ACÓRDÃO Nº 381/2015
Processo n.º 440/2015
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2.ª Secção, do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e é recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, em 19 de fevereiro de 2014 (fls. 3588 a 3591), ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de fevereiro de 2015 (fls. 3539 a 3577), que negou provimento ao recurso interposto pelo ora recorrente, em 22 de julho de 2014 (fls. 3238 a 3282), no qual se pretendem ver apreciadas:
a) A inconstitucionalidade do artigo 187.º, n.º 1 do C.P.P. quando interpretada no sentido com que o foi na decisão recorrida, isto é, que pode o Juiz de Instrução Criminal, autorizar escutas telefónicas a um suspeito, quando, nesse processo, não existe mais do que uma certidão de escutas de outro processo, em que o suspeito não foi constituído arguido, por violação dos artigos 2.º, 18.º, 32.º, n.º 8 e 34.º da Constituição da República Portuguesa;
b) A inconstitucionalidade do artigo 86.º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico das Armas e Munições quando interpretado com o sentido que o foi pelo Venerando tribunal da Relação de Lisboa por violação do Principio "Ne bis in Idem", bem como dos artigos 2.º, 18.º, 29°, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
2. Não sendo legalmente admissível conhecer da segunda inconstitucionalidade invocada, a Relatora proferiu, em 19 de maio de 2015, despacho nesse sentido, ordenando a notificação do recorrente para produzir alegações, somente quanto à primeira inconstitucionalidade suscitada. Das alegações podem retirar-se as seguintes conclusões:
“(…)
EM CONCLUSÃO
I
A questão suscitada é a da inconstitucionalidade do artigo 187º, n.º1 do C.P.P., por violação dos artigos 2º, 18º, 32º, n.º1, 2 e 8 e 34º da Constituição da República Portuguesa, interpretado no sentido de que o Juiz de Instrução Criminal pode autorizar as escutas telefónicas ao número de telemóvel de um suspeito quando, no referido processo, consta apenas uma certidão com escutas telefónicas retiradas doutro processo em que o suspeito nunca foi constituído arguido, não existindo qualquer outro elemento.”
II
Ou seja, no presente caso concreto verifica-se que o Recorrente, e outros suspeitos foram investigados no âmbito do processo n.º 95/11.1SMLSB, pela 1ª Secção do DIAP de Lisboa, durante quase 2 (dois) anos pela prática de crime de tráfico de estupefacientes;
III
Concluídas as investigações naquele processo, sem que o Recorrente alguma vez tivesse sido constituído arguido, daqueles autos logo foi extraída uma certidão de escutas telefónicas efetuadas ao Recorrente, e com base unicamente nesse elemento, foi aberto um novo processo;
IV
A referida certidão, que originou os presentes autos, é composta, unicamente, por autos de transcrição de escutas telefónicas efetuadas ao Recorrente e nada mais do que isso;
V
Sem que fosse efetuada qualquer diligência de prova, com base unicamente numa certidão de escutas telefónicas ao Recorrente, logo foram solicitadas mais escutas telefónicas, sem que fosse sequer fundamentada a impossibilidade de obtenção de prova por outro meio;
VI
Ou seja, o Senhor Juiz de instrução Criminal, bem sabendo, ou tendo obrigação de saber, que o arguido tinha sido investigado num processo onde não foram recolhidos quaisquer elementos que permitissem que, nesse processo o recorrente fosse sequer constituído arguido, sem qualquer grau de exigência, permitiu que os seus direitos mais elementares continuassem a ser violados indefinidamente;
VII
Nos presentes autos as escutas telefónicas não foram utilizadas como ultima ratio mas sim como prima ratio, sendo violado de forma flagrante o artigo 187º do C.P.P. e bem assim, nomeadamente o artigo 34º da C.R.P.
VIII
Ao consagrar que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana …” a Constituição vincula todo e qualquer cidadão a respeitar o outro como pessoa humana dotada de dignidade, princípio diretamente aplicável quer a entes públicos quer a entes privados. E, em consequência, a prova não é um valor absoluto e ilimitado, pois cede face aos direitos fundamentais, principalmente aos que personalizam o homem.
IX
Num regime democrático e submetido ao valor da lealdade, os fins não podem justificar os meios, pelo que o art.º 32º, n.º 8 da CRP, cuja expressão processual está materializada nos artigos 126º e, no plano das escutas telefónicas, no art.º 189º da CRP, proíbe as provas obtidas com ofensa dos direitos fundamentais.
X
O Sigilo das Comunicações é um Direito Constitucionalmente assegurado; como Direito Constitucionalmente assegurado a sua limitação ou violação só poderá ocorrer em casos muito excecionais, e por isso o artigo 187º do C.P.P. configura uma situação de limitação de Um Direito Constitucionalmente Consagrado;
XI
Como se não bastasse no âmbito de um processo Judicial existirem já ingerências nas telecomunicações do Recorrente, e portanto violações do seu Direito à palavra, no âmbito daquilo que se denomina "Meio de Obtenção de Prova", temos agora que um "Meio de Obtenção de Prova" violador de Princípios Constitucionais configura também ele uma denúncia contra o próprio escutado!!!!
XII
Ou seja, o Estado utiliza as próprias conversas de um suspeito, obtidas em violação dos seus Direitos Fundamentais, para abrir um processo judicial contra ele próprio!!!!
XIII
No caso Sub Júdice violaram-se de forma gritante os mais elementares princípios da dignidade humana e da lealdade processuais, os quais devem ser pedra de toque em qualquer Estado de Direito Democrático;
XIV
Em termos práticos, no caso Sub Júdice, por um lado, o ESTADO leva o Recorrente a fazer uma denúncia contra si próprio!!!
XV
Estamos perante a clara violação do Princípio da não auto - incriminação, ou seja, não faz sentido obter por outra via, mais precisamente à revelia do visado, aquilo que o legislador fez depender da sua vontade, é que o arguido tem inclusive o Direito a não prestar declarações e se o quiser fazer fá-lo nos termos que entender convenientes à sua defesa, isto mesmo decorre do artigo 32º, n.º1 e 2 da C.R.P. e 61º, n.º1, alíneas c) e d) do C.P.P.
XVI
Por outro lado, com fundamento unicamente numa violação de Direitos Fundamentais (ingerência nas telecomunicações), fundamenta-se nova violação de Direitos Fundamentais!
XVII
Pelo que, no caso Sub Júdice, existindo no processo unicamente uma certidão com escutas do próprio Recorrente, o Senhor Juiz de Instrução Criminal nunca poderia ter autorizado que logo fossem efetuadas novas escutas telefónicas ao Recorrente;
Termos em que requer a V. Exas. Egrégios Juízes Conselheiros que se dignem considerar inconstitucional o artigo 187º, n.º1º do C.P.P. quando interpretado no sentido que o foi pelo tribunal da Relação de Lisboa, ou seja que:
“O Juiz de Instrução Criminal pode autorizar as escutas telefónicas ao número de telemóvel de um suspeito quando, no referido processo, consta apenas uma certidão com escutas telefónicas retiradas doutro processo em que o suspeito nunca foi constituído arguido, não existindo qualquer outro elemento.”
E, em consequência, conceder provimento ao recurso, ordenando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido sobre a questão de constitucionalidade.”
3. Devidamente notificado para o efeito, o recorrido veio aos autos apresentar as suas contra-alegações, concluindo do seguinte modo:
“(…)
28º
Ora, no caso dos presentes autos, estamos claramente no âmbito de um processo criminal, tendo as escutas telefónicas sido devidamente autorizadas pelo juiz de instrução criminal, com vista a satisfazer necessidades de perseguição penal e de obtenção de provas.
Por outro lado, houve lugar a devida avaliação, pela autoridade judiciária, dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade na realização das escutas telefónicas, de modo a garantir a menor intervenção possível.
Sendo certo, por último, que o arguido ora recorrente teve sempre à sua disposição, não só durante a audiência de discussão e julgamento mas também posteriormente, como se comprova pela leitura das diversas peças processuais que elaborou, designadamente recursos, todos os meios de defesa necessários para poder invalidar a utilização de tais escutas.
29º
Assim, por todas as razões invocadas ao longo das presentes contra-alegações, e com base na jurisprudência anteriormente citada, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá, agora:
a) concluir não ser inconstitucional, por violação dos arts. 2º, 18º, 32º, n. 8 e 34º da Constituição, a interpretação normativa retirada do art. 187º, n. 1 do Código de Processo Penal, com o sentido de que «pode o Juiz de Instrução Criminal autorizar escutas telefónicas a um suspeito, quando, nesse processo, não existe mais do que uma certidão de escutas de outro processo, em que o suspeito não foi constituído arguido» (na formulação da Ilustre Conselheira Relatora deste Tribunal Constitucional – cfr. fls. 3608 dos autos);
b) negar, nessa medida, provimento ao recurso de constitucionalidade interposto pelo arguido A.;
c) manter, em consequência, o Acórdão recorrido, de 3 de fevereiro de 2015, do Tribunal da Relação de Lisboa.”
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
a) Quanto à inconstitucionalidade do artigo 86.º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico das Armas e Munições
4. Não tendo o despacho da Relatora sido objeto de qualquer reclamação nem de qualquer referência nas alegações a decisão de não conhecimento do objeto do recurso quanto ao artigo 86.º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico das Armas e Munições transitou em julgado, pelo que nada mais se dirá quanto a ela.
b) Quanto à inconstitucionalidade do artigo 187.°, n.° 1, do Código de Processo Penal
5. Nos presentes autos discute-se, assim, tão-só a constitucionalidade da interpretação normativa retirada do artigo 187.°, n.° 1, do Código de Processo Penal («CPP»), pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com o sentido de que “pode o Juiz de Instrução Criminal, autorizar escutas telefónicas a um suspeito, quando, nesse processo, não existe mais do que uma certidão de escutas de outro processo, em que o suspeito não foi constituído arguido”, o que, para o recorrente, violaria os artigos 2.°, 18.°, 32.°, n.os 1, 2 e 8, e 34.° da Constituição da República Portuguesa («CRP»).
i) Delimitação do objeto do recurso
Antes de mais, importa lembrar que o Tribunal Constitucional apenas tem poderes para apreciar a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas (cfr. artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC), e nunca de decisões jurisdicionais.
Ora, no que se refere à argumentação expendida pelo recorrente de que a interpretação retirada do artigo 187.°, n.° 1, do CPP, com o sentido de que “pode o Juiz de Instrução Criminal, autorizar escutas telefónicas a um suspeito, quando, nesse processo, não existe mais do que uma certidão de escutas de outro processo, em que o suspeito não foi constituído arguido”, porque violaria o disposto nesse mesmo artigo 187.º do CPP (e, bem assim, nos artigos 2.º, 18.º, 32.º, n.º 1, 2 e 8, e 34.º, todos da CRP), mesmo que se verificasse uma violação de um dos requisitos estabelecidos nos artigos 187.º a 189.º do CPP, ao Tribunal Constitucional sempre estaria vedado o controlo da legalidade das escutas telefónicas autorizadas e realizadas no âmbito do presente processo, como o recorrente pretende.
Isto é, a questão que se prende com a mera violação do artigo 187.º do CPP, não configura uma questão de inconstitucionalidade, como pretende o recorrente, mas sim de mera ilegalidade e, como tal, não se enquadra nas competências deste Tribunal, no âmbito do artigo 70.º, n.º 1, al. b), da LTC.
Aliás, o próprio recorrente reconhece implicitamente aquilo que acabámos de referir quando afirma, por exemplo, que “resulta de forma evidente que, nos presentes autos as escutas telefónicas não foram utilizadas como ultima ratio mas sim como prima ratio, sendo violado de forma flagrante o artigo 187º do C.P.P. e bem assim, nomeadamente o artigo 34º da C.R.P.” (fl. 3623). Portanto, para o ora recorrente, a permissão das escutas telefónicas relativas ao caso dos autos violaria o artigo 187.º do CPP, ao passo que para o tribunal recorrido não se verificou qualquer violação do normativo relativo àquele preceito.
Termos em que fica claro que, no que toca a este ponto da argumentação, o Tribunal sempre estaria impedido de fazer qualquer consideração, por tal se encontrar fora das suas competências.
ii) Do mérito do recurso
Do exposto resulta que a questão de constitucionalidade que se coloca é, tal como o recorrente afirma, a dada altura, nas suas alegações que “o Senhor Juiz de instrução Criminal, bem sabendo, ou tendo obrigação de saber, que o arguido tinha sido investigado num processo onde não foram recolhidos quaisquer elementos que permitissem que, nesse processo o recorrente fosse sequer constituído arguido, sem qualquer grau de exigência, permitiu que os seus direitos mais elementares continuassem a ser violados indefinidamente” (fl. 3611).
Com efeito, o recorrente vem solicitar a fiscalização da constitucionalidade da norma contida no artigo 187.°, n.° 1, do CPP, com o sentido de que “pode o Juiz de Instrução Criminal, autorizar escutas telefónicas a um suspeito, quando, nesse processo, não existe mais do que uma certidão de escutas de outro processo, em que o suspeito não foi constituído arguido”, por alegada violação, dos artigos 2.º, 18.º, 32.º, n.os 1, 2 e 8, e 34.º da CRP e, em especial, dos princípios da presunção de inocência e da proporcionalidade.
Por outras palavras, a questão que se coloca é a de saber se, numa situação como a do presente caso, o facto de um suspeito que não chega a ser constituído arguido num determinado processo poder ficar impedido de atacar a validade das escutas existentes no primeiro processo, que vêm posteriormente a dar lugar a um novo processo em que o suspeito passa a arguido é, ou não, conforme à Constituição por as suas garantias de defesa poderem ser violadas.
Antes de mais, importa referir que as matérias referentes a escutas telefónicas foram já amplamente discutidas pelo Tribunal Constitucional, em especial a partir do Acórdão n.º 407/1997, de 21 de maio (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Assim, escreveu-se, no Acórdão n.º 70/2008, de 31 de janeiro — jurisprudência posteriormente reiterada pelos Acórdãos n.º 128/08, 204/08, 205/08, 340/08, 378/08 e 477/08, todos deste Tribunal Constitucional (disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) o seguinte:
“(…) no plano da lei geral, a confidencialidade das telecomunicações é expressamente garantida pela Lei de Tratamento de Dados Pessoais e Proteção da Privacidade no Setor das Comunicações Eletrónicas (Lei nº 41/2004, de 18 de agosto) e, particularmente, pelo artigo 4º desta Lei, que assegura a inviolabilidade das comunicações e respetivos dados de tráfego no domínio das redes públicas de comunicações e dos serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público, proibindo a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento e outros meios de interceção ou vigilância de comunicações sem o consentimento prévio e expresso dos utilizadores, com exceção apenas dos casos previstos na lei.
O sigilo das telecomunicações merece, porém, garantias inscritas logo ao nível fundamental da Constituição, dispondo o seu artigo 34º, nos nºs 1 e 4, que “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”, e que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal” (veja-se, quanto a estes aspetos, o Parecer da PGR n.º 21/2000, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de agosto de 2000, que se acompanhará por alguns momentos).
Por força do estatuído neste nº 4, o direito ao sigilo das telecomunicações implica a proibição de devassa do seu conteúdo e da sua divulgação por quem a elas tenha acesso, designadamente os empregados dos serviços de telecomunicações para quem decorre o dever de sigilo profissional. E, correspondentemente, traduzindo o relevo e proteção na conformação de valores fundamentais, o Código Penal incriminou condutas violadoras do direito dos cidadãos à comunicação reservada através dos artigos 192º, nº 1, alínea a), e 194º, que têm o respetivo âmbito de proteção definido para a intromissão na vida privada mediante acesso às comunicações telefónicas e a violação da correspondência e das telecomunicações.
A inviolabilidade da correspondência e de outros meios de comunicação está, por seu turno, relacionada com a reserva de intimidade da vida privada a que se reporta o artigo 26º da Constituição da República. O direito à intimidade da vida privada, como garantia de resguardo, de reserva, de proteção, supõe a faculdade de impedir a revelação de factos relativos à vida íntima e familiar, de requerer a cessação de algum eventual abuso e o ressarcimento dos danos derivados da divulgação de um facto respeitante à vida privada.
Só no domínio do processo penal é que a lei ordinária pode prever restrições à referida garantia contida no artigo 34º, nº 4. As necessidades de perseguição penal e de obtenção de provas justificam a compressão do direito individual à comunicação reservada, mas carecem de ser avaliadas pelas autoridades judiciárias em termos de necessidade, adequação e proporcionalidade, de tal modo que violado que seja o princípio da menor intervenção possível e da proporcionalidade, há de a prova assim obtida ser considerada nula (artigos 32º, n.º 8, da Constituição e 189º do Código de Processo Penal).
É neste plano que se compreendem as limitações que são impostas pelo Código de Processo Penal no tocante à obtenção de prova através de escutas telefónicas, e que resultam do disposto nos artigos 187º a 190º (tendo em consideração a redação anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, aplicável ao caso).
O primeiro desses preceitos define as condições em que é admissível a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas, especificando que elas só podem ser ordenadas ou autorizadas, por despacho do juiz, relativamente aos crimes que aí são identificados e apenas “se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”.
Por sua vez, o artigo 188.º, com a redação resultante da Lei n.º 59/98, de 5 de agosto, e do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de dezembro, providencia sobre as “formalidades das operações” (...).
Como o regime processual claramente pressupõe, a admissibilidade da interceção e gravação de conversações e comunicações telefónicas ou transmitidas por outro meio técnico está conformada pelo princípio da proporcionalidade: não só pela especial gravidade dos casos em que é admitida (os chamados “crimes de catálogo”), mas também pela exigência de um juízo da necessidade e do grande interesse para a descoberta da verdade. De tal modo que, pelos termos da revelação processual do regime de intromissão nas comunicações e das respetivas garantias de que está rodeado, poder-se-á dizer que o sigilo das comunicações é tendencialmente absoluto (neste sentido, o Parecer da PGR n.º 16/94/Complementar, de 2 de maio de 1996, publicado em Pareceres, vol. VI, pág. 535).
O caráter restritivo da utilização desse meio de prova é também evidenciado pelo regime procedimental que lhe é aplicável e que expressamente decorre do transcrito artigo 188º.”
Transposta esta jurisprudência para o caso ora em apreço, retira-se que o legislador consagrou já um conjunto de requisitos formais e materiais para a admissibilidade de escutas telefónicas, concretamente nos artigos 187.º a 189.º do CPP, de forma a construir um sistema de escutas telefónicas admissível à luz da CRP. Decorre, pois, das várias normas contidas nos preceitos mencionados, entre outros aspetos, que as escutas telefónicas têm de ser autorizadas por uma autoridade judiciária, a quem cabe avaliar a sua proporcionalidade — isto é, a sua adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido escrito —, de molde a garantir a menor intervenção possível nos direitos fundamentais restringidos. Nesse preciso sentido, nos termos do artigo 190.º do CPP, “[o]s requisitos e condições referidos nos artigos 187.º, 188.º e 189.º são estabelecidos sob pena de nulidade”.
Ora, não obstante um suspeito, por não chegar a ser constituído arguido, não ter à partida a possibilidade de recorrer das escutas telefónicas existentes num certo processo, não significa isto que tal possibilidade lhe seja cerceada num eventual segundo processo que tenha a sua origem numa certidão de escutas do primeiro processo. Por outras palavras: caso a certidão de escutas relativa ao primeiro processo enferme de algum problema de validade que possa vir a afetar as escutas telefónicas emitidas num novo processo, não se vislumbra qualquer impedimento legal a que um determinado arguido possa atacar a legalidade das escutas com base nesse argumento.
Da jurisprudência citada parece possível inferir que, desde que respeitados os vários requisitos formais e materiais de admissibilidade das escutas telefónicas, quer no processo de origem quer no processo aqui em causa, estas podem, à partida, ser utilizadas noutros processos de inquérito para os quais tenham relevo. E, além disso, é ainda legítimo o recurso a escutas telefónicas mesmo que como primeiro meio de obtenção da prova, desde que o juiz competente demonstre que a sua utilização é indispensável — rectius, adequada, necessária e proporcional em sentido estrito — para a descoberta da verdade ou para a prova.
Na verdade, resulta dos autos em apreço que o recorrente teve à sua disposição todos os meios de defesa necessários para poder invalidar a utilização das escutas telefónicas que foram utilizadas em concreto. Se não o fez, foi porque decidiu não o fazer e não porque não tenha tido hipótese legal de o fazer.
Por outro lado, também resulta dos autos que as escutas eram “o único meio eficaz para a descoberta da verdade e para a prova, conforme ponderação judicial tempestivamente efetuada e espelhada nos correspondentes despachos de autorização…”.
Em suma, em face do exposto, temos de concluir pela não inconstitucionalidade da interpretação normativa ora em apreciação, uma vez que existe a possibilidade de atacar a legalidade das escutas telefónicas no novo processo. Ou seja, tal não põe em causa as garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da CRP) nem a presunção da inocência do arguido, até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (artigo 32.º, n.º 2, da CRP).
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma retirada do artigo 187.°, n.° 1, do CPP, com o sentido de que o juiz de instrução criminal pode autorizar escutas telefónicas a um suspeito, quando, nesse processo, não exista mais do que uma certidão de escutas de outro processo, em que o suspeito não foi constituído arguido;
E, em consequência:
b) Não conceder provimento ao recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 6 de agosto de 2015 - Ana Guerra Martins - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro