ACÓRDÃO N.º 349/2018
Processo n.º 1380/2017
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., S.A., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão daquele Tribunal, de 27 de setembro de 2017.
2. A recorrida reclamou judicialmente de despacho da Autoridade Tributária e Aduaneira (referida adiante pela sigla «AT») que indeferiu a prestação de garantia, sob a forma de fiança com renúncia ao benefício da excussão prévia, em ordem à suspensão da execução fiscal de uma dívida de € 73.799,00, respeitante a IVA de 2015, dívida essa cuja liquidação impugnou.
A fiança foi assumida por uma sociedade gestora de participações sociais (referida adiante pela sigla «SGPS»), que detém a totalidade do capital social de uma terceira sociedade comercial, que detém a totalidade do capital social da ora recorrida; entre as duas entidades – a fiadora e a afiançada –, intercede, como se vê, uma relação de grupo, para efeitos da parte final do n.º 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais.
A AT reputou inidónea a fiança prestada, com fundamento na insuficiência patrimonial da fiadora para garantir a dívida exequenda. De tal despacho reclamou judicialmente a executada, ora recorrida, ao abrigo do artigo 278.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (referido adiante pela sigla «CPPT»).
O tribunal de 1.ª instância julgou a reclamação improcedente, mantendo o despacho da AT que inferiu o pedido de suspensão da execução fiscal com fundamento na falta de idoneidade da garantia prestada.
De tal sentença recorreu a executada, ora recorrida, para o Supremo Tribunal Administrativo, que através do acórdão recorrido concedeu provimento ao recurso, anulando o despacho reclamado.
Com interesse para a apreciação do recurso de constitucionalidade, pode ler-se em tal aresto:
«(…)
A Diretora de Finanças Adjunta, por delegação do Diretor de Finanças do Porto (…) proferiu despacho de indeferimento do pedido de suspensão do processo executivo com fundamento em «falta de idoneidade da garantia apresentada».
Nos termos da informação incorporada por esse despacho, e em síntese, para avaliar a idoneidade da fiança há que proceder à avaliação do património do fiador, em ordem a indagar da suficiência desse património para garantir a dívida exequenda e o acrescido – sendo que o valor da garantia a prestar foi estimado, nos termos do art. 199.º do CPPT, em € 93.870,61 –, e o critério a observar é o imposto pelo art. 199.º-A do CPPT, disposição legal que foi aditada ao Código pelo art. 176.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março (Lei do Orçamento do Estado para 2016). Assim, considerou a AT que na avaliação do património da sociedade fiadora há que observar o disposto no n.º 2 do referido art. 199.º-A do CPPT, que dispõe que, caso o garante seja uma sociedade, «o valor do seu património corresponde ao valor da totalidade dos títulos representativos do seu capital social determinado nos termos do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, deduzido dos montantes referidos nas alíneas do número anterior», ou seja, deduzido dos montantes respeitantes às «a) Garantias concedidas e outras obrigações extra patrimoniais assumidas; b) Partes de capital do executado que sejam detidas, direta ou indiretamente, pelo garante; c) Passivos contingentes; d) Quaisquer créditos do garante sobre o executado».
Assim, e porque a sociedade garante não está cotada, a AT, para avaliar as respetivas ações, nos termos da segunda parte da alínea a) do n.º 3 do art. 15.º do Código do Imposto de Selo (CIS), considerou que «O valor das ações é […] o que resultar da aplicação da seguinte fórmula […]: Va = [ 1 / ( 2 x n ) ] x [ S + ( (R1 + R2) / 2 ) x f ] em que: Va representa o valor de cada ação à data da transmissão; n é o número de ações representativas do capital da sociedade participada; S é o valor substancial da sociedade participada, o qual é calculado a partir do valor contabilístico correspondente ao último exercício anterior à transmissão com as correções que se revelem justificadas, considerando-se, sempre que for caso disso, a provisão para impostos sobre lucros; R1 e R2 são os resultados líquidos obtidos pela sociedade participada nos dois últimos exercícios anteriores à transmissão, considerando-se R1 + R2 = 0 nos casos em que o somatório desses resultados for negativo, sendo f o fator de capitalização dos resultados líquidos calculado com base na taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no Jornal Oficial da União Europeia e em vigor na data em que ocorra a transmissão». Aplicando essas regras e tendo em conta que o número de ações (n) é de 4.900.000, que o capital próprio (S) no final de 2015 é de € 17.298.473,00, que a soma dos valores R1 e R2 é 0 (pois os resultados líquidos nos exercícios de 2014 e 2015 são negativos) e que a taxa de juros praticada pelo Banco Central Europeu (f) em 2015 era de 0,05% (…) a AT procedeu à avaliação das ações da sociedade garante, chegando a um valor unitário de € 1,76515, o que dá um valor total de € 8.649.236,50.
Tomando esse valor, a AT, sempre invocando o art. 199.º-A do CPPT, deduziu-lhe i) as garantias bancárias apresentadas pela sociedade fiadora em processos de execução fiscal em que é executada, do montante de € 92.295,00, e as fianças que prestou quer à Executada quer a outros executados, do montante de € 455.792,88, ii) o valor da participação da sociedade fiadora na sociedade Executada, do montante de € 9.525.790,00, iii) os passivos contingentes, constituídos exclusivamente por dívidas, do montante de € 17.866,06, da sociedade fiadora à Segurança Social, em cobrança mediante execução fiscal, que se encontra suspensa mediante prestação de garantia e iv) os empréstimos concedidos, do montante de € 2.000,00, o que tudo ascende a € 10.093.743,94, assim obtendo como «PATRIMÓNIO LÍQUIDO DA GARANTE» o montante, negativo, de € 1.444.507,44 (€ 8.649.236,50 - € 10.093.743,94 = - € 1.444.507,44).
Tendo chegado a este valor, a AT, considerou que a «análise do património líquido» para efeitos de averiguação da idoneidade da garantia em causa «pode ser sintetizada pelos seguintes pontos, de análise cumulativa: a) O património (corrigido) da garante é negativo em 1.444.507,44 euros. b) Importa ainda ter presente que o valor das garantias já prestadas a favor da contribuinte e aceites pela AT ascende a 548.087,88 euros. c) O valor da garantia é de 93.870,61 euros. d) A garante não tem ações executivas conhecidas e as dívidas perante a AT estão totalmente garantidas. e) A garante não evidencia a perda de metade do capital social. f) A garante não tem dívidas à Segurança Social».
Terminou a AT a avaliação da idoneidade da garantia oferecida considerando que a «análise integrada recolhida dos indicadores de natureza quantitativa e qualitativa usados nesta avaliação do património autónomo da empresa/entidade garante, permitem concluir que esta não conseguirá libertar os meios financeiros líquidos suficientes, considerando a grandeza dos passivos correntes e contingentes, a falta da capacidade de cumprimento de curto prazo revelada, pelo que neste contexto não está em condições de se assumir como fiadora e que, com elevada probabilidade não tem capacidade de cumprir com as obrigações que a legislação fiscal estabelece para os garantes». Assim, concluiu que «porque o credor AT não pode ser forçado a aceitar como fiador quem não tiver capacidade para se obrigar ou não dispuser de património líquido suficiente para garantir a dívida em causa, deve ser recusada a garantia apresentada com fundamento na falta de capacidade para pagar demonstrada pelo fiador».
Discordando desta decisão administrativa de não aceitação da fiança oferecida como garantia, a Executada dela reclamou para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto ao abrigo do disposto nos arts. 276.º a 278.º do CPPT e a Juíza daquele tribunal, decidindo pela improcedência da reclamação, manteve o ato reclamado.
A Recorrente discorda da sentença na parte em que nesta não se considerou procedente a invocada inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade, do art. 199.º-A do CPPT, na medida em que prescreve um critério de avaliação que, na tese da Reclamante e ora recorrente, se revela manifestamente desadequado à finalidade prosseguida (a aferição da idoneidade da garantia), desadequação mais flagrante no caso em que a fiadora é uma sociedade gestora de participações sociais, restringindo de modo desproporcional os direitos dos executados, designadamente o de obter a suspensão da execução fiscal mediante a prestação de garantia, e que tem como consequência prática a inviabilidade da prestação de garantia por fiança em casos em que o património da fiadora é manifestamente suficiente para garantir o pagamento da dívida exequenda e do acrescido.
Na verdade, na petição inicial da reclamação judicial a Executada logo alegou – aliás suportando boa parte da alegação em considerandos constantes da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, tirada relativamente a situações em que não se aplicava o art. 199.º-A do CPPT, a respeito do método de avaliação da garantia que este artigo veio consagrar – que o método prescrito pelo n.º 2 deste artigo para avaliação do património da sociedade garante enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade. Porque a sentença não acolheu a tese da inconstitucionalidade, a Recorrente vem novamente suscitar a questão perante este Supremo Tribunal Administrativo.
Assim, a questão que cumpre apreciar e decidir nestes autos é a de saber se a sentença recorrida fez errado julgamento quando manteve a decisão administrativa que recusou a prestação de garantia mediante a constituição de fiança, o que passa por indagar se o critério de avaliação do património da sociedade fiadora utilizado pela AT e prescrito pelo art. 199.º-A do CPPT respeita o princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2.2.2 DA CONFORMIDADE CONSTITUCIONAL DO CRITÉRIO PARA A AVALIAÇÃO DA IDONEIDADE DA FIANÇA
2.2.2.1 Como vimos de dizer, impõe-se conhecer da questão da inconstitucionalidade material da norma do art. 199.º-A do CPPT (…)
Antes de avançarmos, convém desde já deixar bem claro que a questão da inconstitucionalidade, invocada com fundamento na manifesta desadequação do critério de avaliação da garantia prescrito pelo n.º 2 do art. 199.º-A do CPPT para avaliar a fiança apresentada, será conhecida na estrita medida em que a referida norma se revela imprescindível à decisão a proferir nos presentes autos e que o juízo a formular está confinado às circunstâncias concretas da situação sub judice.
Como deixámos já dito, em ordem à prestação de uma garantia do montante de € 93.870,61, a sociedade executada apresentou uma fiança prestada por uma sociedade gestora de participações sociais, que detém (no termo do último ano anterior àquele em que foi apresentada a fiança) um capital próprio (…) de € 17.298.473,00, sendo que a AT, por força da aplicação do critério de avaliação prescrito na alínea a) do n.º 3 do art. 15.º do CIS, ex vi do no n.º 2 do art. 199.º-A do CPPT, concluiu que o valor do património da sociedade fiadora era de € 8.649.236,50. Diminuindo a este valor as parcelas referidas nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 199.º-A do CPPT, entre as quais assume especial relevância para a questão a dirimir o valor das participações sociais da sociedade executada, do montante de € 9.525,790,00, deduzida ao abrigo da alínea b) do referido preceito, chegou a um valor negativo para o património líquido da sociedade fiadora, mais concretamente - € 1.444.507,44.
A Recorrente, não questionando que a AT aplicou o critério de avaliação da garantia tal como ele resulta da lei – tendo inclusive feito uma excursão histórica sobre o regime legal de avaliação das garantias ao longo do tempo, a interpretação que dele foi feita pela AT e a jurisprudência sobre o mesmo – considera que o mesmo viola o princípio da proporcionalidade, na sua vertente da adequação, salientando que a jurisprudência da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo já se tinha pronunciado pelo desajustamento do critério que ora foi acolhido pelo legislador no art. 199.º-A do CPPT (introduzido pela Lei do Orçamento do Estado para 2016), em situações às quais o mesmo foi aplicado pela AT, ainda sem norma legal que o impusesse (…)
Na verdade, como ficou dito nessa jurisprudência, para efeitos de avaliação da idoneidade da garantia a prestar por fiança, o critério a utilizar, para além de objetivo, deve ser adequado à finalidade que se propõe, qual seja a de averiguar da suscetibilidade do património do fiador para responder pela dívida exequenda e acrescido, sendo que deve ter-se por desajustado o critério que tenha como resultado último, em virtude do método de avaliação adotado, a recusa como fiador de pessoa cujo património ofereça suficiente consistência para responder pela dívida exequenda e pelo acrescido.
Mantemos as críticas que fizemos àquele critério, então ainda não prescrito na lei para formular o juízo sobre a idoneidade da garantia, na sua aplicação aos casos – como o ora sob escrutínio – em que estava em causa a prestação de garantia por fiança por uma sociedade gestora de participações sociais detentora da totalidade do capital social da sociedade executada. A aplicação desse critério, impondo uma avaliação patrimonial da sociedade desadequada, termina num resultado, a nosso ver, manifestamente desajustado, qual seja recusa pela AT de uma fiança oferecida para garantir o valor de € 93.870,61, com fundamento em falta de idoneidade da garantia, com o argumento de que a sociedade fiadora – que tem um capital próprio de € 17.298.473,00 – «não conseguirá libertar os meios financeiros líquidos suficientes, considerando a grandeza dos passivos correntes e contingentes, a falta da capacidade de cumprimento de curto prazo revelada, pelo que neste contexto não está em condições de se assumir como fiadora e que, com elevada probabilidade não tem capacidade de cumprir com as obrigações que a legislação fiscal estabelece para os garantes».
Recuperamos algumas das críticas que já anteriormente fazíamos ao método para avaliar a garantia e que ora, pese embora a consagração legal do mesmo, se mantêm. Essencialmente e no que ora nos interessa considerar, são as que passamos a expor.
É certo que existem vários métodos para avaliar o património de uma sociedade, mas a escolha do método deve ter em conta a finalidade prosseguida e revelar-se adequada ao mesmo. Assim, a avaliação do património em ordem a formular um juízo de idoneidade sobre a garantia oferecida mediante fiança prestada por uma sociedade deve ser efetuada através de um método que permita averiguar da suscetibilidade do património da sociedade assegurar o pagamento da dívida exequenda e do acrescido, caso seja necessário executar a garantia (cfr. arts. 169.º, 199.º e 217.º, do CPPT, e art. 52.º, da LGT). Ou seja, a aceitação da fiança como garantia encontra-se dependente do valor do património do fiador. Mas, que valor? perguntar-se-á. A nosso ver, o valor relevante será o que possa atingir o património da sociedade fiadora se houver de ser executado, penhorado e vendido em ordem ao pagamento da responsabilidade assumida.
Ora um critério que arranca da avaliação do património pelas regras do art. 15.º do CIS mostra-se, à partida, desadequado para aferir da capacidade de cumprimento da fiadora. É que neste preceito está previsto, não um método de avaliação do património de uma sociedade, mas um método de avaliação de participações sociais em ordem à determinação da matéria tributável, como expressão quantitativa do facto tributário, para efeitos de liquidação do IS – imposto que se enquadra entre os tipos de impostos sobre o consumo ou a despesa, com incidência sobre alguns atos e contratos, previstos na Tabela Geral anexa ao Código – no caso de transmissão de quotas a título gratuito. Ou seja, um critério consagrado para determinar a matéria tributável e, ao final, a tributação em IS. Esse critério de mensuração da matéria tributável (isoladamente ou conjugado com a subsequente subtração dos montantes referidos nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 199.º-A do CPPT), na medida em que tem como ponto de partida o valor das quotas sociais, nada nos permite saber sobre a capacidade da sociedade fiadora para responder pelo pagamento da dívida garantida, sobre a suficiência do seu património para esse efeito.
A desadequação do método revela-se mais evidente quando a sociedade fiadora é uma sociedade gestora de participações sociais, pois nesse caso os únicos ativos que a sociedade pode deter são, por força da lei (Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro), participações sociais. Assim, a avaliação do seu património deveria contemplar esses ativos, ao invés de se ater ao valor das ações da própria fiadora.
Por outro lado, também não se compreende o critério que preside à alínea b) do n.º 1 do art. 199.º-A do CPPT, que impõe que ao valor encontrado pela aplicação do critério do n.º 3 do art. 15.º do CIS se subtraia o montante das partes de capital da sociedade executada que sejam detidas pela fiadora. Desde logo, porque não se alcança a lógica que preside à subtração de realidades diversas: poderíamos eventualmente compreender essa subtração se o valor considerado fosse o da totalidade das participações sociais detidas pela fiadora; mas, como deixámos já dito, o valor a considerar nos termos do método legal não é esse, mas o valor das ações da própria fiadora. Ou seja, se o método de avaliação da garantia legalmente consagrado pretende desconsiderar o valor das participações na executada, deveria tomar como ponto de partida o valor dos ativos não correntes e nunca ao valor das ações da sociedade garante, já que as duas variáveis não têm qualquer correlação entre si.
Por outro lado, não se compreende o porquê de deduzir o valor da participação social que a fiadora detém na sociedade executada; nem se diga (como o fazia a AT antes do critério estar legalmente consagrado) que essa dedução é imprescindível, sob pena de se «considerar duas vezes o mesmo património». Esta tese assenta num pressuposto errado, qual seja o de que a fiança só poderia ser acionada após a excussão do património da executada, nos termos gerais previstos no art. 638.º do Código Civil (CC) (…); se assim fosse, ou seja, se o acionamento da garantia tivesse como requisito necessário o esgotamento e insuficiência do património da executada, sim, faria sentido subtrair o valor da participação da fiadora na sociedade executada; mas não é assim, nos casos – como o sub judice – em que a fiança foi prestado com renúncia ao benefício da excussão prévia, como o permite o art. 640.º, alínea a), do CC (…); ou seja, a fiadora obrigou-se com todo o seu património no cumprimento da dívida exequenda como principal pagadora, pelo que não faz sentido excluir na avaliação desse património a sua participação na sociedade devedora.
Eram estas as críticas que fazíamos ao critério de avaliação quando a AT, ainda sem lei que o prescrevesse, o adotou e que mantemos apesar da sua consagração na letra da lei.
2.2.2.2 O facto de o critério resultar agora expressamente da lei não o torna imune a um juízo de proporcionalidade. Na verdade, também o legislador, pese embora a sua liberdade conformadora, está sujeito a princípios e regras jurídicas que, num estado de Direito, sustentam as relações entre o estado e os cidadãos. Está, pois, o legislador, como qualquer poder público, obrigado a respeitar a ideia de estado de direito inscrita no princípio do estado de direito democrático consagrado no art. 2.º da CRP (…). O princípio da proibição do excesso aplica-se a todos e quaisquer atos dos poderes públicos, vinculando o legislador, a administração e a jurisdição, sendo certo que a margem de atuação do legislador é de controlo mais restrito: os tribunais limitam-se, então, a examinar se a regulação legislativa é manifestamente inadequada. Isto porque se reconhece ao poder legislativo uma “prerrogativa de avaliação” da relação meio/fim da medida, pelo que apenas caberá ao tribunal ajuizar da ocorrência ou não ocorrência de um “erro manifesto” nessa mesma avaliação.
Para avançarmos na averiguação da eventual violação pelo art. 199.º-A do CPPT do princípio da proporcionalidade, vamos socorrer-nos da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que é o órgão judicial especialmente vocacionado para conhecer as questões de constitucionalidade.
A proporcionalidade é questão abundantemente tratada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. Como ficou dito no acórdão n.º 632/08 desse Tribunal (…), «a ideia de proporção ou proibição do excesso – que, em Estado de direito, vincula as ações de todos os poderes públicos – refere-se fundamentalmente à necessidade de uma relação equilibrada entre meios e fins: as ações estaduais não devem, para realizar os seus fins, empregar meios que se cifrem, pelo seu peso, em encargos excessivos (e, portanto, não equilibrados) para as pessoas a quem se destinem. Dizer isto é, no entanto, dizer pouco. Como se escreveu no Acórdão n.º 187/2001 (ainda em desenvolvimento do Acórdão n.º 634/93)
o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).
A esta definição geral dos três subprincípios (em que se desdobra analiticamente o princípio da proporcionalidade) devem por agora ser acrescentadas, apenas, três precisões. A primeira diz respeito ao conteúdo exato a conferir ao terceiro teste enunciado, comummente designado pela jurisprudência e pela doutrina por proporcionalidade em sentido estrito ou critério da justa medida. O que aqui se mede, na verdade, é a relação concretamente existente entre a carga coativa decorrente da medida adotada e o peso específico do ganho de interesse público que com tal medida se visa alcançar. Ou, como se disse, ainda, no Acórdão n.º 187/2001, «[t]rata-se…de exigir que a intervenção, nos seus efeitos restritivos ou lesivos, se encontre numa relação “calibrada” – de justa medida – com os fins prosseguidos, o que exige uma ponderação, graduação e correspondência dos efeitos e das medidas possíveis».
A segunda precisão a acrescentar é relativa à ordem lógica de aplicação dos três subprincípios, que se devem relacionar entre si segundo uma regra de precedência do mais abstrato perante o mais concreto, ou mais próximo (pelo seu conteúdo) da necessária avaliação das circunstâncias específicas do caso da vida que se aprecia. Quer isto dizer, exatamente, o seguinte: o teste da proporcionalidade inicia-se logicamente com o recurso ao subprincípio da adequação. Nele, apenas se afere se um certo meio é, em abstrato e enquanto meio típico, idóneo ou apto para a realização de um certo fim. A formulação de um juízo negativo acerca da adequação prejudica logicamente a necessidade de aplicação dos outros testes. No entanto, se se não concluir pela inadequação típica do meio ao fim, haverá em seguida que recorrer ao exame da exigibilidade, também conhecido por necessidade de escolha do meio mais benigno. É este um exame mais ‘fino’, ou mais próximo das especificidades do caso concreto: através dele se avalia a existência – ou inexistência –, na situação da vida, de várias possibilidades (igualmente idóneas) para a realização do fim pretendido, de forma a que se saiba se, in casu, foi escolhida, como devia, a possibilidade mais benigna ou menos onerosa para os particulares. Caso se chegue à conclusão de que tal não sucedeu – o que é sempre possível, já que pode haver medidas que, embora tidas por adequadas, se não venham a revelar no entanto necessárias ou exigíveis –, fica logicamente prejudicada a inevitabilidade de recurso ao último teste de proporcionalidade.
A terceira precisão a acrescentar relaciona-se com a particular dimensão que não pode deixar de ter o juízo de proporcionalidade (na sua aceção ampla), quando aplicado às decisões do legislador. Afirmou-se atrás que o princípio em causa vale, em Estado de direito, para as ações de todos os poderes públicos. Quer isto dizer que ele se aplicará tanto aos atos da função administrativa quanto aos atos da função legislativa, pois que, em qualquer caso, não pode o Estado (atuando através dos seus diferentes poderes) empregar meios que se revelem inadequados, desnecessários ou não ‘proporcionais’ face aos fins que pretende prosseguir. Certo é, porém, que o poder legislativo se distingue do poder administrativo precisamente pela liberdade que tem para, no quadro da Constituição, eleger as finalidades que hão-de orientar as suas escolhas: disto mesmo aliás se fala, quando se fala em liberdade de conformação do legislador. Daqui decorre que o juízo de invalidade de uma certa medida legislativa, com fundamento em inobservância de qualquer um dos testes que compõem a proporcionalidade, se há-de estribar sempre – como se disse no Acórdão n.º 187/2001 – em manifesto incumprimento, por parte do legislador, dos deveres que sobre ele impendem por força do princípio constitucional da proibição do excesso».
2.2.2.3 Cumpre agora aplicar os três testes do princípio da proporcionalidade, tal como configurado pelo Tribunal Constitucional, à norma em causa: o art. 199.º-A do CPPT.
Começando pelo primeiro, que respeita ao subprincípio da adequação, nele apenas se afere se um certo meio é, em abstrato e enquanto meio típico, idóneo ou apto para a realização de um certo fim.
A norma parece passar neste primeiro teste. Na verdade, atento o seu conteúdo típico e abstratamente considerado, a norma, na medida em que fornece um critério de avaliação da garantia, que é o efeito prosseguido pela norma, surge como um instrumento idóneo ou apto ao fim que visa alcançar.
Haverá, pois, que prosseguir com o segundo teste, o denominado exame da exigibilidade ou da necessidade de escolha do meio mais benigno, através do qual se existem, ou não, outras possibilidades (igualmente idóneas) para a realização do fim pretendido, de forma a apurar se foi escolhida, como devia, a possibilidade mais benigna ou menos onerosa para os particulares.
O fim visado pelo art. 199.º-A do CPPT é o de estabelecer o critério para aferir da idoneidade da garantia, prevista no art. 199.º, n.º 1, do mesmo Código, quando esta seja prestada por outro meio que não garantia bancária, caução e seguro-caução.
Sendo certo que essa idoneidade não pode aferir-se senão tendo em conta a capacidade do garante para responder pela dívida exequenda e pelo acrescido, caso venha a ser chamado a fazê-lo, o critério, abstratamente considerado, não pode deixar de passar pela avaliação do respetivo património. Não vislumbramos que outro critério pudesse ser utilizado na prossecução daquele fim, motivo por que não se coloca a questão de saber se podia optar-se por outro modo de aferição da idoneidade da garantia que não a avaliação do património do garante.
O que nos leva ao terceiro teste, ou seja, se a norma respeita o princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito ou se, pelo contrário, se revela excessiva, desproporcionada para alcançar o fim pretendido.
Do que deixámos já dito, resulta que é neste teste que a norma claudica.
A aferição da idoneidade da garantia, nos casos em que é prestado por outro meio que não garantia bancária, caução e seguro-caução, dissemo-lo já, passa necessariamente pela avaliação do património do garante. Para a avaliação do património não existe um único modelo que recolha a unanimidade: a avaliação pode ser efetuada de acordo com diferentes óticas, em função dos objetivos estabelecidos. No caso, sendo estes a aferição da idoneidade da garantia, o que importa estabelecer é a capacidade do património do garante, se for caso disso, assegurar o pagamento da dívida exequenda e do acrescido. Os critérios do legislador devem adequar-se a essa finalidade e dela não podem afastar-se. Numa expressão simples, mas nem por isso redutora, tudo consiste em saber se o património do garante é suficiente para responder pela dívida e o critério legal deve estar ao serviço desse objetivo e não de que qualquer outro.
Nada obsta a que o legislador estabeleça um critério para avaliação da garantia, sendo até que da consagração legal de um critério resultarão evidentes ganhos em termos de objetividade e, consequentemente, de segurança jurídica. No entanto, se esse critério se revela desadequado nos resultados a que a sua aplicação em concreto conduz, designadamente porque em situações como a dos autos, apesar da idoneidade da garantia resultar manifesta dos dados patrimoniais relativos à sociedade garante, leva à recusa da mesma, deve considerar-se que a norma que o impõe configura uma violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de direito democrático consignado no art. 2.º da CRP.
No confronto entre o interesse público na cobrança do crédito e o interesse particular do executado na suspensão da execução fiscal enquanto discute a legalidade da liquidação que esteve na origem da dívida exequenda, não vislumbramos motivo para que este seja absolutamente sacrificado no altar daquele. Por certo o legislador poderia ter consagrado um critério normativo para avaliação da garantia que não tivesse como consequência da sua aplicação a recusa da possibilidade de prestar garantia por determinados meios legalmente admissíveis, designadamente a recusa de uma fiança prestada por uma sociedade gestora de participações sociais.
Aliás, o resultado a que a AT chegou pela aplicação do critério consagrado no art. 199.º-A do CPPT suscita-nos algumas perplexidades no confronto com outras normas: se a sociedade fiadora fosse executada por uma dívida de € 93.870,61 (que é montante da garantia a prestar) e o órgão da execução fiscal penhorasse todo o seu património, não teria a penhora como suficiente? e se a mesma sociedade oferecesse como garantia para suspender essa execução fiscal penhor sobre as participações sociais que detém numa sua participada (ou seja, sobre parte do seu património), designadamente aquelas que detém sobre a sociedade aqui executada, a AT não aceitaria a garantia?
Atento o resultado da aplicação do critério escolhido pelo legislador (que levou à recusa da garantia, do montante de € 93.870,61, mediante fiança a prestar por uma sociedade com um ativo de € 212.147.138,00 e capitais próprios de € 17.298.473,00), o mesmo revela-se manifestamente desproporcionado, como resulta à saciedade dos contornos do caso sub judice.
O critério escolhido pelo legislador no art. 199.º-A do CPPT para a avaliação da garantia afigura-se-nos manifestamente desproporcionado (eivado de “erro manifesto”) e, tendo em conta a jurisprudência que se firmou anteriormente à vigência dessa norma, quer em torno da aceitação da fiança como garantia, quer sobre o critério de avaliação da idoneidade da mesma, autoriza mesmo considerações como as que a Recorrente verteu na primeira conclusão de recurso.
Neste contexto, por desconformidade constitucional, mormente com o princípio da proporcionalidade, não será de aplicar o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 199.º-A do CPPT ao determinar que o património da sociedade garante que seja sociedade gestora de participações sociais corresponde ao valor das suas ações, determinado nos termos do art. 15.º do CIS, deduzido, para além do mais, do valor das participações sociais da sociedade executada. Em conformidade, o recurso será provido, a sentença recorrida será revogada e, julgando procedente a reclamação judicial, será anulada a decisão administrativa que recusou a garantia oferecida mediante a prestação de fiança.»
3. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, em ordem à apreciação da constitucionalidade da norma cuja aplicação foi recusada.
Convidado a aperfeiçoar o requerimento de interposição, ao abrigo do n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, o recorrente apresentou peça processual em que enunciou do seguinte modo o objeto do recurso:
«[N]orma do artigo 199.º-A, n.º 1, alínea b e n.º 2, do CPPT, na parte i) em que impõe que, para efeitos de avaliação de fiança prestada por sociedade SGPS, a aferição do seu património corresponda ao valor da totalidade dos títulos representativos do seu capital social, determinado nos termos do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, e ii) na parte em que, sendo a fiança prestada com renúncia ao benefício da excussão prévia, impõe, nos termos da alínea b) do n.º 1, que ao valor encontrado nos termos do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, seja deduzido o montante das partes de capital do executado afiançado que sejam detidas, direta ou indiretamente, pela sociedade fiadora.»
4. O recorrente concluiu assim as suas alegações:
«1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, da CRP e arts. 70.º, n.º 1, al. a), e 72.º n.º 3, todos da LOFPTC, “pois que o acórdão proferido nos autos [de proc. n.º 965/17-30, Recursos jurisdicionais – Urgentes, do Supremo Tribunal Administrativo – 2.ª secção do Contencioso Tributário, fls. 433 a 456, em que é recorrente A., SA e recorrida a Autoridade Tributária e Aduaneira] desaplicou o normativo inserto no artigo 199.º-A/2 do CPPT, se aplicado tal critério legal, na sua literalidade, a uma sociedade gestora de participações sociais que tinha no último ano um ativo de € 212.147.138,00, um passivo de € 194.848.665,00 e capitais próprios de € 17.298,473,00, conduz a uma situação patrimonial líquida negativa, levando à recusa de uma fiança a prestar pelo valor de € 93.870,61 por, pretensamente, violar o princípio da proporcionalidade (artigo 2.º da CRP)” (fls. 461).
2.ª) Objeto do ressente recurso de constitucionalidade é a norma do artigo 199.º-A, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do CPPT, na parte i) em que impõe, para efeitos de avaliação de fiança prestada por sociedade SGPS, a aferição do seu património corresponda ao valor da totalidade dos títulos representativos do seu capital social, determinado nos termos do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, e ii) na parte em que, sendo a fiança prestada com renúncia ao benefício da excussão prévia, impõe, nos termos da alínea b) do n.º 1 do CPPT, que o valor encontrado nos termos do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, seja deduzido o montante das partes de capital do executado afiançado que seja detidas, direta ou indiretamente, pela sociedade fiadora.
3.ª) A decisão recorrida não localiza a sede do seu juízo, quanto à questão da constitucionalidade da “proibição do excesso”, no âmbito do regime dos limites da lei restritiva de “direitos, liberdades e garantias”, pelo que estará em causa este princípio na sua faceta de limitação geral dos actos da legislação (e não da administração ou jurisdição), enquanto elemento integrante do conteúdo da cláusula do Estado de Direito (Constituição, arts. 18.º, n.ºs 2 e 3, e 2.º, respetivamente).
4.ª) Por outra parte, a censura de constitucionalidade da decisão recorrida incide sobre o terceiro critério de tal princípio, ou seja, sobre a respetiva “proporcionalidade, em sentido estrito (“proibição do excesso”).
5.ª) Para efeitos de julgar a questão de constitucionalidade, há que identificar e ordenar os interesses em jogo, para estabelecer qual deles, atento o contexto legislativo em que se integra, deverá prevalecer numa classe de situações de “conflito de direitos” com o perfil da que está em causa, importa portanto apreciar a “ponderação de bens” materializada no critério legal, o sopesamento das vantagens e desvantagens do método de avaliação escolhido pelo legislador, no que diz respeito à avaliação da idoneidade da fiança, com renúncia ao benefício da excussão previa, como condição de suspensão da execução fiscal.
6.ª) Os interesses aqui contrapostos a considerar são os que, a justo título, figuram na decisão recorrida: o interesse público na cobrança do crédito (prossecução pela AT do poder público de assegurar a cobrança do crédito fiscal do imposto, suposto que seja legal e exigível, como meio de satisfazer as necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, no caso através da exigência da prestação de garantia idónea como condição da suspensão da execução fiscal tendente, art. 103.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição) e o interesse particular do executado na suspensão da execução fiscal enquanto se discute nos tribunais a legalidade da liquidação que esteve na origem da dívida exequenda (no fim de contas, do direito à tutela jurisdicional efetiva, declarativa e cautelar, sem custos (financeiros) que a inviabilizem na prática arts. 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição).
7.ª) Finalmente, importa relevar que neste contexto, como tem ajuizado, reiterada e incisivamente, a jurisprudência constitucional, “não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da administração –, legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as suas finalidades, uma "prerrogativa de avaliação" como que um "crédito de confiança", (…) a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detetar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa".
8.ª) A remissão legal dos n.ºs 1 e 2, do artigo 199.º-A, cit., vai referida ao “valor do património” (correspondente ao valor da totalidade dos títulos representativos do seu capital social) e aos termos do artigo 15.º, sujeita à cláusula típica “com as necessárias adaptações”, ou seja, o que se trata no contexto do é de apurar tal valor do património (da empresa) e não das ações (embora, como se disse, um seja correlativo do outro).
9.ª) Por outra parte, os fatores da dita fórmula legal, nos termos conjugados do n.º 2 do artigo 199.º.-A, do CPPT, e do n.º 3 do artigo 15.º, do CIS, consideram, nomeadamente, o “valor substancial” da sociedade em causa (“o qual é calculado a partir do valor contabilístico correspondente ao último exercício anterior à transmissão”) e, ainda, “os resultados líquidos obtidos pela sociedade participada nos dois últimos exercícios anteriores à transmissão”, ou seja, não se trata, pois, de apurar o valor nominal dos títulos mas, antes, do seu valor substancial.
10.ª) Com a fiança, atendo o seu caráter pessoal (CC, art. 627.º, n.º 1), o que assim se oferece em garantia é um outro património (do garante), que passa a ser responsável, para além do património do devedor originário, pelo cumprimento da dívida exequenda e acrescido. Portanto, uma outra massa de bens fica responsável pela satisfação da dívida, pelo que a avaliação integrada do património será tendencialmente apropriada para apreciar a “idoneidade” desta modalidade de garantia.
11.ª) Não se vislumbra, nem tal vem especificado, a especialidade da avaliação do ativo de uma SGPS, ao menos para este efeito de garantia, através de fiança, na execução fiscal: este será, nos termos gerais, o valor do seu ativo corrente e não corrente, sendo que as participações financeiras em causa, conforme sejam temporárias ou estratégicas (de médio e longo prazo, como será o caso típico das participações das SGPS), serão escrituradas naquele ou neste, respetivamente.
12.ª) Não podemos perder aqui de vista que, no regime jurídico do artigo 199.º do CPPT, as modalidades de prestação de garantia para efeito de suspensão da execução fiscal não se confinam à fiança (aliás, não expressamente prevista no elenco legal).
13.ª) São garantia “idónea”, nos termos da lei, a garantia bancária, caução, seguro-caução ou qualquer meio suscetível de assegurar os créditos do exequente (n.º 1). Mais poderá a dita garantia idónea, a requerimento do executado e mediante concordância da administração tributária, consistir em penhor ou hipoteca voluntária (n.º 2). E, ainda, a penhora já feita sobre os bens necessários para assegurar o pagamento da dívida exequenda e acrescido ou a efetuar em bens nomeados para o efeito pelo executado (n.º 4).
14.ª) Sendo certo, por último, que o executado poderá mesmo, no limite, beneficiar de isenção da mesma (n.º 3 e LGT, art. 52.º, n.º 4).
15.ª) Também é de relevar que a prestação indevida de garantia, em tal cenário, dá causa a uma pretensão indemnizatória a favor do devedor (LGT, art. 53.º, n.º 1 e CPPT, art. 171.º, n.ºs 1 e 2).
16.ª) Finalmente, não será excessivo admitir que no caso dos elementos do seu ativo corrente e não correntes (p. ex. ativos fixos tangíveis, instrumentos e participações financeiras) terem valor considerável e desproporcionadamente superior ao da dívida exequenda e acrescido, o devedor societário se queira prevalecer dessa situação, oferendo uma fração de tais elementos em garantia (CPPT, art. 199.º, n.ºs 2 e 4).
17.ª) Quanto ao preceituado no n.º 1, al. b) do artigo 199.º-A, a dedução ali prescrita respeita às “partes de capital do executado que sejam detidas, direta ou indiretamente, pelo garante”,
18.ª) A estrutura e função da fiança, enquanto garantia pessoal, consiste, no final de contas, em fazer acrescer um outro património (enquanto genérica massa de bens) ao do devedor originário, para garantir a cumprimento da dívida de imposto.
19.ª) Ora, quando o capital social da sociedade afiançada é inteiramente detido por uma outra sociedade fiadora (sendo certo que no caso é por interposta sociedade, cujo capital social, por sua vez, é inteiramente detido pela da sociedade fiadora) não há um outro património a acrescer, como garantia (genérica) da satisfação do crédito, embora titulado por duas sociedades é sempre um e o mesmo património que está em causa, pelo que tal distorção deverá ser corrigida para se ter a real noção da capacidade financeira existente para satisfazer a dívida exequenda e acrescido, que será o fundamento racional para dedução prescrita no n.º 1, al. b) do artigo 199.º-A.
20.ª) A responsabilidade do garante (idem, ibidem, n.º 2) apenas será efetivada quando, verosimilmente, o devedor originário não realize o pagamento voluntário ou não tenha capacidade patrimonial para realizar, embora no caso, bem entendido, para firmar tal conclusão não seja não exigível a prévia excussão dos bens do devedor originário [LGT, art. 23.º, n.º 1 e 2, e CPPT, art. 153, n.º 1 e 2, als. a) e b)].
21.ª) Ora, ocorrendo isto no quadro de uma relação de domínio societário total, a incapacidade financeira deste (afiançado) necessariamente, em virtude do seu capital social ser inteiramente detido por aquela outra sociedade, se repercutirá na capacidade financeira daquele (fiador) para satisfazer a dívida exequenda e acrescido, pelo que a renúncia ao benefício da prévia excussão, neste contexto das sociedades em relação de grupo, nomeadamente de domínio total, não altera os dados do problema, na medida em que não reforça, substancialmente, a valia da garantia prestada pelo fiador.
22.ª) Finalmente, atento todo o exposto, contrariamente ao juízo da decisão recorrida e sem forçar a nota, podemos afirmar que a fórmula legal em apreço cobra todo o sentido enquanto critério de avaliação da capacidade financeira do fiador no quadro das sociedades em relação de grupo, nomeadamente de domínio total, e muito em especial quanto mais extensa for a cadeia de domínio.
23.ª) Com efeito, uma vez que a fiança não tem especiais custos de constituição e manutenção, e que o fiador não incorre substancialmente em risco agravado em relação ao que já decorre do domínio total, terá naturalmente um incentivo para preferir esta garantia, paralisando assim sem mais a execução fiscal, pelo que se impõe, como contraponto a tal propensão, uma avaliação tão precisa quanto possível da sua capacidade financeira para satisfazer a quantia exequenda e acrescido.
24.ª) Finalmente, sempre se dirá que no caso em apreço uma decisão de inconstitucionalidade seria, ela própria, contraditória com o equitativo propósito de consecução de finalidades de “justiça do caso”, manifestamente subjacente à decisão recorrida, tal resolução poderia mesmo ser excessiva e desnecessária.
25.ª) Excessiva, pois sendo controvertido apenas um efeito localizado (SGPS e das relações de domínio) em sede da aplicação da fórmula legal, efeito esse que pode mesmo ser superado em sede do controlo da proporcionalidade do juízo administrativo, será excessivo proferir um juízo radical de inconstitucionalidade, com eliminação do conjunto normativo em causa.
26.ª) Desnecessária, pois que a desejável a consecução da “justiça do caso” pode ser simplesmente alcançada no quadro do normal controlo da “margem de apreciação” da administração na apreciação da “idoneidade” da garantia, enquanto “conceito impreciso carecido de preenchimento valorativo”, através da técnica do erro de facto ou, em especial, de “erro manifesto de apreciação” (LGT, art. 52.º, n.º 2, e CPPT, art. 199.º, n.º 1).
27.ª) Face ao exposto, em suma, podemos concluir que fórmula legal em apreço, nomeadamente no quadro das sociedades em relação de grupo, nomeadamente de domínio total, e muito em especial quanto mais extensa for a cadeia de domínio, incrementando o risco de confusão de património, tem por ela as apreciáveis vantagens.
28.ª) Assim: proceder de uma avaliação contabilística do valor substancial (“capitais próprios”) da empresa, fundada no conhecimento especializado sufragado e praticado pelos peritos; vincular a administração tributária a um critério intersubjetivamente válido, permitindo uma objetivação da sua apreciação e do seu controlo pelos tribunais, nomeadamente em sede de proibição do excesso; permitindo um contraponto de controlo objetivável à propensão para prestação de garantia na modalidade de fiança, com efeitos de suspensão da execução fiscal; a lei prevê modalidades alternativas de prestação de garantia e, finalmente, não entrava o controlo da margem de apreciação da administração na avaliação da idoneidade da garantia oferecida.
29.ª) Assim, num juízo global de custos e benefícios, a solução normativa em causa prossegue a finalidade de interesse público de assegurar a cobrança do crédito fiscal do imposto, suposto que seja legal e exigível, como meio de satisfazer as necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas. E, por outra parte, não será um entrave desproporcionado ao legítimo exercício do direito à tutela jurisdicional efetiva, declarativa e cautelar, sem custos financeiros que a inviabilizem na prática, apurar para tal efeito a situação líquida do garante (isso não será mesmo um “custo”, mas uma simples decorrência da realidade da saúde financeira das empresas) não estando assim eivada de erro manifesto de ponderação legislativa (Constituição, arts. 103.º, n.º 1 e 3, vs. 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4).
30.ª) Em conclusão, a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, no caso em erro de interpretação das disposições conjugadas dos artigos 199.º-A, n.ºs 1, alínea b), e n.º 2, do CPPT e 15.º, n.º 3, do CIS, ao julgar que tal conjunto normativo infringe o princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de proibição do arbítrio, inerente à cláusula do Estado de direito democrático (Constituição, art. 2.º).
Nestes termos, concedendo provimento ao presente recurso, por concorrer erro de julgamento, no caso de erro de interpretação das disposições conjugadas dos artigos 199.º-A, n.ºs 1, e alínea b), e n.º 2, do CPPT, e 15.º, n.º 3, do CIS, deverá ser revogada a decisão recorrida, baixando então os autos ao tribunal recorrido, a fim de que este a reforme em conformidade com o julgamento de não inconstitucionalidade (LOFPTC, art. 80.º, n.º 2).»
5. A recorrida contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
«CONCLUSÕES
i. Como reação às sucessivas e unânimes decisões judiciais (…) quanto à ilegalidade da sua posição, decidiu a AT diligenciar junto do Ministério das Finanças (…) no sentido de aditar ao CPPT uma norma que confortasse o seu ilegal procedimento – completamente dissonante com o fim legal e, sobretudo, violadora dos mais básicos cânones de proporcionalidade.
ii O caso dos autos é demonstrativo de que norma legal sindicada integra uma metodologia para aferir da idoneidade da fiança que, na prática, impossibilita o uso da fiança como garantia, face à constatação de que resulta na inidoneidade da garantia prestada para suspender a cobrança coerciva da quantia de €73 799,09 por uma empresa com um ativo de €212 147 138,00 e capitais próprios de €17 298 413,00.
iii. Como o legislador veio acriticamente a dar guarida à inadequada metodologia proposta pela AT, mais não restava ao Supremo Tribunal Administrativo senão desaplicar o artigo 199.º-A do CPPT - por violação manifesta do princípio constitucional da proporcionalidade, consignado nos artigos 55.º da LGT e 266.º, n.º 2 da CRP.
iv. Face à adoção do critério atualmente constante do artigo 199.º-A do CPPT, o Supremo Tribunal Administrativo (…) decidiu que «Não basta que o critério de avaliação do património do fiador para efeitos de avaliar a sua idoneidade para assegurar o pagamento da dívida exequenda garantida e acrescido seja objetivo, necessário é também que sela adequado ao fim tido em vista, que só poderá ser, nos termos da lei, o de averiguar da suscetibilidade do património da fiador para responder pela dívida exequenda e acrescido e não o de permitir à AT recusar como garantes fiadores cujo património ofereça suficiente consistência para responder pela divida garantido.».
v. Como resulta evidenciado nos autos, também no caso concreto a aplicação da metodologia prevista no artigo 199.º-A do CPPT conduz a resultado absurdo – na medida em que o valor a deduzir da participada, de €9.525.790,00, é superior ao valor total das ações da própria sociedade participante, de €8.649.236,50.
vi. E daí que, a aplicação da metodologia em causa, em lugar de se destinar a determinar a idoneidade da garantia face à exigência legal de ser “suscetível de assegurar os créditos do exequente” (…), destina-se, outrossim, a inviabilizar par completo a prestação de garantia através de fiança.
vii. Mesmo por referência ao ilegal critério do “património líquido”, a aplicação da metodologia prevista no artigo 199º-A do CPPT demonstra o desacerto da solução legal consagrada acriticamente na medida em que o artigo 15.º do CIS contém uma fórmula legal que não faz qualquer sentido para a aferição da idoneidade da garantia (…) (…) a prestar para suspensão da execução fiscal – atenta a finalidade prevista nos artigos 52.º da LGT e 199.º do CPPT.
viii. Para aferição da idoneidade da garantia, o artigo 199º -A do CPPT estatui que “Na avaliação da garantia, com exceção de garantia bancário, caução e segura-caução, deve atender-se ao valor dos bens ou do património da garante” – sendo que, porque a fiadora é uma Sociedade Gestora de Participações Sociais, nos termos da Lei n.º 495/88 de 30.12 os únicos bens que pode deter são participações sociais.
ix. Em cumprimento do referido preceito legal, impunha-se que a AT determinasse qual o valor das participações sociais detidas pela fiadora – as quais constituem, portanto, o património que serve de garantia – e não que determinasse o valor das ações da própria fiadora
x. Face à adoção do critério atualmente constante do artigo 199.º-A do CPPT, o Supremo Tribunal Administrativo (…) decidiu que:
«Não basta que a critério de avaliação do património do fiador para efeitos de avaliar a sua idoneidade para assegurar o pagamento da dívida exequenda garantida e acrescido seja objetivo, necessário é também que seja adequado ao fim tido em vista, que só poderá ser, nos termos da lei, o de averiguar da suscetibilidade do património do fiador para responder pela dívida exequenda e acrescido e não o de permitir à AT recusar como garantes fiadores cujo património ofereça suficiente consistência para responder pela dívida garantida.».
xi. Como resulta evidenciado nos autos, também no caso concreto a aplicação da metodologia prevista no artigo 199.º-A do CPPT conduz a resultado absurdo – na medida em que o valor a deduzir da participada é superior ao das partes de capital da própria sociedade participante
xii. E dai que, a aplicação da metodologia em causa, em lugar de se destinar a determinar a idoneidade da garantia face à exigência legal de ser “suscetível de assegurar os créditos do exequente” (…) – destina-se, outrossim, a inviabilizar par completa a prestação de garantia através de fiança.
xiii. Mesmo por referência ao ilegal critério do património líquido, a aplicação da metodologia prevista no artigo 199.º-A do CPPT demonstra o desacerto da solução legal consagrada acriticamente na medida em que o artiga 15.º do CIS contém uma formula legal que não faz qualquer sentido para a aferição da idoneidade da garantia (…) (…) a prestar para suspensão da execução fiscal – atenta a finalidade prevista nos artigos 52.ºda LGT e 199.º do CPPT.
xiv. A formulação legal acriticamente acolhida no CPPT não passou incólume à crítica do Supremo Tribunal Administrativo (…) nos seguintes termos «(…) não faz sentido a dedução ao valor apurado nos termos do art. 15.º do CIS dos valores da participação que a sociedade garante tem na sociedade executada e dos passivos contingentes.».
xv. A tese da Recorrente assenta num pressuposto errado, qual seja o de que a fiança só poderia ser acionada após a excussão do património da executada - todavia a fiança foi prestada com renúncia ao benefício da excussão prévia, pelo que a fiadora obrigou-se com todo o seu património no cumprimento da dívida exequenda como principal pagadora, pelo que não faz sentido excluir na avaliação desse património a sua participação na sociedade devedora.
xvi. Ao invés do referido na conclusão 23) do recurso a que se responde, a constituição e manutenção de uma fiança tem virtualmente os mesmos custos que a constituição de uma garantia bancária – mormente o pagamento de imposto de selo e débito, pela fiadora, de encargos a “valores de mercado”, em pleno cumprimento do regime dos preços de transferência (art. 63.º CIRC).
xvii. O Recorrente invoca a idoneidade do critério legal propugnado no artigo 199.º-A do CPPT para aferição da idoneidade de fiança - e inerente constitucionalidade – “nomeadamente no quadro das sociedades em relação de grupo” - obnubilando que, nos termos da lei – e afora as situações em que se evidencie um “interesse legítimo” - a prestação de garantia, através de fiança, pressupõe precisamente a existência de uma relação de grupo entre a sociedade fiadora e a afiançada (art. 6.º n.º 3 CSC).
xviii. E daí que, ao contrário do invocado na conclusão 25.º, do recurso a que se responde, não está em causa qualquer pretenso “Efeito localizado” – bem pelo contrário, no caso da fiança, está em causa um efeito que decorre do próprio recorte legal societário.
xix. A desconformidade do critério propugnado no artigo 199.º-A do CPPT é sublinhada pelo simples confronto com o resultado da aplicação de normas com idêntico fim.
xx. Exemplificando com o caso dos autos: estando em causa uma divida exequenda no valor de €73.799,09 será que a AT não entenderia como suficiente, como garantia, a penhora de ações da Recorrida no valor de €9.525.790,00? E será que a AT não aceitaria, como garantia, o penhor das ações da fiadora no valor de €8.649.23650?
xxi. Em consequência:
i.- o critério constante do artigo 199.ºA- do CPPT acarreta a impossibilidade de prestação de garantia através de fiança em circunstâncias concretas onde a fiadora, manifestamente, possui património mais do que suficiente para garantir o bom pagamento da dívida exequenda;
ii. - o critério constante do artigo 199.ºA - do CPPT restringe de modo desproporcional os direitos dos Contribuintes, na medida em que no existe qualquer fundamento au justificação razoável para expurgar do património da fiadora relevantes componentes positivas;
iii.- o critério constante do artigo 199.ºA- do CPPT se revela manifestamente inadequado à finalidade legal que supostamente pretende cumprir – como decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo (…).
xxii. Resta concluir pela inconstitucionalidade material do artigo 199.º-A do CPPT, por violação do princípio da proporcionalidade constante do artigo 266.º, n.º 2 CRP e ínsito no princípio do Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.º da CRP – na medida em restringe desproporcionalmente a possibilidade de os Contribuintes obterem a suspensão da instância executiva.
Termos em que com a falta de provimento do presente recurso, deve a Douta sentença recorrida manter-se nos seus precisos termos, assim se cumprindo a Lei e se fazendo
Justiça!»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. O objeto do presente recurso integra dois segmentos do artigo 199.º-A do CPPT, que respeita à avaliação da garantia prestada pelo executado em ordem à suspensão da execução fiscal.
O primeiro segmento, extraído da parte inicial do n.º 2 do artigo 199.º-A, determina que o valor do património de SGPS que afiança a dívida tributária da entidade executada deve ser apurado segundo as regras relativas ao valor de ações que constam do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo – mais precisamente, visto tratar-se de sociedade não cotada em bolsa constituída há mais de dois anos, o preceituado na alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º desse diploma.
O segundo segmento, extraído da parte final do n.º 2 e da alínea b) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT, determina que ao valor apurado nos termos do primeiro segmento deve ser deduzido, entre outros montantes, o valor das partes de capital do executado que sejam detidas, direta ou indiretamente, pelo fiador, ainda que este tenha renunciado ao benefício da excussão prévia do património do devedor principal.
Como é bom dever, os dois segmentos que integram o objeto do recurso correspondem a duas etapas na operação contabilística de avaliação do património da entidade garante, para efeitos de aferição da idoneidade da fiança prestada com vista a suspensão da execução fiscal.
A primeira etapa é a aplicação da fórmula Va = [1 ÷ (2 × n )] × [S + (( R1 + R2) ÷ 2) × f ], em que: Va representa o valor de cada ação representativa do capital social; n representa o número total de ações representativas do capital social; S representa o valor substancial (ou capitais próprios) da sociedade participada, calculado a partir do balanço do último exercício; R1 e R2 são os resultados líquidos dos dois últimos exercícios (aos quais, no caso de soma negativa, deve ser atribuído o valor de 0); e f é o fator de capitalização dos resultados líquidos calculado com base na taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento, acrescida de um spread de 4 %.
Ao consagrar esta fórmula, a lei manda calcular o valor da sociedade segundo dois critérios ou métodos diversos. Por um lado, o critério – representado pela variável S − da situação patrimonial líquida ou dos capitais próprios, que é o resultado da diferença entre o ativo e o passivo. Esse é o «valor patrimonial» da sociedade, porque dá a medida do produto da liquidação de todo o seu património, através da alienação onerosa dos elementos que integram o ativo e do pagamento dos débitos que compõem o passivo, pelos valores inscritos no balanço do último exercício. Por outro lado, o critério – representado pela variável R − da capitalização dos lucros contabilísticos, obtido a partir do produto da média dos resultados líquidos dos dois exercícios anteriores (R1 e R2) por um fator de capitalização f calculado com base na taxa de juro de referência (acrescida de um spread). Esse é o «valor empresarial» da sociedade, porque dá a medida da rentabilidade da afetação do património da sociedade ao objeto social, razão pela qual o valor é nulo nos casos em que a sociedade vem apresentado prejuízos.
Ora, como a fórmula legal contempla dois critérios ou métodos de avaliação distintos – com distintos fundamentos contabilísticos, financeiros e económicos −, é lógico que a soma dos valores encontrados segundo os critérios S e R seja dividido, não pelo número total de ações (representado por n), mas pelo dobro desse número (2 × n); o mesmo é dizer que o valor das ações (Va) é calculado com base na média dos valores apurados segundo os dois critérios de avaliação – o «patrimonial» e o «empresarial» − eleitos pelo legislador.
A segunda etapa na operação de determinação do valor do património da sociedade garante, para efeitos de aferição da idoneidade da fiança, é a dedução, ao valor apurado da totalidade das ações, dos montantes previstos nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT, quais sejam: a) garantias concedidas e outras obrigações extrapatrimoniais assumidas; b) partes de capital do executado que sejam detidas, direta ou indiretamente, pelo garante; c) passivos contingentes; e d) quaisquer créditos do garante sobre o executado.
Na situação dos autos, percorreu-se o seguinte caminho, tendo por base as demonstrações financeiras da sociedade garante:
i. Capitais próprios no último exercício:
€ 212.147.138,00 (ativo) − € 194.848.665,00 (passivo) = € 17.298,437,00
ii. Média dos resultados líquidos nos dois exercícios anteriores:
€ −2.965.535,00 + € −2.512.717,00 = € −5.478.252,00 (= 0)
iii. Fator de capitalização:
1 ÷ (0,0005 + 0,04) = 24,691
iv. Número total de ações:
4.900,00
v. Valor por ação:
[1 ÷ (2 × 4.900,00)] × [€ 17.298,437,00 + (€ 0 ÷ 2) × 24,691] = € 1,76515
vi. Valor total das ações:
€ 1,7615 × 4.900,00 = € 8.649.236,50
v. Garantias concedidas:
€ 548.087,88
vi. Partes de capital do executado:
€ 9.525.790,00
vii. Passivos contingentes:
€ 17.866,00
viii. Créditos do garante sobre o executado:
€ 2.000,00
ix. Total dos montantes a deduzir:
€ 548.087,88 + € 9.525.790,00 + € 17.866,00 + € 2.000,00 = € 10.093.743,94
x. Valor do património da garante:
€ 8.649.236,50 − € 10.093.743,94 = € −1.444.507,44
A dívida fiscal liquidada era de € 73.799,09 e o montante a garantir era, atento o disposto no n.º 6 do artigo 199.º do CPPT, de € 93.870,61. Tendo a AT avaliado o património da sociedade garante em € −1.444.507,44, impôs-se a conclusão, firmada no despacho reclamado junto do tribunal de 1.ª instância, de que a fiança prestada era inidónea, na medida em que não reforçava a garantia da dívida exequenda relativamente à garantia geral constituída pelo património da executada.
7. A decisão recorrida recusou a aplicação da norma que constitui o objeto do presente recurso – o mesmo é dizer: recusou os critérios legais de aferição da idoneidade de fiança prestada por sociedade em relação de grupo com a executada –, com fundamento na violação do princípio da proporcionalidade, tendo entendido que a solução legal, pese embora adequada e necessária, não passa no crivo da proporcionalidade em sentido estrito.
Para suportar tal conclusão, invocou, no essencial, as seguintes razões:
(i) O método de avaliação consagrado na alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º, que se insere no âmbito da tributação da transmissão gratuita de participações sociais, não é adequado à determinação do valor do património de uma sociedade para efeitos de aferição da idoneidade de fiança prestada com vista à suspensão da execução fiscal, na medida em que diz respeito à avaliação das ações representativas do capital social e não do património da sociedade garante. Esta distinção implica, no caso de se tratar de uma SGPS, que se não confundam as participações sociais que titulam o capital social com as participações sociais que integram o património da sociedade.
(ii) A dedução prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT – do montante das «partes de capital do executado que sejam detidas, direta ou indiretamente, pelo garante» − repousa na confusão entre o valor das ações representativas do capital social da garante e o valor das ações que integram o seu património, na medida em que é subtraído ao valor total daquelas uma parte do valor destas, correspondente às partes de capital da executada que integram o património da garante. Tal implica − conclui-se − a confusão de «realidades diversas».
(iii) A razão de ser da dedução prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT – evitar que o património da executada, que constitui a garantia geral da dívida exequenda, seja contabilizado na aferição do valor da garantia especial constituída pela fiança −, não se aplica aos casos, como o dos presentes autos, em que o fiador renuncia ao benefício da excussão prévia. Tal renúncia implica que o património do fiador responde pela dívida ainda que o credor não tenha excutido o património do devedor principal, pelo que deixa de fazer sentido subtrair este ao património daquele.
(iv) A desproporcionalidade da solução legal manifesta-se no resultado gerado na situação dos autos, em que a fiança prestada por uma sociedade com um ativo de € 212.147.138,00 e capitais próprios de € 17.298,437,00 é reputada inidónea para garantir uma dívida de € 93.870,61. Acresce o argumento, aduzido pela recorrida nas suas contra-alegações, de que, sendo o valor das partes de capital da executada, no montante de € 9.525.790,00, superior ao valor total das ações da fiadora, no montante de € 8.649.236,50, é evidente a desproporcionalidade da dedução. Tudo isto concorre no sentido de que a critério de avaliação consagrado na lei está – nas palavras da decisão recorrida − «eivado de “erro manifesto”».
8. Importa começar pela caracterização exata da questão de constitucionalidade que se coloca no presente recurso.
Desde logo, cumpre dizer que o problema não se situa no plano da proporcionalidade em sentido estrito – o denominado «terceiro teste» ou «terceiro subprincípio» em que se desdobra o princípio da proporcionalidade em sentido amplo ou da proibição do excesso. Como se afirma na decisão recorrida, é jurisprudência constitucional reiterada e pacífica que o princípio da proibição do excesso se analisa em três subprincípios: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade (v., por todos, os Acórdãos n.ºs 187/2001 e 123/2018). O subprincípio da idoneidade (ou da adequação) determina que o meio restritivo escolhido pelo legislador não pode ser inadequado ou inepto para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício frívolo de valor constitucional. O subprincípio da exigibilidade (ou da necessidade) determina que o meio escolhido pelo legislador não pode ser mais restritivo do que o indispensável para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício desnecessário de valor constitucional. Finalmente, o subprincípio da proporcionalidade (ou da justa medida) determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional.
Ora, tendo o Supremo Tribunal Administrativo concluído que o critério de avaliação da garantia prescrito na lei, construído a partir da remissão para a fórmula consagrada na alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º, não é adequado à finalidade de aferir a idoneidade da fiança para efeitos de suspensão da execução fiscal, chegando mesmo ao ponto de lhe imputar «erro manifesto», é difícil compreender a afirmação, feita na decisão recorrida, de que a solução legal passa nos crivos da adequação e da necessidade, sucumbindo apenas no patamar da proporcionalidade em sentido estrito. Se o problema é de falta de idoneidade do critério adotado pelo legislador, não há dúvida de que o mesmo reprova – de acordo com o entendimento expresso na decisão recorrida − no primeiro dos testes em que se desdobra o princípio da proibição do excesso; ao consagrar um critério de avaliação da garantia que não é adequado ao seu fim, a norma sindicada revela-se pura e simplesmente inidónea e, precisamente por essa razão, excessiva ou desproporcionada.
Porém, também não é claro, no caso vertente, qual seja o direito ou interesse, protegido pela ordem constitucional, cuja restrição se deva considerar excessiva. Note-se que a aplicação do princípio da proibição do excesso, desdobrado nos seus três «testes» ou subprincípios», pressupõe dois passos omitidos na decisão recorrida. O primeiro passo é verificar da existência de uma restrição a um direito fundamental ou da afetação negativa de uma outra grandeza axiológica a cujo respeito e promoção a ordem constitucional vincula o legislador ordinário; a proibição do excesso que decorre do princípio do Estado de direito é a proibição do sacrifício desproporcionado do que seja valioso, pelo que é imprescindível determinar-se a natureza e o alcance do desvalor que atinge o comportamento estadual. O segundo passo é a identificação de um fim legítimo a cuja prossecução o comportamento estadual restritivo se encontra ordenado; se a finalidade de uma medida que sacrifica valores constitucionais for censurada ou proscrita pela ordem constitucional, não há nenhuma razão válida para ponderar a admissibilidade do sacrifício – nenhum bem cuja promoção possa justificar o emprego de um meio desvalioso.
Em suma, a existência de uma medida restritiva e de um fim legítimo são pressupostos cumulativos da aplicação do princípio da proibição do excesso.
9. Quanto ao primeiro pressuposto, importa notar que a Constituição não consagra qualquer direito à suspensão da execução fiscal, nos casos em que o interessado impugna o ato de liquidação, pelo que a exigência de garantia idónea com vista à obtenção de tal benefício não consubstancia, em si mesma, uma medida restritiva de direitos fundamentais.
A prerrogativa de a administração pública definir unilateralmente a situação jurídica dos particulares – a denominada «autotutela declarativa» ou o «poder de decisão unilateral» −, constitui um traço característico dos sistemas de administração executiva, como é o caso do português. Traduz-se tal prerrogativa na circunstância de a administração pública não carecer de pronúncia judicial declarativa para ver reconhecidos os efeitos das suas decisões ou para que estas, no caso de serem exequíveis, venham a ser executadas, seja a execução assegurada pela própria administração − quando a lei lhe atribui a denominada prerrogativa da «autotutela executiva» ou o «privilégio da execução prévia» −, seja através do recurso aos tribunais, como é, em larga medida, o caso do processo de execução fiscal (artigo 151.º do CPPT) − assim como, por via de remissão para as regras que lhe dizem respeito, operada pelo n.º 1 do artigo 179.º do Código de Procedimento Administrativo, de todos os processos de execução de obrigações pecuniárias. Ora, se o ato administrativo tem força declarativa, não é de admirar que a impugnação não suspenda, por via de regra, a sua eficácia, nem prejudique a legalidade da respetiva execução.
É certo que, no caso das obrigações de prestar quantia certa, constituídas por ato administrativo sem natureza sancionatória, o n.º 2 do artigo 50.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos determina que a impugnação tem efeito suspensivo, desde que tenha sido prestada garantia por qualquer das formas previstas na lei tributária. Mas esta exigência de garantia não constitui uma restrição a um direito fundamental à suspensão da eficácia dos atos administrativos impugnados, sem o menor apoio no texto constitucional e estranho à matriz histórica do nosso sistema administrativo; pelo contrário, é parte integrante de uma das exceções à regra de que a impugnação do ato não prejudica a sua eficácia, nem obsta à respetiva execução.
Não significa isto que a possibilidade de a administração pública mover a execução – por conta própria ou por intermédio dos tribunais – de atos administrativos impugnados pelos afetados, não constitua uma restrição de direitos carecida de justificação constitucional. Se tais atos forem lesivos, a eficácia e eventual execução implicam um sacrifício imediato correspondente à sua carga ablativa, pelo que a autotutela declarativa não pode servir fins ilegítimos, nem se pode revelar um meio excessivo de prosseguir fins legítimos, nomeadamente a prossecução do interesse público confiada pela lei à administração.
Desde logo, assinale-se a imposição constitucional expressa de que aos administrados seja facultada tutela cautelar adequada (artigo 268.º, n.º 4, da Constituição). Com efeito, «quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal», para usarmos as palavras do artigo 120.º, n.º 1, do CPTA, a suspensão da eficácia do ato, e a paralisação da respetiva execução, decorrem do direito fundamental dos administrados a uma tutela jurisdicional efetiva. A recusa de uma providência cautelar, nessas situações, justifica-se apenas – nos termos do n.º 2 − «quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.»
Porém, fora do âmbito da tutela cautelar – âmbito esse em que se verifica necessariamente periculum in mora − a proteção constitucional recai unicamente sobre os direitos fundamentais eventualmente atingidos pela execução do ato impugnado e não sobre um qualquer direito autónomo a que os atos administrativos cuja legalidade é posta em causa pelos particulares não produzam efeitos, e não sejam executados, até que a impugnação seja decidida em termos definitivos. Um tal direito fundamental, como bem se entende, seria incompatível com a autotutela declarativa de que normalmente goza a administração pública, nos sistemas administrativos de tradição executiva. No caso das dívidas fiscais liquidadas pela AT, e cuja legalidade seja questionada pelo sujeito passivo, o direito fundamental geralmente atingido pela execução é o direito de propriedade (artigo 62.º, n.º 1, da Constituição). Isto − repita-se −, sem prejuízo dos casos especiais em que, atento o perigo de que se produzam danos irreversíveis, esteja sobretudo em causa o direito a uma tutela jurisdicional efetiva.
A Constituição permite expressamente a ablação do património dos contribuintes para o preenchimento das finalidades de satisfação das necessidades públicas e de justiça distributiva que comete ao sistema fiscal (artigo 103.º, n.º 1). Na verdade, constitui um dever fundamental dos contribuintes pagarem os impostos criados nos termos constitucionais – nomeadamente, com respeito pelos princípios da igualdade tributária, da segurança jurídica e da legalidade formal −, cuja liquidação e cobrança se façam nos termos da lei (n.º 2). E está claro que, se os cidadãos têm o dever fundamental de pagar impostos, não faz sentido dizer que a tributação do seu património, desde que conforme às exigências constitucionais, consubstancia uma restrição do direito fundamental de propriedade. Porém, nos casos em que é impugnado o ato de liquidação, é precisamente a adequação constitucional do imposto que é posta em causa; nessas circunstâncias, a execução da dívida fiscal constitui uma verdadeira restrição do direito de propriedade do impugnante, que sofre uma ablação patrimonial sem que se tenha consolidado na ordem jurídica o juízo sobre o seu dever fundamental de pagar o imposto correspondente.
10. O segundo pressuposto da aplicação do princípio da proibição do excesso é, como se assinalou, a existência de um fim legítimo para a medida restritiva. Ora, não é difícil discernir a razão de ser da possibilidade de execução de dívidas fiscais cuja liquidação o interessado impugnou. As receitas dos impostos – como se escreveu no Acórdão n.º 539/2015 – destinam-se «a prover indistintamente às necessidades financeiras da comunidade, em cumprimento de um dever geral de solidariedade.» Cada cidadão é chamado a contribuir para o financiamento dos serviços públicos na proporção da capacidade contributiva revelada pelos factos tributários que integram a previsão das normas que impõem deveres de pagar impostos. O não cumprimento destes deveres por parte dos contribuintes pode comprometer a satisfação das necessidades coletivas e os objetivos de justiça distributiva prosseguidos pelo sistema fiscal e, em todo o caso, implica uma repartição injusta da carga fiscal ou uma desigualdade de sacrifício, pelo facto de nem todos contribuírem na proporção da sua capacidade de o fazerem.
Ao admitir a execução de dívidas fiscais, mesmo nos casos em que a liquidação seja impugnada, a lei acautela o interesse público e a igualdade de sacrifício, cuja realização ficaria prejudicada na eventualidade de se vir a confirmar o acerto da liquidação do imposto num momento em que o património do devedor se venha a revelar insuficiente para a satisfação do crédito fiscal. Crédito esse que é indisponível, nos termos do n.º 2 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária, justamente porque a sua cobrança é indispensável para que o sistema fiscal respeite o princípio da igualdade e preencha as finalidades a que se encontra adstrito. Por outro lado, se a impugnação proceder, de tal modo que a ablação patrimonial do contribuinte excedeu a medida do seu dever fundamental de pagar impostos, o interessado tem ao seu dispor meios de exigir a reintegração do seu património, como decorre do direito fundamental dos administrados a tutela jurisdicional efetiva.
Identificados os fins subjacentes à possibilidade de execução de dívidas fiscais cuja liquidação o interessado impugnou, torna-se evidente a razão de ser do regime do artigo 169.º do CPPT, que determina a suspensão da execução fiscal, «desde que tenha sido constituída garantia nos termos do artigo 195.º ou prestada nos termos do artigo 199.º ou a penhora garanta a totalidade da quantia exequenda e do acrescido». A constituição ou prestação de garantia, desde que idónea, permite acautelar as finalidades da execução fiscal de dívidas cuja liquidação é impugnada, com menor sacrifício dos interesses patrimoniais do impugnante. Ora, o segundo teste do princípio da proibição do excesso, o subprincípio da exigibilidade, impõe que as restrições de direitos fundamentais se limitem ao mínimo indispensável para a prossecução de finalidades legislativas legítimas. Daí que a lei admita a suspensão da eficácia do ato de liquidação nos casos em que a dívida se encontra garantida – nesses casos, seria desnecessário promover uma ablação mais intensa do património do devedor, através da cobrança do imposto.
A decisão recorrida não questiona a proporcionalidade, em sentido amplo, da exigência de garantia idónea para a suspensão da execução fiscal. Por outras palavras, não está em causa a questão de saber se o poder de decisão unilateral da administração fiscal, mitigado por um regime de suspensão da eficácia da decisão mediante a constituição ou prestação de garantia idónea, é um meio adequado, necessário e proporcional de prossecução das finalidades de interesse público e de igualdade tributária que lhe subjazem. Em causa está antes a questão de saber se os critérios legais de aferição da idoneidade de uma das modalidades de garantia admitidas – a fiança – são adequados, ou se, pelo contrário, não sendo adequados, são excessivamente restritivos da obtenção do benefício da suspensão da eficácia de ato de liquidação impugnado. O problema situa-se no plano da eventual desnecessidade da ablação do património dos contribuintes, na medida em que um meio igualmente eficaz, mas menos lesivo, do que a execução da dívida fiscal – a prestação de fiança –, não tem a amplitude que teria se a lei acolhesse critérios adequados de aferição da respetiva idoneidade. Com efeito, a eventual desadequação dos critérios de aferição da idoneidade da fiança determina que não haverá lugar a suspensão da execução fiscal em casos em que tal não prejudicaria os fins legitimamente prosseguidos pela lei.
É essa, verdadeiramente, a questão a decidir no presente recurso.
11. Somente uma garantia idónea torna dispensável ou desnecessária a execução da dívida fiscal na pendência da impugnação do ato de liquidação. Trata-se de uma evidência.
O artigo 169.º, n.º 1, do CPPT, admite a suspensão em três categorias de casos: (i) garantia constituída nos termos do artigo 195.º; (ii) garantia prestada nos termos do artigo 199.º; ou (iii) penhora que garanta a totalidade da dívida exequenda e do acrescido. Os casos de garantia constituída, nos termos do artigo 195.º, são a hipoteca legal e o penhor. Os casos de garantia prestada, nos termos do n.º 1 do artigo 199.º, são a garantia bancária, a caução ou o seguro-caução, e ainda «qualquer meio suscetível de assegurar os créditos do exequente», acrescentando-se no n.º 2 que a «garantia idónea referida no número anterior poderá consistir, ainda, a requerimento do executado e mediante concordância da administração tributária, em penhor ou hipoteca voluntária.»
Como é bom de ver, todos os casos expressamente contemplados na lei são de garantias especiais por natureza robustas, seja por constituírem garantias reais – como a hipoteca, o penhor e a penhora −, que incidem sobre bens determinados, seja por constituírem garantias líquidas – como a garantia bancária, a caução e o seguro-caução −, que permitem a satisfação imediata do crédito. Nestes casos, a garantia, desde que feita pelo valor adequado, comporta um elevado grau de segurança, que justifica a dispensa da execução da dívida.
A fiança é uma garantia por natureza menos robusta. Através dela, «o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor» (artigo 627.º, n.º 1, do Código Civil). Tratando-se de uma garantia pessoal, não incide sobre bens determinados; se a obrigação não for cumprida, quer pelo devedor principal, quer pelo fiador, a garantia do credor compreende os patrimónios de um e do outro, relativamente aos quais concorre no rateio com os demais credores que não sejam titulares de direitos reais de garantia. Embora a fiança seja uma garantia especial, na medida em que acresce à garantia geral constituída pelo património do devedor, na realidade traduz-se numa segunda garantia geral constituída pelo património do fiador. Esta «redução patrimonial» da fiança é particularmente apropriada nos casos, como são os das dívidas fiscais, em que a obrigação é de natureza pecuniária – casos, quer isto dizer, em que a fiança cauciona o crédito na exata medida em que o património do fiador aumenta a probabilidade de o credor receber a quantia em dívida.
Depreende-se que o legislador goza de uma ampla liberdade de conformação política na definição das condições em que a fiança deve ser reputada garantia idónea com vista à suspensão da execução fiscal. Dadas as fragilidades essenciais deste tipo de garantia, e a legitimidade dos fins que subjazem à possibilidade de execução da dívida fiscal nos casos em que o ato de liquidação seja impugnado, é uma opção do legislador admiti-la através de uma cláusula geral com o teor da parte final do n.º 1 do artigo 199.º do CPPT, e é perfeitamente legítimo que, no uso dessa liberdade, estabeleça critérios de aferição da respetiva idoneidade, como os contemplados no artigo 199.º-A, tanto mais quanto estes se baseiem em juízos técnicos cujo mérito não deve ser sindicado pelos tribunais. O limite constitucional a esta liberdade do legislador é a proibição de soluções arbitrárias, à semelhança do que este Tribunal vem reiteradamente dizendo, por exemplo, em matéria de graus de jurisdição em processo civil (v., por todos, os Acórdãos n.ºs 239/97, 638/98, 431/02 e 353/06).
No mesmo sentido concorre a decisão recorrida, quando nela se afirma que ao legislador deve ser reconhecida uma «prerrogativa de avaliação», que apenas conhece o limite do «erro manifesto».
Resta, assim, apreciar se a solução legal sob escrutínio é manifestamente errada.
12. Recorde-se que são quatro, essencialmente, os argumentos do juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo – quatro as razões que suportam a conclusão de que o critério legal de aferição da idoneidade de fiança assumida por SGPS não cotada em bolsa está «eivado de “erro manifesto”».
Consideremo-las.
12.1. Em primeiro lugar, argumenta-se na decisão recorrida que o método de avaliação consagrado na alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, que se insere no âmbito da tributação da transmissão gratuita de participações sociais, não é adequado à determinação do valor do património de uma sociedade para efeitos de aferição da idoneidade de fiança prestada com vista a suspensão da execução fiscal, na medida em que diz respeito à avaliação das ações representativas do capital social e não do património da sociedade garante. Esta distinção implica, no caso de se tratar de uma SGPS, que se não confundam as participações sociais que titulam o capital social com as participações sociais que integram o património da sociedade. Em suma, entende-se que a lei deveria mandar a AT calcular o valor do património da sociedade garante e não o valor das ações representativas do capital social.
Este argumento começa por desconsiderar o facto de que o primeiro dos dois critérios de avaliação consagrado na alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º é precisamente o do «valor patrimonial» da sociedade, calculado através da subtração da totalidade do passivo à totalidade do ativo, pelos valores inscritos no balanço do último exercício; trata-se da variável S, na fórmula legal. É certo que, na tributação da transmissão gratuita de participações sociais, está em causa a determinação do valor de cada ação representativa do capital social, pelo que os capitais próprios têm de ser divididos pelo número total daquelas, ao passo que na aferição da idoneidade da fiança, o valor relevante é dos capitais próprios da sociedade. Ora, é por essa razão que o n.º 2 do artigo 199.º-A do CPPT dispõe que o valor do património «corresponde à totalidade dos títulos representativos do seu capital social determinado nos termos do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo»; o valor da totalidade das ações da sociedade garante, apurado segundo o critério S, é exatamente igual ao valor dos seus capitais próprios.
Pode ainda assim questionar-se a adequação do segundo critério de avaliação, o do «valor empresarial» da sociedade garante, obtido através do produto da média dos resultados líquidos dos dois exercícios anteriores por um fator de capitalização calculado com base na taxa de juro de referência (acrescida de um spread); trata-se da variável R, na fórmula legal. Com efeito, pode pensar-se que a rentabilidade da afetação do património ao objeto social, sendo um critério de indiscutível pertinência na avaliação dos títulos representativos do capital social, é irrelevante na aferição da idoneidade da fiança, na medida em que a garantia do crédito afiançado depende unicamente da composição e do valor do património do fiador. Mas não é exatamente assim. O património de uma sociedade é um instrumento de prossecução do objeto social, sujeitando-se a todas as vicissitudes da empresa; os lucros e os prejuízos da atividade repercutem-se no património. Uma sociedade com capitais próprios grandes, mas resultados líquidos negativos, pode perfeitamente ser uma fiadora mais precária do que uma sociedade com um património líquido menor, mas uma expectativa fundada de lucros, baseada nas demonstrações financeiras mais recentes; na verdade, os resultados líquidos serão uma variável tão mais importante, neste âmbito, quanto mais distendidos forem os prazos de vencimento da dívida. No caso das dívidas fiscais, em que a resolução do litígio entre a AT e o sujeito passivo pode ser demorada, é razoável que esta variável seja tida em conta. Nada repugna, por isso, que a avaliação do património da sociedade garante integre simultaneamente uma variável estática – o valor de liquidação – e uma variável dinâmica – o valor de capitalização. Não se trata, seguramente, de um «erro manifesto».
É claro que há outros critérios de avaliação possíveis, que o legislador poderia combinar com os dois que consagra ou que poderiam tomar o lugar de algum deles. Poderia, por exemplo, atribuir relevância aos fluxos de caixa, que são um índice da liquidez da sociedade garante, uma variável aparentemente relevante no exercício de determinar a idoneidade da fiança. Porém, desde que os critérios consagrados não sejam arbitrários – como é o caso −, as opções legislativas devem ser respeitadas, sobretudo num domínio que, por se revestir de elevada carga técnica, reclama uma «prerrogativa de avaliação» muito ampla.
12.2. Em segundo lugar, argumenta-se na decisão recorrida que a dedução prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT – do montante das «partes de capital do executado que sejam detidas, direta ou indiretamente, pelo garante» − repousa na confusão entre o valor das ações representativas do capital social da garante e o valor das ações que integram o seu património, na medida em que é subtraído ao valor total daquelas uma parte do valor destas, correspondente às partes de capital da executada que integram o património da garante. Tal implica − conclui-se − a confusão de «realidades diversas».
É um facto que a lei manda deduzir o valor das partes de capital do executado detidas pela sociedade garante ao valor dos títulos representativos do capital social desta. Todavia, não se vislumbra aí qualquer erro manifesto. A avaliação das ações que titulam o capital social, segundo os critérios acolhidos pela alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, dá uma medida do valor da sociedade garante. O n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT impõe que a esse valor seja deduzido o valor das partes de capital da executada detidas pela garante, o mesmo é dizer, nos casos em que a garante detém, direta ou indiretamente, a totalidade do capital social da executada, o valor desta. As duas grandezas – o valor da garante e o valor da executada – são da mesma natureza e, por isso mesmo, perfeitamente comparáveis.
12.3. Em terceiro lugar, diz-se que a razão de ser da dedução prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT – evitar que o património da executada, que constitui a garantia geral da dívida exequenda, seja contabilizado na aferição do valor da garantia especial constituída pela fiança −, não se aplica aos casos, como o dos presentes autos, em que o fiador renuncia ao benefício da excussão prévia. Tal renúncia implica que o património do fiador responde pela dívida ainda que o credor não tenha excutido o património do devedor principal, pelo que deixa de fazer sentido subtrair este ao património daquele.
Sucede que a renúncia ao benefício da excussão prévia em nada altera a composição da garantia patrimonial da dívida exequenda, no caso de a fiança vir a ser reputada idónea. A garantia compreende o património do devedor principal – a entidade executada – e o património do fiador – a entidade garante; é este acréscimo de garantia patrimonial, o património do fiador, que vem reforçar a garantia geral do crédito constituída pelo património do devedor. Ora, se o património do devedor integra, pelo menos em parte, o património do fiador, pelo facto de este, como SGPS, deter direta ou indiretamente partes de capital daquele, a dedução prevista na lei é a que decorre da própria natureza da fiança. Se as partes de capital da executada fossem consideradas na determinação do valor do património da garante, o património daquela seria contabilizado duas vezes – como património do devedor principal (a garantia geral do crédito) e como parte integrante do património do fiador (a garantia especial do crédito).
Também aqui não há, pois, razão para supor que o legislador incorreu em «erro manifesto».
12.4. Finalmente, argumenta a decisão recorrida que a desproporcionalidade da solução legal se manifesta no resultado gerado na situação dos autos, em que a fiança prestada por uma sociedade com um ativo de € 212.147.138,00 e capitais próprios de € 17.298,437,00 é reputada inidónea para garantir um montante de € 93.870,61. Acresce o argumento, aduzido pela recorrida nas suas contra-alegações, de que, sendo o valor das partes de capital da executada, no montante de € 9.525.790,00, superior ao valor total das ações da fiadora, no montante de € 8.649.236,50, é evidente a desproporcionalidade da dedução.
Os números invocados na decisão recorrida e nas contra-alegações apenas causam perplexidade se abstrairmos das razões técnicas e materiais que informam o regime legal. Em primeiro lugar, não faz sentido comparar o valor do ativo da sociedade garante com o montante a garantir; o património líquido resulta da diferença entre o ativo e o passivo, e pode bem suceder que uma sociedade com um grande ativo tenha capitais próprios negativos, se o valor do seu passivo for ainda mais elevado. Em segundo lugar, a comparação entre os capitais próprios e o montante a garantir omite um dos critérios de avaliação do património da sociedade acolhido na lei, o «valor empresarial» ou «valor de capitalização», cujo fundamento, como vimos, se afigura razoável; no caso dos presentes autos, a SGPS apresenta resultados negativos nos dois últimos exercícios, o que determina, segundo a lei, que a sua rentabilidade é tida como nula, com evidentes reflexos negativos na sua avaliação global. Em terceiro lugar, nada há de absurdo no facto de as partes de capital da executada terem um valor superior ao valor da sociedade garante, apesar de esta deter indiretamente a totalidade dos títulos representativos do capital social daquela; basta, para o efeito, que os capitais próprios e o valor empresarial da executada sejam superiores ao da sociedade garante, o que é naturalmente possível. No caso vertente, a executada representa uma parcela significativa do ativo da garante, de tal modo que, subtraído o valor daquela ao valor desta, o resultado obtido é negativo – isto é, a fiança prestada não reforça, efetivamente, a garantia geral da dívida exequenda, constituída pelo património do devedor principal.
De tudo isto decorre que os resultados alcançados pela AT, através da aplicação dos critérios legais de aferição da idoneidade da fiança, nada revelam que faça prova de «erro manifesto» do legislador ou que evidenciem a desproporcionalidade das opções que consagrou.
Resta, assim, concluir que a norma que constitui o objeto do presente recurso não é inconstitucional.
13. Tratando-se de recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não há lugar ao pagamento de custas, nos termos do artigo 84.º, n.º 1, do mesmo diploma.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma, extraída do artigo 199.º-A, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário, na parte i) em que impõe que, para efeitos de avaliação de fiança prestada por Sociedade Gestora de Participações Sociais não cotada em bolsa constituída há mais de dois anos, a aferição do seu património corresponda ao valor da totalidade dos títulos representativos do seu capital social, determinado nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo; e ii) na parte em que, sendo a fiança prestada com renúncia ao benefício da excussão prévia, impõe, nos termos da alínea b) do n.º 1, que ao valor encontrado nos termos do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, seja deduzido o montante das partes de capital do executado afiançado que sejam detidas, direta ou indiretamente, pela sociedade fiadora.
b) Em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 28 de junho de 2018 - Gonçalo Almeida Ribeiro - Maria José Rangel de Mesquita - Lino Rodrigues Ribeiro - João Pedro Caupers