ACÓRDÃO N.º 703/2017
Processo n.º 1174/2017
Plenário
Relator: Conselheiro Claudio Monteiro
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A Comissão Nacional de Eleições deliberou, em 29 de agosto de 2017, notificar o Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia para que promovesse a remoção, no prazo de 24 horas, de material (de atos e supostas obras) relativos a publicidade institucional proibida, sob pena de incorrer num crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º do Código Penal (cfr. 41).
2. Em 5 de setembro de 2017, a Comissão Nacional de Eleições tomou conhecimento de que o Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia não teria cumprido a deliberação acima referida, pelo que deliberou, em 17 de outubro de 2017, remeter os elementos do processo ao Ministério Público, por considerar existirem indícios da prática do crime de desobediência, previsto no artigo 348.º do Código Penal, nos seguintes termos (cfr. fls. 279 e 279v):
«1. No âmbito do processo AL.P-PP/2017/154, foi deliberado em 29 de agosto p.p. o seguinte:
" (...) Assim, no exercício da competência conferida pela alínea d) do n.° 1 do artigo 5.° da Lei n.° 71/78, de 27 de dezembro, e no uso dos poderes consignados no n.° l do artigo 7° da mesma lei, delibera-se:
- Quanto ao boletim municipal:
a. Deverá ser suspensa a distribuição do Boletim Municipal como suplemento comercial neste período eleitoral, por esta via de distribuição poder configurar publicidade institucional proibida;
b. Não devem ser anunciadas obras e projetos futuros sob pena de serem consideradas promessas eleitorais, violadoras dos deveres de neutralidade e imparcialidade, sob pena de poder configurar o crime previsto e punido no artigo 172.° da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais);
- Recomendar ao Presidente da Câmara Municipal que se deve abster de promover eventos que podem ser entendidos como promoção de determinados órgãos ou dos seus titulares;
- Quanto aos outdoors e mupi's, os factos participados à Comissão Nacional de Eleições integram publicidade institucional proibida, pelo que se determina ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia que promova a remoção, no prazo de 24 horas, do material de divulgação (de aios e supostas obras) a que se refere a presente informação, sob pena de incorrer na prática do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.° do Código Penal.
Desta deliberação cabe recurso paro o Tribunal Constitucional a interpor no prazo de um dia, nos termos do artigo 102. °-B da Lei n. ° 28/82, de 15 de novembro."
2. A referida deliberação foi notificada ao visado a 01-09-2017.
3. Em 05-09-2017 esto Comissão tomou conhecimento de que o visado não terá cumprido a deliberação notificada, podendo estar em causa o crime de desobediência, previsto e punido no artigo 348.° do Código Penal, e a violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, ilícito previsto e punido no artigo 172.° da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais.
4. Pelo exposto, delibera-se remeter os elementos do processo aos serviços competentes do Ministério Público.»
3. O presente recurso, interposto pelo Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, ao abrigo do artigo 102.º-B da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), tem por objeto esta última deliberação da Comissão Nacional de Eleições, de 17 de outubro de 2017.
4. O Recorrente reputa de ilegal a mencionada deliberação de remessa do processo para os serviços competentes do Ministério Público, concluindo o seguinte (cfr. fls. 270 a 276):
«I. A deliberação da CNE, de 29/08/2017, cujo alegado incumprimento ora se discute, foi notificada ao Recorrente, através de correio eletrónico para os serviços da presidência, pelas dezoito horas e vinte e seis minutos, ou seja, quando os serviços municipais já se encontravam fechados, do dia 1/9/2019
(sexta-feira).
II. Porque cumpridores das decisões da CNE, os serviços do Município de Vila Nova de Gaia - por instrução do Recorrente - deram nessa mesma sexta-feira [dia 1/9/2017, pelas 19:37 H] ordem à empresa concessionária responsável pela instalação/remoção de outdoors e afins, para que retirasse o material de divulgação sobrante, em causa nestes autos.
III. No dia 4 de setembro de 2017, ou seja, no primeiro dia útil seguinte à notificação da deliberação, a empresa concessionária informou os serviços da Presidência da Câmara Municipal que a remoção do material de divulgação já havia sido concluída.
IV. Em consequência, e com visto ao estrito cumprimento da deliberação, o Recorrente promoveu o enviou à Recorrida de ofício à Recorrida, quer por correio eletrónico, bem como por carta registada, informando que a distribuição do boletim municipal já havia sido suspensa e que a remoção da lona dos outdoors já tinha sido concluída.
V. O Recorrente ficou absoluta e legitimamente convicto do cumprimento da determinação da Recorrida.
VI. No dia 18 de outubro de 2017, a Recorrida notificou o Recorrente que no dia 5/9/22017, havia tomado conhecimento do não cumprimento da deliberação de 29/8/2017, razão pela qual havia deliberado, em 17/10/2017, remeter os elementos do processo para o Ministério Público.
VII. É desta deliberação de 17/10/2017 que se recorre, na media em que para além de não consubstanciar uma verdadeira decisão surpresa, não está sequer fundamentada com um único facto que a sustente.
VIII. A deliberação cm recurso viola o dever de fundamentação consagrado, entre outros, no artigo 268° n° 3 da Constituição da República Portuguesa, atenta à total ausência de quaisquer factos em que possa assentar.
IX. O que impede o Recorrente sequer de saber o que a possa ter motivado.
X. Com a agravante que a imputação do suposto incumprimento da violação de deliberação de 29/8/2017 pelo Recorrente está feito em juízo condiciona] ("não terá cumprido").
XI. O que determina que o Recorrente nem sequer saiba qual o concreto motivo que determinou a deliberação em recurso;
XII. A deliberação em recurso é nula, ilegal, está ferida de inconstitucionalidade, bem como viola os princípios da boa-fé, da segurança jurídica e da proteção da confiança, pois pese embora o Recorrente tenha, em 4/9/2017, informado a Recorrida do cumprimento da deliberação de 29/8/2017, o certo é que em 18/10/2017 é notificado - de surpresa - do conteúdo da deliberação de 17/10/2017, sem ter sequer tido oportunidade de se pronunciar acerca do suposto incumprimento que lhe foi imputado.
XIII. O que viola também frontalmente o direito ao contraditório e a proibição das decisões surpresa.
XIV. E dos autos resulta que o Recorrente cumpriu integralmente a deliberação da Recorrida de 29/8/2017, porquanto promoveu no sentido da remoção de todo o material de divulgação objeto de participação, tendo obtido confirmação que tal foi feito.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Mostram-se assentes, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
a) Pelo Decreto n.º 15/2017, de 12 de maio, as próximas eleições gerais para os órgãos representativos das autarquias locais foram marcadas para o dia 1 de outubro de 2017;
b) Em 29 de agosto de 2017, a Comissão Nacional de Eleições aprovou deliberação na qual decidiu notificar o Presidente da Câmara Municipal de Vila de Gaia para que promovesse a remoção, no prazo de 24 horas, de material (de atos e supostas obras) relativos a publicidade institucional proibida, sob pena de incorrer num crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º do Código Penal;
c) Em 17 de outubro de 2017, a Comissão de Nacional de Eleições deliberou remeter os elementos do processo ao Ministério Público, por considerar existirem indícios da prática do crime de desobediência, previsto no artigo 348.º do Código Penal;
d) A deliberação da Comissão Nacional de Eleições, de 17 de outubro de 2017, foi notificada ao Presidente da Câmara Municipal da Vila Nova de Gaia em 18 de outubro de 2017;
e) Em 19 de outubro de 2017, o Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia interpôs recurso da deliberação de 17 de outubro de 2017 para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 102.º-B da LTC.
6. O recurso mostra-se tempestivo.
7. Em matéria de direito, importa considerar que o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea f) do artigo 8.º e nos termos do artigo 102.º-B, ambos da LTC, é competente para julgar os recursos contenciosos interpostos de atos administrativos praticados pela Comissão Nacional de Eleições ou por outros órgãos da administração eleitoral.
Nestes termos, a interposição de recurso ao abrigo dos referidos preceitos tem como objeto um ato cuja produção dos seus efeitos jurídicos se reflita na resolução de uma situação individual e concreta, exigindo-se, pois, que comporte conteúdo decisório.
Ora, a deliberação aqui impugnada, tendo como único objeto a remessa do processo para o Ministério Público, por se ter considerado existirem indícios da prática de um crime de desobediência, não é subsumível no conceito legal de ato administrativo (artigo 148.º do CPA), por ausência de conteúdo decisório relativo à resolução de uma dada situação, pelo que não é suscetível de ser impugnado junto deste Tribunal enquanto ato de administração eleitoral.
Na verdade, é ao Ministério Público que caberá avaliar os factos que suportam, quer a deliberação de 29 de agosto de 2017, quer a deliberação de 17 de outubro de 2017, e, em função dessa avaliação, que não é vinculada, decidir se instaura ou não um procedimento criminal.
Assim, a deliberação da Comissão Nacional de Eleições em apreço não procede à definição da situação jurídica do Recorrente, não produzindo, por si só, qualquer efeito jurídico suscetível de lesar a sua esfera jurídica.
Neste sentido decidiu recentemente este Tribunal nos Acórdãos n.º 460/2017 e n.º 582/2017 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
8. Pelo exposto, o recurso não é passível de ser admitido, visto que a deliberação recorrida, ao determinar a remessa do processo ao Ministério Público para averiguação da eventual prática de um crime de desobediência, não consubstancia um ato de administração eleitoral passível de ser impugnado junto deste Tribunal ao abrigo da alínea f) do artigo 8.º e do artigo 102.º-B da LTC.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se não admitir o recurso.
Lisboa, 24 de outubro de 2017 - Claudio Monteiro –José Teles Pereira – Maria de Fátima Mata-Mouros – Joana Fernandes Costa – Catarina Sarmento e Castro – Pedro Machete – João Pedro Caupers – Lino Rodrigues Ribeiro – Fernando Vaz Ventura – Maria Clara Sottomayor – Gonçalo de Almeida Ribeiro – Maria José Rangel de Mesquita – Manuel da Costa Andrade