ACÓRDÃO Nº 247/2019
Processo n.º 73/2019
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos de Tribunal arbitral constituído no âmbito do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em que é recorrente a sociedade A., S.A. e recorrida a Autoridade Tributária e Aduaneira, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), da decisão daquele Tribunal, de 28 de dezembro de 2018.
2. Pela Decisão Sumária n.º 127/2019, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«5. De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há-de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
A recorrente pretende a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI, por violação dos princípios da igualdade em matéria tributária, proporcionalidade e capacidade contributiva. Porém, no pedido de pronúncia arbitral apresentado junto do Tribunal recorrido, nunca chegou a suscitar a inconstitucionalidade da norma do citado artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI. Ao invés, apenas suscitou a inconstitucionalidade da norma do artigo 135.º-B, n.º 1, do CIMI.
Deve sublinhar-se que estamos perante normas substancialmente diversas, ainda que intimamente relacionadas, que podem justificar diferentes juízos de constitucionalidade. A norma cuja constitucionalidade foi suscitada perante o tribunal a quo foi a norma que estabelece a incidência objetiva do imposto, de cuja aplicação resultou a tributação dos terrenos aqui em causa; já a norma do artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI – que exclui de tal incidência determinados tipos de prédios urbanos – não chegou a ser aplicada ao caso vertente, precisamente por não contemplar no seu âmbito de aplicação os terrenos em apreço.
Vale isto por dizer que inexiste identidade substancial entre a norma objeto da suscitação prévia perante o Tribunal recorrido e aquela que constitui o objeto do recurso de constitucionalidade, o que implica a não satisfação do ónus previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC. A suscitação de forma adequada de uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º da LTC, pressupõe que a norma seja reportada a um preceito legal ou a um conjunto de preceitos legais. A especificação concreta e precisa dessa fonte legal da norma constitui um requisito fundamental da colocação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, não apenas porque é necessário para que se identifique a decisão legislativa viciada de inconstitucionalidade, como porque importa aferir se a norma sindicada foi efetivamente extraída da base legal invocada. Ora, sendo diferentes os preceitos legais subjacentes, diferentes também terão de ser as normas que deles se extraem, o que resulta na falta de identidade normativa imposta pelo pressuposto processual regulado no n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
Tal obsta a que este Tribunal possa conhecer do objeto do presente recurso, justificando-se, por conseguinte, a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).»
3. De tal decisão sumária vem agora a recorrente reclamar para a conferência, apresentando a seguinte argumentação:
«1. Conforme resulta dos autos, efetivamente foi suscitada em Tribunal Arbitral a constitucionalidade do artigo 135.ºB n.º 1 do CIMI.
2. Sucede que, aquando da elaboração do requerimento para clarificação do objeto do recurso, por manifesto lapso de escrita – de que muito se penitencia - foi indicado o n.º 2 do mesmo preceito – que, de facto, está em causa em diversos processos onde o signatário é Mandatário, mas não nos presentes autos.
3. Trata-se, pois, de um manifesto erro de escrita, facilmente detetável no próprio contexto – na medida em que, como corretamente notado, nos presentes autos fora suscitada a constitucionalidade do artigo 135.ºB n.º 1 do CIMI.
4. O erro de escrita, como erro material que é, pode ser retificado a todo o tempo – como respeitosamente se solicita (art. 666.º n.º 2 CPC e arts. 249.º e 295.º CC).
Pelo exposto, sendo submetido a Conferência, deve a decisão sumária em causa ser reapreciada, julgando-se pelo conhecimento do objeto do recurso e pela ulterior tramitação do recurso.»
4. A recorrida respondeu nos seguintes termos:
«Perscrutados os autos de recurso n.º 73/2019 verifica-se que o requerimento de recurso foi interposto conforme se transcreve:
«A., S.A. Requerente nos supra referenciados autos, notificada da decisão com data de prolação de 28.12.2018, vem da mesma interpor recurso dirigido ao TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, nos termos do disposto no artigo 70. n.º 1 b) e 75º-A da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do artigo 135.º-B n.º 2 do CIMI, por violação dos princípios da igualdade em matéria tributária, proporcionalidade e capacidade contributiva - como invocado no pedido da pronúncia arbitral» negrito e sublinhado nossos.
2.
Instado a, nos termos e para os efeitos do n.º 5 do art.º 75.º da LTC, enunciar com precisão a norma cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada, foi apresentada pelo distinto mandatário a seguinte resposta:
«A.. SA. Recorrente referenciados autos, notificada do douto despacho de fls., vem clarificar:
i - QUE, com o presente recurso, pretende a apreciação da constitucionalidade do artigo 135.ºB n.º 2 do CIMI (…), por violação dos princípios da igualdade em matéria tributária, proporcionalidade e capacidade contributiva, na medida em que estabelece uma diferenciação negativa, acrítica, arbitrária e aleatória, entre, por um lado, as empresa que detém imóveis comerciais que utilizam na prossecução da sua atividade (sujeitos a AIMI), e. por outro lado, empresas que detém imóveis afetas sua atividade do comércio (isentos de AIMI);
ii- QUE, com o presente recuso, pretende a apreciação da constitucionalidade do artigo 135.ºB n.º 2 do CIMI por violação dos princípios da igualdade em matéria tributária, proporcionalidade e capacidade contributiva, na medida cm se aplica a terrenos para construção com afetação comercial, face à isenção de prédios urbanos classificados como “comerciais”.» Negrito e sublinhado nossos
3.
i.e. ao solicitado por este Tribunal, o doutíssimo mandatário asseverou, persistindo, que a norma a cuja constitucionalidade vinha sindicada era o n.º 2 do art.º 135º-B do CIMI.
4.
Ora, o alegado e «...manifesto lapso de escrita...» não vence nem convence.
Vejamos,
5.
Por lapso (substantivo singular masculino), entende-se:
1.
ato de correr o tempo; decurso; intervalo de tempo
2.
erro; descuido
3.
esquecimento; falta
in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha] Porto: Porto Editora, 2003-2019. Disponível na Internet: https://www.ww.infopedia.pt/dicionarios/linpgua-portuguesa/lapso.
6.
para aquilo que aqui nos ocupa erro, descuido.
7.
Porém, à primeira cai qualquer um, à segunda só cai quem quer.
8.
Não se entrevê que se possa sustentar a existência de «…manifesto lapso de escrita...» quando, após notificado a clarificar o que por si vinha dito no requerimento de recurso, persistindo no mesmo “erro”, o ilustre mandatário tenha, na sua clarificação, permanecido no mesmo ego, por duas vezes,
9.
Vindo agora, e só agora, que tem uma decisão sumária que não lhe conhece o recurso, alegar um «...manifesto lapso de escrita.»,
10.
Visando ressuscitar os presentes autos.
11.
Não há, pois, qualquer erro de escrita, o que há, sim, é um erro no enquadramento da norma que se pretende ver sindicada e que, por ter gerado a dúvida no espírito do julgador daquilo que se pretendia constitucionalmente infirmado, foi alvo de notificação ao Recorrente para que viesse aos autos esclarecer o concreto objeto do recurso.
12.
Resta, pois, a esse Tribunal perante a reclamação apresentada - com vista a adiar o inadiável -, fazer o que ao caso se impõe: proferir despacho de indeferimento.
Nestes termos, e nos mais de direito, e com o mui douto suprimento de V. Exa. deve a presente reclamação para a conferência não ser conhecida, mantendo-se na ordem jurídica a decisão sumária n.º 127/2019.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. De acordo com o requerimento de interposição do presente recurso, a recorrente pretendia a apreciação da constitucionalidade da norma do «artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI, por violação dos princípios da igualdade em matéria tributária, proporcionalidade e capacidade contributiva».
Formulado convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC, com vista a que enunciasse, com precisão, a norma cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada no recurso, a mesma respondeu, mantendo o pedido de apreciação da norma do artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI.
Foi então proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso, por não se verificar o pressuposto da suscitação prévia e processualmente adequada da inconstitucionalidade de tal norma, perante o tribunal recorrido, nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da LTC. Fundamentou-se tal decisão na circunstância de, perante o Tribunal a quo, a recorrente apenas ter invocado a inconstitucionalidade da norma do artigo 135.º-B, n.º 1, do CIMI, a qual dispõe sobre matéria distinta.
Na reclamação apresentada, a recorrente invoca a existência de manifesto lapso de escrita, detetável no contexto da intervenção processual em causa, o qual é passível de retificação a todo o tempo, nos termos do artigo 666.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e artigos 249.º e 295.º do Código Civil.
Sem razão.
Dispõe o artigo 249.º do Código Civil que «[o] simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à retificação desta».
É manifesto que, no enunciado da norma que haveria de constituir o objeto do recurso de constitucionalidade, a recorrente pretendeu identificar o artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI, e que tal não configura um lapsus calami, retificável nos termos previstos no artigo 249.º do Código Civil.
Em primeiro lugar, a reiteração com que a recorrente identificou o artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI – quer no requerimento inicial, quer, por duas vezes, na resposta ao convite ao aperfeiçoamento – é de todo em todo incompatível com a hipótese de distração, ainda que se conceba a maior das displicências.
Em segundo lugar, a circunstância de, na resposta ao convite ao aperfeiçoamento, a recorrente especificar que a norma em apreço «estabelece uma diferenciação negativa, acrítica, arbitrária e aleatória, entre, por um lado, as empresa que detém imóveis comerciais que utilizam na prossecução da sua atividade (sujeitos a AIMI), e, por outro lado, empresas que detém imóveis afetas à sua atividade de comércio (isentos de AIMI)» aponta no sentido de que era precisamente ao artigo 135.º-B, n.º 2, do CIMI que se referia, pois é neste que se excluem do adicional ao imposto municipal sobre imóveis os prédios urbanos classificados como «comerciais, industriais ou para serviços» e «outros», com referência ao artigo 6.º, n.º 1, alíneas b) e d) do mesmo código. Ou seja, se o contexto declarativo em que a identificação do preceito legal em causa se insere aponta em algum sentido, é justamente no de que não se verificou qualquer lapso de escrita.
Não colhe o argumento de que o facto de a recorrente ter suscitado nos autos a inconstitucionalidade do artigo 135.º-B, n.º 1, do CIMI, demonstra a existência do erro de escrita. Tal equivaleria a confundir os planos do ser e do dever ser, tornando automaticamente retificáveis todos os erros de direito com apoio na presunção de que qualquer pretensão processual contrária à lei mais não seria do que o resultado de um erro de escrita. De qualquer forma, o erro previsto no artigo 249.º do Código Civil apenas confere direito à retificação se for ostensivo, no sentido de que a sua existência decorre inequivocamente da interpretação da declaração. Por isso, o lapso material cometido na peça processual que a lei permite corrigir deve resultar do teor da peça em que se insere, não podendo ser invocado um contexto assente noutras peças processuais ou noutros elementos externos àquela declaração em concreto.
Em suma, não se exclui que tenha existido, porventura, um erro, seja um erro-vício, seja mesmo um erro-obstáculo. Mas não, seguramente, um mero lapso de escrita, quer pela reiteração do suposto lapso, quer pelas demais menções feitas pela recorrente não apontarem nesse sentido.
Improcede, pois, a reclamação.
6. Por decair na presente reclamação, é a recorrente responsável pelo pagamento de custas, nos termos do artigo 84.º, n.º 4, segunda parte, da LTC. Ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, a prática do Tribunal em casos semelhantes e a moldura abstrata aplicável prevista no artigo 7.º do mesmo diploma legal, afigura-se adequado e proporcional fixar a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objeto do recurso.
b) Condenar a reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 23 de abril de 2019 - Gonçalo Almeida Ribeiro - Joana Fernandes Costa - João Pedro Caupers