ACÓRDÃO N.º 594/12
Processo nº 482/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
.
Acordam na 3ª
Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. interpôs recurso, ao abrigo da alínea
b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do acórdão proferido em 1 de março de 2012 pelo Tribunal Central Administrativo Sul. O
acórdão recorrido, revogando sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de
Lisboa, indeferiu o pedido da recorrente de intimação do Ministério da Educação
e Ciência para admitir a sua matrícula no curso de medicina ao abrigo do regime
especial instituído pelo Decreto- Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro.
Tendo o
recurso de constitucionalidade sido admitido e prosseguido, a recorrente alegou
e concluiu nos seguintes termos:
"[...]
O presente
recurso resume-se a uma questão muito simples:
Saber se é
inconstitucional a norma relativa ao regime especial de acesso ao ensino
superior constante do art. 10.º do Decreto-Lei n.º
393-A/99, de 2 de outubro, quando interpretada no
sentido de excluir do seu âmbito de aplicação os candidatos que, concluíram o
curso de ensino secundário num país estrangeiro no ano letivo
imediatamente anterior ao da apresentação do requerimento de inscrição e
matrícula, onde residiram por mais de dois por se encontrarem a acompanhar um
familiar em missão oficial, mas que, ainda que por alguns dias apenas, à data
de apresentação daquele requerimento já haviam voltado a residir em Portugal.
II. A resposta
a esta questão está obviamente ligada à interpretação da norma em causa.
III. Scire leges non hoc est
verba earum tenere, sed vim ac potestatem. Conhecer as leis não é saber as
suas palavras, mas a sua força e o seu sentido (Celso, D.I, 3, 17).
IV. O art. 10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99 dá acesso especial ao
ensino superior a uma série de cidadãos que, «à data de apresentação do
requerimento de matrícula e inscrição, se encontrem há mais de dois anos em
país estrangeiro» e que «à data de apresentação do requerimento de matrícula e
inscrição, tenham residência permanente há mais de dois anos nesse país
estrangeiro».
V. A lei
exige, evidentemente, que os dois anos letivos
imediatamente anteriores ao requerimento o de matrícula e inscrição, e que incluem o momento da
candidatura, tenham sido passados no estrangeiro em certas condições.
VI. À data da
candidatura, a Recorrente tinha residência no estrangeiro, nas condições
legais, há mais de dois anos letivos. Tinha no ano letivo então em curso (e que só acabaria na véspera do
início do ano letivo seguinte) e tivera nos dois anos
anteriores a esse.
VII. É claro
que a Recorrente já tinha regressado a Portugal, porque as aulas já tinham
acabado e estava de férias escolares, e o seu pai, que era quem estava ao
serviço do Estado português, regressaria definitivamente uns dias depois
(também antes do dia de entrega da candidatura), mas a sua residência
permanente no estrangeiro ocupou todo o tempo de aulas (e exames, etc.) do ano letivo em cujo termo a Recorrente se candidatou ao ensino
superior (e dos dois anos anteriores, claro).
VIII. A
interpretação que a Recorrente defende tem o mínimo de correspondência verbal
exigido pelo art. º 2 do Código Civil, embora não
inclua a ideia disparatada de que no momento em que os documentos de
candidatura são entregues o candidato em férias escolares tenha de continuar a
residir no estrangeiro.
IX. O tribunal
a quo não fez o esforço de perceber a regra do art.
10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99. Se tivesse feito, teria visto que essa regra
não se compõe de palavras arbitrárias, mas antes consagra requisitos que fazem
pleno sentido no quadro geral deste diploma, mormente, quando faz depender o
acesso ao regime especial, além do mais, dos dois seguintes requisitos
cumulativos:
— O requerente
tem de ter passado mais de dois anos letivos no
estrangeiro ao serviço do Estado português ou acompanhando familiar ao serviço
do Estado português.
— E esses dois
anos letivos têm de incluir o momento da candidatura
ao ensino superior, ou seja, o candidato não pode ter deixado passar novo ano letivo, desde o seu regresso, antes de se candidatar.
X. Estes
requisitos são bons de compreender no quadro da prevenção daqueles casos em
que, por abuso ou fraude à lei, os candidatos se colocassem propositadamente
sob a égide do regime especial, no lugar de acederem via regime geral.
XI. Pelo
contrário, não se compreende que a residência no estrangeiro que tenha incluído
todo o período de aulas e exames do ano letivo ainda
tivesse de incluir o próprio impulso formal do processo administrativo de
candidatura.
XII. A
cessação da missão do pai da Recorrente antes dela se candidatar à universidade
não faz ignorar o afastamento do país por dois anos letivos,
sendo que esse é o pressuposto essencial em que assenta o regime jurídico
controvertido.
XIII. A
situação de desvantagem que o regime especial visa compensar já se encontrava
concretizada quando ela concorreu à universidade e não desapareceu por a missão
do pai ter terminado 10 dias antes da candidatura.
XIV. Por outro
lado, o facto de a Recorrente poder, em teoria, aceder ao ensino superior via
regime geral não constitui de per si motivo impeditivo do acesso pelo regime
especial invocado. Desde logo, porque não existe regra legal que o impeça e, se
assim fosse, nenhum candidato poderia aceder pelos regimes especiais, visto
que, em teoria, todos poderiam aceder pelo regime geral. Para além de que
estaria a concorrer em condições de desvantagem face aos demais candidatos.
XV. A situação
da Recorrente tem um traço distintivo: foi afastada de Portugal em virtude da
nomeação do seu pai para missão no estrangeiro, o que representa, aos olhos do
legislador, uma situação de desvantagem face aos demais candidatos ao ensino
superior.
XVI. Aquela nomeação
confere estatuto especial à Recorrente porque, ao mesmo tempo que afasta
qualquer suspeita de abuso ou fraude no acesso ao ensino superior, legitima uma
prerrogativa de ingresso sem estar sujeita às limitações quantitativas do
regime geral.
XVII. Os
princípios da justiça e da igualdade são relevantes para este caso enquanto
elementos interpretativos que o tribunal a quo não podia deixar de ter em conta
para perceber a regra do art. 10.º, uma vez que são
precisamente razões de justiça e de igualdade que estão na base dos regimes
especiais de acesso ao ensino superior.
XVIII. Em
suma, a interpretação correta do art. 10.º do
Decreto-Lei n.º 393-A/99, é a seguinte:
— O candidato
pelo regime especial de acesso tem de ter passado mais de dois anos letivos no estrangeiro ao serviço do Estado português ou
acompanhando familiar ao serviço do Estado português.
— Esses dois
anos letivos têm de incluir o momento da candidatura
ao ensino superior português, ou seja, o candidato, desde o seu regresso e
antes de se candidatar, não pode ter deixado passar novo ano letivo (nem novo período de aulas num ano letivo).
XIX. Esta
interpretação é a única que dá sentido, dá vim ac potestatem,
ao referido art. 10.º e assim é a única que obedece à
presunção de que «o legislador consagrou as soluções mais acertadas» (art. 2º, n.º 3, do mesmo Código Civil). Para além de que
evita situações de abuso e fraude à lei no acesso ao ensino superior por este
regime especial.
XX. Já a
interpretação do art. 10.º acolhida pelo tribunal a
quo é inconstitucional.
XXI. A ideia
de igualdade, maxime de igualdade no acesso ao ensino
superior, é transversal ao sistema educativo nacional (ver arts.
2.º, n.º 2, 12.º, n.º 2, alínea a), e n.º 6 da LBSE e arts.
73º, n.º 1, e 74.º, n.º 1 Constituição) e até serve de fundamento à criação de
regimes especiais ou privilegiados de acesso, como forma de eliminar
desigualdades ou desvantagens prévias de determinado conjunto de candidatos
(ver o Decreto-Lei n.º 393 A/99 e, a seu propósito, o Parecer da Procuradoria
Geral da República, n.º 110/2003, in DR, 11, n.º 28, de 03.02.2004, p. 1924 ss.)
XXII. A
criação de um regime especial como o que resulta da norma do art. 10. Decreto-Lei n.º 393-A/99, na dimensão
interpretativa dada pelo tribunal a quo, viola o princípio da igualdade de
todos os cidadãos perante a lei (art. 13., n.º 1 da
Constituição) e o direito a uma efetiva igualdade de
oportunidades no acesso ao ensino superior (arts.
74º, n.º 1 e n.º 2, alínea d), e 76., n.º 1 da Constituição).
Termos em que
se requer seja:
a) Julgada
inconstitucional a norma constante do art. 10.º do
Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, quando
interpretada no sentido de excluir daquele regime especial de acesso ao ensino
superior o candidato que concluiu o curso de ensino secundário num país
estrangeiro no ano letivo imediatamente anterior ao
da apresentação do requerimento de inscrição e matrícula, onde residiu por mais
de dois por se encontrar a acompanhar um familiar em missão oficial, mas que,
ainda que por alguns dias apenas, à data de apresentação daquele requerimento
já tenha voltado a residir em Portugal e/ou cujo familiar já tenha terminado
aquela missão, e
b)
Consequentemente, dado provimento ao recurso..."
O Ministério
da Educação e Ciência contra-alegou e conclui nos termos seguintes:
"1. Das
conclusões do presente recurso, que delimitam o seu objeto
(cfr. artigo 684º, nº 3 do C.P.C.) resulta que a
questão a decidir é saber se viola ...o princípio da
igualdade de todos os cidadãos perante a lei (art.
13, nº. 1 da Constituição) e o direito a uma efetiva
igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior (arts.
749, nºs. 1 e 2, alínea d), e 76, nº 1 da Constituição) a norma do artigo 10º
do Decreto-Lei nº 393-A/99, de 2 de outubro,
interpretada no sentido de excluir do seu âmbito de aplicação o candidato ao
ensino superior, residente em Portugal à data da apresentação do requerimento
de inscrição e matrícula, titular de curso do ensino secundário concluído no
estrangeiro, onde residiu por mais de dois anos a acompanhar o seu pai, aí
deslocado em missão oficial, também já terminada naquela data.
2. O acesso ao
ensino superior pode ter lugar pelo regime geral ou pelos regimes especiais:
3. No regime
geral as vagas são limitadas e os candidatos selecionados
através da prestação de provas de ingresso ou, em sua substituição, através de
exames finais, e ordenados de acordo com a classificação obtida, determinada
segundo os critérios legalmente definidos (cf. Decreto-Lei nº. 296-A/98, de
25.09, alterado pelos Decretos-Leis nºs 99/99, de 30.03, e 26/2003, de 7.02).
4. Nos regimes
especiais, os candidatos têm garantido o acesso ao ensino superior e ao
estabelecimento de ensino pretendido, o que constitui vantagem concedida tendo
em atenção situações especiais, pelo que se exige o cumprimento de todos os
requisitos legalmente previstos.
5. No caso do
regime especial pelo qual a Recorrente pretendia aceder ao ensino superior,
previsto no artigo 10º do D.L. nº. 393-A/99, os candidatos têm que ser (1)
familiares de cidadão português há mais de dois anos colocado em país
estrangeiro na qualidade de funcionário público, em missão oficial, (2)
titulares de curso de ensino secundário estrangeiro completado em país
estrangeiro que aí constitua habilitação académica suficiente para ingresso no
ensino superior oficial em curso congénere do curso para o qual requereram a
matrícula, ou titular de curso de ensino secundário português completado em
país estrangeiro, no qual comprovem aprovação nas disciplinas do ensino secundário
correspondentes às provas de ingresso exigidas no ano em causa; e (3) à data de
apresentação do requerimento de matrícula e inscrição ter residência permanente
há mais de dois anos nesse país estrangeiro (cfr.
artigos 10º e 5º do DL 393-A/99).
6. A Recorrente
residiu com o seu pai, funcionário público, em missão oficial no estrangeiro,
entre 1 de agosto de 2008 e 31 de julho de 2011
(factos números 1 e 2 do julgamento da matéria de facto), período durante o
qual completou o curso do ensino secundário belga (factos números 3 e 4 do
julgamento da matéria de facto), regressando a Portugal em 15.07.2011 (facto
número 6 do julgamento da matéria de facto), onde requereu a matrícula e
inscrição no curso de Medicina no dia 10/08/2011 (facto número 7 do julgamento
da matéria de facto). Assim,
7. Na data em
que apresentou o requerimento de inscrição e matrícula no curso de Medicina, a
Recorrente não residia no estrangeiro há quase um mês, nem o seu pai aí se
encontrava em missão oficial há, aproximadamente, dez dias.
8. Numa perspetiva sintética, o princípio da igualdade, enquanto
princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio
(cit. do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 218/2012, de 26.04.2012,
Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha, Proc. nº. 197/2012).
9. A
inconstitucionalidade da interpretação acolhida do artigo 10º do D.L. nº.
393-A/99, por violação do ... princípio
da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (art.
13, nº 1 da Constituição) e o direito a uma efetiva
igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior (arts.
742, nº. 1 e nº. 2, alínea d) e 76, nº 1
da Constituição) (cit. conclusão XXII) só se poderia colocar, ou por
instituir regime especial sem justificação bastante, ou por não incluir no seu
âmbito situações para as quais também se verifica a justificação que levou a
institui-los.
10. Ao
contrário do que a Recorrente sustenta, e salvo o devido respeito por opinião
contrária, o regime previsto no citado artigo 10º não resulta dos candidatos
terem sido afastados ... de
Portugal em virtude da nomeação do seu pai para missão no estrangeiro, o que
representa, aos olhos do legislador, uma situação de desvantagem face aos
demais candidatos ao ensino superior (cit. conclusão XV).
11. A ser
assim, o regime teria de ser aplicável também aos candidatos residentes no
estrangeiro, familiares de trabalhadores portugueses aí deslocados, mas que não
fossem funcionários públicos, ou sendo funcionários públicos, aí se não
encontrassem em missão oficial, o que não sucede, podendo estes candidatar-se
apenas pelo regime geral. Deste modo,
12. É na
interpretação sustentada pela Recorrente que a norma seria manifestamente
inconstitucional por violação do princípio da igualdade (cfr.
artigos 13, 73º, nº. 1 e 74º, nº. 1 da Constituição), ao tratar de forma
diferente os funcionários públicos em missão no estrangeiro e seus familiares
das demais pessoas que, por razões profissionais, suas ou dos seus familiares,
se tiveram de afastar do território nacional, pois
13. O fim
prosseguido pelo legislador ao estabelecer o regime especial em questão foi
conceder uma regalia para funcionários públicos, em missão oficial no
estrangeiro, de forma a compensar a penosidade causada pela ausência do País,
tornando assim mais atrativa a aceitação dessa
missão.
14. Não há
assim violação possível do princípio da igualdade: os candidatos em situação
igual à da Recorrente não têm acesso pelo regime especial em causa e, todos os
que por ele acederam, estavam em situação que preenchia
todos os requisitos que o legislador erigiu como determinantes, o que não
sucedia com a Recorrente.
15. Os
requisitos exigidos não são distinções discriminatórias, desigualdades
materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer
justificação objetiva e racional: por definição, ao
consagrar um regime especial, em atenção a circunstâncias especiais, tem de ser
definida a distinção entre aqueles que dele beneficiam e os outros, no caso o
candidato residir no estrangeiro com funcionário público português, aí colocado
em missão oficial. Tanto assim que,
16. A solução
de considerar que se deveria exigir apenas a conclusão do ensino secundário no
ano letivo anterior — que não é interpretação, porque
não tem na letra da lei qualquer correspondência — preconizada pela Recorrente
e qualificada como a única conforme à Constituição, introduz uma desigualdade
sem justificação em relação a todos os demais candidatos do regime geral,
incluindo aqueles que também terminaram o ensino secundário no estrangeiro por
os seus familiares não funcionários públicos em missão oficial aí residirem.
Com efeito,
17. A
Recorrente, à data em que apresentou a sua candidatura ao ensino superior, já
não residia no estrangeiro e o seu pai já havia terminado a missão oficial que
ali o conduzira (factos provados, números 1 a 7 da decisão em 1 instância).
Pelo exposto,
18. O artigo
10º do Decreto-Lei nº. 393-A/99 não padece dos vícios que a Recorrente lhe
atribui, devendo em consequência o presente recurso ser julgado improcedente,
com o que se fará a costumada justiça."
Cumpre
decidir.
II. Fundamentos
2. O
acórdão recorrido, em provimento de recurso interposto pelo Ministério da
Educação e Ciência (Ministério da Educação), revogou a sentença proferida pelo
Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que intimara aquele Ministério a
admitir o ingresso da ora Recorrente no curso de mestrado integrado de
medicina, no ano letivo de 2011/2012, mediante a
atribuição de uma vaga por via do regime especial de acesso ao ensino superior
criado pelo Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro.
Este diploma estabelece regimes especiais de acesso e ingresso no ensino
superior destinados a estudantes que reúnam condições habilitacionais e
pessoais específicas que o legislador entendeu justificarem um tratamento
privilegiado relativamente ao regime geral.
O art.º 3.º do
referido diploma enumera um conjunto de situações de índole bastante
diversificada. Podem beneficiar de condições especiais de acesso nos termos
nele fixados os estudantes que se encontrem numa das seguintes situações:
a)
Funcionários portugueses de missão diplomática portuguesa no estrangeiro e seus
familiares que os acompanhem;
b) Cidadãos
portugueses bolseiros no estrangeiro ou funcionários públicos em missão oficial
no estrangeiro e seus familiares que os acompanhem;
c) Oficiais do
quadro permanente das Forças Armadas Portuguesas, no âmbito da satisfação de
necessidades específicas de formação das Forças Armadas;
d) Estudantes
bolseiros nacionais de países africanos de expressão portuguesa, no quadro dos
acordos de cooperação firmados pelo Estado Português;
e)
Funcionários estrangeiros de missão diplomática acreditada em Portugal e seus
familiares aqui residentes, em regime de reciprocidade;
f) Atletas
praticantes com estatuto de alta competição ou integrados no percurso de alta
competição a que se refere o Decreto-Lei n.º 125/95, de 31 de maio, alterado
pelo Decreto-Lei n.º 123/96, de 10 de agosto, regulado pela Portaria n.º
947/95, de 1 de agosto;
g) Naturais e
filhos de naturais do território de Timor Leste.
A norma que
foi objeto de interpretações divergentes e que, na
interpretação que prevaleceu no acórdão recorrido, constitui objeto do presente recurso de fiscalização de
constitucionalidade, está inserta no art.º 10.º do diploma, cujo teor se
transcreve (em itálico o segmento normativo sobre que incide a controvérsia):
Artigo 10º
Âmbito
São abrangidos
pelo regime da alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º os cidadãos portugueses e seus
familiares que os acompanhem que, à data de apresentação do requerimento de
matrícula e inscrição, se encontrem há mais de dois anos em país estrangeiro na
qualidade de bolseiros, ou equiparados, do Governo Português, na qualidade de
funcionários públicos em missão oficial no estrangeiro ou na de funcionários
portugueses da União Europeia, e que, cumulativamente:
a) Sejam
titulares de:
i) Curso de ensino secundário estrangeiro
completado em país estrangeiro que aí constitua habilitação académica
suficiente para ingresso no ensino superior oficial; ou
ii)
Curso de ensino secundário português completado em país estrangeiro;
b) À data de apresentação do requerimento de matrícula e inscrição
tenham residência permanente há mais de dois anos nesse país estrangeiro.
Considerou a
Administração que o facto de o pai da recorrente ter terminado a missão oficial
no estrangeiro em 31 de julho de 2011 e de a
recorrente ter regressado a Portugal em 15 de julho
de 2011 implicava que esta não preenchesse o requisito de residir no
estrangeiro à data (10 de agosto de 2011) de apresentação do requerimento de
inscrição no ensino superior, imposto pela al. b) do artigo 10.º e,
consequentemente, não pudesse considerar-se abrangida pela alínea b) do artigo
3º do Decreto- Lei n.º 393-A/99. Segundo o Ministério da Educação, ao exigir
que «à data de apresentação do requerimento de matrícula o candidato tenha
residência permanente há mais de dois anos nesse país estrangeiro», o artigo
10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99 não permitiria que um candidato, que
preenchesse os restantes requisitos exigidos naquela disposição mas que tivesse
regressado a Portugal (ou cujo seu familiar tenha terminado a missão oficial)
entre a data de conclusão do ensino secundário, completado nesse ano letivo, e a data de apresentação do requerimento,
beneficiasse da possibilidade de inscrição no ensino superior público português
ao abrigo daquele regime especial de acesso.
Na intimação
para a proteção de direitos, liberdades e garantias a
Recorrente sustentou que essa exigência tinha de ser interpretada como impondo
que não haja lapso de tempo escolar entre a conclusão do curso de ensino
superior no país estrangeiro e a matrícula na Universidade. Alegou então a
Recorrente, que esta era a única interpretação do artigo 10.º do Decreto-Lei
n.º 393-A/99 conforme à Constituição, porque só assim seria possível respeitar
o princípio da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior e o
conteúdo essencial do direito à educação que o regime especial se destina a
realizar. Só esta interpretação do requisito da residência permite tratar de
forma idêntica todos os candidatos que, por razões de interesse nacional,
residiram de forma permanente no estrangeiro durante mais de dois anos, e aí
concluíram o ensino secundário no ano letivo que
antecede aquele a que concorrem ao ensino superior, não tendo tido oportunidade
de prestar as provas de ingresso no ensino superior através do regime geral em
condições idênticas às dos candidatos residentes em Portugal.
Esta
argumentação, julgada procedente pelo Tribunal Administrativo de Círculo de
Lisboa, foi recusada pelo Tribunal Central Administrativo. Segundo o acórdão
recorrido, "a circunstância de a requerente ter regressado a Portugal, 10
dias antes de ter formalizado a sua candidatura ao ensino superior, e de, nessa
data, já não ter residência permanente na Bélgica, arreda-a do âmbito de
aplicação daquele artigo 10º e exclui-a do benefício concedido pelo Decreto-Lei
n.º 393- A/99, de 02.10, ou seja não lhe permite usufruir dos regimes especiais
de acesso ao ensino superior. Mas essa circunstância tanto poderia ocorrer se
aquele número de dias fosse 1, ou os 10 do caso em apreço, ou 20, ou mais. O
legislador estabeleceu de forma clara e precisa um limite temporal que exclui a
situação em que se deixe de ter residência permanente - nem que seja por um dia
- no país estrangeiro, aferida pela data de apresentação do requerimento de
matrícula e inscrição".
3. Não
cabe na competência deste Tribunal tomar posição sobre qual a melhor
interpretação deste preceito ou sobre a justeza da sua aplicação face às
circunstâncias do caso, sendo no âmbito deste recurso improdutivas as
considerações feitas pela recorrente e recorrido a tal propósito. Ao Tribunal
apenas compete decidir, com afinamentos a que oportunamente se procederá, se é
inconstitucional a norma constante da al. b) do art.
10.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro,
quando interpretada no sentido de excluir do seu âmbito de aplicação os
candidatos que, concluindo o curso de ensino secundário num país estrangeiro no
ano letivo imediatamente anterior àquele para que
requerem inscrição e matrícula, onde residiram por mais de dois por se
encontrarem a acompanhar um familiar em missão oficial, à data de apresentação
daquele requerimento já haviam voltado a residir em Portugal, por a comissão
ter cessado.
4. Sustenta
a recorrente que a exigência de que a deslocação do familiar em missão e a
residência no estrangeiro do candidato perdurem à data da formulação do
requerimento de inscrição e matrícula constitui uma exigência arbitrária, sem
conexão material com a razão de ser da concessão deste regime especial e, por
via disso, conducente a que estudantes na mesma situação quanto ao período de frequência
e conclusão do ensino secundário no estrangeiro, e quanto à inerente
impossibilidade ou dificuldade de realização dos exames de ensino secundário e
provas de ingresso em Portugal para se candidatarem pelo regime geral, vejam a
sua pretensão ser objeto de tratamento de sentido
oposto em função de um fator sem relação material com
a razão que justifica a concessão de tal regime especial de acesso ao ensino
superior. Haveria na norma assim interpretada a violação do princípio da
igualdade - do princípio geral da igualdade previsto no n.º 1 do art.º 13.º e
do princípio da igualdade de acesso ao ensino superior previsto no n.º 1 do
art.º 76.º da Constituição - por conduzir a uma diferenciação de tratamento
arbitrária de pessoas na mesma situação relevante. Vale por dizer que solução
normativa considerada violaria o princípio da igualdade enquanto proibição do
arbítrio, sendo esta a dimensão do princípio que importa considerar.
Em traços
gerais, sobre o entendimento do Tribunal acerca desta vertente do princípio da
igualdade, mantém-se válidas as seguintes considerações do acórdão n.º 232/2003
(disponível, como a demais jurisprudência citada, em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
"Assente a possibilidade de
estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao
controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do
princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot)
e, bem assim, de um critério de razoabilidade. Com efeito, é a partir da
descoberta da ratio da
disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma “fundamentação
razoável” (vernünftiger Grund), tal como sustentou o
“inventor” do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz
(cf. F. Alves Correia, O plano urbanístico e o
princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é
reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: “[E]stando em causa (...) um determinado tratamento jurídico de
situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como
iguais ou desiguais é determinado diretamente pela
'ratio' do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é
funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A 'ratio'
do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da
escolha do critério” (cf. Princípio da igualdade:
fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido?, sep.
do Boletim do Ministério da Justiça, nº
358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: “[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação
da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade,
indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o determinou.
Isto não quer, contudo, dizer que a 'ratio' do
tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adotar, e não aquele outro,
para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão
entre o critério adotado e a 'ratio' do tratamento
jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional,
haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das
situações que vão ficar isentas consistir na escolha
de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto
social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na
escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência
familiar numa determinada sociedade” (ob. cit., pp.
31-32).
Também a jurisprudência constitucional se
orienta nesse sentido. Assim, o Tribunal Constitucional alemão já teve ensejo
de afirmar que “(...) um tratamento arbitrário é
aquele que (...) não é compreensível por uma apreciação razoável das ideias
dominantes da Lei Fundamental” (42 BVerfGE 64, 74) e
que “[A] máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal ou
para o tratamento legal igual não é possível encontrar um motivo razoável, que
surja da natureza das coisas ou que, de alguma outra forma, seja compreensível
em concreto, isto é, quando a disposição tenha de ser qualificada como
arbitrária” (1 BVerfGE 14, 52; mais recentemente, cf.
12 BVerfGE 341, 348; 20 BVerfGE
31, 33; 30 BVerfGE 409, 413; 44 BVerfGE
70, 90; 51 BVerfGE 1, 23; 60 BVerfGE
101, 108).
Caminhos
idênticos foram percorridos pelo Tribunal Constitucional português (a título
meramente exemplificativo, cf. os Acórdãos nºs 44/84, 186/90, 187/90 e 188/90,
in AcTC, 3º
vol., pp. 133ss, e 16ºvol., pp. 383 ss, 395ss e
411ss, respetivamente). No Acórdão nº 39/88, o
Tribunal teve ocasião de dizer: “[O] princípio da
igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as
diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é
dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo constitucionalmente relevantes (...)” (in AcTC,
11º vol., pp. 233ss). E, curiosamente, também nos Estados Unidos se alude à
necessidade de, no estabelecimento de diferenciações, obedecer a um cânone de
razoabilidade (reasonableness)
(cf. J. Tussman e J. tenBroek,
“The equal protection of the
laws”, California Law Review,
nº 37, 1949, p. 344, cit. por Gianluca Antonelli, “La giurisprudenza
italiana e statunitense sul principio di solidarietà”, Studi parlamentari e di politica costituzionale, nºs. 125-126, 1999, p. 89; sobre
o princípio da razoabilidade na jurisprudência norte-americana, cf. Giovanni Bognetti, “Il principio di ragionevolezza e la giurisprudenza della Corte
Suprema degli Stati Uniti”, in AA.VV., Il principio di ragionevolezza
nella giurisprudenza della Corte Costituzionale. Riferimenti comparatistici,
Milão, 1994, pp. 43ss).
Neste domínio em especial, merece destaque a
evolução da jurisprudência constitucional italiana que, tendo firmado em termos
absolutos a ideia da discricionariedade do legislador (sentenzenºs 28/1957 e 56/1958), veio pouco depois
indagar se uma dada lei se apresentava “destituída de qualquer justificação” e
se a mesma detinha uma “razão idónea” (sentenza
nº 46/1959). Na sentenza nº 15/1960, a Corte disse que
era sua jurisprudência constante considerar que “(...)
o princípio da igualdade é violado mesmo quando a lei, sem um motivo razoável,
procede a um tratamento diverso de cidadãos que se encontram em situação
idêntica”. A doutrina, de seu lado, não andou longe destas asserções: já Mortati afirmava, por exemplo, que o legislador tinha “a
obrigação de não violar as leis da lógica” (Istituzioni di
diritto pubblico,
Pádua, 1958, p. 715; mais recentemente, cf. a mesma obra, 9ª ed., atualizada, Pádua, 1976, pp. 1412ss). Mais tarde, Carlo Lavagna teve a perceção clara da
necessidade do recurso a um princípio de razoabilidade que definiu como “la utilizzazione razionale dei contesti umani
nella costruzione di norme sulla
base delle prescrizioni-fonte”
e enunciou os diversos critérios da sua ponderação: a correspondência (corrispondenza), o juízo
sobre a finalidade (giudizio sulle finalità),
a pertinência (pertinenza),
a congruência (congruità) meios/fins, a coerência (coerenza), a evidência (evidenza) e, enfim, a motivação (motivazione) (cf. “Ragionevolezza
e legittimità costituzionale”,
in Studi in memoria di Carlo Esposito,
vol. III, Pádua, 1973, pp. 1573ss). De igual modo, Vezio
Crisafulli reconheceu que o Tribunal, ao indagar de
eventuais violações do princípio da igualdade, fá-lo, designadamente, com base
numa “cláusula geral de razoabilidade” (cf. Lezioni di
diritto costituzionale,
tomo II, 5ª ed., revista e atualizada, Pádua, 1984,
p. 372). Contrariando a tese do “racional como razoável” (Aulis Aarnio), Gustavo Zagrebelski veio
distinguir a ideia de racionalidade que, em seu entender, corresponderia à
coerência lógica da ideia de razoabilidade, estando esta ligada a uma adequação
aos valores de justiça que funciona primacialmente como um vínculo
negativo do legislador [cf. La giustizia
costituzionale, 2ªed., Bolonha, 1988, pp.
147ss; idem,“Su tre aspetti della
ragionevolezza”, in AA.VV., Il principio...,
cit., pp.179ss, em esp. pp. 181-184 (onde parece
aproximar os conceitos de razoabilidade e racionalidade)]. E, justamente
naquele primeiro sentido isto é, no sentido de uma racionalidade
coerente, aludiu o Tribunal Constitucional italiano, na sua sentenza nº 204/1982, a um“cânone geral de coerência” (generale canone
di coerenza)
[cf., sobre a evolução jurisprudencial do Tribunal Constitucional italiano, A. Agrò, “Commento all’art 3 Cost.”, in G. Branca (org.), Commentario della Costituzione,
vol. I, Bolonha e Roma, 1975, pp. 141ss; Paolo Barile,
“Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale”, in AA.VV., Il principio...,
cit., pp. 21ss; Livio Paladin,
“Ragionevolezza (principio di)”, in Enciclopedia del
Diritto – Aggiornamento,
vol. I, Milão, 1997, em esp. pp. 900ss].
Destaque-se, por outro lado, que também a
jurisprudência do Conselho Constitucional francês fez referência à necessidade
de o legislador se nortear por critères rationnels et objectifs. Particularmente no que respeita ao
princípio da igualdade perante os encargos públicos, o Conselho admitiu a
introdução de discriminações, desde que as mesmas se fundassem em critérios objetivos e racionais cf. as decisões 83-164 DC de
29-12-1983, 89-270 DC de 29-12-1989 e 91-298 DC de 24-7-1991, cits. por Louis Favoreu, “Conseil Constitutionnel et ragionevolezza: d’un rapprochement improbable à une communicabilité possible”, in AA.VV., Il principio...,
cit., p. 224.
Interessa
assinalar, por fim, que a mais recente jurisprudência do Bundesverfassungsgericht procura, de certo modo,
superar os limites estreitos da teoria da proibição do arbítrio, aumentando, de
certo modo, a “densidade do controlo” (Kontrolldichte),
por meio de uma nova fórmula do seguinte teor: “[E]sta norma constitucional (o artigo 3º, nº 1) obriga a
tratar de modo igual todos os homens perante a lei. Consequentemente, este
direito fundamental é sobretudo violado se um grupo de destinatários da norma
em comparação com outros destinatários da norma é tratado de modo diferente,
sem que existam entre os dois grupos diferenças de tal natureza (Art) e de tal peso (Gewicht) que possam
justificar o tratamento desigual” (cf. F. Alves Correia, ob. cit.,
p. 425; v., ainda, Dian Schefold,
“Aspetti di ragionevolezza nella giurisprudenza costituzionale
tedesca”, in AA.VV., Il principio..., cit., pp. 121ss)".
5. O
n.º 1 do art.º 76.º da Constituição determina que o regime de acesso à
Universidade e demais instituições de ensino superior garante a igualdade de
oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as
necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural
e científico do país. Ao nível infraconstitucional, o sistema de ingresso
comporta um regime geral ou regime regra (Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de setembro, alterado por último pelo Decreto-Lei n.º 90/2008,
de 30 de maio) e regimes especiais (Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, alterado por último pelo Decreto-Lei n.º 272/2009,
de 1 de outubro).
Como se disse
no Parecer n.º 110/2003, da Procuradoria-Geral da República, publicado no DR-2ª Série, de 3 de fevereiro de
2004, em traços gerais, o acesso ao ensino superior, segundo o regime geral
obedece aos seguintes princípios: democraticidade, equidade e igualdade de
oportunidades; objetividade dos critérios utilizados
para a seleção e seriação dos candidatos;
universalidade de regras para cada um dos subsistemas de ensino superior. Na
concretização destes princípios, o ingresso no ensino superior público obtém-se
através de um concurso de âmbito nacional (com exceções
de âmbito que não importa considerar: art.º 27.º, n.º2, do Decreto Lei n.º
393-A/99) para as vagas fixadas para cada par estabelecimento/curso (numerus clausus), sempre, através
da prestação de provas de ingresso, devidamente reguladas (artigos 16.º a 20.º
do Decreto-Lei n.º 26/2003, de 7 de fevereiro) ou, em
sua substituição, através de exames finais, também devidamente disciplinados
(artigo 20.º-A, do mesmo diploma). De notar, porém, que o regime regra comporta
uma diferenciação entre os candidatos tendente a proporcionar igualdade de
oportunidades a algumas categorias de estudantes ("descriminação
positiva"), mediante a fixação de "contingentes especiais"
(art.º 28.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 393-A/99 e Regulamento do Concurso
Nacional, que para o ano letivo de 2011-2012 constava
da Portaria n.º 258/2011, de 14 de julho de 2011) . Designadamente, é
contemplada com a fixação de contingentes especiais, dentro dos limites
quantitativos globais para cada par estabelecimento/curso, a situação dos
candidatos (I) oriundos dos Açores, (II) oriundos da Madeira, (III) emigrantes
portugueses e seus familiares, (IV) militares em regime de contrato e (V)
portadores de deficiência física e sensorial.
Além do regime
geral, o legislador criou regimes especiais para algumas situações que se
entendeu exigirem tratamento mais favorável, afastando-se do regime geral,
designadamente no que se refere às provas exigidas para ingresso e à sujeição
ao concurso nacional para as vagas existentes. Na verdade, o Decreto-Lei n.º
393-A/99, de 2 de outubro, prevê uma pluralidade de
situações para as quais se estabeleceu um regime destinado a facultar o
ingresso a estudantes que reúnem condições habilitacionais e pessoais
específicas e que, segundo o preâmbulo do diploma, de outro modo dificilmente
poderiam aceder ao ensino superior português (cfr.
art.º 3.º do diploma, acima transcrito).
Todavia, ao
estabelecer estes regimes especiais, o legislador não visou, apenas, a proteção dos estudantes que integram as diversas
categorias. Visou também, com cada um delas, prosseguir, facilitar ou eliminar
obstáculos à prossecução de um determinado interesse público. Em alguns deles,
de natureza predominantemente política (v.gr. estudantes bolseiros nacionais
de países africanos de expressão portuguesa, funcionários estrangeiros de
missão diplomática acreditada em Portugal e seus familiares aqui residentes e
naturais de Timor Leste e seus familiares). Noutros, um interesse público
específico de ordem administrativa (diplomatas, funcionários em missão,
desportistas de alta competição). No caso dos "funcionários
públicos em missão oficial no estrangeiro e seus familiares que os
acompanhem" cria-se um incentivo (ou minora-se um contramotivo)
à aceitação de missões no estrangeiro, potencialmente geradoras de uma situação
desvantajosa para os estudantes deslocados. Daí, como argumenta o recorrido,
que este regime contemple, apenas, os funcionários em missão e seus familiares
e não todos aqueles que se desloquem para o estrangeiro no exercício da atividade profissional, como teria de acontecer se a razão
de ser deste regime fosse apenas o de compensar a situação resultante do
afastamento do interessado da frequência do ensino secundário no território
nacional (Como se referiu já, essa outra situação geral dos que se deslocam
para o estrangeiro para exercício de uma atividade
económica obtém a proteção conferida pelo
estabelecimento de contingentes especiais para emigrantes, menos vantajosa do
que aquela que no caso está em consideração).
Deste modo, o
requisito de que a missão oficial e a residência do interessado no estrangeiro
abranjam o momento da apresentação do requerimento de inscrição e matrícula por
este regime especial não pode dizer-se absolutamente estranho à razão de ser
global do regime instituído. Sendo a missão oficial a causa do afastamento do
interessado do sistema de ensino em Portugal que constitui o facto gerador da
situação que se quis compensar mediante este regime especial, a conexão entre a
duração da missão no estrangeiro e o tratamento mais favorável no acesso ao
ensino universitário não é, em si mesmo, um critério arbitrário. A missão no
estrangeiro dura por certo prazo, até determinada data. Nesta perspetiva, poderia defender-se que ainda nos situamos no
domínio das opções cobertas pela discricionariedade legislativa que não cabe à
justiça constitucional censurar, por não lhe competir substituir as opções do
legislador por outras que melhor prossigam o interesse público, que possam
considerar-se de maior correção no plano da técnica
jurídica, ou que sejam globalmente mais justas.
6. Afigura-se,
todavia, que se impõe uma análise mais fina que conduz a diferente resultado. Efetivamente, um critério aparentemente neutro pode afetar de modo desproporcionado uma parte dos sujeitos de determinada categoria. Um critério
objetivo, como o da duração da missão oficial no
estrageiro, pode conduzir a que estudantes que, por virtude dessa deslocação,
se encontram nas mesmas condições substanciais quanto à escolaridade no
estrangeiro e à relação com o ensino secundário em Portugal - a consequência ou
o efeito potencialmente desvantajoso da deslocação para o estrangeiro por
razões de interesse público que se quis compensar - obtenham tratamento
diferente no acesso ao ensino superior a abrigo desse regime especial. É uma
ocorrência com algum paralelismo com o que se sucede nas chamadas
"discriminações indiretas".
Com efeito, os
estudantes que acompanham familiares em missão no estrangeiro e aí concluem o
ensino secundário (ou equivalente) ficam em condições não inteiramente
comparáveis com aqueles que se apresentam ao concurso de acesso ao ensino
superior com o ensino secundário concluído em Portugal, designadamente quanto
ao conteúdo e sistema de avaliação e critérios de classificação. É essa a
situação de desvantagem que se
pretende compensar, mediante o regime especial em causa. Se o ensino secundário
no estrangeiro é concluído no ano letivo que
imediatamente antecede aquele em que esses candidatos pretendem inscrever-se no
ensino superior, será particularmente difícil, senão impossível em muitos
casos, submeter-se às provas que assegurem a titularidade do ensino secundário
português ou às provas de ingresso exigidas.
Ora, dois
estudantes que concluam o ensino secundário no país onde o seu familiar presta
serviço no ano letivo que imediatamente antecede
aquele em que pretendem matricular-se no ensino superior estarão na mesma
situação se o termo de comparação forem os fatores de
desvantagem relativamente ao concurso nacional de acesso, independentemente da
relação entre a data do requerimento de inscrição e matrícula e o termo da
missão oficial ou do regresso a Portugal. Coeteribus paribus,
o tempo que decorre após a conclusão desse ano letivo
no estrangeiro - em geral, um período curto quando se trata de países do mesmo
hemisfério - e a apresentação do requerimento é um fator
neutro. Nestas circunstâncias, o termo da missão no estrangeiro e o regresso a
Portugal não influem na situação geradora de desvantagem relativa suposta pelo
legislador ou nos seus efeitos, nem permitem aos interessados nenhuma ação própria suscetível de
colmatar as desvantagens concursais que estão na base
da instituição deste regime especial. Foi por causa da missão oficial que o
estudante se deslocou para o país estrangeiro e aí conclui o curso de ensino
secundário no ano que imediatamente antecede aquele em que pretende ingressar
no ensino superior, não sendo a situação de desvantagem daí potencialmente
resultante modificada pela cessação da comissão ou da residência no estrangeiro
ocorrida entre esses dois eventos.
Deste modo, a
exigência de que a missão oficial ou a residência no estrangeiro,
verificando-se no momento da conclusão do ensino secundário, perdure até ao
momento da apresentação do requerimento de inscrição e matrícula no ensino
superior introduz, relativamente aos candidatos a que se refere a alínea b) do
art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, uma diferenciação sem justificação
razoável. Não estando aqui em apreciação o estabelecimento deste regime
especial, o critério temporal definido pela norma em análise gera efeitos
desproporcionais na delimitação do universo de beneficiários desse regime,
excluindo dele indivíduos que estão na mesma situação de outros que a ele são
admitidos face à razão material que justifica o tratamento mais favorável
concedido a esta categoria de candidatos.
Assim, tem de
concluir-se que a norma viola o princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do
art.º 13.º da Constituição.
III. Decisão
Pelo exposto,
concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Julgar
inconstitucional, por violação do n.º 1 do art.º 13.º da Constituição, a norma
constante da al. b) do art. 10.º do Decreto-Lei n.º
393-A/99, de 2 de outubro, quando interpretada no
sentido de excluir, do âmbito de aplicação deste regime especial de acesso ao
ensino superior, os candidatos que pretendam dele beneficiar no ano letivo imediatamente posterior àquele em que concluíram o
curso de ensino secundário num país estrangeiro, e relativamente aos quais se
verifique a cessação da missão oficial, ou da residência nesse país, entre a
data da conclusão do curso de ensino secundário e a apresentação do
requerimento de inscrição e matrícula;
b) Determinar
a reforma do acórdão recorrido em conformidade com o agora decidido quanto à
questão de constitucionalidade.
Lisboa, 6 de dezembro de 2012. – Vítor Gomes – Carlos
Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Catarina Sarmento e Castro
– Maria Lúcia Amaral.