ACÓRDÃO Nº 107/2016
Processo n.º 727/15
3.ª Secção
Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso obrigatório, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, al. a), 72.º n.º 1 al. a) e n.º 3 e 75.º-A todos da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), na sua atual versão, do acórdão daquele Tribunal de 17 de junho de 2015 (de fls. 101-126), que decidiu julgar procedente a ação administrativa especial intentada pelo A. e ora recorrido, anular a decisão impugnada e desaplicou no caso concreto «o artigo 38-1, do ED/PSP/90, por violação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, da igualdade, e da proporcionalidade» (cfr. fls. 125 e 126).
2. É este o teor do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cfr. fls. 132-133):
«O MINISTÉRIO PÚBLICO, notificado do Acórdão de 17.6.2015, proferido nos autos em epígrafe, vem, ao abrigo das disposições conjugadas dos art°s 70° n.º 1 al. a), 72° n.º 1 al. a) e n.º 3 e 75°-A, todos da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) - Lei n.º 28/82, de 15.11, na sua atual redação, dele interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes termos:
1. O acórdão em epígrafe, recusou a aplicação da norma constante do n.º 1 do artigo 38° do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei n.º 7/90, de 20 de Fevereiro, por violação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, previsto no art° 32° n.º 2 da CRP, da igualdade, previsto no art° 13°, n.ºs 1 e 2 da CRP, e da proporcionalidade, previsto no art.º 18° n.º 2 da CRP.
2. O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto no art° 70° n.º 1 al. a) LTC.
3. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante do art.º 38° n.º 1 do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei n.º 7/90, de 20 de Fevereiro, segundo a qual “o despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória”.(…)
4. (…).».
3. O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho proferido no Tribunal a quo em 24/06/2015 (cfr. fls. 135-136), tendo os autos sido remetidos ao Tribunal Constitucional em 15/09/2015 (cfr. fls. 143).
4. Tendo os autos prosseguido no Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para, querendo, produzirem alegações (cfr. despacho de fls. 144).
4.1 O recorrente Ministério Público, representado neste Tribunal, apresentou alegações (fls. 146-163), concluindo no sentido de a decisão recorrida ter incorrido em erro de julgamento da questão de constitucionalidade e, em consequência, no sentido de se conceder provimento ao recurso, nos seguintes termos (cfr. fls. 161-163):
«(…)
III
(Conclusões)
1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos arts. 70.º, n.º 1, al. a), 72.º, n.º 1, al. a), e n.º 3 e 75.º-A, da LOFPTC, “do Acórdão de17.6.2015, proferido nos autos em epígrafe [ditado a fls. 101 a 128 do proc. n.º 1653/13.5BESNT, do TAF de Sintra (“Acção administrativa especial de pretensão conexa com actos administrativos / Impugnação de acto administrativos (anulação/declaração de nulidade”) em que é A. A. e R. o Ministério da Administração Interna]”, pois ali se “recusou a aplicação da norma constante do n.º 1, do artigo 38º do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública [RDPSP], aprovado pela Lei 7/90 de 20 de Fevereiro, por violação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, previsto no artigo 32º, nº 2 da CRP, da igualdade, previsto no artigo 13º, nº 1 e 2, da CRP, e da proporcionalidade, previsto no artigo 18º, nº 2 da CRP”.
2.ª) A norma jurídica constante do artigo 38.º, n.º 1, do RDPSP, nomeadamente por não configurar pena disciplinar ou “antecipação da condenação”, não infringe os direitos de defesa do arguido em sede do processo disciplinar, nomeadamente não é atentatória do princípio da presunção da inocência.
3.ª) A solução legal em apreço tem fundamento objetivo e é razoável, sendo certo que, em razão das exigências próprias das funções policiais, decorrentes da autoridade, prestígio e confiança pública que devem revestir, não concorre uma igualdade material de situações com os “trabalhadores que exercem funções públicas”, não havendo aqui, portanto, tratamento desigual de situações materialmente idênticas, pelo que no caso não há violação do princípio constitucional da igualdade.
4.ª) A medida disciplinar prevista no artigo 74.º, n.ºs 1, al. c), 6 e 7, do RDPSP, tem pressupostos e alcance diversos daquela prevista no artigo 38.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, pelo que aquela primeira não pode ser tomada como uma “alternativa menos restritiva” desta última, sendo certo que a privação de um sexto do vencimento, que dela decorre, não é de reputar como “excessivo”.
5.ª) A decisão recorrida incorreu, nos termos referidos, em erro de julgamento da questão de constitucionalidade, suscitada pela norma jurídica constante do artigo 38.º, n.º 1, do RDPSP, à luz do preceituado nos artigos 13.º, n.ºs 1 e 2, 18.º, n.º 2 e 32.º, n.º 2, todos da Constituição.
Nestes termos, por ter incorrido em erro de julgamento da questão de constitucionalidade é de conceder provimento ao presente recurso, revogando a douta decisão recorrida, após o que os autos baixarão ao tribunal de onde provieram, para reformar a mesma em conformidade com este julgamento (LOFPTC, art. 80.º, n.º 2).
4.2. O ora recorrido apresentou igualmente alegações (cfr. fls. 165-179), concluindo pela manutenção do acórdão recorrido, nos seguintes termos (cfr. fls. 175-179):
«(…)
III
CONCLUSÕES
1. O presente recurso foi interposto pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto na alínea a) do n. ° 1 do artigo 70.°, na alínea a) do n.º 1 do artigo 72.° e no n.º 3 do artigo 75.°, todos da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, do acórdão proferido no processo n.º 1653/13.5BESNT, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que recusou a aplicação do n.º 1 do artigo 38.° do RD/PSP, por violação do princípio dos princípios constitucionais da presunção da inocência [n.º 2 do artigo 32.° da CRP), da igualdade (n.ºs 1 e 2 do artigo 13.° da CRP) e da proporcionalidade (n.º 2 do artigo 18.° da CRP).
2. O Recorrido entende que o douto acórdão fez a corre ta aplicação do direito e, por isso, não merece qualquer censura. Nunca foram apresentados indícios de que o Recorrido, no exercício das suas funções policiais, provoque qualquer sentimento de alarme social, alteração da paz pública ou qualquer outro sentimento de insegurança coletivo ou individual. Mesmo assim, a aplicação
automática do artigo 38.° do RD / PSP suspendeu o Recorrido de toda a sua atividade profissional, com um corte salarial superior a 60 % do seu vencimento mensal. A duração desta suspensão não está limitada no tempo, termina quando for proferida sentença transitada em julgado que condene o recorrido ou sentença que o absolva.
3. Neste procedimento não foi cumprido o disposto no n.º 10 do artigo 32.° da Constituição, na medida a norma em questão foi aplicada sem que o Recorrido fosse ouvido e exercesse o contraditório.
4. Por outro lado, a aplicação do n.º 1 do artigo 38.° do RD/PSP, configura a perda de direitos profissionais: o direito à ocupação efetiva e ao exercício efetivo de funções e o direito à remuneração. Mas esta perda não foi determinada por um juiz, resultou automaticamente da existência de um despacho de pronúncia. O que leva à violação do n.º 4 do artigo 30.° da Constituição, conforme sustentado na jurisprudência vertida no Acórdão n.º 282/86 do Tribunal Constitucional: "se às penas criminais não pode acrescentar-se, a título de efeito de pena, a perda de direitos profissionais, por maioria de razão isso está vedado quando se trate de penas sem carácter criminal." Para este Acórdão esta norma da Constituição "não proíbe que a lei possa definir como penas a privação de direitos profissionais (interdições profissionais, etc.), a serem aplicadas judicialmente de acordo com as regras competentes (princípio de culpa, regra da tipificação, adequação entre a gravidade da infracção e a pena, etc.). O que ela proíbe é que a privação de direitos profissionais seja uma simples consequência - por via directa da lei - da condenação por infracções de qualquer tipo. Valem aqui, mutatis mutandis, as considerações dos Acórdãos deste Tribunal n.ºs 16/84 e 91/84 sobre o alcance do artigo 30.°, n.º 4, da Constituição." - Confirmar Acórdão supra mencionado)." Assim, a interpretação que permite o automatismo na aplicação do disposto no artigo 38.° do RD/PSP deve ser julgada inconstitucional, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.° da Constituição.
5. Esta jurisprudência também aborda a questão do automatismo da aplicação da suspensão na perspetiva de violação do princípio da proporcionalidade: "A suspensão é automática, não depende de nenhum juízo sobre a sua necessidade no contexto de cada caso concreto (responsabilidade imputada ao técnico de contas, gravidade da falta, etc.). Nestes termos, ela tem de considerar-se como afrontosa do princípio constitucional invocado, o qual encontra afloramento no artigo 18.°, n.º 2, da CRP e sempre há-de reputar-se como componente essencial do princípio do Estado de direito democrático (cf. o artigo 2.° da CRP)".
6. A resposta para os casos em que a manutenção em funções de um Polícia se revele inconveniente para o serviço ou para o apuramento da verdade encontra-se no artigo 74.° do RD/PSP, que prevê o Desarmamento, a Apreensão e a Suspensão preventiva. Esta suspensão preventiva, com um limite máximo de 90 dias, prorrogável por igual período, permite suspender cautelarmente no âmbito de processo disciplinar, sempre que seja inconveniente, para o serviço ou para o apuramento da verdade, a presença de um Polícia. A aplicação desta medida não está dependente da existência de despacho de pronúncia, pode aplicar-se sempre que se conclua pela existência da inconveniência supra mencionada, mas exige a formulação de um juízo valorativo que evidencie que a presença do Polícia cria um prejuízo para o serviço ou para a descoberta da verdade.
7. No caso em apreço, em 2011 o Comandante do COMETLIS instaurou o processo disciplinar 2011LSB00696DIS contra o Recorrido após notícia de alegada infração disciplinar, com indicação pormenorizada dos factos que lhe deram origem, mas por entender que não existiam prejuízos para o serviço ou para a descoberta da verdade, resultantes da presença do Recorrido, não propôs que lhe fosse aplicada a suspensão preventiva. É também por isso que se toma desnecessário aplicar ao Recorrido uma suspensão automática, por tempo indeterminado até à decisão final criminal.
8. O princípio da presunção da inocência é violado por se aplicar ao Recorrido uma suspensão acompanhada da perda de mais de 50 do vencimento por ele auferido (conforme se encontra provado no processo n.º 1652/13./BESNT). A aplicação desta suspensão não está dependente do preenchimento de requisitos especificados na lei, não tem prazo máximo de duração e os pressupostos da sua aplicação não são reexaminados durante a sua execução. Por isso, não é mais do que a antecipação de uma condenação
9. A violação do princípio da igualdade resulta de aplicar aos elementos policiais da PSP um tratamento diferenciado, mais grave, sem justificação para tal, em relação aos demais funcionários públicos (cfr. Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e Estatuto do Ministério Público, entre outros).O princípio da igualdade também é violado porque a suspensão prevista no n.º 1 do artigo 38.º do RD / PSP apenas é aplicada após despacho de pronúncia, o que significa que todos os polícias que são arguidos, pela prática de crimes a que corresponda pena de prisão superior a três anos, em processos-crime em que não é requerida a abertura de instrução não são suspensos, enquanto todos os policiais que são arguidos, pela prática de crimes a que corresponda pena de prisão superior a três anos, em processo-crime em que seja proferido despacho de pronúncia são automaticamente suspensos.
10. Quanto à violação do princípio da proporcionalidade, verifica-se pelo facto da aplicação do artigo 38.º do RD/PSP se tornar desnecessária na medida em que a proteção do interesse público é alcançada de forma satisfatória através da aplicação do artigo 74.º deste Regulamento, que, como já vimos, tem a vantagem de limitar a um âmbito aceitável os sacrifícios imposto por sanções deste tipo.
Termos em que, por não merecer censura, deve mantido o Acórdão recorrido.».
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A questão de constitucionalidade que constitui objeto do presente recurso, relativa à norma do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei n.º 7/90, de 20 de fevereiro, foi já apreciada por este Tribunal, no Acórdão n.º 62/2016, de 3 de fevereiro de 2016, no qual se decidiu «a) julgar inconstitucional a norma do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, na parte em que determina a suspensão de funções por efeito do despacho de pronúncia em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos, por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2.» (cfr. III - Decisão).
Considerou-se, para assim concluir, no Acórdão n.º 62/2016, o seguinte (cfr. II – Fundamentação):
«2. A questão de constitucionalidade que vem colocada, e que originou a recusa de aplicação de norma pelo tribunal recorrido, reporta-se ao artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei n.º 7/90, de 20 de fevereiro, e que dispõe do seguinte modo:
O despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória.
Norma de idêntico teor constava do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de janeiro (artigo 6.º) e já provinha do Estatuto Disciplinar de 1979 (artigo 6.º), do Estatuto Disciplinar de 1943 (artigo 6.º) e do Código Administrativo (artigo 562.º), ainda que, nesses casos, o efeito de suspensão de funções se encontrasse relacionado com a prolação de despacho de pronúncia em processo de querela ou por algum dos crimes enunciados no § único do artigo 71.º do Código Penal.
O Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro, bem como o regime disciplinar que lhe sucedeu, inserido na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGT), e se encontra atualmente em vigor, já não contemplam a suspensão de exercício de funções como efeito do despacho de pronúncia, e limitaram-se a determinar a obrigatoriedade de comunicação do despacho de pronúncia, por parte do Ministério Público, ao órgão ou serviço em que o trabalhador desempenha funções (artigos 7.º, n.º 1, e 179.º, n.º 1, respetivamente).
O que significa que, no regime disciplinar geral atualmente vigente, o despacho de pronúncia proferido em processo penal, na medida em que pressupõe a recolha de indícios suficientes da prática de um crime, de que possa resultar uma probabilidade razoável de que ao arguido venha a ser aplicada uma pena, apenas justifica que se dê conhecimento ao dirigente do serviço com competência disciplinar para avaliar a conveniência da instauração de procedimento disciplinar, se os factos tiveram relevância nesse plano, e, eventualmente, se adotarem medidas cautelares, que poderão incluir a suspensão preventiva do exercício de funções do arguido quando a sua presença se revele inconveniente para o serviço (artigo 211.º da LGT).
A suspensão do exercício de funções nos termos do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP tem, no entanto, um diferente alcance, visto que se traduz numa necessária consequência da pronúncia e, por isso, num efeito que a lei faz derivar direta e automaticamente de um ato processual penal, independentemente de prévia instauração de procedimento disciplinar ou de audiência do arguido ou de qualquer outra ponderação sobre a oportunidade de afastamento do arguido da sua normal atividade profissional.
Em todo o caso, cabe fazer notar que a suspensão do exercício de funções, para além de se encontrar dependente da prova indiciária de que o arguido é responsável pelos factos que integram a prática de crime, apenas tem lugar quando a infração é punível com pena de prisão superior a três anos, tornando-se, por isso, exigível um especial índice de gravidade penal, que correspondia também ao preenchimento do requisito necessário para a imposição ao arguido de prisão preventiva ou para a aplicação de pena de prisão efetiva (artigos 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e 50.º, n.º 1, do Código Penal, na redação anterior à reforma de 2007, vigente à data da publicação do Regulamento Disciplinar da PSP).
Por outro lado, importa ter em consideração que, em face do específico estatuto disciplinar dos agentes da PSP, é a prática de certo tipo de crimes, e não de todo e qualquer crime, que conduz à aplicação de uma medida disciplinar expulsiva (artigo 47.º, n.º 2, alíneas b) e g)), pelo que a suspensão de exercício de funções prevista no falado artigo 38.º do Regulamento Disciplinar da PSP não pode ser vista como uma medida cautelar inerente à possível aplicação de uma pena de demissão ou de aposentação compulsiva que seja tendencial ou necessariamente decorrente da imputação dos factos pelos quais o arguido é pronunciado.
Não estamos aqui, em todo o caso, perante uma restrição de direitos que implique a antecipação da aplicação de uma pena ou um qualquer juízo ético-jurídico de censura sobre os factos criminalmente puníveis, assim como não se trata de uma pena acessória ou de um efeito que se encontre associado à condenação penal. A suspensão do exercício de funções decorrente da prolação do despacho de pronúncia constitui antes um efeito de direito que, sendo desencadeado por um mero ato processual penal, se repercute na relação de emprego público e representa, por isso, uma consequência jurídica de natureza estritamente disciplinar.
Isso é o que também resulta da inserção sistemática da norma no âmbito das disposições gerais atinentes à responsabilidade disciplinar e do facto de o mesmo preceito, concomitantemente, impor às entidades judiciárias o dever de comunicação do despacho de pronúncia ao órgão dirigente da PSP para efeitos disciplinares (n.º 3). E assim se compreende que, nos termos da mesma disposição, a suspensão de efeitos se mantenha até à decisão final absolutória ou até à decisão final condenatória, o que parece significar que, não se verificando a caducidade por efeito de uma sentença que absolva o arguido da prática do crime, a medida extingue-se pela sua substituição, em caso de sentença condenatória, por uma pena acessória de proibição do exercício de função, cuja aplicação depende da valoração feita pelo tribunal de julgamento segundo os critérios gerais da determinação da pena, ou pela suspensão do exercício da função durante o cumprimento da pena de prisão, como efeito conatural à própria restrição de liberdade inerente à execução da pena de prisão (artigos 66.º e 67.º do Código Penal).
E, sendo assim, só na sequência de uma condenação penal é que a proibição ou a suspensão do exercício de função pode ser tida como uma sanção penal ou como um efeito material de uma sanção penal (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 2ª edição, Universidade Católica, págs. 259 e 261).
Ao contrário, a suspensão de exercício de funções como efeito automático da prolação do despacho de pronúncia, como prevê o artigo 38.º do Regulamento Disciplinar da PSP, tem incidência meramente disciplinar, refletindo-se apenas na relação laboral existente entre a entidade empregadora e o trabalhador.
3. A garantia de audiência e defesa do arguido decorre, para os trabalhadores da Administração Pública, como um elemento central do estatuto da função pública, do disposto no artigo 269.º, n.º 3, da Constituição, mas que a revisão constitucional de 1989 tornou extensiva aos processos de contraordenação e aos demais processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10). No entanto, da garantia de audiência e defesa não é possível retirar uma extensão ao processo disciplinar da generalidade do regime substantivo em matéria penal. O preceito constitucional apenas releva no plano adjetivo e significa que é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 180/14).
Tem-se admitido, em todo o caso, que os princípios da constituição criminal, e especificamente os previstos nos artigos 29.º e 32.º da CRP, apesar de se restringirem no seu teor literal ao direito criminal, devam valer, no essencial, e por analogia, para todos os domínios sancionatórios: o princípio da legalidade das penas, o princípio da não retroatividade e o princípio da lei mais favorável ao arguido e o princípio da culpa (acórdãos do TC n.ºs 161/95, 227/92, 574/95 e 160/2004). A jurisprudência constitucional tem igualmente admitido, em processo disciplinar, o princípio da presunção de inocência do arguido, como decorrência do direito a um processo justo, não apenas na sua vertente probatória, correspondendo à aplicação do princípio in dubio pro reo, pelo qual é à Administração que cabe o ónus da prova dos factos que integram a infração, quer ao nível do próprio estatuto ou condição do arguido em termos de tornar ilegítima a imposição de qualquer ónus ou restrição de direitos que, de qualquer modo, representem e se traduzam numa antecipação da condenação (assim, o acórdão do TC n.º 123/92, que julgou inconstitucional a norma que determina, na sequência da prolação do despacho de pronúncia, e durante a suspensão do exercício de funções da mesma decorrente, a perda da totalidade do vencimento).
Analisando à luz desse parâmetro de constitucionalidade, a norma do artigo 6.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar de 1984 (que tinha plena correspondência com a norma agora sindicada), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 439/87, pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade, consignando, no essencial, o seguinte:
Mas essa garantia [a presunção de inocência do arguido] não torna ilegítima toda e qualquer suspensão de funções do arguido, que seja funcionário ou agente, aplicada antes do trânsito em julgado da sentença de condenação. A própria prisão preventiva é admitida pela Constituição, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», no caso de «flagrante delito» ou «por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena maior»(-). A suspensão só será constitucionalmente ilegítima quando viole o princípio da proporcionalidade, «o qual - como se lê no citado acórdão nº 282/86 - encontra afloramento no artigo 18º, nº 2, da Constituição e sempre há de reputar-se como componente essencial do princípio do Estado de direito democrático (cfr. o artigo 2º)».
Ora, fundando-se a suspensão de funções cominada no nº 1 do artigo 6º do Estatuto Disciplinar (-) na «defesa do prestígio dos serviços» (-), sendo ela consequência de «despacho de pronúncia em processo de querela com trânsito em julgado» e determinando tal suspensão apenas a suspensão do «vencimento de exercício» - que é constituído por um sexto do vencimento total (-), não se afigura que com ela saia violado o princípio da proporcionalidade.
Poderá dizer-se que as considerações de índole funcional que, na perspetiva desse acórdão, podem justificar o afastamento do serviço efetivo em relação ao trabalhador em funções públicas, por efeito da prolação do despacho de pronúncia em processo crime, valem por maioria de razão para os agentes dos serviços e das forças de segurança.
Desde logo, porque esses agentes dispõem de um estatuto jurídico-constitucional próprio. O artigo 270º da Constituição, na redação introduzida pela revisão constitucional de 2001, ainda que inserido no título referente à Administração Pública – o que permite pressupor a sua aplicação a uma categoria de pessoas que se integram ainda no conceito de trabalhadores da Administração Pública -, consagra expressamente, na estrita medida das exigências das suas funções próprias, a possibilidade de a lei estabelecer restrições a alguns direitos, liberdades e garantias, em relação a «militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efetivo», bem como «agentes dos serviços e das forças de segurança», embora com alguma diferença de grau entre estas diferentes categorias.
O que tem também reflexo, no que diz respeito ao pessoal policial, no respetivo estatuto profissional, que é caracterizado, não apenas pela restrição a alguns direitos e liberdades, mas também pela sujeição a um conjunto de princípios orientadores e deveres especiais, que justificam o reconhecimento da sua especificidade face aos demais trabalhadores da Administração Pública. O que permite compreender que o pessoal policial, para além da sujeição aos deveres gerais aplicáveis aos trabalhadores que exercem funções públicas, se encontre também subordinado a um código deontológico próprio e a estatuto disciplinar especial (artigos 4.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 299/2009, de 14 de outubro). Condicionamentos estes que estão associados naturalmente às atribuições próprias da PSP, entre as quais, se destaca a prevenção da criminalidade em geral e o desenvolvimento de ações de investigação criminal e contraordenacional (artigo 2.º, n.º 2, alíneas c) e e), da lei n.º 53/2007, de 31 de agosto).
A medida de suspensão automática de funções, em consequência da emissão do despacho de pronúncia em processo-crime instaurado contra um agente da PSP, pode ser encarada, por isso, como um medida cautelar destinada a preservar, independentemente de qualquer outra ponderação, a integridade e o prestígio da função policial na sua relação com os cidadãos e o público em geral.
Como se assinalou no acórdão n.º 123/92, o princípio da presunção da inocência do arguido não proíbe a antecipação de certas medidas cautelares e de investigação, e, como no caso do processo disciplinar, a suspensão provisória do exercício de funções.
A questão que no caso vertente se coloca é que uma tal medida surja como efeito automático da prolação do despacho de pronúncia, sem qualquer ponderação de um juízo de necessidade no contexto do caso concreto. A sujeição do arguido a uma medida, ainda que de natureza cautelar, que se baseie num juízo de probabilidade de futura condenação viola prima facie o princípio da presunção de inocência que se encontra constitucionalmente garantido até à sentença definitiva, pois que é aplicada com o exclusivo fundamento numa presunção de culpabilidade.
Por outro lado, não parece que uma tal medida, ainda que encontre a sua razão de ser em considerações de ordem funcional, se mostre justificada à luz do ordenamento jurídico, sendo possível divergir, neste estrito plano, do juízo que genericamente foi formulado no citado acórdão n.º 439/87.
Na verdade, a própria norma do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP, em consonância com o que também dispõe atualmente o regime disciplinar dos trabalhadores em funções públicas (artigo 179.º da LGT), prevê o dever de comunicação do despacho de pronúncia à entidade com competência disciplinar, que poderá com base nos mesmos factos instaurar procedimento disciplinar, e, nesse âmbito, instituir a medida cautelar de suspensão preventiva do arguido sempre que a sua manutenção em funções seja inconveniente para o serviço ou para o apuramento da verdade (artigo 74.º, n.º 1).
Por outro lado, a possibilidade de aplicação da suspensão preventiva por iniciativa da entidade administrativa que ordene a instauração do processo disciplinar, ou, no decurso desse processo, por proposta do instrutor (n.º 2) – e ainda que se encontre pendente um processo-crime pelos mesmos factos –, é a necessária decorrência do princípio da autonomia do processo disciplinar relativamente ao processo penal (cfr. artigos 179.º, n.ºs 3 e 4, da LGT), e que tem, entre outras, as seguintes consequências: (a) é possível a aplicação de duas sanções – a disciplinar e a criminal – sem violação do princípio non bis in idem; (b) o caso julgado absolutório penal não impede que os mesmos factos sejam considerados provados em matéria disciplinar; (c) a Administração não está vinculada aos resultados probatórios obtidos em processo-crime, podendo decidir, segundo a sua livre convicção, em termos divergentes do caso julgado penal; (d) sendo imputado ao arguido em processo disciplinar os mesmos factos que constituem matéria de acusação em processo-crime, não há motivo para a suspensão do procedimento até que seja proferida decisão final no processo-crime (sobre todas estas questões, cfr. os acórdãos do TC n.ºs 161/95 e 263/94 e os acórdãos do STA de 12 de maio de 2005, Processo n.º 930/04, de 4 de dezembro de 1997, Processo n.º 36390, de 21 de maio de 2008, Processo n.º 989/07, de 21 de janeiro de 2011, Processo n.º 1079/09, de 14 de outubro de 1993, Processo n.º 31885 e de 9 de maio de 1995, Processo n.º 35837).
Nada justifica, por conseguinte, mesmo à luz do princípio da proporcionalidade (numa dimensão da necessidade), que, em benefício dos interesses funcionais dos serviços, se verifique a suspensão do exercício de funções por efeito de um ato processual penal, quando está na disponibilidade da Administração, independentemente da prossecução do processo penal e da decisão final que nele venha a ser proferida, decretar uma medida cautelar instrumental de idêntico alcance e pela qual é possível atingir as mesmas finalidades de prevenção geral.
Não pode ignorar-se, por outro lado, que a obrigatoriedade do processo disciplinar, que se encontra consagrada na lei (artigos 194.º e 298.º da LGT), deve entender-se como uma das regras ou princípios que caracterizam o estatuto específico da função pública, com assento constitucional e que decorre essencialmente do disposto nos artigos 269.º e 271.º da Lei Fundamental (cfr., neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 154/2010).
Ora, só por via do procedimento disciplinar, em que seja assegurada ao a garantia de audiência e defesa do arguido, é que é possível fazer cessar o vínculo de emprego público por motivo disciplinar, e só nessa sede é admissível a adoção de medidas cautelares que se destinem a proteger, na pendência do procedimento, a capacidade funcional da Administração, e que sempre depende, por aplicação de um princípio de proporcionalidade, de um juízo de ponderação da necessidade da medida nas circunstâncias do caso concreto.
Tudo leva a concluir no sentido da inconstitucionalidade da norma sub judicio por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, entendido em articulação com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, ficando consequentemente prejudicada a apreciação do princípio da igualdade que serviu igualmente de parâmetro para o julgamento feito pelo tribunal recorrido.».
6. Nos presentes autos, a norma sindicada pelo recorrente Ministério Público, e desaplicada pelo tribunal recorrido, é a norma do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP – que dispõe que «O despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória» –, pelo que se apresenta mais ampla do que a norma julgada inconstitucional no Acórdão n.º 62/2016 – apenas a «norma do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, na parte em que determina a suspensão de funções por efeito do despacho de pronúncia em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos» (cfr. III – Decisão, a)).
Todavia, a falta de coincidência exata entre a norma sindicada nos presentes (a própria norma do n.º 1 do artigo 38.º do Regulamento Disciplinar da PSP) e no Acórdão n.º 62/2016 (a norma do n.º 1 do artigo 38.º do Regulamento Disciplinar da PSP apenas na parte em que determina a suspensão de funções por efeito do despacho de pronuncia em processo penal por infracção a que corresponda pena de prisão superior a três anos) não prejudica a transposição da fundamentação expendida naquele Acórdão n.º 62/2016 para o caso dos autos. Com efeito, determinante para o juízo de inconstitucionalidade nele formulado foi o caráter automático da medida de suspensão de funções, em consequência da emissão do despacho de pronúncia em processo-crime e a falta de justificação, mesmo à luz do princípio da proporcionalidade (numa dimensão da necessidade), que, em benefício dos interesses funcionais dos serviços, se verifique a suspensão do exercício de funções por efeito de um ato processual penal, quando está na disponibilidade da Administração, independentemente da prossecução do processo penal e da decisão final que nele venha a ser proferida, decretar uma medida cautelar instrumental de idêntico alcance e pela qual é possível atingir as mesmas finalidades de prevenção geral.
Ora sendo igualmente a perda de um sexto do vencimento base (até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória) uma medida automática em consequência da emissão do despacho de pronúncia em processo-crime e com estreita conexão com a suspensão de funções e estando também na disponibilidade da Administração, independentemente da prossecução do processo penal e decisão final nele proferida, decretar uma medida cautelar instrumental de idêntico alcance (ainda que temporalmente limitada), e pela qual será possível atingir as mesmas finalidades de prevenção geral (cfr. em especial os artigo 180.º, n.º 1, alínea c), 181.º, n.ºs 3 e 4 e, quanto aos efeitos da sanção de suspensão que determina, por tantos dias quantos os da sua duração, o não exercício de funções e a perda das remunerações correspondentes (e também da contagem do tempo de serviço para antiguidade), da LGTFP), é de formular idêntico juízo de inconstitucionalidade quanto à norma, com maior amplitude, ora sindicada.
III – Decisão
7. Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública segundo a qual “o despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória”, por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, conjugado com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2;
e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 24 de fevereiro de 2016 - Maria José Rangel de Mesquita - Lino Rodrigues Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral