efeitos sucessórios são ainda uma forma de os pais auxiliarem economicamente os filhos, o que se torna ainda mais relevante em relação a filhos nascidos fora de casamento, que, em regra, não beneficiaram desse auxílio.
4. Não se pode olvidar, na análise desta questão de constitucionalidade, o contexto jurídico que provocou o não reconhecimento da paternidade das pessoas que hoje são autoras destas ações.
A Justiça Constitucional, embora de natureza mais abstrata do que a Justiça praticada pelos tribunais comuns e baseada noutro tipo de argumentos, existe ao serviço da pessoa humana e dos seus direitos fundamentais, não podendo deixar de considerar, na interpretação e aplicação das normas constitucionais paramétricas, o «sujeito contextualizado», em vez do sujeito como conceito universal da teoria geral do direito.
Os sujeitos que invocam a imprescritibilidade destas ações, ao abrigo do direito à identidade pessoal, são, sobretudo, as pessoas nascidas antes da reforma de 1977, época em que vigorava o princípio da proibição das ações de investigação da paternidade fora do casamento, apenas admitidas em casos excecionais, dependentes de determinados requisitos, os chamados “pressupostos de admissibilidade da ação” (artigo 1860.º do Código Civil de 1966). Os obstáculos à admissibilidade da investigação da paternidade impunham-se, de acordo com as conceções da época, «pela necessidade que havia em proteger a família legítima ou a dignidade e honra dos indivíduos não casados (…) e de evitar a perturbação social (o escândalo) a que tais processos se prestavam de sobremaneira» (cf. Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, Coimbra, 1978, p. 112). Para além de obstáculos à interposição de ações, o legislador, a fim de proteger a integridade do património da família conjugal, dava melhores direitos sucessórios aos filhos “legítimos”, desfavorecendo os “ilegítimos”, a quem cabia, na sucessão de descendentes, uma quota hereditária igual a metade da atribuída aos primeiros (artigo 2139.º, n.º 2, do Código Civil de 1966).
Vejamos quem são estes sujeitos, reproduzindo excertos da matéria de facto dos numerosos acórdãos dos tribunais comuns sobre esta matéria:
«O autor da ação, nascido em 1945, sempre foi reputado como filho pelo investigado, que, até falecer, tratou sempre o Autor como filho, que assim foi também reputado pelo público: O réu sempre, mesmo perante terceiras pessoas, o tratou como filho até falecer sempre lhe dispensou cuidados, amparo, atenção e carinho, oferecia-lhe roupas e calçado, tratava-o por “o meu filho”, e aceitava que os seus familiares, amigos e vizinhos se referissem ao autor como sendo seu filho. Só intentou o processo depois de a mãe falecer, para respeitar a sua privacidade»;
«O autor, trabalhador da construção civil, nascido em 1967, alegou ter tido conhecimento da identidade do pai biológico, apenas com 45 anos de idade, data do falecimento da sua mãe, tendo sabido por familiares que a sua mãe com 14 anos de idade e com uma deficiência motora, tinha sido abusada pelo dentista durante uma consulta e assim engravidara».
«O autor, nascido em 1947 encontra-se registado como filho de EE e pai incógnito. Algum tempo antes da sua morte, a mãe do Autor confidenciou-lhe quem era o seu pai, o que sempre lhe havia ocultado, sendo o seu pai o filho dos “patrões” em cuja casa tinha trabalhado como empregada doméstica, entre 1945 e 1948, e com quem tinha mantido um envolvimento amoroso».
«O autor, nascido em 1959, com assento omisso na menção da sua paternidade, alega, o que se provou, ter a sua mãe e o falecido FF travado conhecimento por aquela ser empregada doméstica na casa dos pais deste e onde aquele residia à data; ter o falecido FF seduzido sua mãe, iniciando-se entre ambos um relacionamento íntimo, desde pelo menos meados de 1955, que perdurou até pelo menos julho de 1958, altura em que sua mãe foi despedida por os pais do falecido CC terem descoberto que se encontrava grávida; Foram realizados no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP, exames ao sangue colhido aos Autor e 2º, 3º e 4º Réus do que resultou a elaboração do respetivo laudo pericial, segundo o qual FF não pode ser excluído como pai biológico do Autor e a análise estatística da probabilidade de FF ser pai do Autor quando comparado ao acaso com um indivíduo da mesma população, conduziu a uma probabilidade de w=99,8%. Os recorridos alegaram essencialmente que, durante o período de conceção, a mãe do Autor manteve relações sexuais com vários homens, podendo qualquer um deles, ser o pai do Autor; alegam que na década de 60 a mãe do Autor, em representação deste, intentou ação de investigação da paternidade contra o falecido FF, tendo sido proferida sentença, transitada em julgado, que julgou a ação improcedente, absolvendo o FF do pedido».
«Com cerca de 18 anos de idade a mãe dos A.A. começou a exercer a actividade de criada de servir em casa dos avós paternos do Réu CC. Ali habitando permanentemente, trabalhando, dormindo e comendo as suas refeições (2º). O Réu CC viveu parte da sua infância com os avós paternos e ao longo do ano de 1962 era pelo menos visita frequente de tal casa dos avós paternos (3º). Pelo menos ao longo do ano de 1962 os Réus CC e FF mantiveram entre si um número indeterminado de relações sexuais de cópula completa (4º a 10°). A Ré FF nunca antes tivera relações sexuais com outro homem, sendo o Réu CC o único homem que conheceu sexual e amorosamente desde 1962 e nos anos seguintes (11° e 12°). Em resultado dessas relações sexuais com o Réu CC ficou grávida da A. BB (13°)».
Estes casos permitem constatar realidades ou contextos importantes para compreender o bem jurídico em causa na presente questão de constitucionalidade: os autores destas ações nasceram antes da Reforma de 1977, período histórico em que a ordem jurídica protegia apenas a família matrimonial, discriminava, jurídica e socialmente, os filhos nascidos fora do casamento – os filhos «ilegítimos» - e estigmatizava as suas mães, designadas por «mães solteiras», que, nas situações sociais típicas, eram pobres e vulneráveis, por vezes crianças, na sua maioria, mulheres muito jovens. Na ordem jurídica de então vigorava um princípio de proibição da investigação da paternidade fora do casamento, cuja consequência era a irresponsabilidade dos homens pela procriação e a oneração exclusiva das mulheres com a geração e educação dos filhos nascidos fora do casamento. A situação de abandono, vivida pelas famílias monoparentais femininas, estava relacionada com a proteção da família matrimonial, o único modelo de família que o Estado reconhecia, e tinha por objetivo a defesa da integridade do património da família conjugal, à custa do sacrifício dos direitos dos filhos nascidos fora do casamento.
Em função deste quadro histórico e cultural, os filhos nascidos fora do casamento viveram a sua infância e juventude em contextos sociais hierarquizados, em que o investigante e a sua mãe pertenciam, em regra, a um estatuto sócio-económico inferior em relação ao do pretenso pai e em que a sexualidade fora do casamento constituía uma fonte de exclusão social das mulheres e dos filhos assim concebidos. A natureza patriarcal da sociedade é bem vísivel nas palavras de Gomes da Silva («O Direito da Família no futuro Código Civil (Segunda Parte)», BMJ, n.º 88, 1959, p. 78), quando compara o filho nascido fora do casamento a um «membro alheio, enxertado à força no corpo de um homem».
Também se encontram nos tribunais comuns investigantes nascidos, durante a década de 80/90, época em que embora já estivesse prevista na lei a ação de averiguação oficiosa da paternidade, a cargo do MP, a ter lugar até dois anos após o nascimento, ainda havia crianças que ficavam sem paternidade estabelecida em virtude da pouca fiabilidade dos exames de sangue disponíveis e do ónus da prova exigido à mãe do investigante: a exclusividade das relações sexuais com o pretenso pai durante o período legal de conceção (cf. Assento de 21 de junho de 1983). Nestes casos, era fácil ao réu levantar «dúvidas sérias» acerca da paternidade, tantas vezes com o recurso a prova sobre uma alegada vida sexual ou reputação da mãe, que não passava de juízos de valor preconceituosos ou falsos, assim se explorando estereótipos negativos das mulheres. Era exigido às mulheres uma prova diabólica de um facto negativo: que, durante o período legal de conceção, não tinham mantido nenhuma relação sexual com qualquer outro homem para além do réu. Que filho quereria então, após a maioridade, sujeitar a sua mãe a um processo destes? A esta luz, compreende-se bem que os autores destas ações muitas vezes afirmem que só decidiram colocar a ação de investigação após a morte da mãe, num momento em que já correram todos os prazos de caducidade legalmente previstos.
As considerações expostas justificam que a Constituição tenha consagrado um princípio de não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, no artigo 36.º, n.º 4, da CRP, princípio do qual se pode deduzir um reforço da natureza fundamental e pessoalíssima do direito à identidade pessoal, que tem como corolário o direito ao estabelecimento da paternidade sem dependência de prazo, suscetível de exigir, não meramente o alargamento do prazo-regra – cuja fixação concreta seria sempre, de alguma forma, arbitrária, insuficiente e geradora de injustiças – mas a inexistência de qualquer prazo.
Daí que o discurso do acórdão que fez vencimento, para fundamentar a constitucionalidade da norma que fixa um prazo de caducidade, sobre a necessidade de a paternidade ser estabelecida em tempo útil, para permitir a proteção das crianças e dos jovens (coincidente com Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, 1995), seja completamente desajustado da realidade social a que se dirige a decisão do presente Acórdão. Esta realidade refere-se ao passado, isto é, aos direitos de um grupo de pessoas que nasceram e viveram toda a sua infância ou parte dela num quadro jurídico em que lhes era vedado ou altamente dificultado (mediante pressupostos de admissibilidade) o exercício do direito. Atualmente, as ações de averiguação oficiosa da paternidade permitem resolver a maioria dos casos da filiação de crianças nascidas fora do casamento cujos progenitores não as perfilham, sem esquecer, de resto, que a maioria das crianças nascidas fora do casamento são filhas de pais que vivem em união de facto e são perfilhadas imediatamente pelo pai. Após a Reforma de 1977, com a introdução do princípio da verdade biológica no estabelecimento da filiação e um sistema livre de investigação da paternidade, apoiado na prova direta da procriação, mais tarde facilitada por exames de ADN, serão raros os casos de pessoas que cheguem à maioridade sem paternidade estabelecida a justificar o discurso do presente Acórdão. Mesmo nos casos em que o pretenso pai não cumpre o dever jurídico de perfilhar, o estabelecimento da filiação tende a ser feito durante a menoridade dos filhos, em virtude do dever de o Estado proceder à averiguação oficiosa da paternidade (artigo 1865.º do Código Civil).
5. O argumento mais invocado neste debate costuma ser a questão dos direitos sucessórios, associada à segurança jurídica dos outros herdeiros legitimários do investigado. Esta preocupação, contudo, perdeu o relevo económico que tinha nas sociedades pré-industriais, em que o bem imóvel era o tipo mais significativo de riqueza. A forma predominante de riqueza, hoje, é a que se constitui graças ao rendimento do trabalho em produtos bancários, que se transmitem à margem do Direito das Sucessões. Por outro lado, o risco de os efeitos sucessórios do estabelecimento da paternidade provocarem uma divisão do património imobiliário, contra as expetativas dos herdeiros do pretenso pai, é diminuto, pois, por força do decurso do tempo, já foram, em regra, adquiridos por usucapião.
É descabido, até hipócrita, o argumento normalmente usado neste debate e reproduzido no Acórdão que fez vencimento, segundo o qual a interposição tardia da ação de investigação da paternidade resulta de um objetivo egoístico e patrimonial do investigante, que apenas procuraria obter, com a ação, os efeitos sucessórios decorrentes da qualidade de herdeiro legitimário. A este propósito, deve notar-se que a lei não exige comunidade de afetos com o de cujus para que se produzam os efeitos sucessórios, sendo comum, nas famílias fundadas no casamento, que alguns filhos, que nunca se interessaram pelos seus pais nem os auxiliaram na velhice, venham exigir, após a morte, a sua herança, tendo os requisitos de indignidade sucessória pressupostos muito apertados que não abrangem estas situações. Por maioria de razão, num contexto em que não foi o filho que se afastou do pretenso pai, mas, pelo contrário, este que o abandonou ou, nos casos de posse de estado (tratamento como filho), decidiu não o perfilhar, recusando assumir o estatuto jurídico de pai, não pode o juiz constitucional, na aplicação do princípio da proibição da insuficiência da tutela dos direitos fundamentais, censurar uma eventual busca – impossível de sindicar e que não pode presumir-se – pelos investigantes dos efeitos sucessórios da filiação. Estes efeitos são os únicos de que afinal poderão beneficiar, dado que durante a infância e juventude, o seu progenitor não assumiu, em regra, qualquer responsabilidade familiar nem patrimonial. Os alimentos e os efeitos sucessórios são os principais esteios das relações familiares, sobretudo, das relações de filiação, e não se podem reduzir a meras questões patrimoniais, pois constituem ainda uma forma de responsabilidade pela procriação. Ora, um filho, que, durante a menoridade, se viu privado, em relação ao investigado, seu pretenso pai, do apoio financeiro e afetivo que os pais costumam proporcionar, resta-lhe apenas a obtenção do seu direito à herança, o qual, mesmo que exercido tardiamente, não se pode considerar abusivo, num contexto legal em que os restantes herdeiros o podem exercer a todo o tempo, nos termos do artigo 2075.º do Código Civil, e sem que tenha por base qualquer relação afetiva com o progenitor. Por outro lado, os conflitos sucessórios entre os herdeiros do progenitor, nascidos na família conjugal do investigado, e o investigante, que estabelece tardiamente a paternidade, tendem a perder qualquer eficácia prática no futuro, em que se prevê que o direito sucessório sofra profundas mutações provocadas pelo aumento da esperança de vida, que cria a necessidade de criar critérios distintos dos atuais na partilha do património do de cujus, beneficiando a posição sucessória dos filhos que prestaram apoio económico e cuidados aos pais na velhice e na doença.
6. Em relação à tutela da intimidade da vida privada do investigado e da família entretanto constituída, a quem a revelação da existência de um filho fora do casamento pode causar danos de constrangimento e exposição, deve afirmar-se que este argumento foi relevante à luz das sociedades conservadoras que queriam proteger a integridade do património patrimonial, preservando a ideia de que a sexualidade só era vivida dentro do casamento, mas tem que perder hoje o seu peso em sociedades com costumes e valores distintos. Tanto mais que, do lado do direito do investigante, milita também o interesse público do Estado no estabelecimento da filiação. Por outro lado, o direito à identidade pessoal reveste-se de uma dimensão mais profunda e estrutural para a construção da personalidade do indivíduo, e da sua vida relacional e social, do que o interesse do investigado na proteção da sua privacidade, interesse que, ao contrário da necessidade do investigante conhecer a sua história e raízes, diminui de intensidade com a passagem do tempo e quando se reporta a factos antigos. Por outro lado, como se afirmou no Acórdão n.º 488/18, à luz da consciência social atual, a responsabilidade pela procriação prevalece sobre a privacidade do investigado, até porque não existe um direito nem sequer um interesse juridicamente tutelável deste, que participou num relacionamento biológico e afetivo de consequências reprodutivas, em não assumir a responsabilidade jurídica desse ato. Na cultura social e jurídica atual, o Estado responsabiliza os progenitores biológicos pela procriação, e tem um interesse de ordem pública em que estes vínculos biológicos adquiram a devida relevância jurídica no domínio do direito da filiação e do estado da pessoa, para além da maioridade dos filhos e independentemente de qualquer relação afetiva entre pais e filhos, a fim de evitar a possibilidade de relações de consanguinidade e para permitir a observância do sistema de impedimentos matrimoniais.
Por último, após o Tribunal Constitucional ter reconhecido à pessoa concebida por PMA, que não tem o estatuto jurídico de filho, o direito a conhecer a identidade civil do dador, atribuindo a este direito uma tutela “absolutizada”, ficam substancialmente enfraquecidos os argumentos para negar o mesmo direito aos filhos sem paternidade estabelecida, que venham a intentar uma ação de investigação da paternidade após o decurso do prazo de caducidade, tanto mais que, nestes casos pode ter existido relação afetiva ou social, entre o investigado e o autor da ação, situações designadas por posse de estado, e existiu sempre uma relação entre a mãe do investigante e o investigado, que faz parte da história da vida pessoal destes e da vida dos filhos que tiveram.
7. Pelo exposto, decorre que, sendo a ação de investigação da paternidade o único meio ao dispor dos indivíduos para o reconhecimento do seu direito à identidade pessoal, o Estado não detém margem de liberdade de apreciação para adotar qualquer prazo de caducidade. É certo que nos situamos no domínio do dever de proteção do Estado de direitos fundamentais nas relações entre particulares, em que o parâmetro de controlo é analisado através do princípio da proibição do défice ou da proibição da insuficiência, que exige a consideração, pelo juiz constitucional, dos direitos fundamentais dos particulares de ambos os lados do conflito, na medida em que o cumprimento do dever de proteção do direito do investigante vai provocar uma intervenção restritiva nos direitos fundamentais do investigado e da sua família mesmo sem previsão legal. Contudo, com essas reservas, mas assumindo as suas responsabilidades na proteção dos direitos fundamentais, o juiz constitucional, após aplicar a norma do ramo de direito em causa, restritiva dos direitos fundamentais de uma das partes, procede a uma ponderação entre os bens e interesses em disputa e verifica se os direitos fundamentais potencialmente afetados pela norma foram inconstitucionalmente agredidos ou ficaram inconstitucionalmente desprotegidos (cf. Reis Novais, Direitos fundamentais nas relações entre particulares, Coimbra, Almedina, 2018, p. 228). Para este efeito, a doutrina admite que o princípio da proibição do défice não se reduza à garantia de um mínimo de proteção, ou seja, mesmo que a proteção mínima esteja já assegurada pela norma questionada, é legítimo que o juiz constitucional proceda a uma exigência de razoabilidade que, em última análise, confere efetividade ao princípio mesmo nas situações em que a proteção mínima já está assegurada (cf. Reis Novais, ob. cit., p. 348). Sendo assim, o controlo de razoabilidade desloca-se «do terreno do conteúdo da proteção prestada ou em falta para o plano da avaliação das consequências que a omissão estatal em causa gera na esfera jurídica pessoal dos afetados». Ora, na medida em que a norma questionada no presente processo estabelece, para o exercício do direito de ação destinada a fazer valer um direito pessoalíssimo, um prazo de caducidade cujo decurso determina a extinção do direito fundamental, porque o seu titular não tem outra forma de o exercer que não seja o direito de ação, cabe ao Tribunal Constitucional um dever de proteção estatal suplementar para lá do controlo mínimo que o Acórdão que fez vencimento aplica. Os padrões de controlo da constitucionalidade não são fixáveis de forma definitiva, geral e abstrata, pois lidamos com um «critério aberto», em que o patamar de proteção exigível se apura através de uma avaliação casuística das circunstâncias do caso concreto (cf. Reis Novais, ob. cit., pp. 347 e 349). A jurisprudência do Tribunal Constitucional também aceita a influência de elementos empíricos, científicos e sociais nos juízos de ponderação necessários para a apreciação da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, à luz do princípio da proporcionalidade (cf. Acórdãos n.ºs 187/2001, 23/2006 e 632/2008). Sendo assim, a reforçar a necessidade de um controlo mais exigente aponta também a circunstância, já descrita, de que está em causa um grupo de pessoas que foi historicamente discriminada pelo próprio legislador: os filhos nascidos fora do casamento numa época histórica em que lhes estava vedado ou altamente dificultado o exercício do direito. Além disto, o Acórdão que fez vencimento não ponderou a relevância do interesse público do Estado no estabelecimento da filiação de todos os cidadãos, interesse público que reforça o peso e a intensidade do direito à identidade pessoal e enfraquece os interesses de privacidade e de segurança jurídica do investigado e da sua família.
Nem serve de qualquer valia invocar, para a apreciação da constitucionalidade da norma, como também fez o presente Acórdão, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a margem de apreciação que concede aos Estados, na medida em que esta constitui apenas um standard mínimo de proteção dos direitos fundamentais, que não impede que a Constituição dos Estados, maxime, a Constituição de 1976, estabeleça um patamar de proteção mais elevado do direito à identidade pessoal. O Tribunal Constitucional não tem reconhecido às normas de direito internacional valor paramétrico autónomo, usando-as apenas como elementos de interpretação das normas constitucionais, sempre que contribuam para o alargamento do conteúdo e a densificação dos direitos fundamentais consagrados na Constituição, que, além do mais, contém uma lista de direitos mais extensa do que a CEDH (Acórdãos n.ºs 101/2009, 185/10, 281/11, 360/12, 327/13 e 404/13). Na verdade, a Convenção Europeia dos Direitos Fundamentais, diferentemente da Constituição, não reconhece expressamente o direito à identidade pessoal, que resulta apenas de uma interpretação ampla ou atualista do artigo 8.º da CEDH, que consagra o direito à proteção da vida privada e familiar. Sendo assim, compreende-se que a jurisprudência do TEDH analise esta questão como um conflito entre direitos do mesmo valor, sem atribuir um especial peso à identidade pessoal do investigante, diluída no direito à vida privada e familiar, e de alguma forma vista como simétrica ou equivalente à privacidade do investigado e da sua família. Por outro lado, o conceito de espaço de livre conformação do legislador, na jurisprudência do TEDH, não pode ser transposto, como faz o presente Acórdão, para a justiça constitucional. Este conceito reporta-se a um consenso possível e provisório entre Estados com legislações e culturas distintas, e apresenta até uma natureza evolutiva, não dogmática. Já na justiça constitucional, para aferir se o legislador democrático tem ou não uma margem de liberdade de determinação atende-se a elementos jurídicos, empíricos e sociais referentes unicamente à sociedade portuguesa e à sua história. E, no contexto acima abordado, em relação ao qual a Constituição assumiu, como princípio constitucional de direito da família, a proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP), bem como a consagração expressa de um direito à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), o controlo da constitucionalidade da medida restritiva do direito fundamental não pode deixar de ser exigente e rigoroso, retirando ao legislador a margem de determinação para o estabelecimento de prazos de caducidade do direito de ação de investigação.
Da avaliação da intensidade e da natureza das consequências que o regime dos prazos de caducidade produz para o investigante e para o investigado, resulta que o investigante, vendo o seu direito extinguir-se por força de um prazo de caducidade, fica privado do direito a saber quem é o pai e de constituir a correspondente relação familiar, bem como de preencher o seu lugar no sistema de parentesco e de transmitir aos seus descendentes a sua verdade biológica e social. Estes prejuízos, que atingem o núcleo essencial da existência do investigante como pessoa – e cujo impacto, dada a subjetividade inerente, não pode afirmar-se diminuir com o tempo – são claramente desproporcionados em relação às desvantagens resultantes, para o investigado e sua família, da ação de investigação, que apenas se reportam à privacidade destes, em medida pouco intensa, porque os factos revelados no processo se referem a um tempo já remoto e as ações de investigação bastam-se, para a prova da paternidade, com exames de ADN (sem a devassa exigida noutros tempos). Na hipótese de se virem, eventualmente, a produzir efeitos sucessórios, essas desvantagens serão de natureza patrimonial, mas é consensual, de acordo com a hierarquia de valores da Constituição, que confere primazia aos bens jurídicos pessoais sobre os patrimoniais, que sempre serão de menor peso do que o sacrifício pessoal exigido ao investigante, a quem é negado o direito a estabelecer a paternidade, definindo a sua identidade e estado familiar.
Relativamente ao argumento utilizado no Acórdão, que se refere ao alegado efeito que a passagem do tempo teria no enriquecimento da vida relacional e social do investigante, suprindo ou diminuindo o relevo da lacuna deixada pela omissão da sua paternidade, este anula-se, por ser reversível: é que pode ser precisamente a passagem do tempo e a existência de outras pessoas na vida familiar do investigante, bem como a sua inserção social e comunitária, que tornam imperativo o estabelecimento da paternidade, cabendo apenas ao titular do direito, de acordo com o desenvolvimento da sua personalidade e das suas circunstâncias, fazer essa apreciação e escolher o momento para a interposição da ação.
Também não se pode equiparar o efeito preclusivo da caducidade no direito à identidade pessoal e familiar do investigante com um suposto direito de terceiros (o investigado e os seus descendentes) a não ver a sua identidade alterada com uma nova relação familiar, adquirindo o estatuto de pai ou de irmão/irmã, como defende a tese vencedora. Em relação ao investigado, como o estatuto de pai resulta da sua participação num ato procriativo gerador de responsabilidades, em relação às quais a ordem jurídica não pode permitir nem legitimar qualquer fuga, não se reconhece relevância a esse interesse quando comparado com o direito à identidade pessoal da pessoa que gerou. No que diz respeito ao estabelecimento da filiação, os interesses de pais e filhos não são simétricos, mesmo quando os filhos já são adultos. Os filhos não pediram para nascer e são os pais que são responsáveis por eles, mesmo que essa responsabilidade se reduza à atribuição de um estado pessoal ou de família. Quanto aos irmãos ou outros parentes, na verdade, não se verifica qualquer consequência na identidade destes, pois mantêm incólume a sua filiação e o seu estado pessoal. O eventual incómodo com a existência jurídica de um irmão ou irmã biológico/a com o qual não contavam não passa disso mesmo – um mero desconforto de natureza psicológica ou social – sem qualquer valia jurídico-constitucional quando confrontado com as consequências geradas para o investigante pelo efeito extintivo da caducidade.
Resulta, pois, que a decisão de não inconstitucionalidade da norma questionada, que estabelece um prazo de caducidade para a ação de investigação da paternidade, produz efeitos de tal forma intensos e gravosos na esfera do afetado pela insuficiência de proteção, que este sujeito fica numa situação pessoal de desrazoabilidade, que não é tolerável à luz dos padrões do Estado de Direito e que pode ser suprida sem inconvenientes relevantes para terceiros.
8. Por último, as observações a fazer vão para o objeto do processo n.º 471/17, tal como delineado no Acórdão n.º 488/18, e para os termos em que se colocou a oposição de jurisprudência.
Afirma-se no Acórdão n.º 488/18:
«A análise da questão de constitucionalidade da norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil (na redação da Lei n.º 14/2009), e aplicável ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma, desdobra-se em dois momentos distintos: 1) em primeiro lugar, deve decidir-se se é conforme à Constituição a consagração legal de um prazo de caducidade, independentemente da sua concreta dimensão; 2) e só depois deve decidir-se, se, com a fixação do prazo de dez anos, contados da maioridade ou emancipação do investigante, o legislador respeitou o limite da suficiência da tutela face ao peso do direito à identidade pessoal perante outros valores tuteláveis.
(…)
Assim, dado o conteúdo e fundamento da decisão recorrida, que recusa a aplicação do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na medida em que «o prazo de 10 anos previsto no n.º 1 do art. 1817.º, do C. Civil é inconstitucional por constituir uma restrição injustificada do direito ao conhecimento das origens genéticas (arts. 18.º, n. º 2 e 3, 26.º, n.º 1 e 36.º, n.º 1 da CRP», integram o objeto do presente recurso de constitucionalidade a interpretação normativa que consagra a existência de uma limitação temporal ao exercício do direito, independentemente da sua concreta extensão, bem como, subsidiariamente, aquela que fixa, em dez anos após a maioridade ou emancipação, a dimensão concreta deste prazo.
No presente processo, apreciaremos, em primeiro lugar, a questão de saber se existe ou não uma imposição constitucional de uma ilimitada averiguação da verdade biológica da filiação, isto é, se é constitucionalmente admissível a fixação, pelo legislador, de qualquer prazo de caducidade. A questão da constitucionalidade do concreto limite temporal previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil assume, assim, uma natureza subsidiária, que só será abordada se a resposta à primeira questão for negativa».
Ou seja: o Acórdão recorrido apenas tratou da questão de saber se a Constituição impõe a imprescritibilidade das ações de investigação da paternidade, tendo respondido positivamente a esta questão, deixando em aberto a questão da constitucionalidade da dimensão concreta do prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação, sobre a qual não se pronunciou.
Os termos em que o Acórdão, que agora fez vencimento, definiu a oposição jurisprudencial em causa, omitem esta subdivisão da norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, em duas dimensões normativas: uma reportada à questão da constitucionalidade de qualquer prazo e outra reportada à dimensão concreta do prazo, dez anos após a maioridade ou emancipação.
Esta subdivisão do preceito em duas interpretações normativas, feita expressamente no Acórdão recorrido e à qual se reporta também o presente Acórdão n.º 394/2019, implica que os termos da oposição apenas se referem à primeira dimensão, a única sobre a qual houve efetivamente uma pronúncia do Acórdão recorrido oposta à do Acórdão fundamento (Acórdão n.º 401/2011), e que incidiu sobre a constitucionalidade da fixação de um prazo de caducidade para as ações de investigação de paternidade, mas não sobre a questão da concreta duração do prazo fixado no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil. Independentemente da semelhança entre as normas fiscalizadas, tal como plasmadas nos dispositivos dos acórdãos, não pode deixar de se atribuir relevo aos termos das interpretações normativas tal como definidos na fundamentação dos acórdãos em oposição. Conforme se descreveu, o Acórdão recorrido apenas se pronunciou sobre a questão designada como «imprescritibilidade da ação» e não sobre a concreta duração do prazo, pelo que foi só nesta exata medida – estabelecimento de um prazo, qualquer que seja a respetiva duração – que a oposição se colocou e, também, foi só nesta exata medida que o Acórdão que fez vencimento se pronunciou acerca da constitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, considerando que a Constituição não impõe a imprescritibilidade de um prazo.
O Acórdão que fez vencimento em vários passos esclarece que está a tratar da constitucionalidade do estabelecimento de um prazo de caducidade e não do concreto prazo de dez anos:
«Não pode deixar de se reconhecer que a possibilidade de instauração a todo o tempo da ação de investigação da paternidade, inclusive após o falecimento do pretenso pai, afasta o meio judicial de tutela do seu objetivo principal, que é o de assegurar a constituição de laços familiares que efetivamente cumpram a sua função de proteção e apoio, apoio que, sendo também de ordem patrimonial, é, sobretudo, de ordem educacional e afetiva».
(…)
«Contrariamente ao que se sustenta na decisão recorrida, a opção legal de estabelecer um prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade não é, pois, manifestamente infundada ou arbitrária, seja considerando o interesse público prosseguido, seja considerando os direitos fundamentais igualmente atendidos» (destaque nosso).
(…)
«Tal como se esclareceu, a fixação de limites temporais ao exercício do direito de ação de investigação da paternidade tem também por objetivo estimular a rápida instauração deste tipo de ações (…)».
Até porque nunca se pronunciou sobre a questão de saber se a concreta dimensão de dez anos do prazo de caducidade viola ou não o princípio da suficiência da tutela dos direitos fundamentais, tendo centrado os seus argumentos na questão de saber se a Constituição impõe ou não um prazo de caducidade, e embora, por vezes, se refira ao prazo com um artigo definido, “o prazo de caducidade” nunca o definiu pela sua duração concreta, nem nunca ponderou a conformidade ou não desta duração à Constituição, e, se o tivesse feito, estaríamos perante um excesso de pronúncia, dado que essa questão não foi discutida no Acórdão recorrido e não integrava a oposição jurisprudencial que se visou solucionar.
Fica, portanto, em aberto, a questão de saber se a concreta duração do prazo – 10 anos após a maioridade ou emancipação – é ou não conforme à Constituição. Pelo que os tribunais comuns, como sucedeu recentemente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/05/2019 (proc. n.º 1731/16.9T8CSC.L1.S1), poderão continuar a recusar a aplicação da norma nesta dimensão, questionando a constitucionalidade do prazo concreto de dez anos, sobretudo, tendo em conta que, para situações patrimoniais, o prazo geral de prescrição é de 20 anos (artigo 309.º do Código Civil) e que não pode ser constitucionalmente admissível que a duração de um prazo para exercer ou invocar um direito pessoalíssimo como o direito à identidade pessoal seja mais curta do que a de um prazo para invocar direitos patrimoniais.
9. A lei tem já avançado na tutela dos direitos de personalidade. Estes direitos beneficiam de regimes jurídicos especiais que decorrem de normas materialmente constitucionais, que, apesar da sua colocação sistemática em diplomas de direito ordinário, consagram direitos fundamentais extraconstitucionais, não formalmente tipificados no texto da Constituição, mas admitidos pela cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1, da CRP e gozando, por isso, da força jurídica dos direitos, liberdades e garantias prevista no artigo 18.º da CRP. É o caso do direito à livre revogabilidade das limitações voluntárias ao exercício dos direitos de personalidade, consagrado no artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil, bem como do direito a intentar recurso extraordinário de revisão relativo a direitos de personalidade, a todo o tempo, sem dependência do prazo-regra de cinco anos após o trânsito em julgado da decisão judicial impugnada, conforme estipula o artigo 697.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Estas disposições consagram, assim, o primado da proteção dos direitos de personalidade em face dos direitos patrimoniais e das vinculações contratuais, para o efeito de o seu titular poder fazer valer esses direitos a todo o tempo, sem dependência de prazo.
Neste quadro, o legislador, por razões de coerência e unidade da ordem jurídica, deve retirar todas as consequências da natureza do direito de intentar a ação de investigação da paternidade enquanto direito de personalidade fundamental, cuja tutela a Constituição impõe que não dependa de prazo, uma vez que a ação de investigação da paternidade é o único instrumento jurídico disponível para concretizar o direito à identidade pessoal das pessoas que não têm paternidade estabelecida e desejam tê-la.
A pessoa humana, à luz dos valores da Constituição, deve ter o direito de, em qualquer momento da sua vida, questionar o Estado sobre quem é e quem são os seus progenitores. Os motivos que teve para só numa fase tardia da vida intentar a ação de investigação da paternidade dizem respeito ao seu foro íntimo e estão relacionados com a sua história e a dos seus pais biológicos. Por dizerem respeito à dignidade mais profunda do ser humano – o direito a saber quem é e de onde veio – o Estado não tem legitimidade para avaliar e hierarquizar estes motivos em função do decurso do tempo (ou de qualquer outro critério), fixando um prazo para o exercício do direito da ação de investigação da paternidade.
Maria Clara Sottomayor
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido por não concordar com a decisão nem com a fundamentação. Que mobilizam a seu favor um conjunto de argumentos que, no seu conjunto, não se me afiguram decisivos. Ou porque assentam em premissas que não suportam a conclusão almejada; ou porque, mesmo quando pertinentes, são contrariados por argumentos mais ponderosos a apontar um sentido contrário. Isto por razões de que me proponho dar conta, em breve e fragmentária síntese.
Integrei a maioria que, no âmbito da 2.ª secção, aprovou o acórdão n.º 488/218, ora recorrido. E que julgou inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil (CC), na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo CC, prescreve um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado a partir da maioridade ou da emancipação. Um entendimento que, à vista dos dados então disponíveis – tendo nomeadamente em conta o panorama doutrinal e a experiência constitucional, maxime do Tribunal Constitucional e do TEDH –, se me afigurava então fundado e ajustado.
Chamado de novo a pronunciar-me sobre o problema, no contexto do caso sub judice, não descortino razões suscetíveis de abalar ou infirmar a minha convicção, impondo-me uma mudança de sentido de voto. Pelo menos não as encontrei no texto do projeto de acórdão que acaba de ser maioritariamente sufragado.
O que equivale a afirmar que saio deste processo com a crença reforçada da inconstitucionalidade de qualquer norma que estabeleça um qualquer prazo de caducidade para a instauração da ação de investigação da paternidade. Nessa medida me afastando do que vem sendo uma jurisprudência sedimentada do Tribunal Constitucional. Isto sem deixar de declinar o tributo à forma cuidadosa como o Tribunal vem ensaiando soluções de concordância prática de todos os direitos e interesses envolvidos, constitucionalmente reconhecidos e protegidos, soluções que não passem pelo julgamento de inconstitucionalidade da imposição de todo e qualquer prazo.
2. No plano estritamente normativo, deve, a meu ver, partir-se do direito à identidade pessoal, que a Constituição da República (artigo 26.º, n.º 1) nomeia e erige em autónomo e tipificado direito fundamental. Um direito de índole eminentemente pessoal, mesmo pessoalíssima, que – segundo o entendimento consensual dos autores e da jurisprudência, particularmente da jurisprudência constitucional – integra na sua compreensão axiológica e no seu halo de proteção normativa o direito ao conhecimento da paternidade. Noutra direção mas intimamente imbricado, o direito à historicidade pessoal e à verdade pessoal. O que tem como reverso a afirmação de que a ação de investigação de paternidade está primacialmente preordenada à formação, ao reconhecimento, ao reforço e à proteção do direito à identidade pessoal.
Um discurso normativo que corre em consonância e sintonia com a reflexão filosófico-antropológica, centrada sobre o sentido do conceito de pessoa, tal como ela se foi afirmando e decantando ao longo dos séculos na civilização ocidental. Tal como hoje a conhecemos e reconhecemos, a ideia de pessoa, que mergulha as raízes na Grécia clássica, sofreu um grande impulso do cristianismo e viria a conhecer um decisivo momento de consagração no iluminismo. Se, no pensamento kantiano, o que definia e singularizava a pessoa era a sua autonomia, em que radicava a dignidade humana, já nos nossos dias e pela voz de RICOUER se viria a sustentar que é a identidade que verdadeiramente suporta a autonomia, já que, segundo o filósofo, sem identidade não pode falar-se de autonomia. Acrescentando e precisando que só tem identidade quem “pode contar a história da sua vida e de a reunir numa narrativa inteligível e aceitável” (cf. M.L. PORTOCARRERO, Revista Filosófica de Coimbra, 2013, pp. 407 ss.).
Lugar incontornável e insuprível da história individual e momento nuclear da identidade pessoal, a relação de paternidade(-filiação) condiciona decisivamente o destino de cada um e imprime cunho a dimensões essenciais do modo de ser pessoa. Pelo que é e pelos efeitos que irradia, a paternidade(-filiação) constitui-se numa constante antropológica ou, se se quiser, numa dimensão ontológica da ipseidade numenal que se esconde atrás da máscara fenomenológica e relacional com que a pessoa se apresenta aos outros e se relaciona com eles.
Tudo, de resto, permitindo antecipar que os interesses e valores associados à identidade/historicidade/paternidade tenderão a ver cada vez mais exposto e reforçado o seu peso axiológico e a sua relevância prática. Isto à vista das transformações, tão profundas como aceleradas — e, ao que tudo indica, irreversíveis — registadas no plano social, com impacto particularmente dirimente sobre a família e as suas formas tradicionais de legitimação. Do mesmo passo que vê multiplicarem-se as suas expressões fenomenológicas, a família perde claramente em estabilidade tanto no plano intrínseco como extrínseco, aparecendo cada vez menos como referente de estabilidade para os seus membros e particularmente os filhos. As pessoas passam de forma cada vez mais apressada e ligeira pelo espaço e pela “cultura” da família, assumindo frequentemente novos papéis, novos laços, novas relações, em síntese, novas famílias. Cada vez com maior frequência e “normalidade”, as pessoas amanhecem fora da que fora na véspera a sua família, integradas numa nova família. Neste ambiente desertificado, a pessoa tende a migrar para dentro de si mesma, a entrincheirar-se na sua identidade/história/paternidade e a buscar aí as indispensáveis referências de sentido e suporte.
3. Como uma dimensão ontológica da pessoa, a relação de paternidade – e reflexamente a investigação de paternidade – subsiste e persiste imune à erosão do tempo, não valendo em relação a ela a intuição do poeta, tempus edax rerum (OVÍDIO). Como resulta linear, o que aqui está em causa é o “conhecimento da paternidade biológica”, que tem como reflexo o “estabelecimento do respetivo vínculo jurídico”. Esta é, assim, uma área problemática em que o discurso normativo de dever ser (A deve ser tratado como filho de B) corre paralelo e indissociavelmente vinculado a um discurso ontológico de ser (A é filho de B). A “camada” ôntica do ser normativo surge aqui como reverso da “camada” ôntica do ser biológico. E como esta não está sujeita à erosão do tempo (A é filho de B em todos os tempos da sua vida), o mesmo deve valer para aquela (A deve poder ser tratado como filho de B em todos os tempos da sua vida). Do ponto de vista dos interesses e valores nucleares e pessoalíssimos que primacialmente se jogam na relação de paternidade, é relativamente indiferente a escolha do momento – sc., da fase em que a vida humana se desdobra – escolhido para a sua atualização e validação jurídica. Não podendo fundadamente sustentar-se que o reconhecimento judicial da paternidade se reveste de maior importância nos primeiros estádios da vida do que nas etapas finais.
Não se ignora que há decorrências ou projeções da paternidade que podem assumir maior relevo e peso nas fases iniciais, onde, no essencial, se joga a subsistência, a educação, a formação da identidade, a socialização; mas não será difícil pôr a descoberto outras dimensões ou efeitos que, diferentemente, encontrem já mais próximo do entardecer da vida o tempo certo para a sua manifestação. Seja ou não assim, uma coisa sobra em qualquer caso líquida: os valores ou interesses pessoalíssimos que verdadeiramente dão sentido à relação de paternidade e à respetiva ação de investigação podem aflorar e atualizar-se, na plenitude das suas implicações e reivindicações legítimas, em qualquer fase da vida, situada algures entre o nascimento e o ocaso. Do ponto de vista destes valores ou interesses a interposição da ação de investigação de paternidade chega sempre na hora certa e em tempo útil. Nunca cedo de mais; nunca tarde de mais.
Neste como noutros domínios dos direitos fundamentais e acolhendo-me à lição de M. SCHELER, há-de prestar-se tributo à expressão da incondicionada e improgramada liberdade do homem, à procura de um “mundo em que ganhe configuração e rosto e objetivamente se represente como hermeneuta prático de si mesmo” (cf. M. BAPTISTA PEREIRA, “Filosofia e crise atual de sentido”, Tradição e Crise, I, 1986, p. 56). Não sobrando legitimidade a ninguém – nem aos terceiros, de alguma forma afetados pelo reconhecimento da paternidade e, menos ainda, ao Estado – para fazer valer a frustração das suas expectativas e responder com espanto, menos ainda com censura, de entono mais ou menos punitivo, ao momento escolhido pelo investigante para atualizar esta sua pessoalíssima dimensão. Uma censura de que o acórdão votado parece fazer-se eco ao sustentar: “O que a lei não consente – e a Constituição manifestamente não tutela – é o exercício arbitrário do direito de ação de investigação da paternidade a qualquer tempo”. A este propósito, não fará outrossim sentido nem sobrará legitimidade para o cuidado e solicitude paternalista do legislador. A justificar que este aposte em contrariar a “inércia” do interessado, impedindo que este venha a propor a ação num momento que “pode objetivamente comprometer a constituição atempada da relação jurídica de filiação”.
Importa, de resto, sublinhar a propósito que a interposição mais tardia da ação de paternidade não deve ser levada, sem mais e de forma indiferenciada, à conta de motivações necessariamente egoístas e censuráveis. Esta é, na verdade, uma decisão que pode ser exclusivamente ditada por razões do mais límpido, generoso e altruísta despojamento. Como nas constelações em que o investigante se encontra ligado por intensos sentimentos de afeto e gratidão à mãe e a seu companheiro, que lhe propiciaram um salutar ambiente familiar e lhe prodigalizaram afetos e assistência material e moral. E que, embora não renunciando à busca e construção da sua identidade, difere a propositura da ação da investigação para mais tarde. Precisamente para um tempo em que as vicissitudes — no extremo, a morte de um ou de ambos — entretanto ocorridas nas vidas e na relação da mãe e do companheiro reduzam drasticamente a danosidade e os custos (em termos de privacidade/intimidade, paz jurídica, confiança, etc.) desencadeados pela investigação. Para além disso, não pode excluir-se a possibilidade de a demanda tardia do conhecimento e reconhecimento da paternidade(-filiação) ser ditada pelo propósito de saldar dívidas de afeto e solicitude do filho em relação ao pai. Isto é, a possibilidade de o chamamento ou apelo da paternidade(-filiação) ficar tão-só a dever-se a um impulso – tão nobre como louvável – de responder à solidão e abandono do pai. É que, se calhar, Hamlet tem razão quando acredita que “há mais coisas no céu e na terra do que nós sonhamos na nossa filosofia”.
4. Resulta assim claro que a identidade pessoal, valor pessoalíssimo de eminente dignidade que pontifica no horizonte teleológico do direito ao reconhecimento da paternidade, não vê a sua densidade e peso axiológicos progressivamente esbatidos e reduzidos pelo decurso do tempo. Um tópico em que me afasto do entendimento sufragado pela maioria, que vai no sentido contrário. Uma visão das coisas, a da maioria, que resulta numa drástica e injustificada rarefação da densidade axiológica dos valores subjacentes ao direito ao reconhecimento da paternidade e, reflexamente, na redução da pertinente área de tutela. E, por vias disso, a desembocar na ideia de que, ultrapassada a fase em que mais fortemente se faz sentir a carência de assistência, educação, saúde, apenas sobrarão atrás da investigação da paternidade interesses “essencialmente patrimoniais”. E isto porquanto, “nesta fase já não é possível dar satisfação aos bens jurídicos pessoais tutelados por aqueles direitos que, por isso, viram o seu conteúdo original irremediavelmente comprimido, não por força de qualquer norma, mas por efeito da mera passagem do tempo. Pura e simplesmente, deixou de fazer sentido falar em proteção, saúde e educação; a assistência tutelável por meio dos tribunais é, agora, exclusivamente patrimonial”.
Não podem naturalmente fechar-se os olhos à presença dos interesses patrimoniais nesta fase. Interesses que, bem vistas as coisas, não estarão ausentes noutros períodos. Só que, e por um lado, a presença ou concorrência dos interesses patrimoniais não silencia nem neutraliza os valores pessoalíssimos, que continuam – intocados e irredutíveis – imanentes à área de tutela do direito ao reconhecimento da paternidade.
Por outro lado, nada permite, menos ainda impõe, que os interesses patrimoniais, só pelo facto de o serem, hajam de ser ética e juridicamente esconjurados e proscritos. Os interesses patrimoniais do investigante não merecerão consideração e proteção inferiores às que são reconhecidas e dispensadas aos interesses patrimoniais dos terceiros afetados nas suas expectativas. Terceiros que, muitas vezes, chegarão à linha de conflito numa posição de claro privilégio, porventura a reclamar e justificar oportunas medidas de compensação. Seja ou não assim, importa não desatender a reconhecida plasticidade do direito positivo de que podem sempre esperar-se as soluções idóneas a uma ajustada composição dos interesses patrimoniais em conflito.
5. Não pode, noutra direção, deixar de se problematizar a pertinência e a fecundidade heurística de outro dos supostos basilares subjacentes à tese maioritária. Concretamente: a ideia de que os custos e a danosidade que a investigação da paternidade faz recair sobre os direitos e os interesses de terceiros (privacidade/intimidade, paz jurídica, segurança, património…) sobem necessariamente de tom com a passagem do tempo. Pela sua natureza, um enunciado cognitivo, de sentido empírico. E, como tal, um juízo de facto condicionado e dependente da sua comprovada validação científica.
Uma validação que não se conhece, pelo menos não se aponta. Em causa está, além do mais, uma ideia contra a qual é possível mobilizar enunciados de idêntica natureza, de igual ou superior plausibilidade. Basta ter presentes as já assinaladas mudanças provocadas pelo decurso do tempo. Que podem desencadear transformações irreversíveis e profundas, vg. nas relações entre a mãe e o companheiro. Assim, relações que antes se julgavam consolidadas e que importava manter imunes à indiscrição e devassa e proteger contra a revelação de verdades “inconvenientes” podem tornar-se pura e simplesmente irrelevantes do ponto de vista da confidencialidade e reserva.
Também deste lado, não pode afastar-se a possibilidade de a investigação de paternidade, já no ocaso da vida, vir ao encontro do propósito de um pai investigado que, ao longo dos anos, sempre recusou aquela hipótese. Como sucederá quando, apostado em fazer um último e definitivo balanço, aquele pai decide encontrar-se com a verdade a que sempre obstinadamente se opusera. E não será necessário levar a pesquisa muito fundo nem muito longe para referenciar constelações recondutíveis a este arquétipo. E a que o direito não pode ficar indiferente, menos ainda fechar a porta.
6. Do lado dos defensores da compreensão maioritária, que se pronuncia pela solvabilidade constitucional da limitação temporal do exercício da ação de investigação de paternidade, é recorrente a alegação de que o(s) direito(s) do filho investigante – a identidade pessoal, na plenitude das suas implicações e decorrências – não configura(m) um direito(s) absoluto(s).
Sem prejuízo do seu relevo doutrinal, normativo e prático-jurídico, é um problema de que aqui não curaremos. Independentemente do carácter absoluto ou não do direito, o que é decisiva é a convicção de que os interesses, valores e direitos de terceiros, que têm sido chamados à balança da ponderação, não apresentam o peso axiológico indispensável para que, num juízo de proporcionalidade, a sua salvaguarda possa justificar o sacrifício dos direitos do filho investigante. Penso concretamente em direitos ou valores como a reserva da vida privada, o desenvolvimento da personalidade, a paz jurídica, a segurança ou o património. Tudo valores cuja dignidade axiológica resulta claramente relativizada em situações de colisão como aquela que nos ocupa. É assim mesmo à vista de valores pessoais como a privacidade/intimidade, em que reconhecidamente se projeta a própria dignidade humana.
Um topos a que, pela sua maior complexidade teórica e mais decisivas implicações prático-jurídicas, deixaremos uma referencia explícita, se bem que apressada.
Quando, nesta sede, se invoca a privacidade/intimidade, pensa-se em primeira linha na mãe do investigante e do pai investigado. Isto porquanto a ação de investigação da paternidade passa necessariamente pela intromissão e devassa da respetiva privacidade, na área nuclear e mais íntima do comportamento sexual. Importa, todavia, precisar que estes são comportamentos que estão longe de esgotar a sua relevância na esfera dos seus agentes. Eles assumem, pelo contrário, uma inequívoca e irredutível valência sistémico-social, com reflexos sobre um círculo, maior ou menor, de pessoas, em cujo centro se encontra precisamente o filho investigante. Não são, por isso, factos cuja confidencialidade e divulgação estejam cometidos ao domínio exclusivo dos seus autores. Por contenderem também com a privacidade/intimidade do filho, eles caem igualmente na sua área de disponibilidade. Pelo menos e seguramente, na medida necessária à concretização da ação de investigação da paternidade.
Sobra sempre, é certo, uma mais ou menos drástica intromissão na esfera de reserva da mãe e do pai investigado. Isto é, sobra sempre uma mais ou menos densa e extensa dimensão da reserva da vida privada a levar à balança da ponderação, no prato onde se juntarão os demais e heterogéneos interesses e direitos, encabeçados tanto pela mãe e pelo pai investigado como por todos os outros terceiros atingidos. São interesses que, em qualquer caso, não logram comprometer a assimetria axiológica, claramente desequilibrada a favor das posições do filho investigante. Que, diferentemente dos “terceiros”, joga aqui “radicais subjetivos, bens constitutivos da zona mais nuclear do substrato da sua personalidade própria” (SOUSA RIBEIRO, RLJ, n.º 4009, p. 225).
Numa brevíssima síntese conclusiva, enquanto o filho investigante joga no caso valores atinentes à essência e existência, os terceiros atingidos jogam apenas aspetos contingentes das suas circunstâncias.
E quando assim é, não devem sobrar dúvidas em sede de proporcionalidade.
Manuel da Costa Andrade