ACÓRDÃO Nº 582/2018
Processo n.º 45/18
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. No âmbito de pedido deduzido pela A., S.A., contra a Autoridade Tributária e Aduaneira, relativo à impugnação e declaração de ilegalidade da liquidação oficiosa de Imposto de Selo referente ao ano de 2013, foi proferida sentença do Tribunal Arbitral, constituído no âmbito do CAAD, em 30 de novembro de 2017.
2. Dessa decisão, veio a Autoridade Tributária e Aduaneira interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante designada por LTC), delimitando o respetivo objeto nos seguintes moldes (fls. 45-47):
«2. Posto isto, visa-se através do presente recurso, interposto nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a fiscalização concreta da constitucionalidade da norma contida na alínea e) do n.º 1 do art. 7.º do Código do Imposto do Selo (CIS), conjugada com a norma contida no nº 7 do mesmo art. 7.º do CIS, aditada pelo artigo 152.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, no sentido e com o alcance conferido pelo art. 154.º da referida Lei n.º 7-A/2016, o qual atribuiu à mesma carácter interpretativo.
3. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada pela Requerente nos autos em referência, como causa de pedir, e foi contraditada pela então Requerida, ora Recorrente, vindo a ser apreciada favoravelmente pelo Tribunal Arbitral, que julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral, considerando que as liquidações controvertidas se encontram feridas de ilegalidade, com fundamento em inconstitucionalidade.
4. Com efeito, o douto acórdão arbitral proferido julgou, designadamente:
“37. Em suma, a Lei do Orçamento para 2016 veio, desta forma, restringir o campo de aplicação da isenção em imposto do selo prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, revelando uma opção legislativa diferente da que vigorava na lei imediatamente anterior. Nessa medida a nova versão introduzida com a LOE para 2016 é inovadora. Ora, ao ser designada pelo legislador de interpretativa, a consequência desejada é a sua aplicação desde a vigência da norma interpretada. O que vale por dizer que poderá aplicar-se retroativamente. Mas se assim se entendesse, a sua aplicação violaria, necessariamente, a princípio do não retroatividade da lei fiscal, pois que os sujeitos passivos serão, desta forma, confrontados com a imposição de um encargo fiscal, apenas limitado pelo prazo de caducidade do imposto, com que não contavam.
Tal consubstancia manifesta violação de lei, por violação do princípio da não retroatividade, consagrado no artigo 12.º da Lei Geral Tributária e no artigo 103.°, n.º3 da Constituição da República Portuguesa” (cf. páginas 30 e 31).
5. Contudo, salvo melhor opinião, andou mal o Tribunal ao decidir assim, porquanto a Lei n.º 7-A/2016 não tem carácter inovador, vindo apenas evidenciar aquele que sempre foi o espírito da norma, inexistindo, assim, qualquer aplicação retroativa da Lei, vedada pelo artigo 103.º, n.º 3, da CRP.»
3. Pela Decisão Sumária n.º 248/2018 (cfr. fls. 130-132 dos autos) decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
«4. (…), o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC tem como um dos seus pressupostos o facto de a decisão recorrida ter recusado efetivamente a aplicação de certa norma ou dimensão normativa relevante para o fundamento normativo do aí decidido. Tal não ocorre, por exemplo, quando a decisão judicial utiliza argumentação jus-constitucional como um simples obiter dictum, um argumento ad ostentationem, ou, de uma forma geral, quando não conduz a uma verdadeira desaplicação de uma norma.
Ora, apesar de no requerimento de interposição de recurso apresentado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, se qualificar o acórdão recorrido como sendo uma decisão de recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, tal não corresponde ao decidido.
No enunciado formal do acórdão recorrido não se encontra a afirmação de tal recusa de aplicação com fundamento em inconstitucionalidade. O acórdão recorrido pondera diversas vias interpretativas possíveis do conjunto de preceitos que engloba o artigo 7.º, n.º 1, alínea e), do Código do Imposto do Selo e os artigos 152.º e 154.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2016, tomando em linha de consideração, entre outros, o critério da sua conformidade com a Constituição. Desse exercício interpretativo resulta, para o tribunal a quo, o afastamento das interpretações que redundam numa solução inconstitucional relativamente ao caso concreto. Nas palavras do tribunal a quo «a opção legislativa é totalmente legítima desde que vigore apenas e só para o futuro, aplicando-se apenas a factos tributários ocorridos após a entrada em vigor da nova lei. Outro entendimento seria permitir a violação ostensiva do princípio da não retroactividade fiscal expressa e inequivocamente consagrado na nossa Constituição» e «ao ser designada pelo legislador como interpretativa, a consequência desejada é a sua aplicação desde a vigência da norma interpretada. (…). Mas se assim se entendesse, a sua aplicação violaria, necessariamente, o princípio da não retroactividade da lei fiscal (…)» (cfr. n.ºs 36-37 da decisão arbitral, p. 30, fls. 32). Trata-se, portanto, do exercício da normal atividade interpretativa e subsuntiva dos tribunais comuns – de interpretação do Direito conforme à Constituição – e não a desaplicação de uma qualquer norma por inconstitucionalidade. Nesse caso não se encontra aberta a possibilidade de recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC.
O tribunal recorrido não procedeu, portanto, à efetiva desaplicação da alegada norma inconstitucional, não se cumprindo este requisito legal para a admissão do recurso.»
4. Inconformada, reclama agora da decisão sumária com a seguinte fundamentação (fls. 137-139):
«(…) 8. Ressalvado o devido respeito, discordamos da asserção veiculada na Decisão Sumária, uma vez que a decisão arbitral não tomou em “linha de consideração, entre outros o critério da sua conformidade com a Constituição” (sublinhado nosso).
9. A fundamentação subjacente à mesma centra-se, única e exclusivamente, em juízos de conformidade das disposições legais em causa com a Constituição.
(…)
14. Ora, o itinerário percorrido pelo douto Tribunal Arbitral teve apenas um único propósito: a aferição da natureza interpretativa da norma invocada pela AT para promover a correção em análise, pois que, no o sendo, se estaria perante urna norma de natureza retroativa e por isso, inconstitucional.
15. E, nesta análise interpretativa promovida, a Tribunal concluiu que o n.º 7, do artigo 7.º do CIS, introduzido pelo artigo 153.° da Lei n.º 7-A/2016 de 30 de março é “verdadeiramente inovador”.
16. Pelo que, consequentemente, de acordo como raciocínio expendido, a decisão arbitral concluiu que as normas invocadas são de aplicação retroativa.
17. O que determina, no entender do Tribunal Arbitral, que as mesmas normas são ilegais por violação da lei e da Constituição, por violação do princípio da não retroatividade, previsto no n.º 3, do artigo 103.° da Constituição.
(…)
20. Pelo que, nos termos aduzidos no requerimento de recurso apresentado, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, se conclui que estão verificados os requisitos para o Tribunal Constitucional conhecer do objeto do recurso.
21. Isto porque, conforme se demonstrou, i) houve urna efetiva recusa de aplicação de urna norma e ii) com fundamento na sua inconstitucionalidade».
5. Notificada, a recorrida não apresentou resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Nos presentes autos foi proferida a Decisão Sumária n.º 248/2018 de não conhecimento do objeto do recurso, por não cumprimento dos pressupostos constantes da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – especificamente por «falta de desaplicação efetiva, pelo tribunal a quo, da dimensão normativa delimitada como seu objeto» (n.º 3 da decisão).
7. A reclamante, como sustentação da sua posição, refere que a «fundamentação subjacente [à decisão arbitral] centra-se, única e exclusivamente, em juízos de conformidade das disposições legais em causa com a Constituição» e que «o itinerário percorrido pelo douto Tribunal Arbitral teve apenas um único propósito: a aferição da natureza interpretativa da norma invocada pela AT para promover a correção em análise, pois que, não o sendo, se estaria perante uma norma de natureza retroativa e por isso inconstitucional», pelo que, na sua opinião, «estão verificados os requisitos para o Tribunal Constitucional conhecer do objeto do recurso (…) i) houve uma efetiva recusa de aplicação de uma norma e ii) com fundamento na sua inconstitucionalidade» (cfr. requerimento de reclamação, n.ºs 9, 14, 20-21, fls. 137, verso, e 138 e verso).
Não é de aceitar a reclamação apresentada.
Na reclamação não são oferecidos argumentos diferentes dos já apreciados e que fundamentem uma alteração da conclusão já formulada por este Tribunal.
Se o tribunal arbitral se focou na «aferição da natureza interpretativa da norma invocada pela AT», como é afirmado na reclamação, então efetuou um exercício de interpretação do preceito. É no contexto desse exercício interpretativo que a decisão recorrida recorre à Constituição como instrumento para determinar aquela que será, de acordo com a sua fundamentação, a interpretação correta. Como se plasmou na decisão reclamada, o tribunal a quo afasta as interpretações do preceito que redundam numa solução inconstitucional relativamente ao caso concreto, concluindo por uma determinada aplicação possível da sua letra. Em nenhum momento da decisão recorrida desaplica o tribunal a quo qualquer norma, ao abrigo do artigo 204.º da Constituição.
Termos em que resta concluir que na reclamação não são apresentados argumentos de molde a levar o Tribunal Constitucional a alterar o juízo formulado na decisão sumária reclamada, mantendo-se a impossibilidade de conhecer do objeto do recurso interposto.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 8 de novembro de 2018 - Maria de Fátima Mata-Mouros - José Teles Pereira - João Pedro Caupers - Claudio Monteiro (vencido, por entender que há implicitamente uma recusa de aplicação, e que em qualquer caso na dúvida prevalece o princípio "pro actione", em favor do conhecimento) - Manuel da Costa Andrade (vencido nos termos da declaração de voto que junto)
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. O entendimento que fez vencimento considera que a decisão recorrida se limitou a exercer a «normal atividade interpretativa e subsuntiva de interpretação do Direito conforme à Constituição». Cremos, com efeito, que se verifica uma efetiva recusa de mobilização da dimensão normativa em sindicância.
2. O objeto do recurso recortado pela Recorrente Autoridade Tributária e Aduaneira centra-se no disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo (CIS), conjugado com o n.º 7 do mesmo artigo 7.º do CIS, aditada pelo artigo 152.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março [Lei do Orçamento do Estado para 2016], no sentido e com o alcance conferido pelo artigo 154.º da mesma Lei n.º 7-A/2016. Que, recorda-se, atribuiu carácter interpretativo à norma do n.º 7 do artigo 7.º do CIS. Do bloco legislativo emerge assim uma regra que determina que a exclusão da isenção de imposto do selo em face das comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras de fundos de pensões vale para os períodos fiscais anteriores a 2016.
É o que o próprio percurso argumentativo trilhado pelo CAAD (no Acórdão recorrido) evidencia. Efetivamente, o Tribunal a quo não se limita a concluir que o n.º 7 do artigo 7.º do CIS, enquanto regime inovador em matéria fiscal, valerá apenas para o futuro em face do parâmetro constitucional ínsito no artigo 103.º, n.º 3, da Lei Fundamental. Na verdade, o CAAD não deixa, complementarmente, de atender ao estatuído no artigo 154.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016. Segundo o qual se estabelece que “as redações dadas ao n.º 1, n.º 3 e alínea b) do n.º 5, todos do artigo 2.º, ao n.º 8 do artigo 4.º e ao n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo e à verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo têm carácter interpretativo”. Com as consequências e implicações decorrentes do artigo 13.º do Código Civil, segundo o qual “a lei interpretativa integra-se na lei interpretada”. A ser aplicado, o preceito projetar-se-ia sobre o passado, ao arrepio da proibição constitucional da retroatividade fiscal. Isto no pressuposto assumido de estarmos em face de uma lei interpretativa materialmente retroativa, a redundar numa “alteração substantiva do regime”.
3. A decisão recorrida não aposta em aferir as várias – e mais ou menos plausíveis e sustentáveis – leituras normativas da conjugação do artigo 7.º, n.º 7, do CIS e dos artigos 152.º e 154.º da Lei n.º 7-A/2016 para, de seguida, eleger aquela que, por sobre hermenêuticamente mais ajustada, tem como mais conforme com a Constituição da República Portuguesa. O CAAD, pura e simplesmente, afasta este último preceito – em qualquer dos sentidos passíveis de serem dele retirados – da solução que dá à lide. Solução assim encontrada ao arrepio do teor literal e da intencionalidade político-legislativa subjacente ao artigo 154.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016. O qual é tratado como se, pura e simplesmente, não existisse. Uma desaplicação que se louva (unicamente) em razões de ordem constitucional, maxime na contrariedade ao n.º 3 do artigo 103.º da Lei Fundamental.
Raciocínio que não pode, assim e em nosso entender, levar-se à conta de mera interpretação de norma conforme à Constituição, tal como esta é entendida nas diferentes e alternativas correntes doutrinais e jurisprudenciais (cfr. Lopes do Rego, in Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2009, página 71).
4. É certo que inexiste no Acórdão recorrido, mormente no seu dispositivo, um qualquer segmento em que o CAAD afirme expressamente que recusa a mobilização da norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Parece-nos, contudo, claro que as reiteradas alusões a «inconstitucionalidades» e «ilegalidades por violação da lei e da constituição [por violação do princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica inspiradores do princípio da não retroatividade fiscal]» coenvolvem uma clara determinação do Tribunal a quo, no sentido da recusa de aplicação da dimensão normativa em sindicância. Tanto mais que a jurisprudência constitucional converge consensualmente na constatação de que a sobredita recusa não necessita de ser expressa mas antes “bastando que ela esteja implícita na fundamentação da decisão recorrida” (Lopes do Rego, idem, página 69).
5. São estas, em súmula, as razões que não me permitem acompanhar o entendimento que fez vencimento no sentido de que o recurso de constitucionalidade apresentado pela Recorrente Autoridade Tributária e Aduaneira não deve ser objeto de conhecimento. Privilegiaria, assim, a solução alcançada nos Acórdãos n.ºs 644/2017 e 92/2018 com apreciação do mérito da questão.
Na convicção, também ali por mim assumida, de a dimensão normativa em causa padecer de inconstitucionalidade por preterição do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Manuel da Costa Andrade