ACÓRDÃO N.º 532/2017
Processo n.º 843/2017
Plenário
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
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Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.O Partido Socialista (PS), representado pelo respetivo mandatário no concelho de Ourém, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 31.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais, aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto (referida adiante pela sigla «LEOAL»), da decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém — Juízo Local Cível de Ourém, de 24 de agosto de 2017, que indeferiu a reclamação apresentada pelo recorrente do despacho proferido por aquele Tribunal em 17 de agosto de 2017.
2. Por despacho datado de 17 de agosto de 2017, o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém — Juízo Local Cível de Ourém julgou inelegível o primeiro candidato efetivo da lista apresentada pelo Partido Socialista, Paulo Alexandre Homem de Oliveira Fonseca, à eleição para a Câmara Municipal de Ourém, com base no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEAOL — o mesmo é dizer, com fundamento no estado de insolvente do referido candidato. Mais decidiu que o seu lugar deveria passar a ser ocupado pelo candidato subsequente, sendo a lista reajustada pela ordem de precedência dos sucessivos candidatos dela constantes.
O ora recorrente apresentou reclamação de tal despacho, cindida em duas peças processuais, cada qual tendo por objeto um dos segmentos da decisão reclamada, nos termos do artigo 29.º da LEOAL.
Através da decisão ora recorrida, o Tribunal a quo indeferiu integralmente a reclamação, confirmando a decisão reclamada.
Pode ler-se em tal decisão:
«Da reclamação apresentada em 21.08.2017 quanto à inelegibilidade do candidato PAULO ALEXANDRE HOMEM DE OLIVEIRA FONSECA
Insurge-se, em apertada síntese, o mandatário de campanha do candidato declarado inelegível e por isso excluído, contra o facto de apesar ter sido decidida a situação de inelegibilidade do candidato com base em informação prestada pelo processo de insolvência, é seu entendimento que a situação do candidato excluído não se encontra devidamente esclarecida nestes autos o que coloca em causa a observação do princípio da atualidade e da necessidade da vigência das restrições aplicadas.
Mais refere o reclamante que a norma em causa é inconstitucional por violação do princípio da igualdade porquanto tal limitação não consta de qualquer outro diploma que regule eleições nacionais ou regionais.
Defende ainda que a mesma será ainda inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, o que densifica, correlacionando a sua argumentação com a génese da situação de insolvência do candidato em causa e ainda com a forma como o mesmo geriu o município no mandato cessante.
Cumpre apreciar e decidir.
Por despacho proferido em 10.08.2017 – cfr. fls. 598/599 e refª 75982164 -, foi determinado que fosse solicitado ao processo de insolvência n.º 189/14.1TBVNO, do Juiz l - do Juízo de Comércio da Comarca de Santarém, certidão da decisão do incidente da qualificação da insolvência, com menção da data de trânsito e sobre se o processo de insolvência foi ou não entretanto declarado encerrado.
O processo de insolvência supra referido informou os presentes autos “…Que não foi requerida a abertura do Incidente de Qualificação de Insolvência, pelo que não existe qualquer apenso nesse sentido, neste seguimento não há lugar a Sentença do mesmo”. Mais informou que “...o processo de insolvência não foi declarado encerrado” – refª 4179384.
Em despacho de 16/08/2017 (refª 75997890), entendeu-se que “não se justifica manter a situação de inelegibilidade se for seguro que, no momento em que o candidato assumir as funções já não se verificar a situação suscetível de afetar o desempenho isento e imparcial do cargo. Assim, sendo as inelegibilidades restrições ao direito fundamental de ser eleito para cargos políticos, as normas que as estabelecem estão sujeitas ao respeito pelos princípios da atualidade e da necessidade da vigência daquelas restrições - cfr. Ac. TC n.º 430/2005 in Diário da República, 2.ª série, de 03/10/2005; Ac. TC n.º 443/2009 in Diário da República, 2.ª série, de 24/09/2009).”.
Nessa medida, foi determinado que o processo de insolvência em causa informasse se havia agendado a assembleia de credores requerida e, em caso afirmativo, para que data, devendo ser junto com a informação o requerimento do Insolvente a requerer a referida assembleia, bem como informar se foi requerida a exoneração do passivo restante e, em caso afirmativo, qual a decisão que recaiu sobre o mesmo, com menção do trânsito em julgado.
O processo de insolvência informou que:
“A sentença proferida em 21-07-2014 na Insolvência pessoa singular (Requerida), 189/14. ITBVNO, e transitada em julgado a 13-01-2017, foi determinado a abertura do incidente de qualificação de insolvência, previsto no artº. 191º do CIRE (artº. 39º, nº. 1 do CIRE, na versão introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20 de abril), até à presente data o mesmo não foi impulsionado, uma vez que foi interposto recurso da sentença atrás referida, tendo o apenso de Recurso em Separado baixado em 09-05-2017. Por despacho proferido em ata de assembleia de credores a 25-09-2014, ficou a liquidação suspensa, face à interposição do recurso e até trânsito em julgado da declaração de insolvência. Compulsados os autos verifica-se que o referido apenso não foi impulsionado. Mais informo que não foi proferida decisão quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, encontrando-se os autos a aguardar a junção de elementos por parte do insolvente, conforme determinado por despacho datado de 07-08-2017 que se anexa. Por requerimento apresentado pelo insolvente neste Tribunal em 04-AGOSTO2017, veio o mesmo requerer uma nova assembleia de credores, e posteriormente, a 16-08-2017 foram apresentados dois requerimentos eletrónicos, um deles a solicitar a prorrogação de prazo determinado pelo despacho de 07-08-2017, e o outro ajuntar substabelecimento sem reserva a favor de novo mandatário – Dr. José Moreno, pelo exposto estão os autos conclusos a Mmª. Juiz com data de 18-08-201 7. - (ref76003339).
Por despacho de 18.08.2017 foi PAULO ALEXANDRE HOMEM DE OLIVEIRA FONSECA, candidato efetivo da lista apresentada pelo Partido Socialista, declarado inelegível, com exclusão da lista de candidatura, passando o seu lugar a ser ocupado pelo candidato subsequente e assim sucessivamente.
Analisadas as informações prestadas a estes autos pelo processo de insolvência, verifica-se que PAULO ALEXANDRÆ HOMEM DE OLIVEIRA FONSECA foi declarado insolvente por sentença transitada em julgado a 13.01.2017.
Foi determinada a abertura de incidente de qualificação de insolvência o qual ainda não se encontra decidido.
Não foi proferida decisão quanto ao pedido de exoneração do passivo restante.
O processo não se encontra encerrado.
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O art. 230.º c) do CIRE dispõe que o processo de insolvência se encerra “A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento”.
A verificação de tal circunstância deverá ser feita no processo de insolvência e tal ainda não aconteceu, sendo certo que o reclamante apenas refere na reclamação apresentada ter logrado acordo com o maior credor do candidato e insolvente (ponto 10 da reclamação), sem que tal acordo por si só seja apto a alcançar o desiderato pretendido porquanto o encerramento daqueles autos depende do consentimento de todos os credores o que ficou por demonstrar.
A interpretação adequada do artigo 6º nº2 a) da LEOAL implica uma restrição dos seus efeitos designadamente quanto à eventual previsão de que a insolvência poderia estar terminada aquando da eleição, o que implica nesta sede e por parte do Tribunal um juízo de prognose.
Atendendo aos elementos conhecidos nestes autos conclui-se que não existe possibilidade de formular um juízo de prognose positiva de que o referido processo será encerrado antes do dia 01.10.2017, data das eleições, porquanto o encerramento do processo de insolvência apesar de requerido não se encontra decido e o agendamento de assembleia de credores também requerido pelo aqui candidato e ali insolvente, não foi igualmente objeto de decisão, tendo sido determinado um aperfeiçoamento ao seu requerimento, ao qual o candidato respondeu com um requerimento de prorrogação de prazo, para além do facto de estar minimamente demonstrada a anuência de todos os credores daqueles autos de insolvência ao seu encerramento.
Cumpre também referir que se tal questão se encontra ainda pendente de decisão a tal não será indiferente a conduta processual do candidato em causa, porquanto poderia ter acautelado o encerramento da insolvência através do uso dos mecanismos processuais adequados no respetivo processo, a tempo de não se verificar a eventual inelegibilidade, repisando-se que foi apresentado pelo mesmo em 16.08.2017 no processo de insolvência requerimento solicitando a prorrogação de prazo para apresentação de aperfeiçoamento.
Por outro lado, resulta igualmente que por sentença de 21.07.2014 e transitada em 13.01.2017, foi determinado a abertura do incidente de qualificação de insolvência, previsto no artº 191º do CIRE (artº 39º, nº 1 do CIRE na versão introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20/04) o qual se encontra ainda pendente.
Ora apesar da LEOAL referir o conceito de “falidos ou insolventes, salvo se reabilitados”, sendo certo que o conceito de reabilitação já não existe no atual regime da insolvência, o mesmo tem por equivalente o encerramento da insolvência com os respetivos efeitos.
É entendimento da Comissão Nacional de Eleições (CNE) que são inelegíveis para os órgãos das autarquias locais, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL e do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004), em vigor, os cidadãos falidos e insolventes cujos processos de insolvência ainda não tenham sido encerrados nos termos e com as consequências previstas nos artigos 230.º e 233.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004), na sua redação atual, e até ao momento do encerramento do processo de insolvência, bem como os cidadãos devedores afetados pela qualificação da sentença de insolvência como culposa durante o período que resultar da inibição nela fixada (Vide Ata da CNE nº 79/XIV do ano de 2013 disponível em http//www.cne.pt/sites/default/files/dl/ata79_cne_19022013.pdf).
Acresce que ao longo dos anos, o legislador, que se presume razoável, alterou por diversas vezes a LEOAL pelo que, se tivesse pretendido restringir esse efeito de acordo com o CIRE, tê-lo-ia feito e tal não aconteceu.
O despacho do qual o Il. Mandatário reclama, e para onde também nos remetemos nesta parte por economia de meios, analisou pormenorizadamente a argumentação que agora se encontra na base da presente reclamação quanto a esta temática, conclui-se, aqui como ali, que atento o estado do processo de insolvência não se perspetiva a realização de assembleia de credores e seu encerramento num futuro próximo (necessariamente até 01.10.2017) não obstante o reclamante argumentar de que “se tem conhecimento de que será agendada num muito curto prazo e que tal assembleia de credores se realizará muito antes dessa data” sem, porém demonstrar o porquê de tal afirmação.
Necessário se torna, por isso, concluir e reiterar as conclusões do despacho de 17.08.2017 no sentido de que o candidato PAULO ALEXANDRE HOMEM DE OLIVEIRA FONSECA se encontrar insolvente e não reabilitado pelo que se encontra numa situação objetiva de inelegibilidade.
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Entende o reclamante que o facto da situação de insolvência ser causa de inelegibilidade apenas e tão só para os órgãos das autarquias locais (e já não em caso de eleições regionais ou nacionais) ofende o princípio da igualdade.
Reproduz-se quanto a tal temática e a título de introdução ao tema submetido a apreciação, porque relevante, parte do texto de decisão constante do Ac. do TC 553/2013:
«A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra, no seu artigo 50.º, o “Direito de acesso a cargos públicos”, estipulando no n.º 3 que “no acesso a cargos eletivos a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respetivos cargos”.
Em ordem a conferir exequibilidade aquele comando constitucional, veio o legislador ordinário através da Lei Orgânica n.º 2/2001, de 14/08 (aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto, retificada pela Declaração de retificação n.º 20-A/2001, de 12 de outubro, e com as alterações introduzidas pelas leis orgânicas 5-A/2001, de 26 de novembro, 3/2005, de 29 de agosto, 3/2010, de 15 de dezembro, e 1/2011 de 30 de novembro e doravante designada abreviadamente de LEOAL) estabelecer inelegibilidades gerais e especiais, respetivamente, nos seus artigos 6.° e 7.°.
Ora a existência de um regime de inelegibilidades visa assegurar garantias de dignidade e genuinidade ao ato eleitoral e, simultaneamente, evitar a eleição de quem, pelas funções que exerce (ou outras razões que o tomem indigno), se entende que não deve ou não pode representar um órgão autárquico.
Uma vez que a inelegibilidade impede o acesso à qualidade de destinatário do ato eletivo acaba por reconduzir-se a um verdadeiro obstáculo jurídico à eleição, consubstanciando uma restrição à capacidade eleitoral passiva.
Tal incapacidade eleitoral passiva pode aplicar-se indistintamente a todo o território nacional ou limitar-se ao círculo, à autarquia ou à área de jurisdição, sendo que, no primeiro caso, se fala em inelegibilidade absoluta ou inelegibilidade em sentido amplo e, no segundo, em inelegibilidade relativa ou inelegibilidade em sentido estrito.
De uma forma clara e expressiva o Tribunal Constitucional tem vindo a firmar jurisprudência a sublinhar que, em matéria de inelegibilidades, estando-se «na presença de um direito fundamental de natureza política», «não é licito ao intérprete proceder a interpretações extensivas ou aplicações analógicas que se configurariam como restrições de um direito politico, sendo certo que em matéria eleitoral «as normas que estabelecem casos de inelegibilidade contém enumerações taxativas e não meramente exemplificativas» (cfr. entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 735/93 in: "Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 26.º voI., pág. 516, n.º 511/01 – Proc. n.º 723/01, n.º 515/01 - Proc. n.º 735/01 datado de 26/11/2001;in: www.tribunalconstitucional.pl).
As inelegibilidades apontam-se, pois, como um obstáculo à usufruição plena da capacidade eleitoral passiva dos cidadãos, o que enferma um princípio geral de direito eleitoral que emana quer do artigo 48.º da CRP, relativo à participação dos cidadãos na vida pública, quer do artigo 50.º do mesmo diploma, que respeita ao direito dê acesso aos cargos públicos.
Este último direito, o de acesso a cargos públicos, sendo expressão do direito à participação na vida pública (cfr. art.º 48.º da CRP), é um direito de natureza política, que integra o catálogo dos direitos, liberdades e garantias, sendo que o direito de apresentação de candidaturas, embora fora do catálogo, enquanto refração direta dos mencionados direitos, reveste natureza análoga à dos direitos ai elencados, beneficiando, consequentemente, do regime próprio e da força jurídica que o texto constitucional concede aos direitos, liberdades e garantias.
De entre os traços do regime próprio dos direitos, liberdades e garantias temos que se destacam, seguindo a doutrina expendida pelos Profs. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (in: “Constituição da República Portuguesa Anotada”, pags. 271 e segs.) e pelo Prol. Jorge de Miranda (in: "Manual da Direito Constitucional', 3ª edição, págs. 311 e segs.), os seguintes:
- Os respetivos preceitos constitucionais são diretamente aplicáveis (cfr. art. 18.°, n.º 1, 1ª parte da CRP);
- Vinculam entidades públicas e privadas (cfr. art. 18.°, n.º 1. 2ª parte);
- Não podem ser restringidos senão nos casos expressamente admitidos pela Constituição, restrição essa que está sujeita a reserva de lei (cfr. n.º 2 art. 18.º);
- A restrição, mesmo que constitucionalmente autorizada, só é legítima se for justificada pela salvaguarda de outro direito fundamental ou de outro Interesse constitucionalmente protegido (cfr. art. 18.°, n.º 2):
- A medida restritiva estabelecida por lei tem de respeitar o princípio da proporcional idade nas suas três dimensões (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) (mesmo n.º 2 do aludido preceito);
- As leis restritivas têm de revestir caráter geral e abstrato e salvaguardar o conteúdo essencial dos preceitos Constitucionais (cfr. art. 18.°, n.º 3).»
A limitação constante do disposto no art. 6.º nº2 a) da LEOAL não encontra correspetivo em qualquer outro diploma normativo para as eleições nacionais e regionais, o que a nosso ver se justifica.
No caso das autarquias locais, estamos perante uma forma de gestão de património financeiro, em grande medida determinado pelas receitas cobradas diretamente aos contribuintes que são os eleitores, pelo que entendeu o legislador a observância de um certo rigor na gestão privada dos bens e rendimentos do eleito e a garantia de capacidade para o efeito – neste sentido Ac. do TC n.º588/2013.
Tal circunstância obriga â particularização de tal causa de inelegibilidade apenas e tão só para os órgãos das autarquias locais, pois o mesmo não se verifica no caso das e1eiçes regionais ou nacionais e por isso admite-se também por este meio uma compressão de um direito fundamental de natureza politica, a fim de garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respetivos cargos.
Está por isso garantida a observação do princípio da igualdade porquanto a lei trata de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente na medida dessa diferença, uma vez que as eleições autárquicas convergem com uma forma de gestão peculiar que não tem equivalente nas eleições nacionais e regionais.
No que se refere à proporcionalidade, na vertente apontada na reclamação em apreciação, designadamente de que a situação de insolvência enquanto causa de inelegibilidade se revela como uma presunção inilidível de que o candidato em causa não terá capacidade de gestão do seu património e por isso é objetivamente inapto para ser gestor de um património público, atendendo à defesa do interesse público, sopesando o interesse da comunidade e o interesse privado de quem vê arredada a possibilidade de se candidatar a um órgão da autarquia local, será de valorizar preponderantemente o interesse comunitário e bem assim admitir a compressão daquele direito de natureza politica, uma vez que tal limitação se mostra ajustada, proporcional e adequada.
No que respeita à génese da situação de insolvência (gerada por o candidato em causa ter-se assumido como avalista de créditos de terceiros) e a administração do município durante o mandato que desempenhou e agora cessa, repristinam-se dois parágrafos do despacho em crise que respondem à argumentação despendida em pleno: do teor do artº 6º, no 2 da LEOAL, não se ressalva se o candidato foi declarado insolvente a título principal ou como fiador. Basta ser declarado insolvente, não se podendo “proceder a interpretações extensivas ou aplicações analógicas” da norma de acordo com os interesses do candidato e “Sem prejuízo da insolvência ter sido declarada por o candidato ter sido fiador, a verdade é que o mesmo ao assumir tal qualidade e incumprindo a sua obrigação, mostrou-se incapaz de gerir o seu património ao avocando uma responsabilidade que não honrou, falecendo deste modo o seu argumento”.
Assim e em face do supra exposto, indefiro a reclamação apresentada pela candidatura do PS e mantenho a decisão que declarou PAULO ALEXANDRE HOMEM DE OLIVEIRA FONSECA, candidato efetivo da lista apresentada pelo Partido Socialista, inelegível com a sua exclusão da lista de candidatura.
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Reclamação referente ao segundo segmento do despacho de 17.08.2017
Veio ainda o Il. Mandatário da lista do PS reclamar do segmento do despacho que declarou inelegível o candidato PAULO ALEXANDRE HOMEM DE OLIVEIRA FONSECA na parte em que determinou que o seu lugar passaria a ser ocupado pelo candidato subsequente e assim sucessivamente.
Pronunciou-se o Il. Mandatário Concelhio de Coligação Ourém Sempre no sentido de não ser admissível reclamação de tal trecho do despacho mas sim impugnação da decisão proferida em 1 8.08.2017 que indeferiu liminarmente a alteração requerida pelo Il. Mandatário do PS em 18.08.2017.
Analisados os autos dos mesmos resulta que:
Em 17.08.2017 foi proferido despacho judicial que além do mais, determinou a substituição do candidato declarado inelegível PAULO ALEXANDRE HOMEM DE OLIVEIRA FONSECA pelo candidato que figura na lista subsequente e assim sucessivamente.
Em 18.08.2017 foi junto requerimento subscrito pelo Il. Mandatário da reclamante solicitando a inclusão na sua lista de José Manuel Pereira Alho, porquanto, por lapso, em 14.08.2017 com a entrega da lista aperfeiçoada (resposta ao despacho de 10.08.2017) não constava o nome de José Manuel Pereira Alho.
Tal requerimento foi objeto de despacho de 18.08.2017 que o considerou intempestivo rejeitando-o liminarmente.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 26º da LEOAL “O tribunal, se verificar a existência de irregularidades processuais ou de candidatos inelegíveis, manda notificar o mandatário da candidatura.
2 – No prazo de três dias, podem os mandatários suprir irregularidades processuais ou substituir candidatos julgados inelegíveis ou sustentar que não existem quaisquer irregularidades a suprir ou candidatos a substituir, sem prejuízo de apresentarem candidatos substitutos para o caso de a decisão do tribunal lhes vir a ser desfavorável.
3 – No caso de a lista não conter o número exigido de candidatos efetivos e suplentes, o mandatário deve completá-la no prazo de quarenta e oito horas”.
Dispõe o artigo 27.º da mesma norma que “Artigo 27º - São rejeitados os candidatos inelegíveis e as listas cujas irregularidades não tenham sido supridas.
2 – No caso de não ter sido usada a faculdade de apresentação de substitutos prevista no nº 2 do artigo anterior, o mandatário da lista é imediatamente notificado para que proceda à substituição do candidato ou candidatos inelegíveis no prazo de vinte e quatro horas e, se tal não acontecer, a lista é reajustada com respeito pela ordem de precedência dela constante e com a ocupação do número de lugares em falta pelos candidatos suplentes cujo processo de candidatura preencha a totalidade dos requisitos legais, seguindo a respetiva ordem de precedência.
3 – A lista é definitivamente rejeitada se, por falta de candidatos suplentes, não for possível perfazer o número legal dos efetivos.”
Revertendo ao caso dos autos: em 10.08.2017 foi proferido despacho que convidou o Il. Mandatário aqui reclamante a suprir uma irregularidade. Tal despacho obteve resposta com a junção em 14.08.2017 de nova lista corrigida.
Nenhuma outra substituição ou retificação foi requerida e apenas em 18.08.2017 foi solicitada a inclusão do nome de José Manuel Alho alegando ter existido um erro informático.
Do que ficou dito conclui-se à exaustão que o reclamante pretende servir-se do mecanismo de reclamação do despacho que determinou a exclusão do candidato PAULO ALEXANDRE HOMEM DE OLIVEIRA FONSECA para suprir uma irregularidade da lista apresentada em 14.08.2017, extemporaneamente, porquanto da leitura do requerimento junto aos autos em 1 8.08.2017 resulta que se vem invocar um lapso constante da lista, e não a substituição do candidato excluído conforme faculdade legal, a efetivar em momento próprio.
Em nosso entendimento, e considerando o que ficou exposto, o Tribunal considerou o requerido extemporâneo, validamente, e como tal, apenas por meio de recurso tal decisão poderá ser posta em causa, razão pela qual se indefere o requerido, mantendo in totum a decisão proferida em 17.08.2017 e 18.08.2017.»
3. Notificado de tal decisão, dela interpôs o presente recurso o Partido Socialista, representado pelo referido mandatário, tendo concluído a sua alegação nos seguintes termos:
«Conclusões
A. O despacho de 24 de agosto do Juízo Local Cível de Ourém considerou o Dr. Paulo Alexandre Homem de Oliveira Fonseca inelegível para a Câmara Municipal de Ourém por força de uma declaração de insolvência que não afetou o exercício desse seu cargo (que continuou a exercer após a superveniência dessa situação de insolvência, e cuja natureza – fortuita ou culposa – não foi ainda estabelecida).
B. A norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL estabelece uma inelegibilidade para os órgãos autárquicos e, portanto, constitui uma norma restritiva de direitos, sujeita aos limites constitucionais para essa limitação.
C. A norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL (que reproduz exatamente a norma da alínea d) do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 701-B/76, de 29 de setembro), estabelece uma inelegibilidade para os órgãos autárquicos com fundamento na situação patrimonial dos candidatos que não tem, nem nunca teve, habilitação constitucional:
a. Até à revisão constitucional de 1989, as inelegibilidades previstas na anterior lei eleitoral para os órgãos das autarquias locais (o referido Decreto-Lei n.º 701-B/76) teriam, segundo a doutrina e jurisprudência maioritárias, habilitação constitucional na então norma do artigo 153.º da Constituição (“São elegíveis os cidadãos portugueses eleitores, salvas as restrições que a lei eleitoral estabelecer por virtude de incompatibilidades locais ou de exercício de certos cargos.”), não obstante esta norma, pela sua colocação sistemática, valer apenas para as eleições para a Assembleia da República (incluía-se no Capítulo do seu Estatuto e eleição).
i. Ainda que essa dupla condição tivesse servido para justificar a generalidade das restrições então existentes na lei eleitoral para os órgãos das autarquias locais – que tinham a ver com o exercício de cargos de influência e, ou, uma relação direta com a autarquia – não se revelaria adequada a legitimar, a essa luz, a inelegibilidade com fundamento na situação de falência ou insolvência dos candidatos, se essa interdição teórica se tivesse colocado na prática;
ii. Na verdade, tal situação patrimonial dos candidatos em nada constitui uma incompatibilidade local, e menos ainda o exercício de qualquer cargo.
b. Para resolver de vez a discussão doutrinária e jurisprudencial pretérita e permitir para futuro o alargamento das inelegibilidades, a revisão constitucional de 1989 introduziu um novo n.º 3 no artigo 50.º da CRP, incluído no Capítulo dos Direitos, liberdades e garantias de participação política: “No acesso a cargos eletivos a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respetivos cargos.”
i. Mesmo alargando ao máximo o perímetro do que possa consistir a garantia da liberdade de escolha dos eleitores ou da isenção e independência do exercício dos respetivos cargos, sempre a situação de prévia falência ou insolvência dos candidatos se lhes revela indiferente (tanto, pelo menos, como uma prévia situação de desemprego, ou de recebimento do rendimento social de inserção, por exemplo);
ii. De resto, tem sido reconhecido (e foi assumido no despacho reclamado) que a teleologia de tal norma não é, de todo, salvaguardar essa liberdade ou isenção, mas sim prevenir uma eventual má gestão da coisa pública a partir da inferência feita sobre o insucesso na esfera patrimonial privada – tendo sido com esse sentido que tal norma foi aplicada nos despachos de 17 e 24 de agosto do Juízo Local Cível de Ourém (este proferido em reclamação apresentada do primeiro).
D. A norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL estabelece uma inelegibilidade para os órgãos autárquicos com fundamento na situação patrimonial dos candidatos – o que é diretamente proibido pela lei constitucional (artigo 13.º, n.º 2, da CRP).
E. Para mais, ao fazê-lo só em relação às eleições para os órgãos autárquicos (e, nestes, para todos, mesmo quando não dotados de responsabilidades executivas) incorre em acrescidas violações do mesmo princípio constitucional da igualdade.
F. Ao estabelecer uma inelegibilidade para os órgãos autárquicos com fundamento numa presunção de má gestão futura da coisa pública, inferida da situação prévia de falência ou insolvência dos candidatos, a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL incorre ainda em violação múltipla do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP:
a. Antes de mais, porque a primeira exigência das normas restritivas de direitos é a da legitimidade do fim, e a delimitação constitucional dos possíveis fins das restrições ao acesso aos cargos eletivos não contempla o fim que a norma pretende salvaguardar.
b. Em segundo lugar, porque não há adequação entre meio (a inelegibilidade criada) e fim (a salvaguarda da gestão futura da coisa pública); Falha, portanto, o subprincípio da adequação.
c. Depois, porque – mesmo admitindo que a boa gestão futura da coisa pública pudesse constituir um fim legítimo para a restrição de acesso a cargos eletivos, e pudesse ser inferida da gestão da esfera privada (o que não é demonstrável) – não era necessário que a solução criada passasse por uma inelegibilidade para todas as eleições autárquicas, mas só para estas, e qualquer que fosse a etiologia da falência ou insolvência. Tal presunção não resiste a uma situação de insolvência decorrente, por exemplo, de catástrofes, ou de circunstâncias macroeconómicas incontroláveis; Falha, portanto, o subprincípio da exigibilidade.
d. Finalmente, porque no caso concreto o candidato atingido pela insolvência o foi por arrastamento (por avais prestados a uma sociedade de que era sócio, mas não gerente) e já deu sobejas provas de competência na gestão da coisa pública (o seu executivo – em que assumiu sempre as responsabilidades financeiras – reduziu o passivo da Câmara para 1/3 do que era à data do seu início de funções, baixando as dívidas da autarquia, em 7 anos, em mais de 20 milhões de euros); Falha, portanto, o subprincípio da justa medida.
G. Ao estabelecer uma inelegibilidade para os órgãos autárquicos com fundamento numa situação prévia de falência ou insolvência dos candidatos, não ultrapassada por reabilitação, a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL reproduz exatamente a norma da alínea d) do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 701-B/76, e parece remeter, portanto, para as mesmas realidades jurídicas – que, no entanto, evoluíram nestas mais de 4 décadas de forma a tornar irreconhecível a remissão.
a. Por um lado, a distinção entre as figuras da falência – como instituto reservado aos comerciantes – e da insolvência – como instituto reservado aos não-comerciantes – desapareceu.
b. Por outro lado desapareceu também a figura da reabilitação, que vinha do Código Comercial de 1833.
c. A própria lógica punitiva da falência-liquidação foi substituída pela lógica social da insolvência-recuperação, num movimento de europeização, desjudicialização e privatização dos processos insolvenciais.
d. Tudo a justificar que se tenha já defendido que a própria norma (remissiva para esses regimes tão diversos) da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL se deva considerar revogada – ou caducada, por falta de correspondência à intencionalidade normativa imputável ao legislador parlamentar.
e. Sendo certo que a opção mais recente desse legislador parlamentar, em situações de maior delicadeza na gestão de patrimónios alheios (porque impostos pelo Estado, independentemente da vontade dos sujeitos a essa administração alheia – ao contrário do que acontece em eleições, onde tal depende da vontade dos eleitores; porque necessariamente traduzidos em atos patrimoniais – ao invés do que acontece nos mandatos autárquicos, que podem ou não implicá-los; e porque conduzidos unipessoalmente – em vez de coletivamente, como nos órgãos autárquicos), já adotou um regime muito mais flexível, considerando a insolvência (e só a insolvência) mero indício de inidoneidade para o exercício da profissão de administrador de insolvência.
H. Ainda que anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional se não tenha pronunciado pela inconstitucionalidade da norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL (sobretudo o acórdão n.º 553/2013, depois seguido pelo acórdão 588/2013), basta cotejar tal jurisprudência (como, aliás, o também invocado Parecer da Comissão Nacional de Eleições CNE 79/XIV/2013 – que, em qualquer caso, não vincula o aplicador da lei) para perceber que a questão da inelegibilidade por insolvência nunca foi sujeita a um escrutínio de constitucionalidade.
I. Tudo a confluir na insustentabilidade de um juízo de conformidade da norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL com a Lei Fundamental, que deve, portanto, ser julgada inconstitucional, com a consequente reposição da ordem de candidatos apresentada pelo Partido Socialista às eleições para a Câmara Municipal de Ourém.
(…)
A. O mecanismo legalmente previsto na LEOAL para a substituição de candidatos tem dois sujeitos ativos e três tempos: o primeiro (três dias), é o do n.º 2 do artigo 26.º; o segundo (24 horas), é o do n.º 2 do artigo 27.º. Em ambos, é ao mandatário da lista respetiva que cabe tal substituição. O terceiro é o tempo do Tribunal, nos termos da parte final do n.º 2 do artigo 27.º.
B. No caso dos autos, o Juízo Local Cível de Ourém começou pelo fim, suprimindo os tempos de intervenção do mandatário.
C. Apresentada reclamação nos termos do n.º 1 do artigo 29.º da LEOAL, veio tal reclamação indeferida com fundamento em que as diligências encetadas para resolver a descoincidência entre a lista inicialmente apresentada em Tribunal e a que foi reapresentada em cumprimento do despacho de aperfeiçoamento (alheio à pessoa em causa) eram extemporâneas.
D. Ainda que fossem, a questão não era essa: tais diligências não tinham a ver com a possibilidade que a lei confere ao mandatário de usar os seus dois tempos para prover à substituição de um candidato rejeitado. Tinham, sim, a ver com um lapso tornado evidente com a decisão de inelegibilidade proferida.
E. Ainda que se espere que a flagrante inconstitucionalidade da norma usada para rejeitar a capacidade eleitoral passiva do candidato do Partido Socialista à Câmara Municipal de Ourém (a da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL) torne tal questão meramente académica, deveria ser censurada a avocação pelo Juízo Local Cível de Ourém de uma prerrogativa que a lei confere – em dois momentos diversos e a impulso do Tribunal – ao mandatário.
F. E, naturalmente, por maioria de razão se, contra os princípios constitucionais e a sua densificação em anterior jurisprudência, tal norma não vier a ser julgada desconforme com a Lei Fundamental.»
4. Respondeu a coligação «Ourém Sempre», pugnando pela inadmissibilidade do recurso e, subsidiariamente, pela respetiva improcedência.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Na resposta ao recurso, a coligação «Ourém Sempre» suscita, como questão prévia, a inatendibilidade do recurso interposto pelo Partido Socialista, em função da insuficiência dos elementos probatórios que o instruem, designadamente por não vir instruído com a reclamação do despacho que julgou a inelegibilidade, nem com a decisão judicial que sobre tal reclamação recaiu, o que considera violar o disposto no artigo 33.º, n.º 1, da LEOAL.
Todavia, não lhe assiste razão.
O citado preceito legal determina que «[o] requerimento de interposição do recurso, do qual devem constar os seus fundamentos, é entregue no tribunal que proferiu a decisão recorrida, acompanhado de todos os elementos de prova». Ora, a coligação recorrida supõe que a reclamação e o despacho judicial que a decidiu constituem meios de prova que deveriam acompanhar o recurso interposto — o que constitui um evidente equívoco. Os meios de prova a que se refere essa disposição são os elementos que contribuem para justificar os juízos de facto pertinentes para a decisão da causa, designadamente a prova testemunhal, documental ou pericial. Tal conceito não abrange as peças processuais, por natureza incluídas no processo e, nessa exata medida, não carecidas de qualquer comprovação. Note-se, aliás, que, nos termos do n.º 4 do artigo 33.º da LEOAL, o recurso sobe ao Tribunal Constitucional nos próprios autos, pelo a pretensão deduzida pela coligação recorrida é inteiramente desprovida de sentido.
O citado Acórdão n.º 988/96 em nada sustenta a posição da coligação recorrida, já que aí se colocava a dúvida sobre a existência de uma reclamação que não teria sido do conhecimento do Tribunal Constitucional, situação que em nada se assemelha ao caso vertente.
6. A coligação recorrida suscita ainda a inadmissibilidade da junção de determinados documentos pelo recorrente, juntamente com o recurso interposto. Em concreto, contesta a tempestividade do documento apresentado sob o n.º 1, cuja admissão aos autos já havia sido rejeitada pelo Tribunal a quo no momento da prolação da decisão recorrida, por ter sido apresentado após a reclamação.
Assiste razão à coligação recorrida no que respeita aos documentos n.os 1 a 3 juntos com o recurso, na medida em que correspondem a documentos apresentados com o requerimento datado de 24 de agosto de 2017 e que foram julgados inadmissíveis no momento da prolação da decisão recorrida, sem que tal tenha sido contestado. Por outro lado, não se tratando de documentos supervenientes, a sua admissão neste momento é processualmente inadmissível. Porém, excluem-se deste juízo os documentos apresentados sob os números 4 e 5, por corresponderem a reproduções de peças já admitidas nos autos em momento anterior.
7. A decisão recorrida julgou inelegível o primeiro candidato efetivo da lista apresentada pelo Partido Socialista, Paulo Alexandre Homem de Oliveira Fonseca, à eleição para a Câmara Municipal de Ourém, com base no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEAOL — o mesmo é dizer, com fundamento no seu estado de insolvente. Mais decidiu que o seu lugar deveria passar a ser ocupado pelo candidato subsequente, sendo a lista reajustada pela ordem de precedência dos sucessivos candidatos dela constantes, observando-se a ordem de precedência.
No recurso interposto, o recorrente questiona a constitucionalidade da norma do artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL, invocando, para o efeito, diversas ordens de razão:
(i) A ausência de fundamento constitucional para a restrição do direito de sufrágio passivo operada por essa norma;
(ii) A violação do princípio da proibição do excesso na restrição de direitos, liberdades e garantias;
(iii) A violação do princípio geral da igualdade, por a inelegibilidade dos insolventes compreender apenas a eleição para órgãos de autarquias locais;
(iv) A violação da proibição de discriminação, por a norma impor um prejuízo aos cidadãos em razão da sua situação económica.
Para além destas múltiplas questões de constitucionalidade, defende ainda o recorrente que:
(v) A norma em causa não tem aplicação no caso vertente, na medida em que a sua situação contraria os pressupostos em que aquela assenta;
(vi) O artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL foi tacitamente revogado, por força da evolução do quadro legal da insolvência.
A título subsidiário, requer o recorrente que seja notificado o mandatário das listas do Partido Socialista às eleições autárquicas do Município de Ourém para indicar o nome do candidato que deve substituir o candidato julgado inelegível na lista à Câmara Municipal, com eventual recomposição das listas apresentadas, nos termos do n.º 2 do artigo 27.º da LEOAL.
Apreciemos cada uma das questões suscitadas.
8. Os factos relevantes para a apreciação do mérito do presente recurso são os seguintes, os quais se consideram documentados nos autos:
a) Por sentença de 21 de julho de 2014, proferida no âmbito do processo n.º 189/14.1TBVNO, atualmente pendente no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém — Juízo de Comércio de Santarém — Juiz 1, foi declarada a insolvência de Paulo Alexandre Homem de Oliveira Fonseca;
b) Tal sentença transitou em julgado no dia 13 de janeiro de 2017;
c) Na sentença referida foi determinada a abertura do incidente de qualificação da insolvência, o qual ainda não foi objeto de decisão final;
d) Foi formulado pedido de exoneração do passivo restante, o qual ainda não foi admitido, tendo a decisão sobre a matéria sido diferida para o momento do encerramento da liquidação do ativo;
e) Até ao momento, não foi proferido despacho de encerramento do processo de insolvência.
9. Dispõe o artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL, que «[s]ão igualmente inelegíveis para os órgãos das autarquias locais: (…) [o]s falidos e insolventes, salvo se reabilitados».
Este preceito insere-se num quadro legal que importa traçar sumariamente.
À data da entrada em vigor da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto — a LEOAL —, o regime da «falência», na terminologia então corrente, estava contido no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de abril.
Para além da cessação dos efeitos legais da declaração de falência — previstas no seu artigo 238.º, n.º 1 — o CPEREF previa ainda, no artigo 239.º, n.º 1, o instituto da reabilitação do falido. Segundo tal disposição, «[l]evantados os efeitos da falência nos termos do artigo anterior, o juiz decretará a reabilitação do falido, desde que se mostrem extintos os efeitos penais decorrentes da indiciação das infrações previstas no n.º 1 do artigo 224.º», as quais consistiam nos crimes de insolvência dolosa, de falência não intencional e de favorecimento de credores. Significa isto que, caso o falido tivesse sido indiciado pela prática de algum desses crimes, os efeitos legais da falência apenas cessariam com a extinção dos efeitos decorrentes de tal indiciação; caso contrário, a reabilitação do falido constituía consequência automática da decisão de levantamento dos efeitos da falência, nos termos do artigo 238.º, n.º 1, do CPEREF.
Porém, o instituto da reabilitação do falido desapareceu com a revogação do CPEREF e a correspondente entrada em vigor do atual Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março.
O novo diploma instituiu uma figura inovadora, a da exoneração do passivo restante, aplicável unicamente a pessoas singulares, o qual visa possibilitar o denominado «fresh start» na vida patrimonial do devedor, extinguindo, em larga medida e segundo certas condições, as dívidas que não sejam integralmente pagas no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento. A justificação deste regime encontra-se explicitada no preâmbulo, através das seguintes palavras:
«45 - O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da “exoneração do passivo restante”.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica. (…)».
Já o encerramento do processo de insolvência é agora regulado nos artigos 230.º e 231.º do CIRE, os quais dispõem nos seguintes termos:
«Artigo 230.º
Quando se encerra o processo
1 – Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento:
a) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239°;
b) Após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste;
c) A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento;
d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente.
e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração o passivo restante referido na alínea b) do artigo 237°.
2 - A decisão de encerramento do processo é notificada aos credores e objeto da publicidade e do registo previstos no artigo 37° e artigo 38°, com indicação da razão determinante.
Artigo 233.º
Efeitos do encerramento
1 - Encerrado o processo:
a) Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte;
b) Cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com exceção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência;
c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242°, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em ação de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência;
d) Os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos.
2 - O encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina:
a) A ineficácia das resoluções de atos em benefício da massa insolvente, exceto se o plano de insolvência atribuir ao administrador da insolvência competência para a defesa nas ações dirigidas à respetiva impugnação, bem como nos casos em que as mesmas não possam já ser impugnadas em virtude do decurso do prazo previsto no artigo 125°, ou em que a impugnação deduzida haja já sido julgada improcedente por decisão com trânsito em julgado;
b) A extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, exceto se tiver já sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140°, ou se o encerramento decorrer da aprovação de plano de insolvência, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as ações cujos autores assim o requeiram, no prazo de 30 dias;
c) A extinção da instância das ações pendentes contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente propostas pelo administrador da insolvência, exceto se o plano de insolvência atribuir ao administrador da insolvência competência para o seu prosseguimento. (…)».
A comparação entre o novo e o antigo regime, com o propósito de determinar as situações compreendidas na previsão da norma do artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL — quer no plano objetivo, quer no plano temporal —, foi levada a cabo no Acórdão n.º 553/2013, no qual se escreveu o seguinte:
«9.3 Cotejando os dois regimes, pode entender-se que o sentido e efeitos da decisão (final) da exoneração do passivo restante (CIRE) são semelhantes aos previstos no CPEREF quanto à reabilitação, pelo que a aplicação do disposto na parte final da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL pode reportar-se hoje, na vigência do CIRE, no que respeita a pessoas singulares, ao regime da exoneração do passivo restante.
Por referência à inelegibilidade dos insolventes prevista no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) da LEOAL, os insolventes reintegrados plenamente na vida económica (o fresh start de que fala o preâmbulo do CIRE), segundo o regime do CIRE, já seriam elegíveis, como também, ainda na vigência do CPEREF, só a partir do momento da reabilitação podiam as pessoas singulares declaradas insolventes encontrar-se em situação de elegibilidade para os órgãos das autarquias locais.
10. Tendo em conta o exposto, a questão que se coloca é a de saber em que momento opera a “reabilitação” do insolvente, e avaliar das respetivas consequências no que toca à aplicação do regime de inelegibilidades gerais previsto na LEOAL, contrapondo-se as teses defendidas no despacho judicial de 13 de agosto (decisão reclamada pelo mandatário da candidatura que integra o candidato impugnado) e no despacho judicial de 16 de agosto (decisão ora recorrida pelo mandatário do Partido Socialista), a saber, se a decisão de encerramento do processo na sequência do despacho liminar que admitiu o pedido de exoneração do passivo restante e a decisão de qualificação da insolvência como fortuita consubstanciam a cessação da inelegibilidade da pessoa declarada (judicialmente) insolvente ou se, diferentemente, a inelegibilidade da pessoa declarada (judicialmente) insolvente cessa apenas com a decisão definitiva sobre a concessão da exoneração do passivo restante, a proferir no termo do prazo de cinco anos após o encerramento do processo (designado por período de cessão).
(…)
11. Desde já, cumpre explicitar que a qualificação da insolvência como fortuita só por si não significa que o insolvente se encontre «reabilitado». Essa qualificação será relevante para os efeitos de ponderação das decisões de concessão da exoneração do passivo restante, já que tal pressupõe a avaliação do comportamento do devedor/insolvente, quanto à sua situação económica (mesmo em momento anterior ao da declaração de insolvência) e aos deveres decorrentes do processo de insolvência, de forma a poder concluir-se que é dele merecedor.
(…)
13.2 Numa leitura formal, a decisão de encerramento do processo de insolvência tomada em 14 de agosto de 2013 ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º – segundo a qual «Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º – poderia bastar para o efeito em causa.
Contudo, em face da ratio da inelegibilidade em causa estabelecida na lei, não se mostra adequado retirar tais consequências de uma decisão de encerramento do processo que não se mostra nem definitiva, nem plena. Sobretudo, nesta última asserção, já que o insolvente, nos termos do regime específico da exoneração do passivo restante, admitido liminarmente o pedido formulado pelo próprio para a concessão do benefício da exoneração do passivo restante, continua adstrito a uma série de condições, obrigatórias nos termos da lei e que devem constar do despacho judicial inicial, de que resulta, em substância, não dispor até ao termo do período de cessão (nos cinco anos após o encerramento do processo de insolvência) de autonomia na disposição, pelo menos de parte, dos seus bens.
(…)
Ora, privado o insolvente, até ao termo do período de cessão, da disposição, pelo menos em parte, dos seus rendimentos disponíveis, pois cometida a sua gestão a um fiduciário, de acordo com a lei e a decisão judicial de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, e obrigado o insolvente ao cumprimento de várias condições quanto a esse património, no mesmo período, não parecem reunidas as condições para afastar a inelegibilidade estabelecida no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) da LEOAL no presente caso, não obstante o encerramento do processo de insolvência determinado nos termos acima explicitados.»
Em suma, no âmbito do atual regime legal da insolvência, a inelegibilidade estabelecida no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL, aplica-se a cidadãos que tenham sido declarados insolventes e cujo processo não tenha sido encerrado, desde que a insolvência não tenha sido qualificada de culposa ou não exista pedido de exoneração do passivo restante. Neste último caso, a cessação dos efeitos da insolvência, equivalentes à antiga figura da reabilitação do falido, ocorre apenas com a decisão final de exoneração, tomada nos termos do artigo 244.º, n.º 1, do CIRE, que põe termo definitivo ao período de cessão referido no n.º 2 do artigo 239.º do mesmo diploma.
É esse o alcance a dar ao artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL, nos termos da «interpretação dinâmica e atualista» que a jurisprudência constitucional tem vindo a fazer de tal preceito (v., neste exato sentido, os Acórdãos n.ºs 533/2013 e 588/2013 e o recente Acórdão n.º 495/2017). E dizê-lo é quanto basta para afastar um dos argumentos do recorrente, qual seja o de que o preceito aqui em causa foi tacitamente revogado, por força da evolução do quadro legal da insolvência.
10. O recorrente questiona o fundamento constitucional para a lei restringir o direito de sufrágio passivo dos cidadãos, através da previsão de uma causa de inelegibilidade para os órgãos das autarquias locais.
A esse respeito, escreveu-se o seguinte no recente Acórdão n.º 495/2017:
«Este Tribunal vem entendendo tratar-se [o direito de sufrágio passivo] de um direito, liberdade e garantia de participação política estreitamente relacionado com o princípio democrático que não releva apenas — nem fundamentalmente — de uma mera expressão da individualidade privada face ao poder público, mas também do específico modo de estruturação e conformação desse mesmo poder público, enquanto poder democrático. A democracia implica eleições como modo de designação dos titulares do poder, o que só é possível se houver pessoas que possam ser eleitas.»
É indiscutível, porém, que a Constituição admite expressamente a restrição de tal direito, nos termos do n.º 3 do artigo 50.º, o qual dispõe que «[n]o acesso a cargos eletivos a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respetivos cargos». Este preceito, introduzido no texto constitucional em 1989, consagra dois valores que justificam a restrição do direito de sufrágio passivo: a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos cargos. Como se afirmou, em termos genéricos, no Acórdão n.º 532/89:
«Como direito fundamental que é, a própria Constituição – n.º 2 do artigo 18.º – adverte só poder a lei restringi-lo nos casos nela expressamente previstos, “devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
(…)
O próprio texto constitucional consagra, de resto, o critério dos limites admissíveis: no n.º 3 do artigo 50.º afirma-se claramente que, no acesso aos cargos eletivos, a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores — acautelando-se, desse modo, os riscos inerentes à captação da benevolência destes — e a isenção e independência do exercício dos respetivos cargos, sancionando-se, assim, com dignidade constitucional, a densificação do princípio da vinculação do legislador aos direitos fundamentais mediante a imposição de outros valores que, passando pela necessidade de afirmar o princípio da legalidade, conformam o poder político, no caso o poder local» (no mesmo sentido, ver, entre outros, os Acórdãos n.ºs 25/92, 382/2001, 515/2001, 448/2005, 443/2009, 462/2009, 480/2013 e 550/2013).»
A questão que se coloca é a de saber se a inelegibilidade estabelecida no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), da LEOAL, se ancora em valores suficientemente robustos para justificarem a restrição de um direito que é fundamental por razões simultaneamente subjetivas — a oportunidade dos cidadãos para participarem no governo da sua comunidade — e objetivas — a necessidade indispensável de candidatos eleitorais para ocuparem cargos eletivos. Tais valores são, a título principal, os do n.º 3 do artigo 50.º, mas sem exclusão de outros que relevem do princípio da unidade da Constituição. Ora, tal questão redunda em determinar quais as rationes, ou quais os teloi, da inelegibilidade dos insolventes para órgãos autárquicos, e em aferir se as mesmas têm respaldo constitucional.
O já citado Acórdão n.º 553/2013 discorreu sobre essa matéria nos seguintes termos:
«13.3 Na apreciação que cabe agora ao Tribunal Constitucional deve ter-se presente o fundamento para a previsão, pelo legislador, da inelegibilidade dos insolventes no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) da LEOAL.
A restrição à capacidade eleitoral passiva aí determinada pode ser (hipoteticamente) orientada por um juízo de culpa, mais próprio de um regime sancionatório, que, neste caso, estaria afastado em face da qualificação da insolvência como fortuita e, sobretudo, pela estrita aferição das condições objetivas do comportamento do devedor que baseiam a própria decisão inicial de admissão liminar do pedido de exoneração prévia do passivo restante. Neste pressuposto, a «reabilitação» do insolvente ocorreria pela conjugação daquelas decisões judiciais, operando com a decisão de encerramento do processo de insolvência nos termos do artigo 230.º, n.º 1, alínea e), do CIRE.
Contudo, não se afigura ser essa a ratio da inelegibilidade em causa. Aliás, a questão da culpa não tem sido determinante na ponderação já feita pelo Tribunal Constitucional na ligação entre as inelegibilidades estabelecidas pela LEOAL e o regime de perda de mandato dos cidadãos eleitos em face da ocorrência de uma situação de inelegibilidade posterior à data da eleição, como resulta da seguinte passagem do Acórdão n.º 382/01 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt):
«A inelegibilidade como fundamento da perda de mandato de quem exerce funções de membro de órgão autárquico justifica-se pela necessidade de garantir a isenção e a independência no exercício do cargo autárquico. Pretende-se assegurar que quem foi eleito membro de órgão autárquico garanta no exercício do cargo essas isenção e independência., competindo ao legislador ordinário criar, por um lado, condições para que os cargos autárquicos sejam exercidos com isenção e independência e, por outro, condições para que os titulares dos cargos autárquicos se apresentem aos olhos dos cidadãos como pessoas acima de qualquer suspeita.
Não se vê qualquer razão para distinguir entre as situações de inelegibilidade ab initio – em que a pessoa não pode ser eleita para salvaguarda da transparência, isenção e imparcialidade no exercício de cargo público nos órgãos do poder local – e a inelegibilidade após a eleição de pessoa que, pela qualidade de funcionário dos órgãos representativos das freguesias e dos municípios, não garante essas mesmas características no desempenho das suas funções, independentemente de um juízo de culpa sobre a sua atuação concreta.»
Do que se trata, em face do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL, é pois da relação estabelecida entre as funções de administração pública a desempenhar pelo candidato, se eleito, e a gestão dos seus bens patrimoniais (dos seus rendimentos) na esfera privada. A inelegibilidade dos insolventes prende-se pois com a necessidade de garantir, com independência e plena capacidade de gestão, a administração financeira dos bens públicos que lhe vai ser confiada no cargo para o qual serão eleitos. Trata-se da gestão de património financeiro, em grande medida determinado pelas receitas cobradas aos contribuintes/eleitores, o que justifica exigir o legislador a observância de um certo rigor na gestão privada dos bens e rendimentos do eleito e a garantia de capacidade para o efeito, o que não acontece em face das obrigações e efeitos decorrentes da decisão liminar de exoneração do passivo restante nos termos do CIRE em vigor.»
O recente Acórdão n.º 495/2017 também se debruçou sobre a questão dos fundamentos da causa de inelegibilidade prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL, nele se afirmando o seguinte:
«Articulada com esta perspetiva, a previsão da inelegibilidade do artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL não é alheia a considerações e interesses que, para além da prevenção de comportamentos eventualmente motivados pela vulnerabilidade patrimonial dos titulares de órgãos autárquicos, se articulam também com preocupações gerais relacionadas com a confiabilidade e boa-fé e a consequente segurança quanto à diligência e lisura de comportamentos e quanto à competência, responsabilidade e empenho no âmbito de atuações na sua esfera de atuação económico-patrimonial de quem vai ter a seu cargo a administração de verbas e interesses públicos. Recorde-se que, no exercício das suas funções, os titulares de órgãos autárquicos estão obrigados a prosseguir o interesse público – e só esse –, devendo atuar sempre com respeito pelos princípios da justiça, da imparcialidade (na sua dupla vertente negativa e positiva) e da boa fé (cfr. o artigo 266.º da Constituição).
Em suma, a dependência da elegibilidade para os órgãos das autarquias locais de quem tenha sido declarado falido ou insolvente de um juízo positivo de reabilitação nos termos expostos torna claro que só deve poder ser eleito para tais órgãos quem, seja pela superação da vulnerabilidade da respetiva situação patrimonial, seja pela expectativa quanto à correção e lisura da sua atuação na vida económica, possa criar na comunidade a confiança quanto à isenção e independência no exercício do cargo cuja eleição esteja em causa. A plena reintegração do falido na vida económica – indispensável à sua reabilitação – constituía, na verdade, um importante fator para a criação de tal confiança.»
11. A jurisprudência citada reconduz a inelegibilidade dos insolventes para os órgãos autárquicos, no essencial, a duas ordens de valor constitucional.
Em primeiro lugar, à noção de que a declaração de insolvência constitui um indício forte de que o visado revelou, no passado recente, imprudência e ineptidão na gestão do seu património. Ora, sendo a gestão da coisa pública intrinsecamente mais complexa no plano técnico e mais exigente no plano moral do que a gestão do património pessoal — a primeira pela natureza dos meios envolvidos e a abrangência da atividade desenvolvida e a segunda pelo facto de implicar a administração de recursos públicos vinculada ao interesse público —, o legislador presume que os insolventes não possuem as qualidades indispensáveis ao exercício idóneo da função administrativa confiada às autarquias locais. É certo que esta caracterização parece assentar nos pressupostos específicos da insolvência culposa, o que contradiz o facto de a inelegibilidade se estender indiferenciadamente aos casos de insolvência fortuita. Porém, o facto de a insolvência ser fortuita não implica de modo algum que ela não tenha resultado de gestão imprudente; com efeito, a insolvência culposa, nos termos do artigo 186.º do CIRE, pressupõe o dolo ou culpa grave do devedor, o que significa que é ainda qualificada como fortuita a situação de insolvência que tenha sido provocada por simples imprudência, o que será verdade, segundo a experiência comum, num número significativo de casos. Ora, não encerrando a inelegibilidade dos insolventes para os órgãos autárquicos — como bem assinalou o Acórdão n.º 533/2013 — qualquer juízo de censura sobre a gestão patrimonial dos visados, mas apenas o desiderato de tutelar a vinculação da função administrativa ao interesse público, a lei reflete a presunção da falta de idoneidade dos insolventes para participarem no exercício do poder local. Em suma, em causa está o princípio constitucional da prossecução do interesse público pela Administração Pública, consagrado no artigo 266.º da Constituição.
Em segundo lugar, a jurisprudência constitucional ancora a inelegibilidade dos insolventes na garantia de independência no exercício do poder local. Por um lado, a insolvência constitui uma situação de debilidade económica, traduzida na incapacidade patrimonial do devedor para cumprir as obrigações vencidas; o insolvente encontra-se, por isso, numa posição de especial vulnerabilidade, da qual resulta um risco acrescido de abuso de poder e de gestão danosa. Por outro lado, o decretamento judicial da insolvência e a subsistência de tal estado implicam, para o visado, um extenso conjunto de restrições, entre as quais as seguintes: (i) o domicílio do visado é judicialmente fixado pelo Tribunal — artigo 36.º, n.º 1, alínea c), do CIRE; (ii) os seus bens são apreendidos, para imediata entrega ao administrador da insolvência, que deles fica constituído na qualidade de depositário – artigo 150.º do CIRE; (iii) a sua contabilidade é apreendida, para imediata entrega ao administrador da insolvência — artigo 36.º, n.º 1, alínea g), do CIRE; (iv) o administrador de insolvência toma conhecimento de todas as informações patrimoniais do visado, nos termos do artigo 24.º do CIRE; (v) o insolvente fica privado dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais, com as exceções legais, passam a competir ao administrador da insolvência — artigo 81.º, n.º 1, do CIRE; (vi) ao insolvente fica interditada a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros suscetíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que perceba ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo — artigo 81.º, n.º 2, do CIRE; (vii) o administrador da insolvência dispõe de poderes para desistir, confessar ou transigir, mediante concordância da comissão de credores, em qualquer processo judicial em que o insolvente seja parte – artigo 55.º, n.º 8, do CIRE; (viii) o insolvente fica obrigado a apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência, salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário — artigo 83.º, n.º 1, alínea b), do CIRE; e (ix) os negócios jurídicos celebrados pelo insolvente, quer estejam em curso, quer tenham sido celebrados em determinados prazos anteriores ao decretamento da insolvência, podem ser modificados ou resolvidos pelo administrador da insolvência, nos termos definidos nos artigos 102.º a 127.º do CIRE. De tudo isto decorre que o insolvente está numa situação de dependência sistemática em relação a terceiros em matéria de administração pessoal — uma verdadeira e própria capitis deminutio —, situação essa que o legislador presume dificilmente conciliável com a expectativa de independência que a comunidade deposita nos titulares de órgãos da administração local. Em suma, em causa está a garantia de isenção e de independência no exercício de cargos públicos.
12. Do exposto resulta que a inelegibilidade estabelecida no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL, encontra fundamento no n.º 1 do artigo 266.º e no n.º 3 do artigo 50.º da Constituição. Cabe agora apreciar se a restrição do direito de sufrágio passivo que a mesma consubstancia observa os limites impostos pelo princípio da proibição do excesso. Com efeito, o princípio da proibição do excesso incide sobre medidas legislativas não liminarmente interditadas pela Constituição e que prosseguem finalidades legítimas através de meios restritivos: finalidades legítimas, no sentido em que não são constitucionalmente proscritas; meios restritivos, porque implicam a ablação ou restrição de direitos ou interesses fundamentais. É precisamente esse o caso, como vimos, da solução acolhida no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL.
Como reconhece, há muito, a jurisprudência constitucional (v., por todos, o Acórdão nº 187/2001), o princípio da proibição do excesso analisa-se em três subprincípios ou «testes»: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade. O subprincípio da idoneidade determina que o meio restritivo escolhido pelo legislador não pode ser inadequado ou inepto para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício frívolo de valor constitucional. O subprincípio da exigibilidade determina que o meio escolhido pelo legislador não pode ser mais restritivo do que o indispensável para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício desnecessário de valor constitucional. Finalmente, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional.
A inelegibilidade dos insolventes para os órgãos autárquicos constitui um meio inequivocamente idóneo à prossecução dos princípios da vinculação da Administração Pública ao interesse público e da isenção e independência no exercício dos cargos públicos, na medida em que obsta a que o cargo eletivo possa vir a ser ocupado por quem não reúne condições objetivas para o seu exercício idóneo e independente. De resto, sempre que as rationes ou os teloi de uma solução legal não sejam explicitadas pelo legislador ─ como é o caso ─, sem que o intérprete deixe de as discernir através de um juízo de racionalidade instrumental, como aquele que se desenvolveu no ponto anterior, encontra-se, em princípio, preenchido o requisito da idoneidade da medida.
Mais complexa é a análise da solução legal nos planos — neste contexto, praticamente incindíveis — da exigibilidade e da proporcionalidade. Pode parecer que os desideratos que o legislador terá tido em vista podem ser adequadamente assegurados através de uma solução não apenas menos restritiva do direito de sufrágio passivo dos insolventes, mas diretamente imposta pelo princípio democrático, nomeadamente através da sua refração no princípio constitucional da autonomia do poder local (artigos 6.º e 235.º, n.º 1). Tal solução seria a obrigatória divulgação pública da declaração de insolvência do candidato, cabendo aos eleitores a ponderação da relevância desse facto, através do exercício do seu direito de sufrágio ativo. Na verdade, parece difícil conciliar a inelegibilidade dos insolventes, estabelecida no interesse da idoneidade e da independência no exercício do poder local, com a afirmação constitucional expressa de que as «[a]s autarquias locais são pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas» (artigo 235.º, n.º 2). Sendo a essência da democracia o autogoverno coletivo, cabe perguntar se não compete às comunidades locais — e a elas apenas — escolher os seus representantes para a prossecução dos seus interesses; e se é assim, sem dúvida que a inelegibilidade dos insolventes é uma medida excessiva, por desnecessária e desproporcionada, por mais benévolas e legítimas que sejam as suas razões.
Ora, este modo de ver as coisas parte de uma conceção inadequada dos fundamentos constitucionais do poder local. A Constituição consagra expressamente os princípios da soberania popular (artigos 1.º e 2.º) e da unidade do Estado (artigo 6.º). De tais princípios decorre que a autonomia local não é um poder originário — anterior à ordem constitucional e concorrente da vontade popular —, mas um poder devolvido pela comunidade nacional às comunidades locais, para que estas se autogovernem nas matérias que lhes dizem especificamente respeito. Ora, esta devolução de poder às autarquias não pode, pela sua própria natureza, deixar de conhecer limites e condições que relevam da própria Constituição. Por um lado, ela está confinada ao domínio da função administrativa do Estado, pelo que as autarquias locais estão sujeitas à vontade política do legislador estadual e ao poder de tutela do Governo sobre a administração autónoma. Por outro lado, a autonomia de que gozam as autarquias baseia-se no pressuposto de que as comunidades locais têm a capacidade de se autogovernarem — exercendo competências próprias e administrando recursos públicos —, sem prejuízo para a solidariedade nacional e a unidade do Estado que a Constituição postula. A autonomia local é, por tudo isto, limitada e condicionada pela vontade geral na qual exclusivamente se funda e pela unidade do Estado no qual se repercutem, em última instância, as consequências do seu eventual descalabro.
É a esta luz que se deve compreender a função da inelegibilidade estabelecida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da LEOAL. A restrição que ela impõe à autonomia das comunidades locais destina-se a prevenir a degeneração da administração local e a reforçar a confiança da comunidade nacional no exercício pelas autarquias dos poderes que a Constituição lhes devolveu. Por outras palavras, ao assegurar que os candidatos eleitorais aos órgãos autárquicos reúnem condições objetivas para prosseguirem, de forma idónea e independente, o interesse público, o regime da inelegibilidade dos insolventes constitui uma garantia de que o poder local tem a capacidade de desempenhar a função administrativa que lhe foi confiada através da devolução de poderes originários da comunidade nacional. Trata-se, pois, de uma solução que não se pode reputar de inexigível ou desproporcionada, contendo-se nos limites impostos pelo princípio da proibição do excesso.
13. O recorrente defende que a norma sob escrutínio viola o princípio geral da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, na medida em que a inelegibilidade nela consagrada diz apenas respeito à eleição para órgãos de autarquias locais e não a quaisquer outras eleições, designadamente de âmbito nacional ou regional.
Vejamos.
É verdade que a insolvência não constitui causa de inelegibilidade senão nas eleições para os órgãos das autarquias locais, como resulta da análise da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (Lei n.º 14/79, de 16 maio, com as sucessivas alterações), da Lei Eleitoral do Presidente da República (Decreto-Lei nº 319-A/76, de 3 de maio, com as sucessivas alterações), das Leis Eleitorais das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira (Decreto-Lei 267/80, de 8 agosto e Lei Orgânica n.º 1/2006, de 13 de fevereiro, respetivamente) e da Lei da Eleição para o Parlamento Europeu (Lei n.º 14/87, de 29 de abril, com as sucessivas alterações). Resta determinar se tal diferença de tratamento entre os candidatos a órgãos autárquicos e candidatos a outros cargos eletivos ofende o princípio da igualdade.
Sobre o alcance do princípio geral da igualdade enquanto norma de controlo judicial do poder legislativo, escreveu-se no Acórdão n.º 409/99:
«O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio.»
A questão que se coloca é a de saber se, ao permitir que cidadãos insolventes sejam ou não elegíveis consoante pretendam candidatar-se a eleições para os órgãos das autarquias locais ou a eleições para qualquer outro cargo eletivo, a lei estabelece entre eles uma distinção arbitrária, porque destituída de qualquer fundamento racional.
Para responder a tal questão, é indispensável que se determine qual o tertium comparationis entre os sujeitos a tratamento diferente pela lei. Ora, o recorrente parte do pressuposto erróneo de que o termo de comparação relevante é, simplesmente, a dupla condição de insolvente e de candidato, quando se trata, na verdade, da natureza da função servida e do fundamento do poder exercido pelos titulares dos cargos abrangidos pela inelegibilidade.
Com efeito, os fundamentos, as atribuições e competências dos órgãos das autarquias locais são substancialmente diversos dos demais órgãos eletivos, designadamente o Presidente da República e a Assembleia da República, as Assembleias Legislativas Regionais e o Parlamento Europeu, o que justifica diferentes categorias de inelegibilidades. É essa diversidade que explica, por exemplo, que a lei estabeleça um amplo catálogo de inelegibilidades para o cargo de Presidente da República (artigo 5.º do Decreto-Lei nº 319-A/76, de 3 de maio) que não se verificam no que respeita a qualquer outro cargo eletivo e que encontram fundamento material nas características próprias da função de Chefe de Estado. No caso da inelegibilidade dos insolventes para os órgãos autárquicos, o que conta é o facto de a autonomia local ser a forma privilegiada de descentralização administrativa, que se traduz no exercício de uma função executiva através de poderes derivados. Daí decorre que a diferença de tratamento entre candidatos insolventes a órgãos autárquicos e a outros cargos eletivos, sendo materialmente fundada, não ofende o princípio da igualdade.
14. O recorrente alega ainda que a solução legal sob escrutínio prejudica os insolventes em função da sua situação económica, o que consubstancia uma violação da proibição de discriminação consagrada no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição.
Porém, é manifesto que não lhe assiste razão.
O princípio da igualdade proíbe a desigualdade arbitrária de tratamento, ou seja, aquela que não tenha por fundamento e medida a finalidade prosseguida pela norma ou regime que a imponha. O n.º 2 do artigo 13.º acrescenta-lhe a proibição do tratamento desigual fundado em certo tipo de razões, intrinsecamente discriminatórias; o racismo, a homofobia, o classismo ou a misoginia ─ para dar alguns exemplos ─, não podem, em caso algum, justificar o tratamento desigual das pessoas, porque são finalidades constitucionalmente proscritas. Ora, o que o artigo 13.º, n.º 2, proíbe, no segmento invocado pelo recorrente, é que o legislador trate desigualmente as pessoas em razão ou por força da sua situação económica, isto é, com a finalidade de privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever pessoas em função da classe económica ou social que integrem. Não é essa, como se viu, a função da inelegibilidade estabelecida no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL.
15. Finalmente, sustenta o recorrente que a inelegibilidade aqui em causa deve ser tida por não aplicável, já que a situação concreta do candidato contradiz os pressupostos em que assenta. Nas suas palavras, «[a]plicar uma norma que visa salvaguardar a aptidão na gestão dos bens públicos contra quem já demonstrou que o faz bem, não tem qualquer sentido».
Sucede que não cabe ao Tribunal Constitucional, como se supõe evidente, fazer juízos de mérito sobre a qualidade da gestão autárquica. De resto, a lei estabelece uma presunção inilidível de falta de idoneidade e independência dos insolventes para o exercício do poder local, pelas razões já abundantemente referidas de tutela preventiva do interesse público e de garantia da confiança da comunidade nacional na autonomia local.
16. A título subsidiário, e para o caso de o recurso não proceder na parte relativa à inelegibilidade, o recorrente requer que seja notificado o mandatário das listas do Partido Socialista às eleições autárquicas do Município de Ourém para indicar o nome do candidato que deve substituir o candidato julgado inelegível na lista à Câmara Municipal, com eventual recomposição das listas apresentadas, nos termos do n.º 2 do artigo 27.º da LEOAL, revogando-se a decisão recorrida, na parte em que determina que o lugar do candidato julgado inelegível deverá passar a ser ocupado pelo candidato subsequente, sendo a lista reajustada pela ordem de precedência dos sucessivos candidatos dela constantes.
Os factos relevantes para a apreciação da questão são os seguintes:
a) Por despacho datado de 17 de agosto de 2017, o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém — Juízo Local Cível de Ourém julgou inelegível o primeiro candidato efetivo da lista apresentada pelo Partido Socialista, Paulo Alexandre Homem de Oliveira Fonseca, à eleição para a Câmara Municipal de Ourém, com base no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEAOL;
b) No mesmo despacho decidiu que o seu lugar na lista passaria «a ser ocupado pelo candidato subsequente e assim sucessivamente»;
c) Por requerimento datado de 18 de agosto de 2017, o recorrente requereu a inclusão de um candidato como último suplente, o qual por lapso não teria sido incluído na lista aperfeiçoada apresentada em juízo na sequência de prolação de despacho convidando ao aperfeiçoamento;
d) Tal requerimento foi indeferido em 18 de agosto de 2017, com fundamento em extemporaneidade;
e) Nem na reclamação, nem no recurso subsequente, nem ainda em qualquer outra peça processual até ao momento apresentada, o mandatário do recorrente indicou quem deveria substituir o candidato julgado inelegível.
Na decisão recorrida, argumentou o Tribunal a quo que o recorrente não requereu qualquer substituição ou retificação da lista de candidatos até ao momento da apresentação do requerimento de 18 de agosto e que neste apenas solicita a retificação de um erro e não qualquer substituição de candidato, razão pela qual tal pretensão foi considerada extemporânea.
O artigo 26.º, n.º 2, da LEOAL, determina que «[n]o prazo de três dias, podem os mandatários suprir irregularidades processuais ou substituir candidatos julgados inelegíveis ou sustentar que não existem quaisquer irregularidades a suprir ou candidatos a substituir, sem prejuízo de apresentarem candidatos substitutos para o caso de a decisão do tribunal lhes vir a ser desfavorável».
A supressão de irregularidades processuais ou substituição de candidatos julgados inelegíveis aqui previstas tanto podem ocorrer espontaneamente como em resposta a convite judicial formulado ao abrigo do n.º 1 do aludido preceito, desde que em momento anterior à prolação do despacho de aceitação ou rejeição (v. o Acórdão n.º 527/1989).
Uma vez proferido o mencionado despacho e caso um candidato venha a ser julgado inelegível e, como tal, rejeitada a sua candidatura, duas possibilidades se abrem em vista do n.º 2 do artigo 27.º da LEOAL: (i) a candidatura exerceu a faculdade atribuída pelo artigo 26.º, n.º 2, indicando cidadão que pudesse substituir aquele relativamente ao qual se suscitou a questão de inelegibilidade; ou (ii) não o tendo feito, «o mandatário da lista é imediatamente notificado para que proceda à substituição do candidato ou candidatos inelegíveis no prazo de vinte e quatro horas», devendo a notificação ser expressa nesse sentido, não bastando para o efeito a mera notificação da decisão judicial que julga determinado candidato inelegível.
Nesta segunda hipótese, tanto pode ocorrer que o mandatário indique substituto dentro do prazo legal, como que o não faça. Neste último caso, a lei estabelece um critério supletivo de substituição do candidato julgado inelegível, a operar nos seguintes termos: «se tal não acontecer, a lista é reajustada com respeito pela ordem de precedência dela constante e com a ocupação do número de lugares em falta pelos candidatos suplentes cujo processo de candidatura preencha a totalidade dos requisitos legais, seguindo a respetiva ordem de precedência».
No caso vertente, o mandatário do recorrente não usou da faculdade atribuída pelo artigo 26.º, n.º 2, da LEOAL, apesar de saber que a questão da inelegibilidade do primeiro candidato era controvertida.
Foi então proferido o despacho judicial de rejeição de tal candidato, com fundamento na sua inelegibilidade. Impunha-se, nesse momento, que o Tribunal a quo tivesse dado cumprimento ao disposto no artigo 27.º, n.º 2, ab initio, da LEOAL, o que não sucedeu. Ao invés, o Tribunal aplicou imediatamente a solução supletiva consagrada na parte final de tal preceito.
A questão que importa agora resolver é a de saber como suprir tal vício.
O recorrente pretende que seja notificado o mandatário das listas do Partido Socialista às eleições autárquicas do Município de Ourém para indicar o nome do candidato que deve substituir o candidato julgado inelegível na lista à Câmara Municipal, com eventual recomposição das listas apresentadas, nos termos do n.º 2 do artigo 27.º da LEOAL.
No entanto, tal solução revela-se desajustada da natureza do presente processo e das preocupações de celeridade que o informam. Como tem sido reiteradamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, o processo eleitoral é dominado pelo princípio da aquisição progressiva dos atos, nos termos do qual os diversos momentos processuais consolidam-se na transição para as fases subsequentes que os pressupõem (v. o Acórdão n.º 262/1985). Assim o determina a importância de salvaguardar a integridade do calendário eleitoral. Daí que o suprimento de irregularidades apenas se possa fazer nos prazos compagináveis com tal desiderato (v. o Acórdão n.º 683/1997).
No caso vertente, e atenta a fase processual atingida, não é viável dar cumprimento ao disposto no artigo 27.º, n.º 2, ab initio, da LEOAL. De facto, impunha-se ao recorrente, na pessoa do respetivo mandatário, um ónus de, prevendo a possibilidade de confirmação da decisão que julgou inelegível o primeiro candidato, indicar desde logo, quer na reclamação, quer ao menos no recurso para este Tribunal, a pessoa que o deveria substituir, por forma a evitar a solução supletiva prevista na lei.
Tal indicação permitiria que, em última instância, este Tribunal estivesse em condições de, caso viesse a confirmar a inelegibilidade do candidato em causa, sanar o vício de que padece a decisão recorrida. Contraria o princípio da aquisição progressiva dos atos que, após o momento da decisão final do recurso que incidiu sobre a decisão da reclamação, o processo retroceda até à fase prevista no artigo 27.º, n.º 2, ab initio, da LEOAL. Por outro lado, o mandatário do recorrente nunca indicou quem deveria substituir o candidato julgado inelegível, embora tenha tido ampla oportunidade processual de o fazer e não pudesse deixar de contar com a hipótese de o seu recurso ser julgado improcedente, suposição esta inequivocamente corroborada pelo facto de ter deduzido pedido subsidiário.
Desta forma, importa concluir que a irregularidade que atinge a decisão recorrida se sanou pelo decurso do tempo.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
1. Não admitir a junção aos autos dos documentos indicados sob os números 1 a 3 do recurso interposto;
2. Negar provimento ao recurso interposto, confirmando o sentido da decisão que julgou inelegível o primeiro candidato efetivo da lista apresentada pelo Partido Socialista à eleição para a Câmara Municipal de Ourém, Paulo Alexandre Homem de Oliveira Fonseca, com o fundamento consagrado no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEAOL e que determinou que o seu lugar deveria passar a ser ocupado pelo candidato subsequente, sendo a lista reajustada pela ordem de precedência dos sucessivos candidatos dela constantes.
Lisboa, 11 de setembro de 2017 – Gonçalo de Almeida Ribeiro –– José António Teles Pereira - Maria de Fátima Mata-Mouros – Joana Fernandes Costa ( com declaração) – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – João Pedro Caupers
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a
decisão por considerar: (i) nem desadequada nem excessiva, quanto à finalidade que através dela se prossegue — a
exigência de um crédito de confiança quanto à responsabilidade, competência e
isenção no exercício futuro dos cargos eletivos compreendidos nos órgãos do
poder local —, a inelegibilidade prevista no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da
LEOAL, quando aplicada aos cidadãos devedores afetados pela qualificação da
sentença de insolvência como culposa,
durante os períodos que resultarem das inibições nela fixadas (tendo votado por
isso o Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 803/2017); e (ii) tal solução extensível às hipóteses
— que é a presente — em que a sentença que declara a insolvência do candidato
determina a abertura do incidente de
qualificação da insolvência, ainda que este se não encontre decidido à data
da apresentação da candidatura; neste caso, a possibilidade, concretamente aberta,
de o candidato insolvente vir a ser inibido, por um período de 2 a 10 anos, de
administrar património de terceiros, pelo facto de a situação de insolvência
ter sido criada ou agravada em consequência da sua atuação, dolosa ou com culpa
grave, constitui ainda justificação
suficiente para opção prosseguida através da causa de inelegibilidade prevista
no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), da LEOAL — subtrair o poder de administração
autárquica da exposição ao risco de
que é, em geral, preservada a gestão do património de terceiros.
Ao contrário, porém, do que parece
assumir-se no acórdão, tenho dificuldade em considerar compatível com o
princípio da proibição do excesso, consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da
Constituição, a presunção inilidível, automaticamente extraída da mera
declaração de insolvência — e abrangendo por isso também os casos de insolvência fortuita —, de que
insolvente, pelo simples facto de o ser, não dispõe da idoneidade ou
independência necessárias para o exercício dos cargos eletivos compreendidos
nos órgãos do poder local e/ou se encontra numa situação de vulnerabilidade e
dependência económica incompatíveis com
a expetativa de independência que a comunidade deposita nos titulares dos
órgãos da administração local.
Joana Fernandes Costa