ACÓRDÃO Nº 246/2017
Processo n.º 880/2016
1.ª Secção
Relator: Cons. José António Teles Pereira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos autos de inquérito n.º 341/12.4GTABF, o Ministério Público deduziu acusação contra A. (o ora Recorrente), para julgamento por tribunal singular em processo abreviado [artigo 391.º-A do Código de Processo Penal (CPP)], imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (CP).
Da acusação deduzida em tal quadro processual constaram os seguintes factos:
“[…]
1.º
No dia 03/05/2012, pelas 02h25m, [o arguido] conduziu o veículo ligeiro de passageiros [identificação do veículo].
2.º
Com a conduta descrita, […] quis conduzir o veículo acima referido, bem sabendo que havia ingerido bebidas alcoólicas e que, por isso, era portador de uma taxa de álcool no sangue superior ao limite que lhe é vedado por lei, o que efetivamente conseguiu.
3.º
O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
[…]” (transcrição de fls. 20; sublinhado acrescentado).
1.1. Distribuído o processo ao 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira, foi proferido despacho de rejeição da acusação, com fundamento no disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do CPP, por o senhor juiz ter entendido que “[…] os factos imputados ao arguido nestes autos não consubstanciam a prática do crime indiciado, porquanto lhe falta um dos elementos objetivos, a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20g/l com que o condutor conduzia”.
1.1.1. Devolvidos os autos aos serviços do Ministério Público de Albufeira, considerou o senhor magistrado titular do processo que este havia “[retornado] à fase de inquérito” (fls. 53), ali correndo os seus termos com o n.º 132/13.5TAABF. Nessa sequência, A. requereu ao Ministério Público a declaração de nulidade do processo, porquanto – em seu entender – o despacho de rejeição da acusação referido em 1.1. supra impediria a instauração de novo processo contra si pelos mesmos factos, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, previsto no n.º 5 do artigo 29.º da CRP. A invocada nulidade foi apreciada e indeferida pelo senhor magistrado do Ministério Público titular do processo.
1.1.2. No âmbito deste inquérito, A., entretanto constituído arguido, não aceitou uma suspensão provisória do processo, reiterando a invocação de violação do ne bis in idem e declarando a vontade de prosseguimento dos autos, com a dedução de acusação, para poder arguir a nulidade do processo em fase posterior.
Foi então deduzida acusação contra o arguido, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do CP. Nesta peça foi referida a condução do veículo pelo arguido nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação em processo abreviado referida no item 1., supra, acrescentando-se que o mesmo, “[…] ao ser submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, pelo método de ar expirado, acusou uma taxa de alcoolemia no sangue de 1,81 g/l” (fls. 234/235).
1.1.3. A culminar instrução – o arguido requereu a abertura desta, pugnando pela verificação de uma violação do princípio ne bis in idem – foi proferido despacho de pronúncia, pelos mesmos factos e qualificação jurídica constantes da acusação.
1.1.4. No julgamento o arguido apresentou contestação – de novo invocando a verificação da nulidade referente ao ne bis in idem –, sendo proferida sentença a julgar improcedente a referida nulidade e o arguido condenado pela prática do crime de que vinha acusado, em pena de multa e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor por quatro meses.
1.2. O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora. Das respetivas conclusões consta, designadamente, o seguinte:
“[…]
II – O recorrente não se conforma com o procedimento criminal dos presentes autos e, consequentemente, com a decisão proferida.
[…]
XXXII – O despacho proferido ao abrigo do art. 311, aqui em causa, nos seus precisos termos, embora não seja uma sentença, tem força de caso decidido, como já referido foi decidido que o arguido conduzia no dia, hora e local com álcool no sangue, sabendo que o não podia fazer, porém, por não ser concretizado o quantum do teor de álcool de que era portador (falta do elemento objetivo do tipo do crime em causa), não podia o mesmo vir a ser condenado, e por isso se decidiu em conformidade com o previsto no artigo 311.º, n.ºs 2 al. a), e 3, al. d), do CPP.
[…]
XXXVI – O arguido poderia ter utilizado os presentes autos para o efeito, porém, e como se disse antes, tinha o arguido aceite a suspensão provisória do processo com as injunções propostas. O arguido efetivamente tem a profunda convicção de que, a ser novamente julgado, tendo em conta o histórico dos presentes autos, é perseguido penalmente de forma múltipla, tendo uma garantia fundamental que decorre da constituição que deveria impedir esta, repete-se, múltipla perseguição penal sucessiva por um mesmo facto.
XXXVII – Terminando como se começou, as normas dos artigo 311.º, n.ºs 1, 2, al. a), e 3, al. d), 391.º-C, n.º 1, e 283.º, todas do CPP, conjugadas entre si e interpretadas e aplicadas no sentido de que, tendo sido deduzida acusação em processo abreviado contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do CP, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada, nos termos e ao abrigo da citada norma do artigo 311.º, com o fundamento de que os factos constantes da mesma não constituem crime, vindo a ser deduzida nova acusação, desta feita já no âmbito de processo comum, pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, de igual modo previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do CP, são materialmente inconstitucionais, porque violadoras, designadamente, do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (princípio ne bis in idem) e, bem assim, do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, segunda parte, da CRP, inconstitucionalidade esta que aqui se deixa expressamente arguida, para todos os efeitos legais.
[…]”.
1.2.1. Decidiu o Tribunal da Relação de Évora negar provimento ao recurso. Quanto à invocada violação do princípio ne bis in idem, consta o seguinte do Acórdão:
“[…]
A imputação que era feita ao arguido na acusação deduzida no Processo n.º 341/12.4GTABF – que foi rejeitada porque os factos nela vertidos não constituíam crime – não se confunde nem se identifica com a imputação que consta da acusação deduzida no Processo n.º 132/13.5TAABF (aquela foi rejeitada porque dela não constava que o arguido conduzia com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l – não constituindo a sua conduta, por isso, qualquer ilícito criminal – quando na deduzida nestes autos consta que o arguido conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,81 g/l, conduta que integra, objetivamente, o crime de condução em estado de embriaguez);
– Aquela decisão tornou-se definitiva – é verdade – no sentido em que aqueles factos, tal como foram imputados ao arguido, não constituíam crime, o que é verdade, mas o facto imputado ao arguido nestes autos – a condução com uma taxa de álcool de 1,81 g/l – não constava daquela acusação e, por isso, não se pode dizer que a conduta ilícita imputada ao arguido nestes autos foi já conhecida/apreciada na decisão que rejeitou a acusação, precisamente por dela não constar tal factualidade, em suma, por aquela outra conduta, tal como constava da acusação, não constituir crime.
[…]
Consequentemente, em face do que se deixa dito, entende-se que não faz qualquer sentido dizer-se que o arguido foi julgado duas vezes pelo ‘mesmo crime’/pelo mesmo facto, enquanto conduta legalmente descrita como violadora de um bem jurídico tutelado pela lei penal, e, portanto, que a decisão recorrida – ao conhecer da acusação (onde se descreveram os factos integrantes do crime pelo qual foi condenado) – violou o caso julgado ou o princípio ne bis in idem, quando é certo que os factos descritos na acusação anteriormente deduzida (que não integram qualquer ilícito) não se identificam com aqueles que são objeto destes autos. E sendo assim, como é – ou seja, não se verificando a exceção do caso julgado ou a violação do princípio ne bis in idem – carece de fundamento a invocada nulidade da sentença recorrida, por conhecer de questão de que não podia conhecer (art. 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP); e, consequentemente, não havendo identidade entre o facto típico ilícito pelo qual o arguido foi julgado no âmbito destes autos e os factos pelos quais foi anteriormente acusado – pelas razões que se deixaram expostas – carece de fundamento a invocada violação do disposto nos artigos 29.º, n.º 5, e 32.º, n.ºs 1 e 2, 2.ª parte, da CRP.
[…]”.
1.3. Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso desta última decisão para o Tribunal Constitucional, o qual deu origem aos presentes autos, nos termos seguintes (no que ora importa considerar):
“[…]
4. Pugnando o recorrente desde a fase instrutória no sentido de que as normas dos artigos 311.º, 391.º [trata-se de lapso, referindo-se ao artigo 391.º-A] e 283.º, todos do CPP, conjugadas entre si e interpretadas e aplicadas no sentido de que, tendo sido deduzida acusação em processo abreviado contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 [do Código Penal], e tendo sobre ela recaído decisão com expressa invocação do artigo 311.º, [n.º 3], alínea d), ou seja, com o fundamento de que os factos não constituem crime, vindo a ser deduzida nova acusação, já no âmbito de processo comum, imputando-lhe a prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do CP – sendo o arguido, neste segundo processo, julgado e condenado – são materialmente inconstitucionais, porque violadoras do disposto nos artigos 29.º, n.º 5, e 32.º, n.ºs 1 e 2, da CRP.
Assim,
5. Inconformado mais uma vez com esta decisão, o recorrente dela recorreu judicialmente, tendo o seu recurso subido para o Tribunal da Relação de Évora.
6. Desde logo e imediatamente com o fundamento precisamente na inconstitucionalidade material das normas referidas em “4.”, por violação do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (princípio ne bis in idem) – cfr. as alegações de recurso e artigos XXXVII e XXXVIII das conclusões.
[…]
16. Não lhe sendo possível, se não por intermédio do presente recurso, reagir contra a decisão da aplicação das supra citadas normas, com a qual continua a não poder conformar-se – cfr. artigo 280.º da Constituição,
17. e de cuja inconstitucionalidade continua inabalavelmente persuadido, quer não só do ponto de vista material, mas também da que resulta da ratio do artigo 29.º da C.R.
Nestes termos,
18. e porque, como referido, o recorrente continua inconformado com a decisão proferida por este Tribunal da Relação de que decidiu julgar conformes com o texto constitucional a interpretação e aplicação das normas dos artigos 311.º, alínea d), 391.º e 283.º do CPP e 292.º do CPP.
[…]
De facto,
21. e de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, desde já o recorrente esclarece que, com o presente recurso, pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade material das referidas normas do Código de Processo Penal, conjugadas entre si e aplicadas no sentido já acima mencionado, por violação, designadamente do artigo 29.º da CRP (princípio ne bis in idem), tendo já deixado arguida a inconstitucionalidade das mesmas ao longo de todo o processo, mas, designadamente, na fundamentação e conclusões do recurso por si interposto da decisão do Tribunal de 1.ª Instância para o Tribunal da Relação de Évora,
22. o que faz nos termos e ao abrigo do disposto nas alíneas b), do n.º 1 do artigo 70.º, 72.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 75.º, n.º 1, 75.º-A, n.ºs 1 e 2, todos da LTC.
[…]”.
1.4. No Tribunal Constitucional, em sede de motivação do recurso, concluiu o Recorrente o seguinte:
“[…]
I. Com o presente recurso, o Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade material das normas dos artigos 311.º, 391.º e 283.º, todos do Código de Processo Penal, conjugadas entre si interpretadas e aplicadas no sentido de que, tendo sido deduzida acusação em processo abreviado (processo n.º 341/12/GTABF) contra um arguido imputando-lhe a pratica de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, e tendo sobre ela recaído decisão com expressa invocação do artigo 311.º, [n.º 3], alínea d), ou seja, com o fundamento de que os factos não constituem crime, vindo a ser deduzida nova acusação (meses mais tarde e com novo processo 132/13.5TAABF), já no âmbito do processo comum, imputando lhe a prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, – sendo o arguido, neste segundo processo, julgado e condenado, porque violadoras do disposto nos artigos 29.º, n.º 5, e 32.º, n.ºs 1 e 2, segunda parte, da CRP, por violação, designadamente, do artigo 29.º da CRP (princípio ne bis in idem), tendo já deixado arguida a inconstitucionalidade das mesmas ao longo de todo o processo, designadamente, na fundamentação e conclusões do recurso por si interposto da decisão do tribunal de 1.ª instância para o Tribunal da Relação de Évora.
[…]
III. Efetivamente, as normas dos artigos 311.º, n.º 1, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), 391.º-A, n.º 1, e 283.º, todas do CPP, conjugadas entre si e interpretadas e aplicadas no sentido de que, tendo sido deduzida acusação em processo abreviado contra o ora arguido (processo n.º 341/12.4GTABF), imputando-lhe a prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do CP e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada, nos termos e ao abrigo das citadas normas do artigo 311.º, com o fundamento de que os factos constantes da mesma não constituem crime, tornando-se definitiva e depois vindo a ser deduzida nova acusação, desta feita já no âmbito de processo comum, pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, de igual modo previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do CP são materialmente inconstitucionais, porque violadoras, designadamente, do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (princípio ne bis in idem) e, bem assim, do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, segunda parte, da CRP – inconstitucionalidade esta que aqui se pugna.
IV. O recorrente foi acusado dos mesmos factos primeiramente no âmbito do Processo 341/12/GTABF – inquérito que correu termos no Tribunal Judicial de Albufeira, tendo sido deduzida acusação nos termos conjugados dos artigos 391.º A/B e 283.º do CPP (ao abrigo do regime do processo abreviado), tendo sido notificado em 09.05.2012.
V. Em 2 de julho de 2012, foi proferido despacho/decisão que nos termos do previsto no artigo 311.º, n.º 2, do CPP e n.º 3, al. d), considerou que os factos imputados ao arguido nestes autos não consubstanciam a pratica do crime indiciado, porquanto lhe faltava um dos elementos objetivos, a taxa de álcool no sangue, igual ou superior a 1,20 g/l, com que o condutor conduzia tendo por efeito da mesma decisão sido extintas as aplicadas medidas de coação – termo de identidade e residência.
VI. Da notificação da decisão/despacho das questões do art. 311.º (391.º-C do CPP) naquele processo resultou que o tribunal considerou que: a acusação tinha a identificação do arguido; (al. a) do artigo 311.º CPP); tinha a narração dos factos (al. b) do artigo 311.º CPP).
VII. O juiz a quem é submetida uma acusação em processo abreviado para efeitos de julgamento, à semelhança do que acontece no processo comum, não pode sindicar as provas indicadas na acusação e ajuizar sobre a sua não suficiência, evidência ou simplicidade (artigos 311.º e 391.º-C do CPP).
Ao juiz não cabe instruir o Ministério Público (ou o assistente) sob o modo de formular a acusação seja quanto à descrição dos factos seja quanto à qualificação destes. Cabe-lhe apenas proferir o despacho previsto no artigo 311.º do CPP e aí, se o entender, rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
Foi o que fez e dessa forma o tribunal deu termo ao processo por despacho.
VIII. O Juiz, em consequência, decidiu declarar extinta a medida de coação aplicada ao arguido nos termos do artigo 214.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
IX. O Ministério Público, apesar de estar perante o regime do processo abreviado, e depois do tribunal ter dado termo ao processo, considerando ainda o constante no artigo 391.º-G, não interpôs recurso, nada fez quando podia e devia ter agido, deixando transitar em julgado a decisão.
X. Para o arguido cidadão, notificado que foi da decisão (artigo 311.º, n.º 3, al. d), do CPP) de que os factos não constituíram crime e que tal decisão transitou em julgado terminou o poder punitivo do Estado.
XI. No caso concreto, a decisão de rejeição da acusação ocorreu ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 3, alínea d), do CPP: “se os factos não constituírem crime”. Esta alínea prevê apenas as hipóteses em que, não se verificando incongruência entre a factualidade descrita e o tipo penal indicado, aqueles factos não constituam qualquer crime. Tal conclusão não resulta da mera insuficiência da articulação dos factos típicos reconhecível pelo simples confronto com o tipo penal indicado na acusação.
XI. Nestes casos, a acusação é materialmente infundada por pretender sujeitar o arguido a julgamento por facto que não são puníveis como crime. Ao Ministério Público restaria, pois, impugnar o despacho judicial de rejeição da acusação (atendo que junto aos autos existia o talão de alcoolímetro), e ao não fazer formar-se-á caso julgado material sobre a questão, extinguindo-se o procedimento criminal com o consequente arquivamento dos autos.
XII. Atento o “caminho” processual percorrido, o arguido não poderia, meses mais tarde vir de novo a ser acusado em novo processo (o atual) pelos mesmos factos com a ligeira diferença de agora estar quantificado o valor de taxa de álcool que alegadamente era portador.
Pergunta-se onde é que agora os factos são diferentes?
XIII. Não se concorda com a afirmação constante da douta decisão quando se diz que os factos descritos na primeira acusação não têm qualquer relevância penal, e de que tal factualidade não poderia decorrer a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de coação. Não foi o arguido submetido naquele processo a medida de coação que depois foi por decisão judicial declarada extinta?
XIV. O Estado não pode, neste concreto submeter um processo a um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva. Pode entender-se que o facto relevante é apenas ou só se reduz à taxa de valor igual ou superior a 1,20 g/l, ou seja, a sua quantificação?
Ora, tal facto só tem relevância criminal se a mesma for verificada em alguém, quando num determinado local, hora, e estando num ato de condução o faz depois de ingerir bebidas alcoólicas.
Isso implica que existe a necessidade de que a perseguição penal com tudo o que ela significa – a intervenção do aparato estadual com vista á obtenção de uma condenação – só se pode pôr em marcha uma vez, o poder do Estado é tão forte que um cidadão não pode estar submetido a essa ameaça dentro de um Estado de Direito. O caso julgado é assim uma garantia fundamental que deve impedir a múltipla perseguição penal, como é o caso dos presentes autos.
O crime e a pessoa do acusado são os mesmos.
XV. A expressão “mesmo crime” não deve ser interpretado no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o n.º 5 do artigo 29.º da CRP proíbe, é no fundo, que um mesmo concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal.
XVI. (…) o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final que diretamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efetivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados.
E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma ação. – Condução em estado de embriaguez – embora acrescido de novas circunstâncias objeto do processo é formado por todos os atos perpetrados pelo arguido até decisão final que de forma direta se relacionam com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido.
Os factos que não foram apreciados e que deviam sê-lo por fazerem parte integrante do mesmo ‘recorte de vida’ não podem ser posteriormente apreciados, uma vez que essa apreciação constituiria flagrante violação do principio ne bis in idem.
XVII. O Tribunal no âmbito do processo 341/12.4GTABF no saneamento do processo ao contrário apreciou a acusação e decidiu. O Saneamento do processo está inserido na estrutura do CPP no Livro VII – Do Julgamento Título I – dos atos preliminares.
XVIII. A aceitação da presente acusação (processo 132/13.5TAABF) contende com princípios estruturantes do processo penal entende o recorrente, assim como com as garantias e direitos fundamentais do arguido.
XIX. O processo criminal assume, por imposição constitucional, uma estrutura acusatória que, no essencial, se revela no facto do julgador se circunscrever dentro dos limites estabelecidos por uma acusação deduzida por um órgão diferenciado. Esta estrutura foi salvaguardada e aprofundada com a Lei n.º 59/98, de 25/8, conforme decorre de uma das declarações relativa à sua votação final, onde, a propósito das alterações então introduzidas ao artigo 311.º do CPP, se afirmou: «Ficará, a partir de agora bem expresso que o juiz de julgamento não pode apreciar a prova indiciária do inquérito (...) e que a sua valorização apenas compete ao Ministério Público».
XX. O caso julgado, em qualquer das suas manifestações – formal ou material – tutela, em primeira linha, interesses gerais da sociedade – a segurança jurídica e a definitividade das decisões judiciais – e, só num segundo plano, os interesses individuais.
XXI. O principio ne bis in idem, previsto como direito fundamental no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, apenas CRP), surge como filho adotivo da Razão iluminista, em resposta às exigências liberais de racionalidade e contenção do poder punitivo público, assumindo, a partir do séc. XIX, a sua vocação de garantia do cidadão contra o arbítrio e os excessos do Estado.
XXII. O principio ne bis in idem, enquanto direito fundamental, não depende da existência de um processo judicial e vincula todas as entidades públicas de igual forma. Outra das razões fundamentais para uma clara distinção entre ne bis in idem e caso julgado reside na própria diferença de natureza e de fundamento entre ambos os institutos. O caso julgado é um efeito da sentença definitiva e visa garantir que os termos desta decisão são respeitados e mantidos no futuro. O ne bis in idem corresponde a um efeito do julgamento penal (ainda que este termine sem uma sentença de condenação ou absolvição) ou da pena (no plano material) e visa garantir que o indivíduo não é novamente sujeito a outro julgamento penal ou pena pelo mesmo crime.
XXIII. Como aflorado na douta sentença a acusação fixa o objeto do processo. É ela que delimita o conjunto dos factos que consubstanciam um crime, estabelecendo, assim os limites da investigação judicial. Nisto se traduz o princípio da vinculação temática como refere a douta sentença.
XXIV. Este princípio da estrutura acusatória do processo penal está consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
XXV. Nesta sequência, dado que os factos constantes da acusação não constituem crime e o tribunal a quo não podia suprir as deficiências da acusação, nomeadamente chamando à colação o disposto nos artigos 359.º e 358.º do CPP, que pressupõem uma alteração substancial ou não substancial dos factos que constam da acusação para crime mais grave ou menos grave, e não a inexistência de crime (em relação aos factos da acusação) em que neste caso, o tribunal não pode suprir a omissão da acusação, uma vez que se o fizesse assumiria simultaneamente as funções de julgamento e as de acusador, o que violaria o princípio do acusatório vigente no nosso processo penal e os direitos de defesa do arguido.
XXVI. Ao contrário da posição da douta sentença não estamos perante uma situação que pode ser enquadrada como é sustentado, porquanto a forma do processo penal utilizada no âmbito do processo primeiro (Processo abreviado) obriga a considerar que pelo facto do Ministério Público nada ter feito, ou ter reagido em momento próprio, vindo clarificar que da acusação resulta a junção do talão com a de taxa de álcool, o caso julgado aqui em causa não fez mero caso julgado formal.
O Ministério Público, tendo em conta a natureza processual do processo abreviado, tinha a obrigação e o dever de ter agido em tempo e sem que tivesse permitido o trânsito e que o referido despacho se tornasse definitivo.
XXVII. Estamos perante dois processos com o mesmo objeto. Não podemos comungar da visão redutora como o faz o tribunal ao considerar que os factos constantes do primeiro processo não tiveram qualquer relevância penal.
XXVIII. No processo n.º 341/12.4GTABF desde a sua génese até sua cristalização podemos dizer que a conduta do arguido foi apreciada, nos termos que acima descrevemos, e por isso não deveria ter sido sujeito a julgamento e muito menos condenado num processo ferido de nulidade e inconstitucionalidade nos termos supra exarados.
XXIX. Mas acrescentemos, a proibição de repetição de processos/julgamentos sobre os mesmos factos relativamente ao mesmo agente, para além de razões de elementares razões de economia processual, resulta, desde logo, do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29.º, n.º 5, CRP, ao estabelecer que ‘ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime’ Lei fundamental cujos preceitos, neste âmbito ‘são diretamente aplicáveis e vinculam entidades públicas e privadas’ conforme prevê o artigo 18.º da referida CRP.
XXX. Referindo-se a Constituição a julgamento apenas, poderia considerar-se que o caso julgado se coloca apenas relativamente a decisões proferidas nesta fase e não também relativamente às proferidas em fases processuais anteriores – aqui no caso em sede de saneamento do processo (artigo 311.º). Porém, impõe-se a sua aplicação não só a sentença, como a doutras decisões finais, como a dos presentes autos referida ao processo anterior e acima descrita.
XXXI. Vigorando o princípio da instrumentalidade do processo em relação ao direito substantivo e o princípio da adequação da lei adjetiva ao direito substantivo, da proibição do duplo julgamento decorre a impossibilidade do duplo processo com o mesmo objeto. Está em causa a segurança jurídica. Assim o artigo 29.º, n.º 5, da CRP, ao proibir o mais – duplo julgamento – proíbe o menos, ou seja a existência de um duplo processo, uma dupla acusação ou pronúncia do mesmo arguido pelos mesmos factos.
XXXII. A proibição de ne bis in idem tem uma intenção de garantia do arguido exatamente como proibição do duplo processo. A proibição do duplo julgamento envolve a proibição do ‘duplo processo’, sendo o duplo julgamento constituído não só pela sentença como pelo despacho de arquivamento que se pronuncie sobre o objeto do processo – rebus sic standibus.
XXXIII. Nos termos dos artigos 673.º e 498.º do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 4.º do CPP, a sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga.
Com efeito a ‘repetição da causa’ pressupõe, para além da identidade de sujeitos da relação jurídica, a identidade dos fundamentos em que assenta a identidade do efeito pretendido ou da pretensão formulada com base naquele fundamento – artigo 497.º do CPC, que se refere a identidade de partes e de pedido.
XXXIV. A norma do artigo 29.º da CRP, cujo título é – Aplicação da Lei Criminal – não é uma mera norma ‘processual’, ou ‘adjetiva’, cuja valoração se possa cingir a espírito ‘instrumental’, esvaziado de ratio fundamental que a justifica.
XXXV. Essa ratio é a do reconhecimento dos graves riscos para os cidadãos por virtude de situação de grande desigualdade e fragilidade face à desmesura do poder punitivo do Estado, e portanto da necessidade de impor limites estritos ao exercício desse poder.
XXXVI. Neste quadro, parece nos muito dificilmente aceitável que um cidadão (neste caso o recorrente) acusado de factos num processo, que foram declarados por um juiz não constituírem crime, por esse mesmo cidadão, dizia-se, possa ser julgado pelos mesmos factos noutro processo, e agora punido por tais factos constituírem crime.
XXXVII. Com esta observação, sublinha-se a circunstância de a primeira decisão ter sido tomada com expressa invocação do artigo 311.º, n.º 3, alínea d), do CPP, norma que permite pressupor que foi o próprio mérito da questão (os factos integram ou não um ilícito penal?) que foi objeto de julgamento.
XXXVIII. Finalmente a ratio do preceito constitucional a que se alude acima, preceito que se refere especificamente à – Aplicação da Lei Criminal – a nosso ver muito dificilmente ajustável a uma aplicação subsidiária do processo civil, que abra caminho a um enfraquecimento do princípio ne bis in idem.
XXXIX. Um dos traços distintivos entre a proteção conferida ao cidadão pelo caso julgado penal e o direito fundamental ao ne bis in idem reside, porém, na dependência do trânsito em julgado. A violação do caso julgado apenas se torna operativa uma vez ocorrido o trânsito em julgado de uma decisão proferida validamente por um tribunal. Diferentemente, o ne bis in idem protege o cidadão contra o duplo fardo de sucessivos ou concomitantes julgamentos que incidam sobre o mesmo crime, independentemente de ter havido ainda qualquer sentença (ou acórdão) definitiva, transitada em julgado ou não.
XL. Em contrapartida, em ambos releva a possível identidade fática ou de objeto, interessando, em qualquer caso, que se trate do julgamento pelo mesmo crime. Ora entre os processos n.º 341/12/GTABF e 132/13.5TAABF, e, subsequentemente, no que ao caso julgado interessa, ocorreu, de algum modo, caso julgado no âmbito do processo 341/12/GTABF.
XLI. Terminando como se começou, as normas dos artigos 311.º, n.º 1, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), 391.º-A, n.º 1, e 283.º, todas do CPP, conjugadas entre si e interpretadas e aplicadas no sentido de que, tendo sido deduzida acusação em processo abreviado contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do CP e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada, nos termos e ao abrigo das citadas normas do artigo 311.º, com o fundamento de que os factos constantes da mesma não constituem crime, vindo a ser deduzida nova acusação, desta feita já no âmbito de processo comum, pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, de igual modo previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do CP são materialmente inconstitucionais, porque violadoras, designadamente, do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (princípio ne bis in idem) e, bem assim, do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, segunda parte, da CRP – inconstitucionalidade esta que aqui se deixa expressamente arguida, para todos os efeitos legais.
[…]”.
1.4.1. O Ministério Público apresentou contra-alegações, assim concluindo:
“[…]
1.ª – O presente recurso, interposto com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tem por objeto a seguinte questão de constitucionalidade: «as normas dos artigos 311.º, 391.º-A e 283.º, todos do CPP, conjugadas entre si e interpretadas e aplicadas no sentido de que, tendo sido deduzida acusação em processo abreviado contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal e tendo sobre ela recaído decisão com expressa invocação do artigo 311.º, [n.º 3], alínea d), ou seja, com o fundamento de que os factos não constituem crime, vindo a ser deduzida nova acusação, já no âmbito de processo comum, imputando-lhe a prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal – sendo o arguido, neste segundo processo, julgado e condenado – são materialmente inconstitucionais, porque violadoras do disposto nos artigos 29.º, n.º 5, e 32.º, n.ºs 1 e 2, da CRP».
2.ª – O Recorrente não cuidou de todo em fundamentar a violação, cumulativamente arguida, do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição – nem se vê como poderá ela ser sustentada, tendo-se, no que à do n.º 1 do artigo 32.º possa respeitar, que a mesma se consumirá no âmbito da invocação do n.º 5 do artigo 29.º, também da Lei Fundamental.
3.ª – Passar-se-á, pois, unicamente a examinar a questão à luz do artigo 29.º, n.º 5, conexionando-o com o n.º 5 do artigo 32.º, ambos da Constituição (princípio ne bis in idem e estrutura acusatória do processo penal).
4.ª – O princípio ne bis in idem, embrionariamente radicado no direito romano como pressuposto processual negativo (bis de eadem re agere non licet), garantindo a autoridade e a força do caso julgado e a segurança das partes, atravessa a Idade Média, amplifica-se no século XVI com a teorização do Direito e do Estado pela neoescolástica e consolida-se no Iluminismo, obtendo consagração formal na Constituição Francesa de 1791. Atualmente presente, com modulações diversas, nas diferentes ordens jurídicas, bem como em instrumentos comunitários e internacionais.
5.ª – A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, designadamente, no quadro dos artigos 54.º a 58.º do CAAS, tem dimensionado o princípio ne bis idem também como princípio fundamental do direito comunitário, enquanto «direito humano fundamental à proteção contra o ius puniendi do Estado».
6.ª – Garantia de observância daquele princípio, nos termos do artigo 54.º do CAAS, reportada a anterior julgamento definitivo: «aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma ação judicial intentada por outra Parte contratante, desde que (…)».
7.ª – O princípio ne bis in idem, rececionado no n.º 5 do artigo 9.º da Constituição, «comporta duas dimensões: (a) como direito subjetivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objetivo, (dimensão objetiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto».
8.ª – Interessa, para o objeto do presente recurso, considerar a vertente processual do princípio em causa, nele vindo suposta a existência de uma decisão judicial de mérito definitiva: «do ponto de vista processual, o non bis in idem determina a impossibilidade de reiterar, contra o mesmo sujeito, um novo julgamento (ou processo) por uma infração penal sobre a qual se tenha firmado decisão de absolvição ou condenação. O ne bis in idem processual – a proibição de sujeição a julgamento pelo ‘mesmo crime’ em processos sucessivos – encontra o seu fundamento próximo na tutela da segurança ou da paz jurídica, inerente ao princípio do Estado de Direito que não permite, mesmo com eventual sacrifício da justiça material, que o indivíduo, já condenado ou absolvido, possa viver permanentemente sob a espada de Dâmocles de uma nova perseguição penal e de uma eventual imposição de pena» (Ac. 303/05).
9.ª – A impossibilidade de instauração, contra a mesma pessoa, de novo processo que constitua a repetição de um processo anterior – proibição de renovação do mesmo objeto processual – vem, muitas vezes, tratada no quadro do instituto do caso julgado.
10.ª – Caso julgado (bem como a litispendência), cuja regulação foi inteiramente suprimida no Código de Processo Penal atual – diferentemente do Código de Processo Penal de 1929 (arts. 146.º a 154.º).
11.ª – O princípio da intangibilidade do caso julgado, embora não formalmente proclamado na Constituição, firmar-se-á como «subprincípio inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio garantidor de certeza jurídica».
12.ª – No âmbito do presente recurso, interessa acentuar que por objeto do processo deve compreender-se não apenas aquilo que foi conhecido no primeiro processo, mas também tudo aquilo que podia ter sido conhecido.
13.ª – Em processo de estrutura acusatória (artigo 32.º, n.º 5, da Constituição), sendo a acusação condição e limite do julgamento (vinculação temática), em princípio o objeto do processo é o objeto da acusação, que delimita os poderes de cognição do tribunal – «Os factos descritos na acusação normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória, definem e fixam o objeto do processo, que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal» (Ac. 130/98).
14.ª – Examinada a jurisprudência constitucional na matéria, nuclearmente com referência ao Ac. 237/07, correlacionando-o com o Ac. 226/08 e outros anteriores, não se tem por validada a exigência constitucional, relativamente ao teor de posições doutrinárias mais radicais no desenvolvimento dos princípios do ne bis in idem e do acusatório, articulando-se estes com os da legalidade da ação penal e da verdade material (objetivo-mestre de um processo – artigos 53.º, n.º 1, 299.º, n.ºs 1 e 2, e 340.º, n.º 1 do CPP –, observadas todas as garantias de defesa do arguido).
15.ª – Nos Acórdãos 237/07 e 226/08, confrontou-se este Tribunal com a questão de constitucionalidade, designadamente à luz dos princípios ne bis in idem e do contraditório (artigos 29.º, n.º 5, e 32.º, n.º 5, da Constituição), do regime relativo à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, seja no disposto no n.º 1 do artigo 359.º do CPP, na redação anterior à Lei n.º 48/2007, 29 de agosto, seja nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, na ulterior e atual redação.
16.ª – Entendeu-se, no quadro de previsão do n.º 1 do artigo 359.º do CPP, na redação anterior à Lei n.º 48/2007, que «a sujeição a “novo julgamento”, recaindo quer sobre os “factos novos” detetados na audiência de julgamento, quer sobre o facto já constante da acusação, não violará o princípio ne bis in idem, desde logo porque não chegou a ser proferida decisão de mérito (absolutória e condenatória), nem, muito menos, decisão definitiva (no sentido de transitada em julgado), sendo pacífico o entendimento de que a repetição de julgamentos, na sequência da anulação de julgamento anterior, mesmo que este tenha terminado por decisão de mérito, não viola o referido princípio constitucional» (Ac. 237/07).
17.ª – Em síntese e com interesse para o presente recurso (cf. 7.5.1 a 7.5.3 do corpo da alegação), no quadro legal considerado, julgou-se não ocorrer violação do princípio ne bis in idem (e do contraditório), quando, recebida a acusação e já após a discussão da causa, nela se tendo apurado uma alteração substancial de factos não autonomizáveis em relação ao objeto do processo, o juiz decreta a extinção da instância, sem proferir decisão de mérito, facultando ao Ministério Público nova acusação sobre o objeto do precedente processo e a realização de ‘novo julgamento’.
18.ª – No caso dos autos, vem alegada violação do princípio ne bis in idem, com referência a precedente processo (processo abreviado, nos termos dos artigos 391.º-A e ss.), em que a acusação do Ministério Público fora liminarmente rejeitada, nos termos do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea d), do CPP (o Ministério Público, imputando embora ao arguido a prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, não incluíra na narração dos factos o grau de alcoolémia registado).
19.ª – Devendo admitir-se uma identidade de objeto, relativamente ao processo precedente, verifica-se, desde logo, que nenhuma decisão de mérito, muito menos decisão definitiva, foi naquele processo proferida.
20.ª – O despacho de rejeição liminar de acusação, pela sua própria natureza, qualquer que seja a alínea do n.º 3 do artigo 311.º do CPP em que se funde, não constitui decisão de mérito.
21.ª – Por outro lado, quanto à acusação no precedente processo deduzida, foi a mesma liminarmente rejeitada, de algum modo processualmente anulada por decisão judicial.
22.ª – Na hipótese de a manifesta insuficiência dos factos narrados na acusação para a imputação do crime ao arguido apenas vir a ser verificada na fase de julgamento, ela ainda poderia – e só poderia – ser sanada através de uma alteração substancial dos factos, no quadro do n.º 1 do artigo 359.º do CPP, na redação anterior à Lei 48/2007, sem merecer censura em termos de constitucionalidade, à luz do Ac. 237/07.
23.ª – Ainda na hipótese considerada na anterior conclusão, no quadro do mesmo artigo, mas agora na redação ulterior à Lei n.º 48/2007, a comunicação da alteração substancial dos factos, para os efeitos do n.º 2, mostrar-se-ia inviável, dado não se verificar no caso a condição estabelecida na sua última parte (se os novos factos «forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo»), com a consequente impunidade da conduta criminalmente censurada. O mesmo é dizer que, opostamente a um dos considerandos, constantes do Ac. 226/08, a acolher a constitucionalidade da nova solução legal, já não se poderia aqui afirmar «que o bem jurídico nuclear suscetível de justificar a incriminação encontra ainda o mínimo de proteção penal».
24.ª – Em suma, não se produziu no precedente processo nem decisão de mérito sobre o seu objeto, nem acusação processualmente validada: considera-se, deste modo, inexistir fundamento para a alegada violação do princípio ne bis in idem.
[…]”.
Relatado o iter do processo, importa apreciar e decidir o recurso.
2. Como ponto de partida, há que delimitar a questão de inconstitucionalidade.
O Recorrente identifica de forma clara a questão que suscita – que, aliás, é de fácil apreensão a partir da dinâmica processual –, mas não é totalmente preciso ao enunciá-la. Recorde-se aqui os termos em que o faz:
“[…]
…as normas dos artigos 311.º, n.º 1, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), 391.º-A, n.º 1, e 283.º, todas do CPP, conjugadas entre si e interpretadas e aplicadas no sentido de que, tendo sido deduzida acusação em processo abreviado contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do CP e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada, nos termos e ao abrigo das citadas normas do artigo 311.º, com o fundamento de que os factos constantes da mesma não constituem crime, vindo a ser deduzida nova acusação, desta feita já no âmbito de processo comum, pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, de igual modo previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do CP…
[…]”.
Sendo genericamente congruente com o processado, a enunciação transcrita não identifica um elemento essencial da decisão de rejeição da acusação que, no caso, releva e marca o sentido decisório, elemento este que não se confunde com outro ou outros que podem ser enquadrados na mesma alínea do n.º 3 do artigo 311.º do CPP. Tenha-se presente que o que se afirmou no despacho de rejeição (cfr. item 1.1. supra) foi que “[…] os factos imputados ao arguido nestes autos não consubstanci[avam] a prática do crime indiciado, porquanto lhes falta[va] um dos elementos objetivos, a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20g/l com que o condutor conduzia”.
Ou seja, independentemente da alínea do n.º 3 do preceito mencionada na decisão, o juízo de rejeição (que não cabe ao Tribunal Constitucional reapreciar) assentou na deficiente descrição de um elemento típico, omissão que não existia na segunda acusação. Esta diferença, não sendo ocultada pelo Recorrente nas alegações que apresentou, não é assumida e destacada com a devida autonomia na enunciação da norma, sendo certo que esta hipótese é substancialmente diferente de outras que, genericamente, se reconduzam à apreciação de que determinados factos “não constituem crime”. Como tal, o que se mostra decisivo – como no item 2.2. infra mais detalhadamente se expõe – é aquela descrição insuficiente, e não, simplesmente, que os factos “não constituem crime”, expressão retirada da norma formalmente enunciada, mas que, todavia, não fornece o retrato fiel do sentido da decisão. A enunciação da norma deve, pois, refletir aquele elemento fundamental.
Por outro lado, está implícita, na enunciação e nas alegações – devendo ser explicitada –, a sujeição do arguido a julgamento e a subsequente condenação, enquanto incidências que o Recorrente apresenta como constitucionalmente vedadas, à luz do ne bis in idem, em vista do resultado do anterior processo abreviado.
Finalmente, devemos desconsiderar as referências à forma dos processos (abreviado e comum) e ao concreto crime imputado (condução em estado de embriaguez), as quais, pese embora correspondam a efetivas incidências do caso, não modelam o recorte da norma, sendo, por essa razão, irrelevantes para o presente recurso de fiscalização concreta.
Como tal – e assim delimitamos a questão de inconstitucionalidade normativa moldada por uma determinada interpretação –, cumpre apreciar no presente recurso a construção extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.
2.1. Delimitada nestes termos a questão a apreciar, convoca-se o parâmetro previsto no n.º 5 do artigo 29.º da CRP, sendo certo que – como salienta o Ministério Público – é este o único a considerar perante as alegações apresentadas. Nesta peça, com efeito, o Recorrente invoca o disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da CRP sem, todavia, apresentar razões relativas a estes dois preceitos, que destaquem a situação do âmbito especificamente (já) garantido no artigo 29.º, n.º 5 da CRP, ao estabelecer, consagrando o princípio clássico ne bis in idem, que “[n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
2.1.1. O núcleo essencial da proteção conferida por este princípio – pelo princípio ne bis in idem – vai referido à apreciação do mérito da causa penal. Com efeito, como observa Américo Taipa de Carvalho [Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (org.), tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 676]:
“[…]
O n.º 5 deste artigo 29.º estabelece o princípio chamado ne bis in idem. Esta proibição de ‘duplo julgamento’ pela prática do mesmo crime constitui e continua a constituir uma garantia do cidadão frente a possíveis arbitrariedades do ‘jus puniendi’ estadual. Assim, a ratio e o alcance deste princípio é o da proibição de um duplo julgamento de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido e o da proibição de dupla punição pela prática do mesmo crime.
[…]”.
Ou, nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 467):
“[…]
O n.º 5 dá dignidade constitucional ao clássico princípio non bis in idem. Também ele comporta duas dimensões: (a) como direito subjetivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
[…]”.
Note-se que a jurisprudência deste Tribunal tem acentuado, a respeito do artigo 29.º, n.º 5 da CRP, a diferença entre a dimensão material e a dimensão processual do ne bis in idem. Assim, no Acórdão n.º 303/2005 (a propósito da punição em concurso efetivo pelos crimes de burla e de falsificação de documentos), referiu-se o seguinte, distinguindo a dimensão substantiva (a que aí estava em causa) e a dimensão processual do princípio:
“[…]
11. Nos termos do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa ‘[n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime’, dando-se, assim, dignidade constitucional expressa ao clássico princípio […] ne bis in idem […].
Numa primeira concretização, a doutrina penalística costuma assinalar que o princípio tem uma vertente substantiva e outra processual. Sempre de um modo geral, designadamente sem entrar na consideração da pluralidade de ramos do direito sancionatório, pode dizer-se que, do ponto de vista substantivo, o princípio proíbe a plural imposição de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infração; do ponto de vista processual, o [ne] bis in idem determina a impossibilidade de reiterar, contra o mesmo sujeito, um novo julgamento (ou processo) por uma infração penal sobre a qual se tenha firmado decisão de absolvição ou condenação.
O ne bis in idem processual – a proibição de sujeição a julgamento pelo ‘mesmo crime’ em processos sucessivos – encontra o seu fundamento próximo na tutela da segurança ou da paz jurídica, inerente ao princípio do Estado de Direito que não permite, mesmo com eventual sacrifício da justiça material, que o indivíduo, já condenado ou absolvido, possa viver permanentemente sob a espada de Dâmocles de uma nova perseguição penal e de uma eventual imposição de pena.
Outro há de ser o fundamento para a vertente estritamente material do princípio, porque aí, sendo a dupla penalização simultânea, não é a afronta à paz jurídica que está em causa. O fundamento da proibição da plúrima punição pelo ‘mesmo crime’ no âmbito do mesmo processo só pode encontrar-se em conjugação com os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas e das medidas de segurança, isto é, pela ideia de que, sendo as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua necessidade, e que a ‘dupla penalização’ materializa, só por si, a desnecessidade ou a desproporção (Sobre o acolhimento constitucional do princípio da necessidade das penas, pode ver-se a jurisprudência elencada no ponto 8.1 do […] acórdão n.º 494/2003).
Ora, aos diferentes fins de proteção correspondem diferentes pressupostos e consequências jurídicas, designadamente quanto ao que deve entender-se por ‘mesmo crime’ para cada uma das duas vertentes do princípio (Cf. Ramón Garcia Albero, Non Bis in Idem Material y Concurso de Leyes Penales, p. 24 e ss).
[…]” (sublinhado acrescentado).
E, no Acórdão n.º 237/2007 (ponto 2.3), após citar o Acórdão n.º 303/2005, referiu-se:
“[…]
[N]o Acórdão n.º 452/2002, entendeu-se que não violava o artigo 29.º, n.º 5, da CRP a interpretação normativa do artigo 390.º, alínea b), do CPP, que se traduzia em permitir ao juiz – em processo sumário, finda a produção de prova e antes de prolatada a sentença – a remessa dos autos para serem tramitados em processo comum, com fundamento na necessidade de realização de novas diligências instrutórias, incompatíveis com o prazo máximo previsto para o processo sumário, porquanto:
‘De facto, da interpretação normativa do artigo 390.º, alínea b), do Código de Processo Penal, que vem questionada pelo recorrente, não resulta qualquer situação de duplo julgamento, no sentido proibido pelo artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, conduzindo tal interpretação normativa, simplesmente, a que o único julgamento se faça seguindo a tramitação do processo comum, por não poder seguir-se a prevista para o processo sumário – na medida em que a produção de prova revelou a necessidade, para a descoberta da verdade, de realização de diligências probatórias insuscetíveis de serem efetuadas no prazo máximo permitido para aquela forma processual.
Em suma: não existindo, ainda, qualquer sentença (condenatória ou absolutória) a pronunciar-se sobre os factos que são imputados ao arguido, não pode ver-se na simples ordem de remessa dos autos para serem tramitados sob a forma de processo comum – por a prova produzida em audiência revelar a necessidade, para a descoberta da verdade, da realização de diligências probatórias adicionais insuscetíveis de serem levadas a cabo dentro do prazo máximo previsto para o processo sumário – uma situação de duplo julgamento, no sentido proibido pelo artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.’
De acordo com estes critérios, há que concluir que, no presente caso – em que ‘os novos factos apurados formam, juntamente com os constantes da acusação, uma unidade de sentido que não permite a sua autonomização’ –, a sujeição a ‘novo julgamento’, recaindo quer sobre os ‘factos novos’ detetados na audiência de julgamento, quer sobre o facto já constante da acusação, não violará o princípio ne bis in idem, desde logo porque não chegou a ser proferida decisão de mérito (absolutória e condenatória), nem, muito menos, decisão definitiva (no sentido de transitada em julgado), sendo pacífico o entendimento de que a repetição de julgamentos, na sequência da anulação de julgamento anterior, mesmo que este tenha terminado por decisão de mérito, não viola o referido princípio constitucional.
E a não prolação de decisão de mérito resultou do entendimento de que, com a comunicação da deteção pelo tribunal de factos novos relevantes para a prossecução da justiça material – atuação judicial essa legitimada pela previsão do artigo 339.º, n.º 4, do CPP: ‘sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as situações jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º’ –, se operou uma substituição do objeto do processo (por adição ou sobreposição dos novos factos aos factos constantes da acusação) e de que, face a este objeto, surgiu um impedimento à prolação de decisão de mérito, assimilável a uma exceção dilatória: não ter sido ainda exercitado o direito de defesa do arguido nem pretender este exercê-lo no âmbito do julgamento em curso.
Contrariamente ao que o recorrente sugere, e apesar da formulação usada pelo tribunal de 1.ª instância, é óbvio que este não chegou a proferir nenhuma decisão definitiva relativamente aos ‘factos novos’. No contexto em que foi proferida, a referência aos ‘factos julgados provados’ representa um mero juízo provisório e condicional (como, em situação similar, foi sublinhado no Acórdão n.º 387/2005, n.º 14.2), como não poderia deixar de ser, dado que a comunicação desses factos visa justamente propiciar ao arguido a possibilidade de oferecer prova destinada a infirmá-los, estando necessariamente aberta a possibilidade de, caso o arguido consiga suscitar dúvida fundada sobre a existência desses factos, os mesmos acabarem por ser julgados não provados.
Considera-se, assim, não ter ocorrido violação do princípio ne bis in idem.
[…]” (sublinhado acrescentado).
Foi assim que não se julgou inconstitucional (neste Acórdão n.º 237/2007) “[…] a norma, extraída dos artigos […] 1.º, n.º 1, alínea f), 4.º, 359.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea c), primeira parte, do Código de Processo Penal, segundo a qual, comunicada ao arguido alteração substancial dos factos descritos na acusação, resultante da prova produzida em audiência – em situação em que ‘os novos factos apurados formam, juntamente com os constantes da acusação, uma unidade de sentido que não permite a sua autonomização’ –, e opondo‑se o arguido à continuação do julgamento pelos novos factos, o tribunal pode proferir decisão de absolvição da instância quanto aos factos constantes da acusação, determinando a comunicação ao Ministério Público para que este proceda pela totalidade dos factos”.
2.1.2. Tem, pois, aceitação generalizada a ideia de que a sujeição ao próprio processo penal – independentemente da decisão que possa vir a afirmar-se sobre a substância da pretensão punitiva – acarreta, para o arguido, consequências que não devem, por princípio, perpetuar-se nem repetir-se. Nesta mesma ideia assenta a vertente processual do princípio (rectius, do princípio na sua dimensão processual), que atrás se referiu e a jurisprudência constitucional acolheu. Ou seja, nas palavras de Ramón García Albero («Non Bis In Idem» Material y Concurso de Leyes Penales, Barcelona, 1995, p. 24):
“[…]
[O] non bis in idem tem uma vertente substantiva e outra processual. Do ponto de vista material, o princípio veta a imposição plural de consequências jurídicas relativamente a uma mesma infração. Na perspetiva processual, o non bis in idem determina a impossibilidade de reiterar um novo processo e a sujeição a julgamento quanto ao facto sobre o qual incidiu sentença firme ou arquivamento definitivo. […] No caso do non bis in idem material, a hipótese [da norma] reconduz-se à identidade da infração e a sua consequência [evitar a] sanção punitiva. O non bis in idem processual tem, pelo contrário, como hipótese não o «crimen», mas sim o «factum», e como consequência evitar, cabalmente, o próprio processo.
[…]” (sublinhado acrescentado).
Salienta, ainda, Henrique Salinas (“Do caso julgado à definitividade da sentença penal”, disponível em http://www.fd.lisboa.ucp.pt, p. 15):
“[…]
No que respeita especificamente a esta vertente processual do princípio, é-lhe atribuída uma dupla dimensão. Em primeiro lugar, como direito subjetivo fundamental, garante «ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo)». Por outro lado, «como princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
Pode até afirmar-se que o princípio adquiriu uma relevância própria, o que teve por efeito, num desenvolvimento destas conceções, a autonomização do ne bis in idem perante o caso julgado.
[…]”.
Devendo o princípio ne bis in idem ser entendido na sua dupla vertente – substantiva e processual –, importa olhar novamente para o problema jurídico que o presente recurso nos coloca.
2.2. Impõe-se, assim, caracterizar a questão jurídica a apreciar, que é – de algum modo – o reflexo da delimitação da questão normativa anteriormente levada a cabo (item 2., supra).
Passa tal delimitação por deixar claro que o Tribunal não pode aceitar a argumentação do Recorrente no sentido, forçadamente simplista, de que o despacho de rejeição da acusação se pronunciou quanto ao mérito da pretensão penal. Para tanto, o Recorrente invoca a norma citada na decisão – a alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, onde se prevê que a acusação se considera manifestamente infundada “se os factos não constituírem crime” –, concluindo, sem mais, que os factos descritos na acusação subsequente estavam cobertos pelo mesmo juízo. Tal conclusão atende unicamente ao teor literal da norma invocada, mas o sentido da decisão não pode ser compreendido sem considerar, também, o teor do despacho que se fundou nessa norma (item 1.1., supra).
É particularmente relevante para o caso a interpretação deste despacho, tarefa que obedece a cânones próprios, como se assinalou no Acórdão n.º 522/2006 (a respeito da interpretação de uma decisão judicial – objeto do recurso de constitucionalidade – contendo um pronunciamento reputado de ambíguo):
“[…]
A interpretação jurídica é encarada nos sistemas continentais como respeitando, essencialmente, à interpretação de normas (‘interpretação das leis’), ao passo que nos sistemas de common law, na base do entendimento de que todos os ‘textos jurídicos’ (leis, contratos, testamentos e decisões judiciais) formam um continuum e colocam, basicamente, embora em planos distintos, os mesmos problemas interpretativos, tende-se a formular critérios comuns de interpretação (v. Aharon Barak, [Purposive Interpretation in Law, Princeton, 2005] p. 184). Neste caso – interpretação de uma decisão judicial –, as regras interpretativas a observar são no essencial as mesmas que a ultrapassagem de uma situação de ambiguidade semântica num trecho normativo convocaria (v., quanto à ambiguidade de normas, Batista Machado, [Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983], p. 189)].
Frequentemente a ultrapassagem da ambiguidade é possível […] situando o trecho ambíguo no seu contexto. A apreciação deste convoca, na procura de uma efetiva compreensão do texto, tudo aquilo que neste antecede, sucede ou ocorre simultaneamente a determinada unidade linguística e que assume significado relativamente à realização dessa unidade. Situar um determinado trecho no respetivo contexto, significa, assim, observá-lo na dupla vertente do conjunto dos elementos constantes do próprio texto (contexto intrínseco; o texto encarado na sua globalidade) e dos elementos exteriores a este que se mostrem relevantes para a sua compreensão (contexto extrínseco), o que engloba os elementos históricos, doutrinais, jurisprudenciais, etc., que o entendimento racional do texto convoque (Aharon Barak, ob. cit., p. 101).
[…]”.
Assim, na procura do significado de uma decisão judicial – não sendo irrelevante a pesquisa de alguns elementos de pendor mais subjetivo, referidos ao sentido em que os destinatários diretos da injunção judicial a captam – opera como elemento fundamental estruturante da compreensão do seu sentido o ato interpretativo da lei – se preferirmos do Direito – plasmado no concreto.
Deste modo, as afirmações decisórias contidas num pronunciamento judicial não valem desgarradas do ato de aplicação do Direito que as determinou ou, tão pouco, pela sua aparência semântica. Valem, isso sim, no quadro jurídico que a elas conduziu e na medida – e só nessa medida – em que nesse quadro adquiriram significado e são passíveis de uma reconstrução racional. Valem, pois, como afirmações decisórias de cariz técnico-jurídico cujo significado passa pelo processo argumentativo que as justificou.
É neste sentido que os elementos objetivos (correspondentes ao ato de interpretação e aplicação do Direito, visto este como percurso do qual a decisão constitui o ponto de chegada) se destacam, na compreensão do sentido de uma decisão judicial, da pura afirmação, descontextualizada desse ato, que essa decisão pareça expressar, se isso (o que nela pareça) não obtiver uma efetiva comprovação, racionalmente expressa, no antecedente ato de interpretação e aplicação do Direito.
Sendo assim de um dos lados – ou seja, não podendo a declaração do juiz ser entendida sem ligação à norma que a suporta –, a inversa também é verdadeira, ou seja, a norma usada na decisão não pode ditar o sentido desta abstratamente, sem olhar ao texto e ao contexto em que a mesma é produzida.
A esta luz, retomemos, nos seus exatos termos, a decisão de rejeição da acusação: “[…] os factos imputados ao arguido nestes autos não consubstanciam a prática do crime indiciado, porquanto lhe falta um dos elementos objetivos, a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20g/l com que o condutor conduzia”.
Resulta evidente que o excerto da decisão “factos imputados nestes autos” não se pode referir, claro está, ao que ocorreu em determinada hora e local (e que terá resultado atestado, p. ex., pelo talão do alcoolímetro que consta de fls. 7 – e já existia no processo aquando da apresentação do recorrente em processo abreviado), mas única e estritamente ao que se descreve na concreta acusação para julgamento sob a forma de processo abreviado (cfr. os artigos 391.º-A, n.º 1 e 391.º-B, nº 1, do CPP), pois apenas desta se pode dizer que lhe “falta um dos elementos objetivos”.
Tanto basta para concluir que semelhante juízo, por um lado, vai referido à descrição da acusação – ao ato processual que encerra a descrição incompleta – e, por outro lado, não é imediatamente transponível para o ato processual subsequente que supre a omissão apontada, porque as razões que ditaram a decisão deixaram de se verificar.
Vale isto por dizer que a questão a apreciar não pode colocar-se no pressuposto de uma apreciação material (qualificação jurídico-penal) da integralidade dos factos, enquanto acontecimentos do mundo real ocorridos na data, hora e local indicados na acusação – porque não foi esse o teor, nem o sentido, da decisão de rejeição da acusação – tendo que ser recolocada.
Ora, este reposicionamento do problema leva a questionar se a Constituição impõe que semelhante apreciação – refletida na norma, tal como oportunamente foi enunciada (item 2., supra) – precluda a possibilidade de dedução de uma nova acusação que, dizendo respeito ao mesmo “pedaço de vida” subjacente à primeira, complete a descrição dos factos com os elementos em falta na primeira.
A questão deste modo (re)colocada obriga a equacionar a já assinalada vertente processual do ne bis in idem.
“[…]
[Q]uando é que fica consumido o direito de ação contra o arguido, pela mesma pretensão punitiva e por força do exercício do próprio direito de ação, independentemente da existência de uma sentença transitada em julgado. Ou seja, saber em que momento é que um processo sancionatório em curso assume tamanha relevância que, independentemente do conteúdo da decisão, findo este, o arguido deverá considerar-se definitivamente julgado, ficando esgotado o poder punitivo público no que respeita à pretensão punitiva em causa. Ou, ainda, a partir de que momento, durante o curso de um processo sancionatório, impende sobre o Estado o ónus de alcançar uma decisão definitiva sobre a validade e a verificação da pretensão punitiva, sob pena de se resignar à frustração do correspondente poder punitivo.
[…]”.
E acrescenta a mesma Autora (ob. cit., p. 602):
“[…]
Se a proteção do ne bis in idem tem o seu início a partir do momento em que é formalizado o objeto e manifestada a potestas punitiva do Estado, num plano jurisdicional, a exaustão desse poder punitivo deverá ocorrer após a prolação de uma decisão (jurisdicional) que implique a realização de um juízo sobre essa mesma pretensão punitiva.
[…]” (sublinhado acrescentado).
A sujeição ao processo penal implica para o arguido um risco – o risco expresso na possibilidade de condenação –, risco esse que não pode prolongar-se indefinidamente ou, a partir de certo ponto, repetir-se.
Na jurisprudência e na doutrina norte-americanas, fala-se, quanto à V Emenda à Constituição – “[…] ninguém poderá ser, pelo mesmo crime, duas vezes colocado em risco na sua vida ou integridade física […]”; “[…] be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb […]” –, de evitar o duplo risco (double jeopardy), enquanto regra fundamental de direito processual penal. Sobre tal regra, escreve Akhil Reed Amar, ["Double Jeopardy Law Made Simple", The Yale Law Journal, vol. 106 (1997), pp. 1838, 1840 e 1841]:
“[…]
Uma vez que a palavra ‘jeopardy’ assenta numa metáfora de jogo – ‘jeopardy’ é, etimologicamente, um jogo de resultado incerto, um jogo que se pode perder [como o Autor nota, a pp. 1810, constitui um galicismo, com origem na expressão “jeu-perdre”] – podemos recolocar a questão perguntando quando começa e quando termina o ‘jogo’. Quais são exatamente as regras do jogo quando os árbitros tomam decisões erradas, quando os jogadores fazem batota ou cometem falta ou quando fatores externos, como o mau tempo, interferem com o jogo?
[…]
Mas a acusação é, apenas, o momento em que o ‘jogo do julgamento’ começa, e esse jogo não termina até que haja um ‘vencedor’. Até que haja o ‘primeiro perigo’ não terminou, e procedimentos adicionais não sujeitam o arguido a um perigo pela segunda vez.
[…]”.
E, quanto a decisões no processo que padeçam de erro manifesto, em benefício do arguido (p. 1844):
“[…]
[Nenhum] valor constitucional é garantido excluindo de reversão e de revisão os erros no processo. Tal exclusão torna-se um prémio arbitrário para o culpado, não um esquema estruturado de proteção do inocente. Seria o equivalente a dizer que um em cada três arguidos, aleatoriamente escolhido, ficará livre do processo sem uma boa razão para isso. O arguido não tem propriamente um direito a que os erros funcionem sempre a seu favor.
[…]”.
Daí que – como observa Inês Ferreira Leite (ob. cit., p. 573, nota 6199):
“[…]
Mesmo nos EUA, são admissíveis casos de retrial, após ‘defective indictements’. […] De acordo com os estatutos e a prática nas instâncias penais internacionais, uma acusação que não contenha a descrição de todos os factos materiais que, findo o julgamento, forem considerados necessários ou pertinentes para a fundamentação da condenação pelo tribunal é considerada ‘defective’, podendo ser corrigida. Este defeito da acusação, consoante a intensidade da falha, pode ser superado por diversas vias. Quando se trate de adicionar uma nova imputação, ou pretensão punitiva, a alteração em fase de julgamento será excecional. Mas quando se trate da mera adição de novos factos materiais relacionados com algumas das imputações já referidas na acusação, o vício pode ser colmatado mediante a modificação da acusação ou pela mera comprovação de que os factos foram, não obstante, já comunicados ao arguido ao longo do processo de forma clara e expressa e que este teve já oportunidade de, sobre os mesmos, exercer a sua defesa.
[…]” (sublinhados acrescentados).
No sentido de que não existe “duplo perigo” se a acusação pede a anulação do processo antes da decisão final e acusa novamente o arguido, por falta de um elemento subjetivo do crime na primitiva acusação, estabeleceu-se, aliás, na jurisprudência norte-americana um precedente com o caso Illinois v. Somerville, de 1973 (https://supreme.justia.com/cases/federal/us/410/458/).
2.4. Algo de muito semelhante ao atrás descrito poderá transpor-se, sem dificuldades, no caso dos denominados “arquivamentos impróprios” em direito português, nos quais se inclui a decisão de rejeição da acusação nos termos do artigo 311.º do CPP.
Na verdade, não será isenta de dificuldade uma solução que, perante qualquer erro (designadamente, a insuficiente descrição de um elemento típico) que torne a acusação “não-apta” para conformar o objeto do julgamento, conduza sempre e inexoravelmente à falência do processo penal e à impossibilidade da perseguição criminal, sob pena de se frustrarem os objetivos do próprio sistema processual penal, sem com isso (só com isso) se salvaguardar qualquer interesse importante do arguido. No limite, a justiça penal poderia ficar, assim, por realizar em virtude de meras imprecisões e erros superáveis, desfecho que, certamente, o legislador ordinário não pretenderia e, acima de tudo, a Constituição não parece impor.
Afigura-se, pois, razoável que, no processo penal, o legislador encontre soluções que permitam a correção de lapsos e omissões, até certo ponto, ultrapassando a “não-aptidão” da acusação, desde que sejam respeitados certos limites (adiante assinalados) e se continue a assegurar ao arguido um julgamento justo e com as devidas garantias de defesa.
Assim, relativamente aos ditos “arquivamentos impróprios”, poderá, então, afirmar-se que (Inês Ferreira Leite, ob. cit., vol. II, pp. 573/574):
“[…]
Nem o ne bis in idem, nem o acusatório, exigem que qualquer invalidade ou erro processual sejam fatais, exigindo apenas que se respeitem os limites do objeto do processo e que se mantenha a continuidade do processo. Pelo que não seria contrária ao ne bis in idem uma interpretação do artigo 311.º, n.º 2, [do CPP] segundo a qual esta rejeição admitiria ainda a reformulação da acusação, quando lhe faltem os requisitos referidos no n.º 3.
[…]” (sublinhado acrescentado).
Tal afirmação – como, de resto, a Autora ressalva de imediato (ob. cit., p. 575) – não pode ter, no limite, uma validade genérica e universal, porquanto a possibilidade de renovação da acusação não deixará, de certo modo, de ficar dependente da conjugação de circunstâncias do caso, que tornarão mais ou menos intensa a necessidade de tutela perante a continuação da perseguição criminal, designadamente: se foi respeitado o objeto decorrente da acusação reformulada; se a reformulação ocorre dentro de um prazo razoável; se ao arguido são facultados os mesmos meios de defesa de que poderia lançar mão perante a acusação primitiva (p. ex., a possibilidade de requerer a instrução); se os fundamentos da rejeição permitem correção; ou se o ato decisório de rejeição ocorre no início da fase de julgamento ou tardiamente (ob. cit., p. 575, nota 6202).
A conjugação de fatores como os descritos permite modelar a posição do arguido no processo, por forma a compreender se o risco que é inerente à sujeição ao processo penal é ainda “o primeiro” ou “o segundo” (na formulação atrás sugerida), sem perder de vista que a vertente processual do princípio ne bis in idem se destina a proteger aquele sujeito da repetição da perseguição criminal, mas a própria noção dessa “repetição” obriga a referir o risco à dinâmica do processo e às respetivas vicissitudes.
Pois bem, perante as circunstâncias do caso concreto, entende-se que a tutela da posição do arguido, ora Recorrente, através da dimensão processual do princípio ne bis in idem, não reclama – de forma alguma (e independentemente da melhor interpretação da lei infraconstitucional, que não cumpre apreciar no presente recurso) – que a pretensão punitiva do Estado se deva considerar consumida com o primeiro despacho de rejeição da acusação, considerando que os respetivos fundamentos se dirigiram a uma insuficiência (em última análise formal) da acusação, sendo que a rejeição desta ocorreu logo no primeiro ato da fase de julgamento, não chegando o arguido a sujeitar-se à pendência do processo na referida fase. Tudo se passou, pois, em termos sequencialmente muito aproximados do que ocorreria com a normal dedução de uma acusação em processo comum.
Em suma, o Recorrente não viu afastado, de forma alguma, o seu fair trial, nem a sua fair chance at trial pela possibilidade, reconhecida na decisão recorrida, de apresentação de uma segunda acusação válida, suprindo a insuficiência da descrição dos factos da primeira.
Não se prefiguram, pois, motivos para afastar a construção normativa sob apreciação por violação do princípio ne bis in idem ou afronta a qualquer outro princípio ou norma constitucional (que, de resto, não veio concretizada).
Tudo isto para concluir pela improcedência do recurso.
III – Decisão
3. Em face do exposto, na improcedência do recurso, decide-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, tendo em atenção os critérios definidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 17 de maio de 2017 - José Teles Pereira - Maria de Fátima Mata-Mouros – Claudio Monteiro - (Tem voto de conformidade do Conselheiro João Caupers que não assina por não estar presente. Teles Pereira) - Manuel da Costa Andrade