ACÓRDÃO Nº 738/2017
Processo n.º 536/17
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. 1. Na sequência de julgamento por tribunal coletivo, na secção criminal da instância central do Funchal, comarca da Madeira, foi o arguido A. condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. nos artigos 105.º, n.º 1, 2, 4 e 7, do RGIT, e 30.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de um ano e dez meses de prisão. Na sequência de recurso interposto pelo arguido foi então proferido acórdão pelo Tribunal da Relação, a 12 de janeiro de 2016, no qual foi decidido “anular parcialmente o acórdão recorrido para que o Tribunal a quo se pronuncie sobre a possibilidade de substituição, nas modalidades legalmente previstas, da pena de prisão efetiva aplicada, ou então, que fundamente de forma clara porque considera imperioso o cumprimento efetivo da pena de prisão”, O tribunal de 1ª instância proferiu então novo acórdão, a 13 de abril de 2016, no qual, suprimindo aquela nulidade, manteve a condenação do arguido na pena de um ano e dez meses de prisão. O arguido interpôs de novo recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 22 de novembro de 2016, negou provimento ao recurso. Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o qual não foi admitido, por decisão de 16 de janeiro de 2017. Tendo reclamado dessa decisão, foi a reclamação indeferida, por acórdão prolatado pelo STJ a 27 de fevereiro de 2017, tendo ainda sido indeferidas arguições de nulidades, por acórdãos prolatados a 24 de março e a 20 de abril de 2017.
2. O arguido veio então interpor, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso por si interposto. É do seguinte teor o requerimento de interposição de recurso:
“(...)
No caso concreto, afigura-se que a decisão recorrida, fundamentando a aplicação da pena de prisão exclusivamente nas (alegadas) condições sociais, económicas e culturais do recorrente, violou, desde logo, não só o princípio da igualdade, princípio geral de todo o edifício dos “Direitos, Liberdades e Garantias” estabelecido pelo artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), os princípios constitucionais penais da pessoalidade da pena e da sua não transmissibilidade e da legalidade, estabelecido no artigo 30.º n.º 3 da Lei Constitucional, bem como o imperativo legal sobre as finalidades das penas, consagradas pelo artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal.
Por outro lado, a escolha da pena de prisão efetiva (e a decisão da sua não substituição por pena de proibição do exercício de profissão, função ou atividade ou por pena de trabalho a favor da comunidade, nos termos preconizados, respetivamente, pelos artigos 43.º, n.º 3 e 58.º e seguintes do Código Penal, penas que em concreto realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição), revela-se desapropriada por excessiva, desnecessária e desproporcionada e, assim, deste modo violadora do princípio constitucional da proporcionalidade ou da proibição de excesso, estabelecido pelo artigo 18.º, n.º 2 da CRP.
Em suma, a decisão recorrida de efetiva privação do ius ambulandi do recorrente constitui uma irrefutável vulneração dos interesses em presença e da garantia da paz e segurança comunitárias, violando, em concreto, os princípios da proteção da confiança e do processo justo equitativo, bem como do direito ao recurso e das garantias de defesa (artigos 203.º. 20.º. n.º 1 e 32.º, n.º 1 da CRP), ferindo, por conseguinte, o «núcleo fundamental» do direito à liberdade (artigo 27.º da CRP).
As indicadas inconstitucionalidades e ilegalidades materiais, que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, foram suscitadas pelo recorrente no requerimento, apresentado nos autos em 10- 01-2017, de interposição de recurso do Acórdão da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 22-1 1-2016”.
3. No Tribunal Constitucional foi proferida a decisão sumária n.º 419/2017, que decidiu não conhecer do recurso, com os seguintes fundamentos:
"(...)
4. Da simples leitura do requerimento de interposição de recurso decorre que o recorrente pretende recorrer da própria decisão proferida, em si considerada, e não de qualquer norma ou interpretação normativa suscetível de aplicação a um número geral e indeterminado de casos. O objeto do recurso não constitui, pois, um objeto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade, já que um objeto de um tal recurso tem de consistir, necessariamente, em normas jurídicas, “identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Ora, o que está em causa no presente recurso não é uma norma imputada de inconstitucional, mas sim a própria decisão recorrida.
Mas, se assim é, há que relembrar neste contexto a inexistência, no nosso ordenamento jurídico, da figura do “recurso de amparo” ou da ação constitucional para defesa de direitos fundamentais, na apreciação de alegadas inconstitucionalidades, diretamente imputadas pelos recorrentes às decisões judiciais proferidas. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC, e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.
Assim, resta concluir que não é possível ao Tribunal Constitucional conhecer do presente recurso, por falta de um dos pressupostos legais de admissibilidade: a natureza normativa do objeto do recurso".
4. O recorrente veio reclamar desta decisão para a conferência, ao abrigo do artigo 78º- A nº 2 da LTC, em reclamação do seguinte teor:
"(...)
3. É um facto que o atual sistema português de fiscalização da constitucionalidade, embora sendo um sistema misto e/ou compromissório, composto por vários tipos de controlo constitucional (preventivo, sucessivo, difuso e concentrado), é um sistema de fiscalização estritamente normativa e não de “recurso de amparo” ou de “queixa constitucional”.
4. Todavia, não obstante o recorrente não se conformar com a decisão judicial recorrida, no seu entender, a interpretação que o tribunal a quo fez de determinadas normas penais (nomeadamente, transpondo claramente a barreira da moldura semântica do texto da lei, em concreto, dos artigos 40.º, n.º 1, 43.º, n.º 3 e 58.º do Código Penal, que constituíram a ratio decidendi da decisão recorrida) consubstancia verdadeira inconstitucionalidade nesta sede controlável do ponto de visto jurídico-constitucional.
5. Ora, no que ao objeto stricu sensu do recurso de inconstitucionalidade diz respeito, é entendimento reiterado, quer da doutrina quer do Tribunal Constitucional, que a apreciação da constitucionalidade de uma norma se pode verificar: na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação.
6. Ou seja, o recurso e juízo de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional tanto pode recair sobre a norma que a decisão recorrida tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, como se pode fundar em determinada interpretação normativa, tal como vem previsto no n.º 3 do artigo 80.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
7. Assim sendo, sabendo que pode o Tribunal Constitucional fiscalizar o processo interpretativo de obtenção da norma penal, utilizando como parâmetro de controlo o princípio jurídico-constitucional da legalidade criminal, não pretende o recorrente nesta sede sindicar a decisão recorrida ou que o Tribunal Constitucional controle a constitucionalidade do ato de julgamento, mas sim que fiscalize a constitucionalidade sobre o processo interpretativo judicial das normas penais em questão, apreciando se as mesmas foram ou não interpretadas pelo tribunal recorrido relativamente ao caso concreto com desrespeito pela Constituição.
8. O objeto da fiscalização concreta de constitucionalidade há de ser sempre uma questão concreta de inconstitucionalidade, isto é, uma questão de desconformidade entre uma norma ou uma sua interpretação a aplicar no processo sub judicio e uma norma ou princípio constitucional (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 336/95 e 238/94).
9. Neste sentido, tem vindo o Tribunal Constitucional a decidir, admitindo o recurso, nos termos do artigo 280.º da CRP, em que se impugne uma determinada interpretação da norma que seja contrária à Constituição.
10. A este propósito, escreveu-se no Acórdão n.º 128/84, de 12 de dezembro de 1984, o seguinte:
“Não é raro que uma mesma norma comporte várias interpretações, fenómeno que resulta, além do mais, de em certo momento, se conceder prevalência a um ou outro dos vários argumentos utilizados como auxiliares de interpretação — elemento histórico, sistemático, literal, teleológico.
E não é impossível que dessas várias interpretações uma, ou várias até, tornem a norma compatível à Constituição, enquanto outra, ou outras, a condenem irremissivelmente.
Para fazer uma interpretação conforme à Constituição, o Tribunal Constitucional tem de determinar quais as interpretações que invalidam a norma e quais as que lhe garantem subsistência válida no ordenamento jurídico. Isto é, declara, expressa ou implicitamente, algumas interpretações inconstitucionais ou ilegais e outras não inconstitucionais ou não ilegais (cfr. artigo 80.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82).” (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º Vol., 1984, p. 428).
11. Esta jurisprudência tem vindo a ser mantida pelo Tribunal Constitucional, tal como reconhecido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 243/2013, não se vislumbrando quaisquer motivos para a modificar.
12. Tem, pois, de se concluir que o Tribunal Constitucional pode conhecer das questões de constitucionalidade concretas sempre que imputadas pelo recorrente a uma interpretação de uma dada norma jurídica aplicada na decisão recorrida e que foi considerada violadora de norma ou princípio constitucional, desde que a questão tenha sido suscitada durante o processo.
13. Secundando a doutrina de Carlos Blanco de Morais, parece assim ser sindicável uma determinada interpretação de normas, desde que o tribunal a quo a tenha usado como ratio decidendi, e, por outro lado, se, num dado processo interpretativo, o juiz revelar um critério de decisão que influa no resultado final e tal critério: (i) violar a Constituição, (ii) não tiver caráter singular e (iii) for aplicável a uma série de outros casos, então estaremos perante o conceito de norma para efeitos de fiscalização (in “Justiça Constitucional”, II, Coimbra, 2005, p. 1035).
14. Retomando o caso em apreço, verificando-se tais pressupostos de admissibilidade do presente recurso, conforme em seguida se demonstra, pretende o recorrente que possa ser objeto de controlo de constitucionalidade de normas penais relativamente às quais se invoca que o critério interpretativo do tribunal recorrido para a solução do caso concreto não se conteve no sentido possível das palavras da lei, evidenciando-se explicitamente um critério inovador e criativo, em colisão com o princípio da legalidade criminal, e que quando aplicado com um cariz generalizante nos coloca perante uma questão suscetível de ser alvo de fiscalização de constitucionalidade.
15. Com efeito, o acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no dia 22-11-2016, decidiu “negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente A., mantendo por isso a decisão recorrida” proferida no Proc. n.º 60/08.6IDFUN, pelo tribunal coletivo, na Secção Criminal da Instância Central do Funchal, comarca da Madeira, a qual condenou o arguido na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, 2, 4 e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias, e artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal.
16. Deste Acórdão veio o Recorrente interpor o presente recurso, não tendo por fim a apreciação da bondade da decisão recorrida, em si considerada, mas antes a forma como esta, na escolha em concreto da pena de prisão efetiva aplicada (e a decisão da sua não substituição por pena de proibição do exercício de profissão, função ou atividade ou por pena de trabalho a favor da comunidade, penas que em concreto realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição), interpretou os artigos 40.º, n.º 1 e 2, 43.º, n.º 3 e 58.º e seguintes do Código Penal.
17. Ou seja, tendo a decisão recorrida fundamentado a aplicação da pena de prisão exclusivamente nas (alegadas) condições sociais, económicas e culturais do recorrente, interpretação esta suscetível de aplicação a um número geral e indeterminado de casos, tal implica o apuramento de uma violação do princípio da legalidade penal, na sua vertente de tipicidade e julgar as normas contidas nos artigos acima mencionados materialmente inconstitucionais quando interpretadas no sentido apontado, por direta violação do artigo 18.º n.º 2, 30.º n.º 3 e 203.º da Constituição.
Vejamos.
18. Como critério da escolha da pena a nossa lei penal é clara ao dar preferência às penas não privativas da liberdade, dispondo explicitamente o artigo 70.º do Código Penal que: “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
19. Na medida em que o artigo 70.º do C. Penal adota como critério da escolha da pena a melhor prossecução das finalidades da punição, na aplicação deste preceito importa, naturalmente, ter em atenção o disposto no artigo 40.º do mesmo Código, segundo o qual: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”
20. Sendo que de acordo com a leitura largamente maioritária que é feita deste preceito à pena é sempre atribuído um fim utilitário. Ora, estando in casu em causa um crime de abuso de confiança fiscal, perceber-se-á a não substituição da pena de prisão por pena de multa ou pena de prisão com pena suspensa condicionada ao pagamento das quantias omitidas ao Estado, atenta a constatação de que a insuficiência de meios económicos do recorrente com elevada probabilidade levaria à impossibilidade de cumprimento deste tipo de penas, as quais perderiam o seu fim utilitário. Todavia, tal raciocínio já não se alcança atenta a interpretação do tribunal recorrido quando às penas de substituição em apreciação no caso sub judice e previstas pelos artigos 43.º, n.º 3 e 58.º do Código Penal.
21. Concretamente a pena de proibição do exercício de profissão, função ou atividade, a que alude o artigo 43.º, n.º 3 do C. Penal, e uma das mais importantes opções político-criminais consagradas com a reforma do C. Penal de 2007, segundo a qual: “A pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos é substituída por pena de proibição, por um período de dois a cinco anos, do exercício de profissão, função ou atividade, públicas ou privadas, quando o crime tenha sido cometido pelo arguido no respetivo exercício, sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” (destaque nosso)
22. Quanto à prestação de trabalho a favor da comunidade (PTFC) observe-se o determinado pelo artigo 58.º n.º 1 do C. Penal: “Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” (destaque nosso)
(i) Da inconstitucionalidade material no processo interpretativo judicial das normas penais que conduziram à aplicação ao recorrente pelo tribunal recorrido da pena de prisão efetiva e à sua não substituição por uma das penas de substituição previstas pelos artigos 43.º, n.º 3 e 58.º do Código Penal, por violação dos princípios da legalidade criminal e da separação e interdependência de poderes, do princípio da igualdade, do princípio da pessoalidade das penas e sua não transmissibilidade, do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso
23. Pedra angular, princípio geral, de todo o edifício dos “Direitos, Liberdades e Garantias”, estabelecido pela Constituição, é o “Principio da Igualdade” consagrando, grosso modo, que todos os cidadãos são iguais e dotados da mesma dignidade social à luz da lei e que ninguém poderá ser beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever, em função de uma série de características subjetivas, de entre estas salientem-se não por serem únicas mas sim por serem absolutamente relevantes para o caso concreto) as razões de instrução, situação económica ou condição social (artigo 13.º, n.º 2 da CRP).
24. Sobre este mesmo conceito, isto é, sobre a densificação do mesmo, bem ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira que: “Condição social, (…) tem sobretudo em conta a atual situação quanto às condições de existência (“Classes baixas”, “classes altas”). Situação económica prende-se com o status económico em termos de rendimento, propriedade (ricos, pobres). A instrução visa proibir diferenciações ligadas à formação, educação e ensino (letrados/não letrados, analfabetos)” (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, página 342)
25. Ora, no caso concreto, afigurar-se que no processo interpretativo judicial das normas penais que conduziram à aplicação, em concreto, da pena de prisão de 1 ano e 10 meses e à sua não substituição pelas por uma das penas de substituição previstas pelos artigos 43.º, n.º 3 e 58.º do Código Penal, tal como solicitado e consentido pelo Recorrente ao tribunal a quo, terá sido violado, desde logo e entre outros Princípios da Lei Fundamental, o “Principio da Igualdade”, senão atente-se no seguinte:
26. Em primeiro lugar, o recorrente aparentemente foi punido (isto é, viu ser-lhe aplicada uma pena em concreto em detrimento de outra mais favorável) em virtude da sua condição social, por (alegadamente) pertencer às denominadas “classes altas” e, por isso mesmo, beneficiar (de novo, alegadamente) de condições de existência superiores às da média.
27. Note-se que, as conclusões do Tribunal recorrido foram alcançadas em clara extrapolação do Relatório Social, pois, na realidade como ficou comprovado nos autos, em nada o recorrente possui uma condição social acima da média. A ela tem acesso ou dela usufrui, apenas e somente, devido à atual condição e situação económico-financeira da sua mulher, com quem se encontra casado e com quem diariamente coabita. Porém, entende-se que sempre estará à mercê de um terceiro que, a qualquer momento, pode decidir deixar de o apoiar.
28. É, por conseguinte, esta interpretação normativa da lei penal desproporcional e excessiva efetuada pelo Tribunal a quo materialmente inconstitucional na medida em que parece ignorar o princípio da pessoalidade das penas e da sua não transmissibilidade, conquista civilizacional inderrogável do Direito Penal moderno. Assim, na prática, quem vai acabar por responder pela sanção é a mulher com quem o condenado partilha a sua vida pessoal. Mais, ao usar-se tal argumento para impedir a aplicação de uma pena substitutiva, com base em uma pretensa perda de eficácia preventiva-geral da sanção, mais uma vez não é a situação concreta e específica do condenado (como deveria) que o tribunal recorrido aferiu, mas a de um terceiro (i.e., a mulher do recorrente), o que também por aqui importa a vulneração daquele princípio constitucional e do princípio da individualização das penas, também com respaldo constitucional no artigo 30.º, n.º 3 da CRP, e legal, de entre outros, nos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º, ambos do C. Penal.
29. Em segundo lugar, o recorrente foi, ainda, aparentemente punido (entenda-se, viu ser-lhe aplicada uma pena em concreto em detrimento de outra mais favorável), devido (alegadamente) a razões que se prendem com o seu “status económico”. Ou seja, rebatendo de novo e desde já as conclusões do Tribunal recorrido, de assinalar quanto ao presente ponto, por um lado, o facto de o recorrente se encontrar numa situação de insolvência, atualmente desempregado e não tendo qualquer rendimento e, por outro lado, ainda assim poder usufrui de certas condições e bem-estar económico, o qual lhe advém única e exclusivamente por via da sua mulher.
30. Ora, a linha de raciocínio do tribunal recorrido, por um lado, entende que “(…) seria de todo incompreensível e sem qualquer efeito dissuasor a aplicação de uma pena de proibição de exercício de funções, para quem por força da própria situação de insolvência já está nesse aspeto condicionado (…)” (cf. fls. 22 da decisão recorrida), por outro lado, patrocina a ideia de que quem se encontra em boa situação económica nunca poderá beneficiar desta pena, visto que a mesma não seria percebida pela comunidade nem pelo agente como uma verdadeira sanção, contribuindo para um alegado «enfraquecimento» do Direito Penal.
31. Padece, manifestamente, de inconstitucionalidade material esta interpretação normativa da lei penal de que a pena de substituição deve ter por campo aplicativo privilegiado os desempregados ou os empregados, por violação frontal do princípio da igualdade do artigo 13.º da CRP.
32. Defender que há certos grupos de pessoas que, por alegada situação económica devem estar fora do âmbito aplicativo de uma determinada pena, quando a mesma o não refere direta ou indiretamente é uma hermenêutica inconstitucional, mas que foi a seguida e aplicada no caso sub judice.
33. A este propósito, sem necessidade de mais delongas, bastará atentar que, ao invés de outras penas de substituição em que a situação económica pode ser um fator a ter em conta (como sucede na multa do artigo 43.º, n.º 1 do C. Penal), em momento algum o legislador exige que determinada pena de substituição só se aplique a quem está em difícil situação financeira. Muito ao invés, um condenado muito rico pode preferir, ponto é que as finalidades punitivas se achem asseguradas, cumprir a pena principal por via desta pena substitutiva, por entender que assim, para ele mesmo, os desideratos especiais-preventivos se cumprem de modo mais adequado. Aliás, se assim não sucedesse, tal entendimento seria, uma vez mais, materialmente inconstitucional, por violador do já citado artigo 13.º da CRP.
34. No caso vertente, o Tribunal a quo parece laborar no mesmo erro, pois fundamenta, como visto, a inaplicabilidade concreta da pena de substituição em considerações de ordem económica e de não perceção comunitária dessa sanção como verdadeira pena, pelo que as quotas mínimas de defesa do ordenamento jurídico-criminal estariam comprometidas. Uma vez mais, tal entendimento que subjaz ao juízo dos julgadores de que se recorre viola clara e inequivocamente o artigo 58.º do C. Penal, ao introduzir-lhe requisitos que nele se não acham prevenidos, pelo que se acha também ferido de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da legalidade criminal e da separação e interdependência de poderes – cf. artigos 29.º e 111.º da CRP.
35.Por outras palavras, sine legem (i.e., carente de mandato do legislador que pode versar sobre matéria penal (artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP) e em desrespeito pela Constituição, o tribunal a quo arvora-se nas vestes de legislador e reformula o artigo 58.º do C. Penal, acrescendo a esta norma o requisito de se não poder aplicar a quem (supostamente, o que ainda por cima não corresponde à verdade) se acha em boa situação económico-financeira.
36. Em terceiro lugar, o recorrente foi, também, punido (leia-se, viu ser-lhe aplicada concretamente uma determinada pena em detrimento de outra mais favorável), por alegadamente ter agido numa determinada situação (não entrega do IVA e por via dessa não entrega poder proceder ao pagamento dos salários aos trabalhadores da sua empresa) sabendo que a mesma não era lícita, pois que a sua formação superior assim o deveria determinar. Conforme se pode ler na douta decisão recorrida a fls. 22 “(…) seria de todo incompreensível e sem qualquer efeito dissuasor a aplicação de uma pena de … trabalho a favor da comunidade a um arguido que sendo gestor de formação, deixou de entregar ao Estado IVA (…)”. Isto é, no fundo está o arguido a ser privado de direitos por via da sua “formação académica na área da gestão”, interpretação normativa que viola frontalmente o comando da CRP acima citado.
37. Pois bem, posto perante o caso de ou pagar salários aos trabalhadores ou entregar o IVA ao Estado, entendeu o recorrente, por bem, optar pela primeira situação, protegendo, por essa via, a comunidade que o rodeia e que dele dependia. Nunca por via da sua formação teve conhecimento maior, menor, ou qualquer um que seja, que esta prática fosse censurável por essa mesma comunidade, entendendo que perante o conflito gerado (aliás, nem sequer gerado por si mas pela crise internacional que se abateu sobre as economias europeias) o mais correto seria pagar aos trabalhadores, de acordo não só com a sua consciência mas também com a perceção da comunidade na qual se insere em geral ou num círculo mais restrito dos trabalhadores das suas empresas.
38. Ora, face ao exposto, fácil se torna conclui que, no caso presente e de forma clara, foi notoriamente violado o “Principio da Igualdade” que a CRP prevê, pois caso o arguido não beneficiasse das condições financeiras da sua mulher (não suas, relembre-se), nem tivesse um nível académico superior, a escolha da pena pelo tribunal recorrido seria (como efetivamente deveria ter sido) outra.
39. Como afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira: “(…) o princípio da igualdade proíbe tanto as vantagens, como as desvantagens ilegítimas na atribuição de direitos ou na imposição de deveres ou encargos. (…) Em princípio a desigualdade deve ser adjudicada a favor da extensão dos direitos ou desvantagens aos que foram excluídos e da eliminação dos deveres ou encargos para quem com eles foi discriminatoriamente onerado” (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, página 344).
40. E ainda, de acordo com os ensinamento de Gomes Canotilho, “(…) existe observância da igualdade quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (…) tratados como desiguais [sem qualquer fundamento material razoável/suficiente/bastante]. Por outras palavras o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária.” (in Direito Constitucional, 5ª Edição Totalmente Refundida e Aumentada, Almedina, 1991, página 577).
41. Em suma, foi pois in casu violado pelo tribunal recorrido o “Principio da Igualdade” pois que no processo interpretativo judicial das normas penais que conduziram à aplicação ao recorrente, em concreto, da pena de prisão e à sua não substituição por uma das penas de substituição previstas pelos artigos 43.º, n.º 3 e 58.º do Código Penal, foram tidas em linha de conta situações inteiramente subjetivas (que de resto são fantasiosas pois que não correspondem, de todo, à verdade), e discriminatórias que motivaram tratamento desigual entre o recorrente e qualquer outro, nas mesmas situações de facto, que fosse julgado pelo dito Tribunal.
42. Pelo até aqui exposto, sabendo-se que o Tribunal Constitucional tem entendido que, gozando o legislador ordinário de uma ampla liberdade na definição de crimes e na fixação de penas, apenas é de considerar violado o princípio de proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, em casos de inquestionável e evidente excesso - entende o recorrente que os presentes autos assim o manifestam.
43. Grosso modo, as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias devem ser, em primeiro lugar adequadas ou apropriadas, em segundo lugar, necessárias ou exigíveis, e em terceiro lugar proporcionais na justa medida, de acordo com as lições de Gomes Canotilho.
44. Veja-se: “A exigência de adequação aponta para a necessidade da medida restritiva ser adequada para a prossecução dos fins dos fins (…). A exigência da necessidade pretende evitar a adoção de medidas restritivas (…) que, embora adequadas, não são necessárias para se obterem os fins de proteção visados (…).Uma medida será então exigível ou necessária quando não for possível escolher outro meio igualmente eficaz, mas menos “coativo” relativamente aos direitos restringidos. O princípio da proporcionalidade (…) significa que uma lei restritiva, mesmo que adequada e necessária, pode ser inconstitucional, quando se adote “cargas coativas” de direitos, liberdades e garantias, “desmedidas”, “desajustadas”, “excessivas” ou “desproporcionadas” em relação aos resultados obtidos” (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, Almedina, p. 457).
45. Neste entendimento, aplicar, in casu, uma efetiva privação do ius ambulandi constituiria uma irrefutável vulneração dos interesses em presença (artigo 40.º, n.º 1 do C. Penal) e de garantia da paz e segurança comunitária, afetando-se, pois, o «núcleo fundamental» do direito à liberdade do recorrente (artigo 27.º da CRP) e o próprio mandamento da proporcionalidade que, como se sabe, é o eixo-rector comum a todo o ordenamento jurídico-criminal.
46. Note-se, o princípio da proporcionalidade, em sentido restrito, «significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos.» (in GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, p. 393).
47. Ora, revertendo ao caso concreto dos autos, a ratio decidendi da decisão da aplicação de pena de prisão efetiva e não aplicação de pena de substituição resulta de uma inquinada interpretação normativa das normas penais acima destacadas, nos termos anteriormente apontados, excedendo o sentido possível da letra da lei, revelando-se imprevisível para os destinatários.
48. Em suma, face às características e condições reais do recorrente, aos factos em concreto e atendendo a todas as circunstâncias referidas, e interpretada a lei penal com o respeito que se impõe pelos princípios e normas que incidem sobre matéria penal e que se integram na Constituição, ao agente seria aplicada a pena substitutiva prevista no artigo 43.º, n.º 3 do C. Penal ou, se assim se não se entendesse, a prevista nos artigos 58.º e segs. do C. Penal, realizando-se em concreto de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
49. Não foi, todavia, este o caso, o tribunal recorrido, no processo interpretativo e aplicação das normas penais relativas às penas de substituição previstas pelos artigos 43.º, n.º 3 e 58.º do Código Penal, transpõe os limites da barreira da moldura semântica do texto das referidas normas, conduzindo a uma decisão:
* Primeiro: não adequada, porque excessiva, para prosseguir eficazmente os fins das penas;
* Segundo: não necessária;
* Terceiro: não proporcional dado que a carga coativa aplicada em concreto se apresenta excessiva e desajustada (Note-se que nos termos do Relatório Social junto aos autos, o recorrente é pessoa bem inserida socialmente, reconhecida pela generalidade da população como um empreendedor, pelo que a prisão efetiva será necessariamente percebida pela sociedade no seu conjunto como desproporcionada - artigo 18.º da CRP).
50 Ou seja, na prática, o tribunal recorrido ultrapassa os limites da legalidade criminal.
51. Acrescente-se que, como preconiza a lei, nunca deve a pena representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não lhe seja razoavelmente de lhe exigir, por conseguinte, revela-se o processo interpretativo judicial das normas penais que conduziram à aplicação ao recorrente, em concreto, da pena de prisão e à sua não substituição por uma das penas de substituição previstas pelos artigos 43.º, n.º 3 do Código Penal, violador do princípio constitucional da proporcionalidade ou da proibição de excesso (artigo 18.º, n.º 2 da CRP).
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52. As indicadas questões de inconstitucionalidade e ilegalidades materiais perpetradas na interpretação normativa que o tribunal recorrido fez na aplicação de normas penais e que constituíram a ratio decidendi da decisão proferida – e que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie – foram suscitadas pelo recorrente durante o processo e de forma adequada, nomeadamente no requerimento apresentado nos autos, em 10-01-2017, de interposição de recurso do Acórdão da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 22-11-2016.
53. Por conseguinte, não pretende o Recorrente saber se as disposições penais acima mencionadas foram bem ou mal interpretadas pelo juiz a quo, mas antes saber se ao serem ou não aplicadas (com a interpretação que lhes foi dada e que foi efetivamente aplicada pela decisão alvo de recurso, excedendo o sentido possível das palavras da lei) se revelam imprevisível para os destinatários, o que constituindo uma irrefutável vulneração dos interesses em presença e da garantia da paz e segurança comunitárias, conduzem a ilicitude penal para zonas onde ela não deveria intervir por tal lhe estar vedado em função do princípio da legalidade criminal.
54. Razão pela qual não só se permite, mas se exige a plena sindicabilidade pelo Tribunal Constitucional, como guardião superior da Constituição da República, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, das normas enunciadas.
55. Pelo exposto, é de concluir que o presente recurso para o Tribunal Constitucional tem como objeto uma questão de constitucionalidade normativa, afigurando-se cumpridos todos demais requisitos de admissibilidade exigidos pela lei para que se possa concluir pela idoneidade do objeto do recurso constitucional."
5. Notificado para o efeito, o Ministério Público respondeu, pugnando pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
6. O ora reclamante contesta a decisão sumária n.º 419/2017, que decidiu não conhecer do objeto do recurso pelo facto de o mesmo não configurar uma questão de constitucionalidade normativa.
Ora, a decisão reclamada bem andou ao decidir que o objeto do recurso não constituía um objeto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade. De facto, no requerimento de interposição de recurso - momento em que se fixa o objeto do mesmo -, o recorrente questiona a própria fundamentação da “aplicação da pena de prisão”, no seu entender, fundada “exclusivamente nas condições sociais, económicas e culturais do recorrente”. É esse ato judicativo de escolha da pena aplicável que, no entender do recorrente, violou “o princípio da igualdade (...), os princípios constitucionais penais da pessoalidade da pena e da sua não transmissibilidade e da legalidade, estabelecido no artigo 30.º n.º 3 da Lei Constitucional, bem como o imperativo legal sobre as finalidades das penas, consagradas pelo artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal”, e, ainda, o “princípio constitucional da proporcionalidade ou da proibição de excesso, estabelecido pelo artigo 18.º, n.º 2 da CRP”. Assim, como ressalta de todo o requerimento de interposição do recurso, o recorrente imputa a inconstitucionalidade à própria decisão recorrida, e não a uma interpretação normativa suscetível de aplicação generalizada. Assim, bem andou a decisão sumária a decidir não conhecer no objeto do presente recurso, por não existir, no sistema português de fiscalização da constitucionalidade, um sistema de recurso de amparo.
7. Na presente reclamação, apesar de afirmar, por diversas vezes, não pretender a fiscalização da decisão concreta tomada pelo tribunal a quo, mas sim de uma interpretação normativa generalizável, o reclamante continua a demonstrar a natureza não normativa do seu recurso. De facto, no ponto 16. reconhece expressamente pretender recorrer da decisão, na “forma como esta, na escolha em concreto da pena de prisão efetiva aplicada (e a decisão da sua não substituição por pena de proibição do exercício de profissão, função ou atividade ou por pena de trabalho a favor da comunidade, penas que em concreto realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição), interpretou os artigos 40.º, n.º 1 e 2, 43.º, n.º 3 e 58.º e seguintes do Código Penal”. Ao sindicar a forma de escolha da pena, mais não está o reclamante a admitir que recorre do ato subsuntivo em concreto realizado. Tal conclusão é confirmada mais adiante na mesma reclamação, no ponto 22. (i), onde se afirma que o que está em causa é a “inconstitucionalidade material no processo interpretativo judicial das normas penais que conduziram à aplicação ao recorrente pelo tribunal recorrido da pena de prisão efetiva e à sua não substituição por uma das penas de substituição previstas pelos artigos 43.º, n.º 3 e 58.º do Código Penal”. É, pois, o ato decisório de aplicação das penas concretas ao reclamante que se confirma estar em causa no presente recurso, e não uma norma ou dimensão normativa determinada.
Assim, a presente reclamação não logra demonstrar que a decisão reclamada esteve mal ao decidir pela natureza não normativa do recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 15 de novembro de 2017 - Lino Rodrigues Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro - Manuel da Costa Andrade