ACÓRDÃO Nº 285/2016
Processo n.º 102/16
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., Unipessoal, Lda., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, notificado da Decisão Sumária n.º 622/2015, a fls. 254 e ss., que não tomou conhecimento do recurso de constitucionalidade oportunamente interposto, vem reclamar para a conferência ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (seguidamente abreviada como “LTC”), pedindo a sua revogação, nos seguintes termos:
«1.º
A sentença da 1.ª Instancia e a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra condenaram a recorrente pela prática de crime sem previsão legal para tal condenação.
2.º
Quer da decisão da 1.ª instância, quer da decisão do tribunal da Relação se insurgiu a recorrente, levantando a questão da inconstitucionalidade por condenação sem previsão legal penal, o que viola o n.º 1 do art.º 29.º da CRP.
3.º
Por isso não foi indicada, nem, salvo o melhor opinião, poderia ser, a norma cuja inconstitucionalidade já tenha sido declarada por decisão anterior do TC.
4.º
A norma penal violada pela interpretação inconstitucional foi o n.º 1 do art.º 108.º do DL 422/89.
5.º
Parece-nos, salvo melhor opinião e o devido respeito, que estão por isso verificadas as premissas para a “aceitação” dos requisitos necessários para a apreciação do recurso, pois não se indica o que não existe, não porque não haja a invalidade decisória da 1.ª instância e do Tribunal da Relação, mas porque na realidade não há norma cuja inconstitucionalidade tenha sido em momento anterior à aplicação / interpretação do n.º1 do art.º 108.º do DL 422/89, precisamente porque esta previsão legal não inclui a previsão para a condenação de uma pessoa coletiva, cingindo-se, só, ao seu representante legal, como, in casu, o foi.
6.º
É que o caso, aqui, é ligeiramente diferente da maioria dos casos dos recursos que sobem ao TC, pois que a inconstitucionalidade da interpretação do n.º 1 do art.º 108.º do DL 422/89 resulta da violação do n.º 1 do art.º 29.º da CRP; precisamente porque o n.º 1 do art. 108.º do DL 422/89 não prevê a punição de pessoas coletivas em cuja área ou instalações, explorem jogos classificados como de fortuna ou azar, estando essa responsabilidade penal / criminal cingida aos representantes legais dessas pessoas coletivas.» (fls. 260)
2. É o seguinte o teor da decisão ora reclamada:
«1. A., Unipessoal, Lda., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foi condenado, no que ora importa, por sentença da Comarca de Coimbra, Instância Local de Penacova, Secção de Competência Genérica, proferida em 19 de janeiro de 2015, em pena única de cem dias de multa, à taxa diária de €100,00, num total de €10.000,00, a qual foi substituída por caução de boa conduta, fixada no montante de €2.500,00, pelo prazo de dois anos (fls. 165 e ss.).
Inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação doe Coimbra, que, por acórdão de 1 de julho de 2015 (fls. 205 e ss.), negou provimento ao recurso. Notificada desta decisão, a arguida suscitou a respetiva irregularidade, invocando falta de fundamentação (fls. 222 e s.), e, subsequentemente, interpôs recurso de constitucionalidade (fls. 224). O recurso foi admitido por despacho de fls. 229.
Por acórdão de 18 de novembro de 2015 (fls. 233), foi indeferido o incidente pós-decisório. Subsequentemente a arguida interpôs novo recurso de constitucionalidade, pelo requerimento de fls. 237-239, indicando fazê-lo ao abrigo do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – “LTC”), invocando violação do artigo 29.º, n.º 1 da Constituição, e formulando a seguinte declaração de inconstitucionalidade: “[a] previsão dos artigos 11.º do CP e 108.º do DL 422/89 não admite a condenação de pessoas coletivas por violação do n.º 1 do artigo 29.º da CRP”.
2. Admitido o recurso (fls. 144), e subidos os autos, foi a recorrente convidada pelo relator a completar o seu requerimento de recurso, nos termos seguintes:
«1. O recorrente apresentou dois requerimentos de interposição de recurso de constitucionalidade: um a fls. 224, na sequência do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 1 de julho de 2015; um segundo a fls. 241 e ss., na sequência do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 18 de novembro de 2015. Ambos os recursos foram admitidos pelo tribunal recorrido: o primeiro, pelo despacho de fls. 229; o segundo, pelo despacho de fls. 244.
2. O requerimento de interposição do primeiro recurso, a fls. 224, apenas indica diversas normas constitucionais que a recorrente considera terem sido violadas, omitindo as demais indicações previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC”). Convido por isso o recorrente, nos termos dos n.ºs 6 e 7 do mesmo artigo 75.º-A, a indicar, no prazo de 10 dias, os elementos em falta, alertando-o, desde já, para a necessidade de enunciar em termos claros, precisos e concisos, qual a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, de tal modo que, se este Tribunal a vier a julgar desconforme com a Constituição, a possa enunciar claramente na decisão que proferir (cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 367/94, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
3. O requerimento de interposição do segundo recurso, a fls. 241 e ss., além de não ser claro quanto ao seu objeto formal – se apenas o acórdão de 18 de novembro de 2015 ou este último juntamente com o acórdão de 1 de julho de 2015 – também só contém a indicação de, no entender do recorrente, estar em causa a violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição. Por essa razão, convido o recorrente, nos termos dos n.ºs 6 e 7 do artigo 75.º-A da LTC, a no prazo de 10 dias:
i) A esclarecer qual o objeto formal do recurso em apreciação;
ii) A indicar os elementos exigidos pelos n.ºs 1 e 2 do citado artigo 75.º-A em falta, alertando-o, desde já, para a necessidade de enunciar em termos claros, precisos e concisos, qual ou quais as normas ou interpretações normativas cuja constitucionalidade pretende ver apreciadas, de tal modo que, se este Tribunal as vier a julgar desconformes com a Constituição, as possa enunciar claramente na decisão que proferir (cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 367/94, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Notifique.» (fls. 249-250)
A recorrente respondeu nos termos seguintes:
“1.º
Quanto ao recurso admitido a fls. 224, entende a recorrente ter sido condenada com ausência de norma que a essa condenação pudesse levar, porque a norma aplicada na condenação não admite condenação de pessoa coletiva – cfr art.sº 1.º, 3.º e 108.º, n.º 1 e 2, todos do DL 422/89 de 02.12.
2.º
Quanto ao recurso admitido a fls. 241, entende a recorrente ter sido condenada com ausência de norma que a essa condenação pudesse levar, porque a norma aplicada na condenação não admite condenação de pessoa coletiva – cfr art.sº 1.º, 3.º e 108.º, n.º 1 e 2, todos do DL 422/89 de 02.12.
3.º
Quer numa decisão condenatória (de 01.07.2015), quer noutra decisão condenatória (de 18.11.2015), se verifica a condenação da recorrente enquanto pessoa coletiva, quando não há norma que a preveja (os art.ºs 1., 3.º e 108.º, todos do DL 422/89, de 02.12 não prevê a condenação de pessoas coletivas, encontrando-se essa previsão restrita a pessoas singulares).
4.º
Ambas as decisões violam o n.º 1 do art.º 29.º da CRP.
5.º
A interpretação dos art.ºs 1.º, 3.º e 108.º, n.ºs 1 e 2, todos do DL 422/89 de 02.12 levada a cabo nas duas decisões, determina a violação do n.º 1 do art.º 29.º da CRP e é isto mesmo que se pretende seja declarado, nos dois recursos interpostos para este Douto Tribunal Constitucional e que certamente determinará a absolvição da recorrente.
6.º
Com os dois recursos interpostos, pretende-se ver apreciada a ilegalidade/inconstitucionalidade da condenação pela aplicação dos art.ºs 1.º, 3.º e n.ºs 1 e 2 do art.º 108.º do DL 422/89 de 02.12 por violação do n.º 1 do art.º 29.º da CRP e al. b) do n. 1 do art.º 70.º da LTC, tendo a recorrente suscitado em ambos os recursos essa inconstitucionalidade, pois só na sentença recorrida da 1.º instancia, se verificou essa inconstitucionalidade, não em momento anterior.” (fls. 252)
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
3. Apesar de o recurso ter sido admitido, tal decisão não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76.º, n.º 3, da LTC). Por isso, e sendo manifesta a impossibilidade de se conhecer do respetivo mérito, profere-se decisão sumária ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – “LTC”).
4. Na sua resposta, a recorrente continua a omitir a indicação de alguns elementos obrigatórios previstos no artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC, apesar de ter sido expressamente instada a vir completar as referidas peças processuais. Quanto ao primeiro recurso de constitucionalidade omite a indicação: (i) da alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto; (ii) da peça processual em que suscitou a questão da inconstitucionalidade; e (iii) da norma cuja inconstitucionalidade a recorrente pretendia ver apreciada. No que se refere ao segundo recurso de constitucionalidade, continuamos sem saber qual: (i) a alínea do n.´1 do artigo 70.º da LTC que fundamenta a impugnação; (ii) a peça processual em que a inconstitucionalidade foi suscitada (a recorrente refere apenas, no seu requerimento, que já havia suscitado tal problema, sem contudo especificar a peça processual em que o havia feito); (iii) a norma que integra o objeto do recurso; e (iv) o objeto formal do recurso em apreciação.
Relativamente às duas impugnações, a recorrente limita-se a invocar que foi «condenada com ausência de norma que a essa condenação pudesse levar, porque a norma aplicada na condenação não admite condenação de pessoa coletiva – cfr. artigos 1.º, 3.º e 108.º, n.ºs 1 e 2, todos do DL 422/89 de 2.012» (fls. 252). Não indica, por conseguinte, a norma que, tendo sido aplicada pela decisão recorrida (cfr. artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC), pudesse integrar o objeto dos presentes autos de fiscalização concreta.
Qualquer uma das omissões referidas justifica, por si só, a rejeição do presente recurso (cfr. o artigo 78.º-A, n.º 2, da LTC).
5. A título subsidiário, acrescentar-se-á que, e independentemente das assinaladas insuficiências, se constata que a presente impugnação apresenta um objeto manifestamente inidóneo, estando votada, por conseguinte, à impossibilidade de se obter uma pronúncia de mérito.
O recurso de constitucionalidade no sistema português é, em qualquer uma das suas modalidades, uma impugnação exclusivamente normativa. Em fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional conhece de questões de desconformidade de normas ou interpretações normativas com os parâmetros fundamentais, não lhe competindo sindicar, de qualquer modo, as decisões dos outros tribunais, ainda que tal sindicância se reporte à respetiva conformidade jusconstitucional. Com efeito, o recurso de constitucionalidade não se confunde, neste domínio, com mecanismos existentes em ordenamentos jurídicos estrangeiros, através dos quais as instâncias superiores da justiça constitucional fiscalizam a constitucionalidade de decisões judiciais (tais como, por exemplo, o recurso de amparo espanhol ou a queixa constitucional alemã).
Através da presente impugnação, a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a validade constitucional da «condenação pela aplicação dos artigos 1.º, 3.º, e nºs 1 e 2 do DL 422/89 de 02.12» (fls. 252). Conclui-se, portanto, que o objeto do presente recurso é inidóneo, uma vez que a fiscalização da própria decisão judicial é operação que não tem lugar numa impugnação exclusivamente normativa como é o recurso de constitucionalidade.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso.» (fls. 254-257)
3. O Ministério Público, tendo em conta que, «concretamente sobre os fundamentos que levaram ao não conhecimento do recurso, na reclamação nada se diz», pronunciou-se no sentido de a mesma dever ser indeferida (fls. 262-263).
II. Fundamentação
4. Como resulta do respetivo teor e foi justamente salientado pelo Ministério Público, a presente reclamação limita-se a exprimir discordância relativamente ao sentido da decisão reclamada, sem, todavia, questionar ou impugnar – sequer tentativamente –, os fundamentos em que a mesma se baseou para não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade. Não aduz, pois, qualquer argumento suscetível de infirmar a fundamentação da mesma decisão.
Como é jurisprudência pacífica deste Tribunal (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 293/2001, 427/2014, 275/2015 e 352/2015, disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), a reclamação prevista no artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC carece de ser fundamentada, sendo necessário que o reclamante exponha as razões pelas quais discorda da decisão sumária reclamada.
Resta, por isso, indeferir a presente reclamação, confirmando-se, por conseguinte a decisão sumária impugnada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário a que tem direito.
Lisboa, 4 de maio de 2016 - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro