ACÓRDÃO Nº 572/2015
Processo n.º 664/15
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., recorrente nos presentes autos em que são recorridos o Ministério Público, em representação da Fazenda Pública, e outros, na sequência de sentença de 29 de março de 2012, que decretou a insolvência do devedor B., interpôs recurso extraordinário de revisão da mesma, dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa, com fundamento nos artigos 676.º e 771.º do Código de Processo Civil de 1961 (cfr. fls. 3 e ss.). Por acórdão de 6 de março de 2014, a Relação concluiu pela inadmissibilidade de tal recurso (fls. 217 e ss.).
Ainda inconformado, o recorrente interpôs recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando o disposto no artigo 697.º, n.º 6, do Código de Processo Civil de 2013 (“CPC”) (cfr. fls. 238 e ss.). O recurso foi admitido pelo despacho do Desembargador Relator de fls. 258.
Subidos os autos, o Conselheiro Relator proferiu o despacho previsto no artigo 655.º, n.º 1, do CPC, face à possibilidade de não ser conhecido o mérito do recurso nos termos do disposto no artigo 697.º, n.º 6, do mesmo Código, conjugado com o disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (“CIRE”). Apresentando resposta, o recorrente pugnou pela inconstitucionalidade do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE (fls. 273 e ss.). Por decisão singular de 2 de setembro de 2014, o Conselheiro Relator não admitiu a revista, com fundamento na irrecorribilidade prescrita no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE (cfr. fls. 305 e ss.).
Irresignado, o ora recorrente requereu, ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 3, do CPC, que sobre a matéria recaísse um acórdão, sem deixar de reiterar a inconstitucionalidade que já havia suscitado anteriormente (cfr. fls. 317 e ss.).
Por acórdão de 17 de dezembro de 2014, a conferência indeferiu a reclamação, confirmando a decisão singular reclamada (cf. fls. 345 e ss.).
2. Não satisfeito, o recorrente apresentou em 31 de dezembro de 2014 o requerimento de fls. 2 e ss. dos autos de reclamação apensada aos autos de revista (cf. o termo de fls. 359), endereçado ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos seguintes: “inconformado com o douto acórdão de 17-12-2014, confirmando a Decisão Singular que não admitiu o recurso de revista, vem, de acordo com o estabelecido pelos Artigos 652.º, n.ºs 4 e 5, 641.º, n.º 6, e 643.º, do Código de Processo Civil, apresentar a competente Reclamação”. Nessa reclamação, reconhecendo que o citado acórdão de 17 de dezembro de 2014 confirmou “o Douto Despacho singular N.º 22/14, o qual decidia que: ‘Admitindo a possibilidade de, atento o preceituado no art. 679.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, em conjugação com o disposto no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, não tomar conhecimento do objeto do recurso,...’”, conclui pedindo que o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça “se digne reapreciar/revogar a Douta Decisão N.º 22/14” (fls. 5).
Considerando que a “reclamação para o Presidente do Supremo de um Acórdão da Conferência, fora da situação estabelecida na lei, tem por objeto um pedido anormal e, processualmente, constitui um incidente anómalo [, não cabendo] nas competências atribuídas ao Presidente do Supremo, a de pronunciar-se sobre esse pedido”, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 26 de janeiro de 2015, entendeu nada haver a decidir (cf. fls. 20).
Concluídos os autos ao Conselheiro Relator, este decide, em 28 de janeiro de 2015, o seguinte sobre aquela mesma reclamação:
« Não está em causa qualquer decisão proferida sobre competência relativa da Relação e não se trata de decisão do relator que não tenha admitido ou haja retido qualquer recurso que haja sido interposto: antes está em causa uma decisão que, por inadmissibilidade legal do interposto recurso, julgou extinta e deu por finda a correspondente instância de recurso por, em tal situação, não ser possível conhecer do objeto do interposto recurso e que, na instância inferior (Tribunal da relação de Lisboa) havia – indevidamente – sido admitido – cf. art. 641.º do Código de Processo Civil.
Assim, a presente reclamação não tem qualquer cabimento processual, como, aliás, decorre do antecedente e douto despacho proferido pelo Exmo. Presidente deste STJ” (cf. fls. 21).
Não conformado, o recorrente «impugna», uma vez mais junto do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a “Douta Decisão Singular de 28 de janeiro de 2015 que indeferiu a reclamação do Acórdão da Conferência de 17-12-2014” (cf. fls. 367 e ss.).
E, por despacho de 7 de abril de 2015, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não conheceu da impugnação deduzida, por entender que a mesma surge à margem das situações que a lei prevê, tem por objeto um pedido anormal, do ponto de vista processual, não se integra nas competências do Presidente do Supremo e constitui um incidente anómalo. Em especial, no que se refere às normas invocadas para sustentar a impugnação, pode ler-se no referido despacho:
«3. A impugnação que o recorrente suscita é interposta de uma decisão singular do Conselheiro Relator, a qual decidiu julgar improcedente a reclamação que o mesmo recorrente interpusera do Acórdão da Conferência, que decidira não admitir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão da Relação de Lisboa de indeferimento da revisão de uma sentença declaratória de insolvência.
4. As normas jurídicas invocadas para amparar a impugnação não permitem, contudo, sustentá-la.
O artigo 652º do Código de Processo Civil, que não contém nº 6, reporta-se, no seu nº 5, ao acórdão da conferência, no Tribunal da Relação, que decide sobre a competência relativa deste Tribunal. Só desse, que é proferido pelo tribunal “a quo”, se permite reclamar para o Presidente do Supremo.
O artigo 641º, nº 6, refere-se à decisão que não admita o recurso, também no tribunal recorrido, ou que retenha a sua subida nesse mesmo tribunal. Só dessa decisão, proferida no tribunal “a quo”, se permite a reclamação prevista no artigo 643º.
Por fim, o artigo 643º refere-se exatamente ao mecanismo da reclamação daquele despacho do tribunal “a quo”; estabelecendo o seu nº 4 que ela é apresentada ao relator, no tribunal “ad quem”, o qual profere decisão singular, ou admitindo o recurso, ou mandando-o subir, ou, ainda, mantendo o despacho do tribunal “a quo” de rejeição do recurso; e, em qualquer caso, podendo essa decisão singular do relator ser impugnada por reclamação para a conferência, nos termos do artigo 652º, nº 3.
5. No caso concreto, o Conselheiro Relator confirmou a decisão de não admissão do recurso do Desembargador Relator [aliás: o Conselheiro Relator revogou a decisão de admissão do recurso proferida pelo Desembargador Relator].
A Conferência no Supremo Tribunal de Justiça confirmou a mesma decisão.
A lei não prevê impugnação da decisão da Conferência no Supremo.» (cfr. fls. 374)
3. É deste despacho que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e e), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, seguidamente abreviada como “LTC”), para apreciação do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, sendo invocada violação dos artigos 13.º, 18.º, 20.º e 204.º, da Constituição da República Portuguesa.
Neste Tribunal, foi proferida a Decisão Sumária n.º 521/2015, que não conheceu do objeto do recurso de constitucionalidade. Notificado de tal Decisão, veio o recorrente apresentar reclamação para a conferência nos seguintes termos:
«1. Consta no nº. 3, da Douta Decisão Sumária, que: “... 3. É deste despacho que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento no artigo 70º, nº.1, alíneas b) e e), da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional, seguidamente abreviado como “LTC”, para apreciação do artigo 14º., nº. 1, do CIRE, sendo invocada violação dos artigos 13º, 18º, 20º e 204º, da Constituição da República Portuguesa. ...”;
Com efeito, antes de mais, cumpre esclarecer que o aqui reclamante, no seu recurso objeto desta Decisão Sumária, referiu, por lapso a alínea e), do artigo 70º, nº. 1, antiga, quando antes queria referir a alínea f) do nº1 do artigo 70º., atualizado;
Ou seja; fez apelo às alíneas b) e e) do nº. 1 da Lei nº. 28/82, antiga, quando antes queria fazer apelo ás alíneas b) e f) da mesma Lei atualizada;
2. Depois no ponto 4., da Douta Decisão Sumária, consta que o recorrente produziu no próprio requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade em simultâneo com as alegações, que são sempre produzidas no Tribunal Constitucional;
Ora, salvo o devido respeito, que em absoluto é devido, não pode o aqui reclamante concordar com tal interpretação;
Porquanto,
Preceitua o Artigo 70º, nº. 1, alínea b), da “LTC” que: “... 1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: ... b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo;
Por sua vez, preceitua o mesmo Artigo 70º., nº. 1, alínea f) da “LTC” que: ... “Que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e).”;
3. Com efeito, porque foi precisamente isto que sucedeu nos recursos e reclamações que o aqui reclamante/recorrente fez, pretendendo assim demonstrar esta realidade “fáctica”, sem prejuízo das alegações que teria sempre de produzir no momento e instância própria, não poderá o reclamante conformar-se com tal apreciação;
4. Mais consta ainda deste ponto 4., da Douta Decisão Sumária, que “... Tal extemporaneidade, contudo, não tem qualquer consequência nos presentes autos, uma vez que se verifica que, .... subsiste a impossibilidade de se conhecer do respetivo mérito. Por isso, profere-se a presente decisão sumária ao abrigo do artigo 78º-A, nº 1, da LTC.;
Nesta senda, preceitua o referido artigo 78º-A, nº 1, da LTC.”; que: “... designadamente por a mesma já ter sido objeto de decisão anterior do Tribunal ou por ser manifestamente infundada ...”;
Ora, a questão que o aqui reclamante apresentou no seu recurso para o Tribunal Constitucional, foi, inequivocamente, a inconstitucionalidade do nº1, do Artigo 14º, do CIRE, e sobre isto nunca nenhum Tribunal tomou qualquer decisão, apesar de sistematicamente o aqui reclamante sempre o ter feito perante os tribunais a que se dirigiu e que sistematicamente foram recusando admitir os seus recursos e/ou reclamações, apenas e só, por causa do referido Artigo 14º., nº 1, do CIRE;
Com efeito, falece, mais uma vez com o devido respeito, a causa pela qual possa subsistir a impossibilidade de conhecer do mérito do recurso apresentado, através do qual se requer que seja declarada a inconstitucionalidade do artigo 14º., nº. 1, do CIRE, pelo que se apela, que melhor e mais justa decisão seja decidida em conferência, porquanto, o artigo 70º., nº. 1, alíneas b) e f), da LTC, confere direitos ao reclamante, que por esta Decisão Sumária lhe estão a ser negados;
5. Desta feita, reclama-se, mais uma vez, sempre com o devido respeito que inquestionavelmente é devido, do que consta do ponto 5., da Douta Decisão Sumária, a qual, por tão desconforme, teremos de presumir, haver erro de interpretação;
Porquanto, o reclamante / recorrente, no recurso que dirigiu a esse Tribunal Constitucional, foi, unicamente, a requerer a inconstitucionalidade do Artigo 14º., nº 1, do CIRE, apenas fazendo apelo ao despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Abril de 2015, por ter posto fim à via recursal, sempre com o mesmo fundamento no que dispõe o Artigo 14º., do CIRE;
Pelo que, o recorrente não baseou o seu recurso para esse Tribunal Constitucional, por tal despacho do Presidente do STJ, ter concluído como concluiu por causa e efeito do Artigo 14º, nº. 1, do CIRE não acolhendo os fundamentados apelos da razão do recorrente, para decidir sem atender ao preceituado pelo artigo 14º., nº 1, do CIRE, tanto mais que a última parte deste mesmo nº. 1 deste artigo 14º., do CIRE, ele próprio consagra exceções;
Com efeito, verifica-se, sem qualquer dúvida, que o objeto do recurso apresentado para o Tribunal Constitucional, coincide em absoluto com a decisão recorrida;
Ou seja: O Despacho que motivou o recurso apresentado para esse Tribunal Constitucional, não foi por no Despacho do Presidente do STJ se ter recusado aplicar a lei, mas sim, porque o recorrente entende que a vigência de tal Artigo 14º., nº1, do CIRE, que estorva melhor decisão, porque contraria e viola todos os direitos que são conferidos aos cidadãos, quer pela lei processual civil, quer, obviamente, pela Constituição da Republica Portuguesa, terá de ser necessariamente, inconstitucional;
O que significa que de facto e de direito, que a utilidade do recurso para o Tribunal Constitucional se verifica, visto que o critério normativo sindicado coincide em absoluto com o que foi aplicado pelo tribunal “a quo”;
6. Mais consta ainda no ponto 5, desta Decisão Sumária, que a admissão do recurso depende da existência do interesse processual em ver revogada a decisão proferida, ou seja, é ainda indispensável que a eventual procedência do recurso seja útil;
Ora, sobre esta questão, foi o que o recorrente pretendeu demonstrar através do seu recurso, foi precisamente, o interesse processual em ver revogada a decisão proferida, bem como se toma indispensável a eventual a utilidade da eventual procedência do recurso;
Interesse Processual, na medida em que a Não revogação da decisão proferida, permite a subsistência de uma Sentença de Insolvência, que por tão falsa, toda ela concretizada num processo todo ele completo de inverdades e falsidades, sem paralelo, colocando, como já colocou, publicamente, o descrédito da Justiça, da verdade e de um Estado de Direito;
É indispensável que a eventual procedência do recurso seja útil, para que o recorrente e demais credores, que foram prejudicados por um processo de insolvência que foi transitado por um tribunal territorialmente incompetente, possam vir a ser considerados;
Mais uma vez se confirme, que o reclamante não recorreu de qualquer decisão, mas sim, do reiterado fundamento de indeferimento baseado no artigo 14º. nº. 1, do CIRE;
7. Pelo que não se pode o aqui reclamante conformar com o que consta do ponto 6., da Douta Decisão Sumária;
8. Quanto ao que consta do ponto 7., da mesma Douta Decisão Sumária, é incompreensível o que consta no primeiro parágrafo, porquanto, o recorrente concretizou e alegou factos concludentes das consequências causadas pela constitucionalidade do Artigo 14º. nº. 1, do CIRE;
9. Por outro lado, há absoluto, pelo menos, grosseiro erro de interpretação, com todo o devido respeito que os Órgãos de soberania nos merecem, quando se refere no segundo parágrafo deste mesmo ponto 7., que a decisão recorrida não aplicou esse preceito – Artigo 14º., nº 1, do CIRE, quando efetivamente, se demonstrou que todos os recursos e/ou reclamações foram negados, com base no preceituado no artigo 14º., nº. 1 do CIRE;
Refira-se ainda e mais uma vez, que o recorrente não apresentou recurso da decisão, mas sim para que seja declarada a inconstitucionalidade do Artigo 14º., nº. 1 do CIRE,
10- Para que conste, permitimo-nos aqui transcrever o pedido formulado no recurso apresentado para esse Tribunal Constitucional:
“Do Pedido:”
“Nestes termos e nos melhores de direito, se requer que seja declarada a inconstitucionalidade do nº. 1 do Artigo 14º., do CIRE;”
“Mais se requer, com efeito, seja revogada a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que recusou tomar conhecimento do recurso e da suscitada inconstitucionalidade do nº. 1, do Artigo 14º. Do CIRE;”
11- Porque de facto e de direito, o pedido apresentado pelo recorrente, ao Tribunal Constitucional, foi de Declaração de inconstitucionalidade do supracitado artigo 14º., nº. 1, do CIRE, é menos verdade dizer-se, como consta na Decisão Sumária, que foi de uma decisão ou despacho do STJ;
12. Como bem se pode verificar, quanto à questão das decisões, foi tão só, que declarada a inconstitucionalidade do nº. 1, do Artigo 14º., do CIRE, fosse, concomitantemente, revogada a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que recusou tomar conhecimento do recurso e da suscitada inconstitucionalidade do nº. 1, do Artigo 14º. Do CIRE;.
Nestes termos, de acordo com a faculdade concedida pelo nº. 3, do Artigo 78º-A da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro, deve a presente Reclamação ser apreciada em conferência, concluindo por conhecer do mérito do Recurso, conforme pedido.»
4. O Ministério Público, na sua resposta, conclui no sentido do indeferimento da reclamação, uma vez que o despacho recorrido não aplicou o artigo 14.º do CIRE – norma que integra o objeto material do recurso; por outro lado, entende que a alínea f), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, não se mostra aplicável ao caso dos autos (v. fls. 439-442).
Os restantes reclamados, notificados do teor da presente impugnação, nada disseram.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. A Decisão Sumária n.º 521/2015, ora reclamada, foi proferida ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, e tem o seguinte teor:
«4. A título prévio, cumpre salientar que, não obstante o recorrente ter produzido, no próprio requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, e em simultâneo, as alegações, esse não é o momento certo para o fazer, uma vez que as mesmas são sempre produzidas no Tribunal Constitucional, na sequência de despacho do relator, proferido após exame preliminar dos autos (cfr. os artigos 78.º-A, n.º 5 e 79.º, n.ºs 1, e 2, da LTC). Tal extemporaneidade, contudo, não tem qualquer consequência nos presentes autos, uma vez que se verifica que, não obstante o recurso ter sido admitido pelo tribunal a quo, subsiste a impossibilidade de se conhecer do respetivo mérito. Por isso, profere-se a presente decisão sumária ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
5. Como se esclareceu no relatório, a decisão recorrida, nos presentes autos, é o despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de abril de 2015 que rejeitou a reclamação que lhe havia sido dirigida pelo recorrente, na sequência da decisão do Conselheiro Relator datada de 28 de janeiro de 2015 (fls. 21 dos autos de reclamação apensada aos autos de revista). Isso mesmo é esclarecido pelo recorrente no seu requerimento de recurso (fls. 377), no introito das alegações (fls. 378) e, bem assim, no respetivo corpo (cfr. a referência à “Conclusão” recorrida, a fls. 387). O que significa que o objeto do presente recurso (objeto em sentido material, reportado à norma que a decisão tenha aplicado ou recusado aplicar) apenas pode coincidir com norma aplicada (ou cuja aplicação tenha sido recusada) pela decisão recorrida, a qual constitui o objeto formal do mesmo.
Na verdade, o objeto do recurso de constitucionalidade deve coincidir com a ratio decidendi da decisão recorrida. A utilidade do recurso de constitucionalidade encontra-se liminarmente afastada quando o critério normativo sindicado não coincide com o que foi aplicado pelo tribunal a quo.
O recurso de constitucionalidade tem um carácter instrumental em relação à decisão recorrida, pelo que, a sua admissibilidade depende da existência do interesse processual em ver revogada a decisão proferida, ou seja, «é ainda indispensável que a eventual procedência do recurso seja útil» (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, “Legitimidade e Interesse no Recurso de Fiscalização Concreta da Constitucionalidade” in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 947 e ss., p. 958). Assim, prossegue o mesmo Autor (v. ibidem, pp. 958-959),
“[O] recurso de constitucionalidade apresenta-se como um recurso instrumental em relação à decisão da causa, pelo que o seu conhecimento e apreciação só se reveste de interesse quando a respetiva apreciação se possa repercutir no julgamento daquela decisão (cfr. TC 768/93, TC 769/93, TC 162/98; TC 556/98; TC 692/99).
Expressando a mesma orientação noutras formulações, o Tribunal Constitucional afirmou que o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental, pelo que só devem ser conhecidas questões de constitucionalidade suscitadas durante o processo quando a decisão a proferir possa influir utilmente na decisão da questão de mérito em termos de o tribunal recorrido poder ser confrontado com a obrigatoriedade de reformar o sentido do seu julgamento (TC 60/97), e concluiu que o recurso de constitucionalidade possui uma natureza instrumental, traduzida no facto de ele visar sempre a satisfação de um interesse concreto, pelo que ele não pode traduzir-se na resolução de simples questões académicas (TC 234/91, […]; TC 167/92)”.
Em consonância, o Tribunal Constitucional tem os seus poderes de cognição em fiscalização concreta da constitucionalidade limitados à norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação (cfr. o artigo 79.º-C da LTC).
6. Quanto ao recurso deduzido com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea e), da LTC, conclui-se liminarmente pela respetiva inadmissibilidade, uma vez que, analisada a decisão recorrida, não se vislumbra na mesma qualquer recusa de aplicação de norma, qualquer que fosse o fundamento conducente a tal juízo desaplicativo. Aliás, nem nunca ao longo do presente processo o ora recorrente se referiu ao estatuto político-administrativo de qualquer uma das duas regiões autónomas…
7. No que toca ao recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, recorde-se que o objeto material do presente recurso, tal como especificado pelo recorrente, reside no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, não sendo contudo concretizada a dimensão interpretativa cuja constitucionalidade se impugna.
A decisão ora recorrida não aplicou, no entanto, esse preceito, uma vez que se limitou a apreciar o problema da admissibilidade de reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de despacho do relator nesse Supremo Tribunal que não conhece de reclamação deduzida contra acórdão da conferência confirmativo de anterior decisão singular do mesmo relator que julgou inadmissível o recurso interposto de um acórdão do tribunal da relação. Face aos preceitos legais que haviam sido mobilizados pelo ora recorrente, o despacho recorrido concluiu pela inexistência, in casu, do mecanismo de impugnação deduzido, tendo salientado que a reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça prevista no artigo 652.º, n.º 5, alínea a), do CPC diz respeito a acórdão proferido pela conferência do tribunal da relação e não de decisão proferida pela conferência do próprio Supremo Tribunal de Justiça.
Por isso, não visando o presente recurso questionar a constitucionalidade da norma efetivamente aplicada pela decisão recorrida, projetando-se o seu objeto num outro critério, falece o critério relacionado com a utilidade do presente recurso. Com efeito, ainda que o Tribunal apreciasse a conformidade jusconstitucional de tal critério, o mesmo não produziria qualquer abalo na decisão recorrida, dada a não coincidência com a respetiva ratio decidendi.»
6. Os fundamentos da reclamação são dois: diz o reclamante que, por um lado, se referiu à alínea e) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, quando na verdade pretendia aludir à alínea f) do mesmo preceito; por outro, que a questão que “inequivocamente” integrou no objeto do recurso de constitucionalidade foi a da inconstitucionalidade do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, e que “sobre isto nunca nenhum Tribunal tomou qualquer decisão, apesar de sistematicamente o aqui reclamante sempre o ter feito perante os tribunais a que se dirigiu”; e ainda que o despacho recorrido não acolheu os fundamentos por si apresentados no sentido da referida inconstitucionalidade normativa, verificando-se “sem qualquer dúvida, que o objeto do recurso apresentado para o Tribunal Constitucional coincide em absoluto com a decisão recorrida” (fls. 428-429). Conclui ainda que “não apresentou recurso da decisão mas sim para que seja declarada a inconstitucionalidade do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE”.
7. Em primeiro lugar, mesmo que se devesse assumir como lapso a indicação da alínea e) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, em vez da alínea f) – o que não se evidencia no caso concreto –, sempre o presente recurso conheceria o mesmo desfecho: na verdade, não se comprova nos autos a aplicação de norma cuja ilegalidade tenha sido suscitada durante o processo com fundamento na violação de lei de valor reforçado ou violação de estatuto de uma região autónoma.
8. Em segundo – e último – lugar, concretamente quanto ao fundamento atinente à utilidade do recurso de constitucionalidade, é patente que o reclamante continua a laborar em clamoroso equívoco. A utilidade do recurso afere-se, desde logo, pela coincidência entre o seu objeto (normativo) e a fundamentação normativa em que assentou a decisão recorrida. Ora, se a decisão recorrida nem sequer aplicou o preceito que integra tal objeto, uma vez que se limitou a apreciar o problema da admissibilidade da reclamação então interposta para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nada avaliando ou decidindo quanto ao mérito da controvérsia, torna-se por demais evidente a ausência deste requisito do recurso de constitucionalidade. A utilidade que do recurso o recorrente poderia retirar afere-se à luz do cumprimento dos requisitos – objetivos e formais – de conhecimento do recurso de constitucionalidade. E estes não se encontram, manifestamente, satisfeitos.
Resta, portanto, concluir pela manifesta improcedência da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e confirmar a Decisão Sumária n.º 521/2015, na qual se concluiu pelo não conhecimento do objeto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 28 de outubro de 2015 - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro