ACÓRDÃO N.º 617/2012
Processo n.º 150/12
Plenário
Relator: Conselheiro João Cura
Mariano
Acordam
em Plenário no Tribunal Constitucional
Relatório
A., S.A., deduziu junto do
Tribunal Tributário de Lisboa, impugnação judicial do ato tributário de
liquidação de IRC n.º 2009 2310229161, relativo ao exercício de 2008 e respetiva demonstração de liquidação de juros de mora n.º 2009
00001454403, na parte respeitante à tributação autónoma incidente sobre os
encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e a viaturas
ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, suportados até ao dia
30 de novembro de 2008, inclusive,
invocando, além do mais, a inconstitucionalidade da norma do n.º 1, do artigo
5.º, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, por
violação do princípio da não retroatividade da lei
fiscal.
O Tribunal Tributário de
Lisboa, por decisão de 21 de dezembro de 2011,
decidiu julgar a impugnação procedente, tendo recusado a aplicação do disposto
na norma do n.º 1, do artigo 5.º, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal, consagrado no artigo 103.º, n.º
3, da Constituição.
Tendo havido recusa de
aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, o Ministério
Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
na alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos
seguintes termos:
«A Magistrada do Ministério Público, junto deste
Tribunal, vem, nos autos supra identificados, nos termos dos artigos 280º, nº 2
da Constituição da República Portuguesa, 70º nº 1 al. a) e 72º nº 1, al a) e
nº 3 da Lei 28/82 de 15/11, alterada pelas Leis 85/89 de 7/9 e 13-A/98 de 26/2,
interpor recurso para o Tribunal Constitucional da douta sentença de fls. 481 e
seguintes proferida nos autos à margem referenciados, por
a Meritíssima Juíza ter recusado a aplicação do disposto no nº 1 do artº 5º da LEI 64/2008 de 5/12 DE 5/12 com fundamento na
sua inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proibição da retroatividade fiscal consignado no artigo 103º, nº 3 da
CRP.»
Após apresentação de
alegações foi proferido em 20 de junho de 2012, pela
2.ª Secção deste Tribunal, acórdão, com o n.º 310/2012, que negou provimento ao
recurso, julgando inconstitucional, por violação do n.º 3, do artigo 103.º, da
Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea
a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas,
consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal.
Desta decisão foi interposto
recurso pelo Ministério Público para o Plenário do Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto no artigo 79.º-D, da LTC, invocando a sua contraditoriedade
com o juízo de não inconstitucionalidade proferido pela 3.ª Secção deste
Tribunal no acórdão n.º 18/2011, de 12 de janeiro de
2011.
Admitido liminarmente o
recurso foram apresentadas alegações pelo Ministério Público e pela A., S.A., convergindo no sentido de se julgar
inconstitucional a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea
a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas,
consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal, confirmando-se o acórdão
recorrido.
Fundamentação
1. Do conhecimento do recurso
O artigo 79.º-D, n.º 1, da
LTC, admite o recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional quando alguma
das suas secções venha a julgar uma questão de constitucionalidade em sentido
divergente do anteriormente adotado.
O acórdão n.º 310/2012, da
2.ª Secção deste Tribunal, proferido nestes autos em 20 de junho
de 2012, julgou inconstitucional a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º
64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz
retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do
artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido
diploma legal.
Em 12 de janeiro
de 2011, o acórdão n.º 18/2011, da 3.ª Secção deste Tribunal, tinha julgado
não inconstitucional precisamente a mesma norma.
Verificando-se, assim, o
pressuposto do recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional, importa
conhecer do seu mérito.
2. Do mérito do recurso
A decisão recorrida (o
acórdão n.º 310/2012, de 20 de junho de 2012) julgou
inconstitucional a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea
a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas,
consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal.
Fundamentou este julgamento
nas seguintes razões:
“O artigo 81.º, do
«1 – As despesas não documentadas são tributadas autonomamente,
à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como custo nos termos do
artigo 23.º
2 – A taxa referida no número anterior é elevada para
70% nos casos em que tais despesas sejam efetuadas
por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a
título principal, atividades de natureza comercial,
industrial ou agrícola.
3 – São tributados autonomamente, à taxa de 5%, os
encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com
viaturas ligeiras ou mistas, motos ou motociclos, efetuados
ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjetivamente
e que exerçam, a título principal, atividade de
natureza comercial, industrial ou agrícola.
4 – São tributados autonomamente, à taxa de 15 %, os
encargos dedutíveis respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas
cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando suportados pelos
sujeitos passivos mencionados no número anterior que apresentem prejuízos
fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam
respeito.
[…]»
Após a redação introduzida
pelo artigo 1.º-A, da
«[…]
3 - São tributados autonomamente, excluindo os
veículos movidos exclusivamente a energia elétrica:
a) À taxa de
10%, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os
relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou
motociclos, efetuados ou suportados por sujeitos
passivos não isentos subjetivamente e que exerçam, a
título principal, atividade de natureza comercial,
industrial ou agrícola;
b) À taxa de 5%, os encargos dedutíveis, suportados
pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas
ligeiras de passageiros ou mistas cujos níveis homologados de emissão de CO2
sejam inferiores a 120 g/km, no caso de serem movidos a gasolina, e inferiores
a 90 g/km, no caso de serem movidos a gasóleo, desde que, em ambos os casos,
tenha sido emitido certificado de conformidade.
4 – São tributados autonomamente, à taxa de 20%, os
encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número
anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo
de aquisição seja superior a € 40 000, quando os sujeitos passivos apresentem
prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos
encargos digam respeito.
[…]»
De acordo com o seu artigo 6.º, a
Assim, com a nova redação dada ao n.º 3, do artigo 81.º, do CIRC, pela
referida Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, teve
lugar um agravamento da taxa de tributação aplicável aos encargos dedutíveis
relativos a despesas de representação e relacionados com viaturas ligeiras ou
mistas, motos ou motociclos (os quais se encontravam referidos no anterior n.º
3 dessa disposição), sendo que tal agravamento, por força da retroação de efeitos prevista no artigo 5.º, n.º 1, da
referida Lei, é aplicável aos encargos e despesas já realizados pelos
contribuintes no período de 1 de janeiro de 2008 até
à data de início de vigência da Lei.
2. Conforme se disse, o tribunal recorrido
recusou a aplicação da norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, por violação do princípio da proibição da retroatividade fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da
Constituição.
Esta norma constitucional
dispõe que «Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido
criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa
ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
Sendo o poder de lançar
impostos inerente à noção de Estado, como manifestação da sua soberania,
perante um longo passado de abusos e arbitrariedades, a introdução do princípio
da legalidade nesta matéria veio conferir-lhe um estatuto de cidadania no mundo
do Direito.
Assim, para que o Estado
possa cobrar um imposto ele terá que ser previamente aprovado pelos
representantes do povo e terá que estar perfeitamente determinado em lei geral
e abstrata, só assim se evitando que esse poder possa
ser exercido de forma abusiva e arbitrária, indigna de um verdadeiro Estado de
direito.
Por outro lado, o mesmo
princípio da legalidade não poderá deixar de impedir que a lei tributária
disponha para o passado, com efeitos retroativos,
prevendo a tributação de atos praticados quando ela
ainda não existia, sob pena de se permitir que o Estado imponha determinadas
consequências a uma realidade posteriormente a ela se ter verificado, sem que
os seus atores tivessem podido adequar a sua atuação
de acordo com as novas regras.
Esta exigência revela as
preocupações do princípio da proteção da confiança
dos cidadãos, também ele princípio estruturante do Estado de direito
democrático, refletidas na vertente do princípio da
legalidade, segundo o qual, a lei, numa atitude de lealdade com os seus
destinatários, só deve reger para o futuro, só assim se garantindo uma relação
íntegra e leal entre o cidadão e o Estado.
É neste sentido que deve ser
entendida a opção do legislador constituinte de, na revisão constitucional de
1997, consagrar no artigo 103.º, n.º
O Tribunal Constitucional
tem vindo a seguir o entendimento que esta proibição da retroatividade,
no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade
autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova
pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei
antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade
ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas
situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda
perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um
agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários
que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se,
ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (v.g. acórdãos
n.º 128/2009, 85/2010 e 399/2010, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Tecidas estas considerações,
vejamos se a norma aqui sindicada viola o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável, consagrado na
Constituição.
Para isso, importa que se
proceda, previamente, a uma breve análise do tipo tributação a que respeitam as
normas em causa nos autos, ou seja, a tributação autónoma em IRC.
3. Há que recuar ao ano de 1990 para
encontrarmos a primeira intervenção do legislador no sentido de sujeitar
determinadas despesas a tributação autónoma, ocorrida com a publicação do
Esta norma foi objeto de diversas alterações posteriores que,
sucessivamente, procederam ao aumento da taxa de
tributação nela prevista. Assim, a referida taxa começou por ser de 10% na
versão originária do
Posteriormente, com a
“Reforma da tributação do rendimento”, aprovada pela
Assim, no que respeita ao
IRC, e conforme já referido, o artigo 81.º, n.º 3, do
Com este tipo de tributação
teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a
reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem
negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas
despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de
dividendos que, assim, apenas ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da
empresa, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas
ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às
correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos
trabalhadores, para a segurança social.
Saldanha Sanches (cfr. Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora,
2007, pág. 407), a propósito da tributação autónoma prevista no artigo 81.º,
n.º 3, do
«Neste tipo de tributação, o legislador procura
responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que
se encontram na zona de interseção da esfera pessoal
e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais
atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros.
Apresenta a norma uma característica semelhante à que
vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida
da taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de
normalidade fiscal. Se na declaração do sujeito passivo não há lucro, o custo
pode ser objeto de uma valoração negativa: por
exemplo, temos uma taxa de 15% aplicada quando o sujeito passivo teve prejuízos
nos dois últimos exercícios e foi comprada uma viatura ligeira de passageiros
por mais de € 40 000 (artigo 81.º, n.º 4).
Com esta previsão, o sistema mostra a sua natureza
dual, com uma taxa agravada de tributação autónoma para certas situações
especiais que se procura desencorajar, como a aquisição de viaturas para fins
empresariais ou viaturas em princípio demasiado dispendiosas quando existem
prejuízos. Cria-se, aqui, uma espécie de presunção de que estes custos não têm
uma causa empresarial e, por isso, são sujeitos a uma tributação autónoma. Em
resumo, o custo é dedutível, mas a tributação autónoma reduz a sua vantagem
fiscal, uma vez que, aqui, a base de incidência não é um rendimento líquido,
mas, sim, um custo transformado – excecionalmente –
em objeto de tributação.»
Contrariamente ao que
acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa
o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só
no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual
o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada,
em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação
autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício,
por não estar diretamente relacionada com a obtenção
de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.
Assim, e no caso do IRC,
estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento
percebido de per si, mas sim o englobamento de
todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o
facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de
tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do
Já no que respeita à
tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização
da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao
longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.
Esta característica da
tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos
periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um
determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo,
gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto
gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o
contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter
avulso).
Na tributação autónoma, o
facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de
realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o
apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas
de tributação aos diversos atos de realização de
despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um
determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o
mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter
duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para
efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação
autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência
do volume das despesas efetuadas na determinação da
taxa.
E esta distinção tem
relevância, designadamente, para efeitos de aplicação da lei no tempo e para a
análise da questão da proibição da retroatividade da
lei fiscal desfavorável prevista no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Com efeito, conforme refere
Cardoso da Costa “(…) a linha demarcadora do âmbito da
retroatividade fiscal constitucionalmente admissível
passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e
«periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma
«instantaneamente», para cada um deles «de per si» (maxime,
pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e
passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de
situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de
produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente
imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias,
cujo possível peso não poderá ignorar-se.” (Cfr. Cardoso da Costa, "O Enquadramento Constitucional do
Direito dos Impostos em Portugal", in Perspetivas Constitucionais nos 20
anos da Constituição, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).
Neste caso estamos perante
um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e
esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no
tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Ou seja, as taxas de tributação autónoma
aqui em análise não se referem a um período de tempo, mas a um momento: o da
operação isolada sujeita à taxa, sem prejuízo de o apuramento do montante
devido pelos agentes económicos sujeitos à referida “taxa” ser efetuado periodicamente, num determinado momento,
conjuntamente com outras operações similares, sem que a liquidação conjunta
influa no seu resultado.
Por esta razão, Sérgio
Vasques (cfr. Manual de Direito
Fiscal, Almedina, 2011, pág. 293, nota 470) chama a atenção para a
circunstância de os impostos sobre o rendimento contemplarem elementos de
obrigação única, como as taxas liberatórias do IRS ou as taxas de tributação
autónoma do IRC.
4. Regressando ao caso concreto, é manifesto
que se está perante uma hipótese de aplicação retroativa
do disposto no artigo 81.º, n.º 3, do
Com efeito, o facto gerador
da obrigação fiscal – a realização de despesas de representação ou com viaturas
ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, no
período de 1 janeiro de 2008 até à entrada em vigor
da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro (6 de dezembro de 2008) – ocorre indubitavelmente antes da
publicação da lei nova, não sendo possível entender que se está perante um
facto jurídico-fiscal complexo de formação sucessiva.
A aplicação da nova lei a
este facto ocorrido anteriormente à sua aprovação envolve, pois, uma
retroactividade autêntica.
O
que releva, face aos princípios constitucionais enunciados, não é o momento de
liquidação de um imposto, mas sim o momento em que ocorre o ato que determina o
pagamento desse imposto. É esse ato que vai dar origem à constituição de uma
obrigação tributária, pelo que é nessa altura, em obediência ao princípio da
legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção
da confiança, que se exige, como medida preventiva, que já se encontre em vigor
a lei que prevê a criação ou o agravamento desse imposto, de modo a que o
cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.
Uma vez que a alteração efetuada ao artigo 83.º, n.º 3, do
Contudo, como vimos, embora
a referida
Ora, tendo já ocorrido o
facto que deu origem à obrigação tributária posteriormente agravada por lei
nova, as razões que presidiram à consagração da regra de proibição da retroatividade neste domínio estão integralmente presentes,
uma vez que importa prevenir o risco abstrato de que
a lei publicada com retroação de efeitos provoque agravos
financeiros desrazoáveis, pela impossibilidade em que se encontravam os
contribuintes afetados, vinculados a tais factos já
ocorridos, de prever e prover quanto às suas consequências tributárias,
determinadas por lei futura.
Assim, não pode a lei, sob
pena de violação da proibição imposta no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição,
agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efetuadas aquando da sua entrada em vigor, pelo que, tendo
a norma do artigo 5.º, n.º 1, da
Na verdade, embora a
tributação de determinados encargos esteja formalmente inserida no Código do
IRC e o respetivo montante seja liquidado no âmbito
daquele imposto, tal tributação é uma imposição fiscal materialmente distinta
da tributação em IRC. Enquanto aquela incide, excecionalmente,
sobre a realização de determinadas despesas, a última incide sobre
determinados rendimentos, funcionando apenas como elo entre elas a
circunstância dessas despesas serem dedutíveis no apuramento destes
rendimentos, visando-se com a criação daquele imposto reduzir a vantagem fiscal
resultante da dedução desses custos. Mas a existência do imposto aqui em
análise em nada influi no montante do IRC, atuando de
forma perfeitamente autónoma relativamente a este, pelo que o seu
funcionamento deve ser encarado somente segundo os elementos que o caracterizam.
Assim, esgotando-se o facto
tributário que dá origem a esta tributação autónoma, no ato de realização de
determinada despesa que está sujeita a tributação, embora, o apuramento do
montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha apenas
a efetuar no fim de um determinado período
tributário, a aplicação de um agravamento da respetiva
taxa, relativamente a encargos ocorridos previamente à entrada em vigor da nova
lei que prevê esse agravamento, corresponde a uma aplicação de lei nova a um
facto tributário anterior, verificando-se uma situação de retroatividade
autêntica proibida perlo artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Pelas razões expostas, deve
ser julgada inconstitucional, por violação do n.º 3, do artigo 103.º, da
Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea
a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas,
consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal, julgando-se improcedente
o recurso interposto pelo Ministério Público e confirmando-se a decisão
recorrida.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional,
por violação do n.º 3, do artigo 103.º, da Constituição, a norma do artigo
5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na
parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a
alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o
Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no
artigo 1.º-A do aludido diploma legal;
e, em consequência,
b) Julgar improcedente o
recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se a decisão
recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 19 de dezembro de 2012 – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e
Castro – Pedro Machete – Vítor Gomes – Fernando Vaz Ventura – José da Cunha
Barbosa – Maria João Antunes – Maria José Rangel de Mesquita – Maria de Fátima
Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral (vencida, nos termos da declaração que junto)
– Carlos Fernandes Cadilha (vencido nos termos da declaração de voto anexa) –
Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE
VOTO
Vencida: mantenho o juízo de não
inconstitucionalidade, que já subscrevi no Acórdão nº 18/2011.
Penso que o Tribunal segue um raciocínio que já vinha
sendo esboçado em decisões anteriores (Acórdão nº 399/10) e do qual,
claramente, me afasto. O raciocínio é o seguinte. Em primeiro lugar, parte-se
da proposição segundo a qual o nº 3 do artigo 103.º da CRP contém “uma regra
absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou
agravadoras de imposto”, regra essa cujo sentido o Tribunal pode e deve apreender sem recurso interpretativo ao
princípio que a gerou – o princípio da proteção da
confiança -,e, portanto, sem “qualquer juízo de proporcionalidade” que vise
verificar se a medida “legislativa com eficácia retroativa
(…) afeta desrazoavelmente a confiança dos cidadãos”.
Em segundo lugar, diz-se que “esta proibição de retroatividade,
no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade
autêntica, abrangendo os casos em que o facto tributário que a lei nova
pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei
antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade
ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas
situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda
perduram no presente”. Em terceiro lugar, avalia-se o direito
infraconstitucional, procurando saber se a forma como nele
o legislador conformou o facto tributário coloca a “retroatividade”
no âmbito da primeira categoria (a da retroatividade
autêntica) ou no âmbito da segunda (a da retrospetividade
ou retroatividade imprópria).
O que me faz discordar deste raciocínio é a proposição
de que se parte. Não é possível, a meu ver, defender que o nº 3 do artigo 103.º
consagra uma “regra absoluta”, cujo sentido seja apreensível sem qualquer
recurso, no plano hermenêutico, ao princípio da proteção
da confiança. Se se sustenta a plena autonomia de sentido do nº 3 do artigo
103.º da CRP face a qualquer ponderação principial,
como é que se passa logicamente da primeira proposição para a segunda? Como é
que se sabe que a Constituição só proíbe a retroatividade
autêntica e não proíbe a inautêntica? E como é que se distingue uma da outra?
A resposta à última pergunta dá-a o Acórdão a partir
do critério do facto tributário, gerador do imposto. Se este é um facto
passado, anterior à lei nova, com todos os seus efeitos já produzidos, a retroatividade é própria ou autêntica e por isso
constitucionalmente proibida; se este
não é um facto passado, anterior à lei nova, mas com efeitos ainda não
totalmente produzidos, a retroatividade é inautêntica
e por isso constitucionalmente permitida.
Não afirmo que esta tese, assim enunciada, não esteja
certa. O que me parece é que ela não pode ser enunciada só
assim. Ao fazer depender, de forma absoluta e exclusiva, do critério
do facto tributário (formalmente entendido) a distinção entre retroatividade própria e retroatividade
imprópria, o Tribunal corre o risco de, em inversão metódica, vir a interpretar
a Constituição em conformidade com a lei, em vez de interpretar a lei em
conformidade com a Constituição. Se não há nenhum critério material, de
ordem constitucional, que permita separar a retroatividade
intolerável da tolerável, então, o âmbito de aplicação do
princípio da proibição da retroatividade da lei
fiscal pode ficar inteiramente dependente das escolhas do legislador.
Basta que este último atribua às coisas a configuração formal de “imposto
autónomo”, com facto tributário formalmente “único” e “com efeitos totalmente
já passados”, para que se esteja no campo da “retroatividade”
proibida; e, inversamente, basta que o mesmo
legislador configure formalmente as coisas de outro modo para que se esteja no
campo da “retroatividade” tolerada.
Não me parece que seja aceitável um tal resultado. Por
isso votei no sentido da não inconstitucionalidade: como se demonstra no ponto
4 da fundamentação do Acórdão nº 18/2011, estão em causa, neste caso, encargos
que, por natureza, são indispensáveis para a
formação do rendimento sobre o qual incide o IRC. Não compreendo por isso em
que é que se pode estribar a qualificação do imposto que sobre eles recai como
imposto “autónomo”, (e “autónomo” face ao IRC), de tal forma que, ao contrário
do que sucederia se a alteração legislativa incidisse sobre o restante
rendimento sujeito a IRC, se considere aqui o facto tributário como tendo
produzido já todos os seus efeitos. A não ser que se adote
(como penso que aconteceu) uma visão excessivamente formal do princípio da
proibição da retroatividade da lei fiscal, que,
justamente por ser excessivamente formal,
corre o risco de colocar a força vinculativa da Constituição à disposição do
legislador ordinário.
Maria Lúcia Amaral.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido pelas razões
constantes do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011 a que acrescento
as seguintes considerações.
Os n.ºs 3 e 4 do artigo 81º
do CIRC referem-se a encargos dedutíveis como custos para efeitos de IRC, isto
é, a encargos que comprovadamente foram indispensáveis à realização dos
proveitos, à luz do que estabelece o artigo 23º, n.º 1, do CIRC, sendo a
tributação prevista nesses preceitos explicada por uma intenção legislativa de
anular ou atenuar a vantagem fiscal que resulte de dedução de despesas que o
sujeito passivo utilize para fins não empresariais.
A nova redação
dada a esses preceitos pela Lei n.º 60/2008 veio reforçar esta perspetiva, diferenciando diversas situações possíveis, que
são tributadas, consoante os casos, à taxa de 5%, 10% ou 20%, com o que se
pretende não só desincentivar a realização de despesa como estimular as
empresas a optarem por soluções que sejam mais vantajosas do ponto de vista do
interesse público.
Não estamos aqui, em rigor,
perante um imposto de obrigação única mas perante factos tributários que
incidindo sobre as despesas dedutíveis estão indissociavelmente ligados ao
apuramento e liquidação do IRC, e perante uma solução legislativa cujo objetivo poderia ter sido atingido, ainda que com menor
eficácia, através da redução de encargos dedutíveis para a determinação da
matéria coletável.
Por outro lado, se o
princípio da proibição da retroatividade do imposto,
tal como resulta do artigo 103, n.º 3, da Constituição, visa tutelar a
confiança dos contribuintes na continuidade do regime jurídico, impedindo que
estes possam ser surpreendidos por um agravamento fiscal em relação a factos
tributários que produziram todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, não
há nenhuma razão para que esse mesmo princípio tenha aplicação na situação
versada nas referidas normas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 81º do CIRC.
De facto, estando em causa
encargos que, por natureza, são indispensáveis para a realização dos proveitos
ou ganhos que estão sujeitos a imposto, não é aceitável a alegação de que o
contribuinte teria incorrido em despesas, na perspetiva
da continuidade do regime legal anteriormente existente, que já não efetuaria caso pudesse contar entretanto com um agravamento
da taxa de tributação.
Se essas despesas eram efetivamente necessárias ao desenvolvimento da atividade da empresa e à obtenção do lucro, elas não
deixariam de ser realizadas, em condições de normalidade, mesmo que fosse já
conhecida ou previsível uma alteração da taxa de tributação aplicável; além de
que o regime legal, mesmo antes da entrada em vigor da Lei n.º 60/2008, tinha
já em vista estabelecer limitações para os encargos de exploração que pudessem
figurar como custos ou perdas de exercício.
E não há assim motivo para
considerar que o sujeito passivo do imposto teria adequado as suas opções em
termos das despesas e encargos, no período que decorreu entre o início do ano e
a entrada em vigor da nova lei, em função do maior ou menor agravamento da taxa
de tributação.
Se o interessado, de outro
modo, realizou artificiosamente despesas que não eram indispensáveis para a
realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto de IRC, e apenas
pretendeu com tais despesas afetar negativamente a
receita fiscal, a sua posição jurídica não é suscetível
de ser tutelada por via do princípio da proteção da
confiança (e da proibição de retroatividade fiscal
que dele é uma mera decorrência), visto que para que haja lugar à tutela
jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, antes de mais, que as
expectativas dos privados na continuidade no regime sejam legítimas,
justificadas e fundadas em boas razões.
Teria assim formulado um
juízo de não inconstitucionalidade da referida norma do n.º 3 do artigo 81º do
CIRC.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha.