ACÓRDÃO Nº 296/2019
Processo n.º 20/19
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, A. veio apresentar reclamação, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (doravante designada por LTC), do despacho proferido naquele tribunal que, em 26 de novembro de 2018, não admitiu o recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional.
2. Por sentença datada de 6 de janeiro de 2017, proferida no Tribunal da Comarca do Porto Este (Juízo Local Criminal de Amarante), a arguida, aqui reclamante, foi condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelo artigo 152.º-B, nºs 1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Inconformada com a decisão condenatória, em 17 de fevereiro de 2017, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
Por decisão sumária datada de 21 de março de 2018, proferida no Tribunal da Relação do Porto, o recurso interposto foi rejeitado por intempestividade.
Notificada desta decisão, a arguida apresentou reclamação para a conferência que, por decisão de 8 de maio de 2018, viria a ser indeferida. Para este efeito, considerou o Tribunal da Relação do Porto que a decisão condenatória foi depositada na secretaria no dia 6 de janeiro de 2017, sendo indiferente que a arguida apenas tenha tido acesso à mesma no dia 2 de fevereiro de 2017.
Nesta sequência, a aqui reclamante interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi admitido por despacho de 11 de julho de 2018, com fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Notificada deste despacho, em 6 de setembro de 2018, a reclamante apresentou reclamação, ao abrigo do disposto no artigo 405.º do CPP, onde, designadamente, invocou a inconstitucionalidade do artigo 411.º, n.º 1, alínea b), do CPP, conjugada com as normas dos artigos 138.º-A, n.ºs 1 e 2 e 259.º do CPC e as normas constantes dos artigos 19.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1 e 2 da Portaria 280/2013 de 6 de agosto, a qual foi admitida por despacho de 12 de setembro de 2018.
Apreciando aquela reclamação, por decisão datada de 19 de outubro de 2018, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu-a.
Nesta sequência, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, em 5 de novembro de 2018, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, mediante requerimento dirigido ao Tribunal da Relação do Porto, no qual delimitou o objeto respetivo como correspondendo à interpretação «da norma do artigo 411.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, conjugada com as normas dos artigos 138.º-A, n.ºs 1 e 2 e 259.º do Código de Processo Civil e as normas constantes dos artigos 19.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1 e 2 da Portaria 280/2013 de 6 de agosto, interpretada no sentido de permitir aos tribunais considerar validamente notificadas as suas sentenças pela mera declaração de depósito na secretaria, mesmo quando estas não se acham efetivamente disponíveis e acessíveis para consulta pelos mandatários no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais».
Em 26 de novembro de 2018, foi proferido o despacho reclamado que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na extemporaneidade da respetiva interposição. Para o efeito, considerou o Tribunal da Relação do Porto que «a decisão aqui proferida já transitou em julgado», razão pela qual «o recurso nunca seria admissível». Mais consignou que os autos não reúnem «as condições processuais necessárias para a admissão de tal recurso».
3. Notificada da decisão que não admite o recurso, a recorrente apresentou reclamação, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, LTC.
Para fundamentar a reclamação deduzida, a recorrente refere que «interpôs recurso da sentença que a condenou em primeira instância no Tribunal de Amarante e fê-lo no prazo de 30 dias, contados a partir da notificação daquela decisão por correio eletrónico, porquanto, apesar de se tratar de sentença, a mesma não se achar em depósito na secretaria no dia da sua leitura e, posteriormente, apesar da declaração de depósito constar nos autos, o texto da sentença não se achar disponível para conhecimento da arguida e consulta dos seus representantes na plataforma CITIUS». Alega que «um depósito da sentença no Citius que não disponibilize às partes o seu texto para consulta, e conhecimento integral dos seus termos e fundamentos, não produz quaisquer efeitos relativamente às mesmas», não podendo iniciar-se quaisquer prazos, «em especial o de recurso».
Assim, refere a reclamante que, embora a sentença tenha sido depositada no dia 6 de janeiro de 2017, esta só foi disponibilizada à arguida no dia 2 de fevereiro, pelo que só a partir desta data se poderá iniciar o prazo de recurso, sendo esta a interpretação que «garante um efetivo exercício do direito de defesa, na vertente do direito ao recurso, e se cumpre e assegura a Constituição».
Deste modo, conclui que o Tribunal da Relação do Porto acolheu uma interpretação inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com os artigos 2.º, 9.º, alínea b) e 205.º, n.º 1, da Constituição, da norma do artigo 411.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, conjugada com as normas dos artigos 138.º-A, n.ºs 1 e 2 e 259.º do Código de Processo Civil e as normas constantes dos artigos 19.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1 e 2 da Portaria 280/2013 de 6 de agosto, interpretada no sentido de permitir aos tribunais considerar validamente notificadas as suas sentenças pela mera declaração de depósito na secretaria, mesmo quando estas não se acham efetivamente disponíveis e acessíveis para consulta pelos mandatários no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais.
Mais alega ter invocado a inconstitucionalidade na «primeira oportunidade quando surpresamente foi surpreendida pelo teor da Decisão Sumária (…), confirmada pelo Acórdão proferido em Conferência pela Relação (…) que agora se pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional».
Refere, por fim, que «por ser inesperada e imprevisível aquela interpretação inconstitucional das normas invocadas, seguida pelo Tribunal a quo nas suas decisões, e resultar do acórdão recorrido (…) a ora recorrente suscitou a concreta questão de constitucionalidade, aqui em causa, no recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça do citado Acórdão da Relação, não obtendo da mesma pronúncia quer no Despacho de Não Admissão quer no Despacho que recaiu sobre a Reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação».
4. O Ministério Público, junto do Tribunal Constitucional, veio emitir parecer, referindo, em síntese, que «da informação prestada a fls. 110 e da cópia das decisões que a acompanham (fls. 110v a 113), a arguida A. reclamou daquele despacho, tendo a reclamação sido indeferida por decisão do Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de outubro de 2018, transitado em julgado em 5 de novembro de 2018».
Nesta conformidade, «o recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação do Porto (vd. pontos 1 e 7 de um parecer anterior) foi interposto em 5 de novembro de 2018, parece-nos que não se poderá considerar que o mesmo foi intempestivamente interposto».
No entanto, conclui o Ministério Público não ter sido «cumprido o ónus da suscitação prévia, sendo certo que o acórdão recorrido se limitou a confirmar a decisão então reclamada, não levando a cabo qualquer interpretação anómala ou surpreendente».
Em conclusão, pugna o Ministério Público pelo indeferimento da reclamação.
5. Em cumprimento do princípio do contraditório, foi proferido despacho que determinou a notificação da reclamante para se pronunciar sobre o parecer do Ministério Público.
Regularmente notificada, a reclamante não apresentou resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
6. A decisão ora reclamada invoca como fundamento da inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade que a decisão recorrida – o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de maio de 2018 – já havia transitado em julgado no momento da sua interposição, o que determina a respetiva extemporaneidade.
Vejamos então.
Nos termos do artigo 75.º, n.º 1, da LTC, o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de dez dias e interrompe os prazos de interposição de outros que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção.
O n.º 2 do mesmo normativo estabelece, porém, uma prorrogação, aplicável aos casos em que o recorrente interpôs recurso ordinário, cuja admissibilidade vem a ser recusada, com fundamento em irrecorribilidade da decisão. Nessas situações, o prazo de interposição do recurso de constitucionalidade conta-se a partir do momento em que se torne definitiva a decisão que não admitiu o recurso.
No presente caso, da decisão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de maio de 2018, que consubstancia a decisão recorrida, a recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, não tendo sido admitido, deu origem à reclamação prevista no artigo 405.º do CPP. Por decisão do Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, datada de 19 de outubro de 2018, foi indeferida a referida reclamação, a qual foi notificada por via postal registada, mediante carta dirigida ao mandatário da recorrente, expedida em 23 de outubro de 2018 (cfr. fls. 116).
Assim, tendo em conta a previsão do referido n.º 2 do artigo 75.º da LTC, não pode dar-se por ultrapassado o prazo de dez dias para a interposição de recurso de constitucionalidade, que findou em 5 de novembro do mesmo ano, dia em que precisamente foi interposto o recurso para o Tribunal Constitucional.
Por esta razão, não poderá considerar-se a interposição do presente recurso de constitucionalidade extemporânea.
7. Ainda assim, tal não significa que a presente reclamação deva ser deferida.
Com efeito, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 76.º, da LTC, «do despacho que indefira o requerimento de interposição de recurso (…) cabe reclamação para o Tribunal Constitucional».
Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, da LTC, o julgamento da referida reclamação compete à conferência a que se reporta o n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, fazendo caso julgado a decisão que julgue o recurso admissível (n.º 4 do mesmo dispositivo). Deste efeito de caso julgado «decorre, para o Tribunal Constitucional, o poder-dever de se não limitar à apreciação apenas do específico fundamento da rejeição do recurso, invocado no despacho reclamado, ampliando antes o seu julgamento à verificação de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta em causa (Acórdão n.º 276/1988): (…)» (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, p. 228).
Ora, no presente caso, revela-se manifesto que a decisão da sua inadmissibilidade deverá manter-se com base em fundamento correspondente à ausência de suscitação prévia de uma questão de constitucionalidade normativa.
Na verdade, o ónus de suscitação atempada e processualmente adequada da questão de constitucionalidade traduz uma exigência formal essencial, como tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional (cfr., entre muitos outros, Acórdãos n.os 156/2000 e 195/2006). Assim, o cumprimento do pressuposto da suscitação prévia e processualmente adequada da questão de constitucionalidade depende a sua enunciação «durante o processo» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), de forma clara, expressa, direta e percetível, bem como a sua fundamentação, em termos minimamente concludentes, criando, deste modo, para esse tribunal um dever de pronúncia sobre a específica questão de inconstitucionalidade invocada.
Todavia, analisada a reclamação deduzida na sequência da decisão sumária que, no Tribunal da Relação do Porto, rejeitou o recurso interposto, constata-se que a reclamante não autonomizou e enunciou qualquer questão de constitucionalidade que se revestisse de caráter normativo, extraível do «artigo 411.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, conjugado com as normas dos artigos 138.º-A, n.ºs 1 e 2 e 259.º do Código de Processo Civil e as normas constantes dos artigos 19.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1 e 2 da Portaria 280/2013 de 6 de agosto», que a recorrente delimita como base legal do objeto de recurso de constitucionalidade.
Efetivamente, em tal momento processual, a reclamante limitou-se a referir que «o tribunal fez o depósito da sentença no dia 2 de fevereiro de 2017 (ao arrepio dos 372.º, n.º 5 e 373.º, n.º 2 CPP), atenta, pois, contra o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP contar o prazo, inexoravelmente a partir da data da douta decisão».
Ora, tal formulação da questão de constitucionalidade, manifestamente, não preenche o pressuposto da suscitação prévia adequada de uma questão de natureza normativa. De facto, em nenhum passo da referida peça processual, a recorrente enunciou, como se impunha, uma questão de constitucionalidade de natureza normativa, reportada a um critério normativo suportado pelos preceitos que identifica no requerimento de interposição de recurso.
Quanto à invocação do facto de a decisão de que recorre para o Tribunal Constitucional configurar uma decisão-surpresa, cabe recordar que recai sobre a recorrente o ónus de analisar as diversas interpretações normativas suscetíveis de vir a ser adotadas pela decisão recorrida, pelo que, em conformidade com um dever de litigância diligente, cabia-lhe formular um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente os possíveis enquadramentos normativos e interpretações razoáveis das normas convocáveis para a dirimição do pleito, não se compadecendo este ónus com a invocação da mera «surpresa subjetiva». Ora, se a recorrente invoca que «foi surpreendida pelo teor da Decisão Sumária (…), confirmada pelo Acórdão proferido em Conferência pela Relação», não se pode deixar de concluir que na reclamação que deduziu relativamente a essa decisão sumária teve oportunidade para confrontar o tribunal a quo com a interpretação normativa aí adotada e que considera inconstitucional.
Assim, não releva para efeitos do preenchimento do pressuposto em análise que a recorrente tenha suscitado «a concreta questão de constitucionalidade, aqui em causa, no recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça do citado Acórdão da Relação», na medida em que a decisão que a recorrente selecionou como decisão recorrida foi a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto «constante do Acórdão proferido em Conferência», sendo, como vimos, o momento oportuno para suscitar a questão de constitucionalidade a reclamação que originou a prolação da decisão recorrida.
Sempre se dirá que se era intenção da recorrente visar também, como decisão recorrida, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, a presente apreciação encontrava-se, nessa parte, prejudicada pela circunstância de a recorrente não ter dirigido um requerimento de interposição de recurso autónomo a esse Tribunal, determinando, desta forma, por erro que lhe é imputável, o incumprimento do artigo 76.º, n.º 1, da LTC e a consequente inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade.
Desta forma, demonstrando-se que a ora reclamante não cumpriu o ónus da suscitação prévia e de forma adequada de uma questão de constitucionalidade normativa, conclui-se pelo indeferimento da presente reclamação, ainda que por fundamento diverso do despacho reclamado, confirmando-se a inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto nos autos.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma), designadamente a relevância dos interesses em causa, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Lisboa, 15 de maio de 2019 - Mariana Canotilho - Fernando Vaz Ventura - Manuel da Costa Andrade