ACÓRDÃO N.º 592/2012
Processo
n.º 816/2011
1.ª
Secção
Relator:
Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 1.ª
Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., notificada do acórdão de 28 de setembro
de 2011 do Supremo Tribunal Administrativo, vem dele interpor recurso para este
Tribunal ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação atual, pretendendo a apreciação das questões de
constitucionalidade normativa invocadas nas alegações de recurso para aquele
Supremo Tribunal, tal como sejam:
"...
10. ..., o artigo 5.º, n.º 1 do diploma
preambular da LGT (DL 398/98), conjugado com o disposto no artigo 297.º, n.º 1,
do CC é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade, da segurança e da tutela da confiança,
quando interpretado no sentido de que a lei nova reguladora da prescrição se
aplica aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando daí resulte um
alargamento em concreto do prazo prescricional.
11. E igual
juízo deverá fazer-se relativamente ao artigo 12.º da LGT, conjugado com o
disposto no n.º 3 do artigo 49.º, quando interpretado no sentido de que as
causas de interrupção da prescrição previstas ex novo
são aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em
vigor da LGT, por ofensa dos princípios constitucionais da segurança
jurídico-fiscal, da tutela da confiança e da irretroatividade
da lei fiscal.
12. A
Assembleia da República não autorizou o governo a definir as regras aplicáveis
ao cômputo do prazo prescricional, editando um
critério legislativo de acordo com o qual as regras definidas na LGT possam
aplicar-se aos prazos já em curso quando daí resulte um alargamento em concreto
daquele prazo, razão pela qual a norma do artigo 5.º do diploma preambular da
LGT, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo
103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP.
...".
2. Admitido
que foi o recurso e ordenada a notificação para alegações, a recorrente
apresentou as respetivas alegações e nelas concluiu
da seguinte forma:
“...
São
materialmente inconstitucionais as seguintes normas:
O artigo 5.º,
n.º 1, do diploma preambular da LGT (DL 398/98), conjugado com o disposto no
artigo 297.º, n.º 1, do CC, por violação do princípio da proibição da retroatividade, da segurança e da tutela da confiança,
quando interpretado no sentido de que a lei nova reguladora da prescrição se
aplica aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando daí resulte um
alargamento em concreto do prazo prescricional.
O artigo 12.º
da LGT, conjugado com o disposto no n.º 3 do artigo 49.º, quando interpretado
no sentido de que as causas de interrupção da prescrição previstas ex novo são aplicáveis aos prazos de prescrição que se
iniciaram antes da entrada em vigor da LGT, por ofensa dos princípios
constitucionais da segurança jurídico-fiscal, da tutela da confiança e da
proibição da retroatividade autêntica da lei fiscal.
Por outro
lado, a Assembleia da República não autorizou o governo a definir as regras
aplicáveis ao cômputo do prazo prescricional,
editando um critério legislativo de acordo com o qual as regras definidas na
LGT possam aplicar-se aos prazos já em curso quando daí resulte um alargamento
em concreto daquele prazo, razão pela qual a norma do artigo 5.º do diploma
preambular da LGT, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto
no artigo 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP.
...”
3.
Por sua vez, a recorrida apresentou as suas
contra-alegações, sendo que nelas pugna pela sem razão da recorrente.
Cumpre
apreciar e decidir.
II.
Fundamentação
4. O
presente recurso mostra-se interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º
1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (na atual redação), pelo que o seu objeto definir-se-á tendo em conta o teor do respetivo requerimento de interposição.
Como se
depreende com toda a clareza de tal requerimento recursivo, temos que nele se
suscita a inconstitucionalidade material da norma resultante do «… artigo 5.º, n.º 1, do diploma preambular da LGT (DL 398/98), conjugado com o
disposto no artigo 297.º, n.º 1, do CC, por violação do princípio da proibição
da retroatividade, da segurança e da tutela da
confiança, quando interpretado no sentido de que a lei nova reguladora da
prescrição se aplica aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando
daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional
e uma questão de (in)constitucionalidade orgânica, tendo como objeto outras tantas normas» e, bem assim, do «…
artigo 12.º da LGT, conjugado com o disposto no n.º
3 do artigo 49.º, quando interpretado no sentido de que as causas de
interrupção da prescrição previstas ex novo são
aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor
da LGT, por ofensa dos princípios constitucionais da segurança jurídico-fiscal,
da tutela da confiança e da proibição da retroatividade
autêntica da lei fiscal», e, ainda, a inconstitucionalidade orgânica
da norma do «… artigo 5.º do diploma preambular da LGT, é
organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 103.º, n.º
2, e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP», constituindo, portanto, as
enunciadas normas o objeto do presente recurso.
Os preceitos
legais, integrantes do objeto daquelas normas,
apresentam o seguinte teor:
“…
Artigo 5.º (do
diploma preambular da LGT)
(Prazos de
prescrição e caducidade)
1. Ao novo
prazo de prescrição aplica-se o disposto no artigo 297.º do Código Civil, sem
prejuízo do disposto no número seguinte.
2. Aos impostos
já abolidos à data da entrada em vigor da lei geral tributária aplicam-se os
novos prazos de prescrição, contando-se para o efeito todo o tempo decorrido,
independentemente de suspensões ou interrupções de prazo.
3. Ao prazo
máximo de contagem dos juros de mora previsto na lei geral tributária é
aplicável o artigo 297.º do Código Civil.
4. O disposto
no número anterior não se aplica aos regimes excecionais
de pagamento em prestações em vigor.
5. O novo
prazo de caducidade do direito de liquidação dos tributos aplica-se aos factos
tributários ocorridos a partir de 1 de janeiro de
1998.
6. O disposto
no número anterior aplica-se aos prazos previstos nos n.ºs 1 e 5 do artigo 78.º
da lei geral tributária.
…
Artigo 12.º
(da Lei Geral Tributária)
(Aplicação da
lei tributária no tempo)
1. As normas
tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não
podendo ser criados quaisquer impostos retroativos.
2. Se o facto
tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período
decorrido a partir da sua entrada em vigor.
3. As normas
sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das
garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos
contribuintes.
4. Não são
abrangidos pelo disposto no número anterior as normas que, embora integradas no
processo de determinação da matéria tributável, tenham por função o
desenvolvimento das normas de incidência tributária.
...
Artigo 49.º
(Lei Geral Tributária)
(Interrupção e
suspensão da prescrição)
1. A citação,
a reclamação, o recurso hierárquico, a impugnação e o pedido de revisão
oficiosa da liquidação do tributo interrompem a prescrição.
2. (Revogado)
3. Sem
prejuízo do disposto no número seguinte, a interrupção tem lugar uma única vez,
com o facto que se verificar em primeiro lugar.
4. O prazo de
prescrição legal suspende-se em virtude de pagamento de prestações legalmente
autorizadas, ou enquanto não houver decisão definitiva ou passada em julgado,
que puser termo ao processo, nos casos de reclamação, impugnação, recurso ou
oposição, quando determinem a suspensão da cobrança da dívida.
…
Artigo 297.º
(do Código Civil)
(Alteração de
prazos)
1. A lei que
estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei
anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo
só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a
lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar.
2. A lei que
fixar um prazo mais longo é igualmente aplicável aos prazos que já estejam em
curso, mas computar-se-á neles todo o tempo decorrido desde o momento inicial.
3. A doutrina
dos números anteriores é extensiva, na parte aplicável, aos prazos fixados
pelos tribunais ou por qualquer autoridade.
…”.
5. Foram
considerados assentes, com relevo para a decisão, os seguintes factos:
a) – A
requerente em 28.12.2001 impugnou a liquidação de IVA e de IRS de 1996 e entre
21/10/02 até 18.02.04 esteve parada por facto não imputável à impugnante.
b) – Em
28.01.2002 e 03.01.2002 foram instauradas as execuções 02/100513.8 e
02/100012.9.
c) – Em
03.07.06 foram as execuções apensadas.
d) – No
processo de execução foram feitas várias penhoras e no seguimento destas o
Chefe de Finanças proferiu despacho em 07.08.06, a suspender a execução por se
mostrar prestada garantia.
e) –
Entretanto, em 04.08.06 a executada foi citada pessoalmente para a execução
(fls. 58 e 59B).
f) – No âmbito
da impugnação proferiu-se despacho a excluir da impugnação a liquidação do IVA,
por se verificar uma cumulação ilegal de pedidos e por a impugnante ter optado
pela impugnação do IRS (fls. 239 e 243 da impugnação).
g) – Em
11.10.10 transitou em julgado a sentença de impugnação judicial.
h) – Em
26.12.10 deu entrada de requerimento, dirigido ao Chefe, a pedir a declaração
de prescrição, tendo sido indeferida por despacho de 15.12.10.
6.
Perante estes factos, por se afigurar necessária à
compreensão das suscitadas questões de (in)constitucionalidade,
importa atentar na forma como a decisão recorrida descreveu as posições
assumidas pela decisão cujo recurso se lhe impunha conhecer e, bem assim, pela
recorrente, o que faz da seguinte forma:
« …
4.1. A decisão
recorrida julgou improcedente a reclamação por entender que, sendo aplicável o
prazo de oito anos previsto na LGT, em face das causas de interrupção e
suspensão entretanto ocorridas no decurso do prazo de prescrição, este ainda
não se havia completado.
Por sua vez, a
recorrente, defende que as normas da LGT relativas à prescrição – prazo, causas
de suspensão e de caducidade – apenas podem aplicar-se aos prazos que se
iniciem depois da sua entrada em vigor, ou quando daí resulte, em concreto, um
encurtamento do prazo relativamente ao que resulta da aplicação do regime do
CPT.
Deste modo, a
lei que encurta o prazo apenas terá válida aplicação nos casos e circunstâncias
em que esse prazo é concretamente reduzido, sob pena de pelo artificialismo da
redução do prazo prescricional, acoplada a uma
panóplia de efeitos interruptivos ou suspensivos inovadoramente criados em
relação à lei antiga, se verificar, como in casu, uma
extensão desse mesmo prazo, incompatível com os princípios constitucionais acbados de referir.
A aplicação de
lei nova sem ressalva dos casos em que o prazo computado pela lei antiga se
consuma em primeiro lugar afeta o princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica imanentes ao
Estado de direito porque implica um insustentável alargamento do prazo de
prescrição e a aplicação retroativa desfavorável da
nova lei a um prazo já em curso, decorrente da aplicação a um prazo prescricional em curso de uma lei nova que determina o seu
prolongamento para além do prazo que resultava da aplicação da lei em vigor no
momento em que se iniciou o decurso desse prazo.
O critério de
determinação da lei aplicável exigido pelo artigo 297.º do CC,
pressupõe claramente que a lei nova apenas proceda ao encurtamento dos prazos e
não à alteração dos termos e condições que determinam o seu cômputo, sendo que,
quando essas condições sejam alteradas, o juízo de ponderação não pode deixar
de as levar necessariamente em conta.
Assim, não é
aplicável o prazo de 8 anos estabelecido na LGT, quando, de acordo com os
critérios da lei em vigor no momento em que se inicia a contagem do prazo prescricional (o CPT), ocorra a prescrição da dívida em
momento anterior ao que resultaria da aplicação das regras da LGT.
As causas de
interrupção ou suspensão do prazo prescricional
prescritas na LGT, não podem aplicar-se aos prazos que se tenham iniciado e se
determinem segundo os critérios do CPT, porque tais causas interferem com
garantias dos contribuintes, afastando-se, por isso, a aplicação imediata de um
prazo que alargue concretamente o tempo de prescrição previamente estabelecido.
Por esses
motivos, o artigo 5.º, n.º 1, do diploma preambular da LGT (DL 398/98),
conjugado com o disposto no artigo 297.º, n.º 1, do CC é inconstitucional, por
violação do princípio da proibição da retroatividade,
da segurança e da tutela da confiança, quando interpretado no sentido de que
lei nova reguladora da prescrição se aplica aos prazos iniciados antes da sua
entrada em vigor quando daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional.
E igual juízo
deverá fazer-se relativamente ao artigo 12.º da LGT, conjugado com o disposto
no n.º 3 do artigo 49.º, quando interpretado no sentido de que as causas de
interrupção da prescrição previstas ex novo são
aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor
da LGT, por ofensa dos princípios constitucionais da segurança juridico-fiscal, da tutela da confiança e da irrectroactividade da lei fiscal.
...».
Invocando que,
nesta matéria, o Supremo Tribunal Administrativo vem decidindo uniformemente
que no tocante a prazos de prescrição de obrigações tributárias não há que
considerar, quando ocorra sucessão de regimes na pendência da mesma obrigação
tributária, a aplicação de um ou outro regime em bloco, apenas havendo que
atender ao prazo de prescrição objetivamente previsto
em cada uma das leis em causa, a antiga e/ou a nova, para determinar qual seja
a mais favorável, desconsiderando, portanto, os regimes de suspensão ou
interrupção do prazo de prescrição que se mostrem previstos numa ou noutra lei,
a decisão recorrida, perfilhando tal doutrina e para cuja explicitação citou
sumariamente o Acórdão do STA de 07.09.2011 (proferido no Processo n.º
0246/11), procedeu à aplicação da lei em conformidade com a mesma e nos
seguintes termos:
«...
Temos então
que no decurso do prazo de prescrição se sucederam dois regimes legais, sendo
que o último diploma legal encurtou o prazo de prescrição.
Então tem aqui
aplicação o artº 297º, nº 1 do Código Civil que
estabelece o seguinte:
(…)
Considerando
que, no âmbito do artº 34º do CPT o prazo de 10 anos
se conta a partir de 01.01.1997, a prescrição completar-se-ia em 01.01.2007.
Considerando o
disposto no citado nº 1 do artº 297º do CC e no nº 1
do artº 48º da LGT, o prazo de oito anos de
prescrição completar-se-ia em 01.01.2007, ou seja na mesma data em que
ocorreria aplicando o CPT.
Neste caso, é
de aplicar o prazo da LGT, já que segundo a lei antiga, não falta menos tempo
para o prazo se completar.
Por outro
lado, há também que considerar as causas interruptivas e suspensivas na LGT, já
que 'a LGT é competente para determinar e reger os eventos interruptivos e
suspensivos que ocorrem na sua vigência, ainda que atinentes a prazos prescricionais iniciados na vigência do CPT, sem que isso
represente um efeito retroativo da lei nova ou uma
ofensa aos princípios da legalidade e da separação de poderes …'.
...».
É, portanto,
com base nesta decisão e interpretação normativa nela contida que se haverá de
apreciar e decidir as suscitadas questões de (in)constitucionalidade.
7.
A recorrente, como resulta do supra exposto, suscita
duas questões de (in)constitucionalidade material e
uma de (in)constitucionalidade orgânica, ou seja:
- a inconstitucionalidade material do artigo 5.º, n.º 1, do
diploma preambular da LGT (DL 398/98), conjugado com o disposto no artigo
297.º, n.º 1, do CC, por violação do princípio da proibição da retroatividade, da segurança e da tutela da confiança,
quando interpretado no sentido de que a lei nova reguladora da prescrição se
aplica aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando daí resulte um
alargamento em concreto do prazo prescricional;
- a inconstitucionalidade material do artigo 12.º da LGT,
conjugado com o disposto no n.º 3 do artigo 49.º, quando interpretado no
sentido de que as causas de interrupção da prescrição previstas ex novo são aplicáveis aos prazos de prescrição que se
iniciaram antes da entrada em vigor da LGT, por ofensa dos princípios
constitucionais da segurança jurídico-fiscal, da tutela da confiança e da
proibição da retroatividade autêntica da lei fiscal;
- a inconstitucionalidade orgânica com fundamento em que a
Assembleia da República não autorizou o governo a definir as regras aplicáveis
ao cômputo do prazo prescricional, editando um
critério legislativo de acordo com o qual as regras definidas na LGT possam
aplicar-se aos prazos já em curso quando daí resulte um alargamento em concreto
daquele prazo, razão pela qual a norma do artigo 5.º do diploma preambular da
LGT, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo
103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP.
Vejamos de
cada uma delas.
7.1 Quanto à inconstitucionalidade material do artigo 5.º, n.º 1, do
diploma preambular da LGT, conjugado com o disposto no artigo 297.º, do Código
Civil.
Sustenta a recorrente
que a interpretação extraída pelo tribunal a quo da
conjugação do artigo 5.º, n.º 1, do diploma preambular da LGT, com o artigo
297.º, do Código Civil, é inconstitucional, por violação dos “princípios da
proibição da retroatividade, da segurança e da tutela
da confiança”. De acordo com tal interpretação, a lei nova reguladora da
prescrição aplica-se aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor mesmo quando daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional.
Sendo o
presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do
n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, exige-se o preenchimento de um conjunto de
pressupostos processuais, de entre os quais ressalta a exigência que a norma
cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo haja sido ratio decidendi da decisão
recorrida. Por outras palavras, a norma impugnada pelo recorrente deve ter
constituído “fundamento determinante” da
decisão recorrida (cf. Acórdão n.º 101/85, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Sucede, porém,
que tal pressuposto não se encontra preenchido no caso vertente. Isto ocorre,
fundamentalmente, porque o critério jurídico que o recorrente pretende assacar
ao tribunal recorrido leva já pressuposta uma certa compreensão
hermenêutica que aquele tribunal efetivamente
não perfilhou.
Vejamos.
Para o
recorrente, o artigo 297.º, do Código Civil deve ser interpretado no sentido de
que “a lei que encurta o prazo apenas terá válida
aplicação nos casos e circunstâncias em que esse prazo é concretamente
reduzido, sob pena de pelo artificialismo da redução do prazo prescricional, acoplada a uma panóplia de efeitos
interruptivos ou suspensivos inovadoramente criados em relação à lei antiga, se
verificar, como in casu, uma extensão desse mesmo
prazo, incompatível com os princípios constitucionais (...).” Assim, “não é
aplicável o prazo de 8 anos estabelecido na LGT quando, de acordo com os
critérios da lei em vigor no momento em que se inicia a contagem do prazo prescricional (o CPT), ocorra prescrição da dívida em
momento ao que resultaria da aplicação das regras da LGT.”
Já o Supremo
Tribunal Administrativo, na senda de jurisprudência consolidada, argumenta que
“em face da previsão normativa contida no artigo
297.º do Código Civil, a aplicação de diferentes regimes no tocante aos prazos
de prescrição de obrigações tributárias não determina aplicação de um ou outro
regime em bloco, pois o preceito só se refere à lei que altere o prazo, e não a
tudo o mais que releva para o seu curso. Por conseguinte, não há que comparar
os regimes de suspensão e interrupção do prazo de prescrição adotados pela lei antiga e pela lei nova para determinar
qual é o mais favorável e escolher a lei aplicável segundo o juízo assim
atingido.” Atento este pressuposto, concluiu o STA que, in casu, seria de aplicar o prazo da LGT (8 anos), “já que segundo a lei antiga, não falta menos tempo para o prazo se
completar.”.
Talqualmente
deflui do exposto, o STA não interpretou os preceitos mencionados no sentido de
se dever aplicar a lei nova aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional. Na verdade, o tribunal recorrido,
rejeitando uma comparação e aplicação, em bloco, do
complexo normativo integrado pelos prazos de prescrição e respetivas
causas de interrupção e prescrição, chegou tão-só à conclusão de que, atento o
critério previsto no artigo 297.º, do Código Civil, o prazo prescricional
estatuído na LGT completar-se-ia mais cedo,
devendo por isso aplicar-se ao caso vertente.
Dito isto,
confirma-se não haver correspondência entre
a interpretação normativa cuja constitucionalidade o recorrente impugnou, por
um lado, e a interpretação normativa veiculada pelo tribunal recorrido, por
outro, daí resultando não ter sido a primeira ratio decidendi da decisão recorrida.
7.2 Quanto à inconstitucionalidade orgânica do artigo 5.º do diploma
preambular da LGT.
A segunda
questão de constitucionalidade a apreciar é a relativa à inconstitucionalidade
orgânica do artigo 5.º, do diploma preambular da LGT, por violação do disposto
no artigo 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP. Invoca o recorrente, com
efeito, que a Assembleia da República não autorizou o Governo a “definir as
regras aplicáveis ao cômputo do prazo prescricional”,
maxime,
não autorizou o Governo a editar “um critério legislativo de acordo com o qual
as regras definidas na LGT possam aplicar-se aos prazos já em curso quando daí
resulte um alargamento em concreto daquele prazo.”
A ordem
seguida no conhecimento das inconstitucionalidades não é aleatória e
justifica-se em virtude do facto de o critério cuja constitucionalidade é
impugnada pela recorrente na questão supra analisada coincidir com o critério a
que a recorrente assaca, também, o vício orgânico na questão que agora se
aprecia.
Daí que,
atenta a exigência de utilidade
assacada aos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, e
reiterando-se o que foi dito supra quanto ao
facto de o critério impugnado pelo recorrente não ter sido ratio decidendi da decisão recorrida, se imponha
alargar o juízo de não conhecimento do objeto de
recurso também a esta questão de constitucionalidade.
7.3 Quanto à inconstitucionalidade material do artigo 12.º, conjugado com o
artigo 49.º, n.º 3, ambos da LGT.
Finalmente,
sustenta o recorrente que a interpretação extraída pelo tribunal a quo dos artigos 12.º e 49.º, n.º 3, da LGT – no termos da
qual as causas de interrupção da prescrição previstas ex novo são
aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor
da LGT – apresenta-se desconforme com o parâmetro normativo-constitucional, por
violação dos “princípios constitucionais da segurança jurídico-fiscal, da
tutela da confiança e da irretroatividade da lei
fiscal.” Com efeito, afirma o STA, no acórdão recorrido, que “a LGT é competente para determinar os eventos interruptivos e
suspensivos que ocorram na sua vigência, ainda que atinentes a prazos prescricionais iniciados na vigência do CPT, e para
determinar os efeitos que sobre esse prazo têm esses eventos, não podendo esse
efeito imediato da lei nova ser considerado como representando efeito retroativo.”.
Ora, como vem
sendo defendido pela jurisprudência constitucional consolidada, o princípio da
segurança jurídica em matéria fiscal está ligado a um conjunto de consequências
normativas. Desde logo, consta do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, desde a revisão
constitucional de 1997, uma proibição constitucional
de impostos retroativos bem como de
quaisquer outras normas fiscais retroativas
desfavoráveis (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição
da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2007, p. 1090). Por
conseguinte, entende o Tribunal Constitucional e alguma doutrina que da
inclusão desta referência constitucional autónoma se retira uma “garantia forte” (cfr. o Acórdão
n.º 172/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), nos termos da qual
uma norma respeitante aos elementos essenciais do
imposto que tenha caráter retroativo
está sempre ferida de inconstitucionalidade. Ou seja, “nestes casos
(...), não há lugar a ponderações” (cfr. o Acórdão n.º 128/09, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), ou melhor, qualquer ponderação a que
eventualmente houvesse lugar ficou automaticamente
resolvida pela proibição introduzida pelo legislador constituinte de revisão.
É certo,
também, que o Tribunal Constitucional vem lendo esta proibição constitucional
no sentido de abarcar nela apenas as situações de retroatividade
autêntica, perfeita, ou em sentido próprio (neste sentido, v. os Acórdãos n.ºs
128/2009, 85/2010, e 399/2010, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). Pode ler-se no último dos arestos mencionados
que, dos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997, resultou
não se terem pretendido “integrar no preceito as situações em que o facto
tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da
lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova”, pelo menos
quando estejam em causa impostos periódicos.
Daqui não
resulta, porém, que o princípio da proteção da
confiança em matéria fiscal se esgote na proibição constitucional de impostos retroativos, talqualmente explicitada. Explica Suzana Tavares da Silva
que tal princípio continua a ter valia quando “estão em causa, quer as situações
de retroatividade inautêntica (...), quer as
situações em que se trate da mera aplicação retroativa
de lei fiscal que não interfira com os elementos essenciais dos impostos, ou
seja, que embora não onere a tributação de factos tributários passados ou que
se iniciaram em momento passado e ainda decorrem, se revele prejudicial para os
sujeitos passivos, por lhes impor encargos novos com os quais estes
legitimamente não contavam (violação de expectativas legítimas)
e que, por essa razão, possam vir a ser admitidos à luz daquele princípio
fundamental” (Suzana
Tavares da Silva, Sumários desenvolvidos de
Direito Fiscal – I Ciclo, Coimbra, 2011, p. 36).
Não deixa o
Tribunal Constitucional de avançar os critérios que hão de
presidir a esta ponderação entre o princípio da segurança jurídica e os outros
princípios ou bens constitucionalmente protegidos subjacentes à norma a
apreciar. Nos Acórdãos n.ºs 128/2009 e 399/2010 (todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt), confirma-se que aquela ponderação deve obedecer
a quatro critérios ou testes cumulativos. Assim, «para que haja lugar à tutela
jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o
Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar
nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas
ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem
os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva
de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que
não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não
continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.»
Cumpre, pois,
qualificar a situação vertente à luz do quadro jurídico traçado.
Ora,
constituindo a prescrição das obrigações tributárias e as respetivas
causas de interrupção e suspensão verdadeiras garantias
dos contribuintes, há que concluir que a aplicação de causas de
interrupção ou suspensão introduzidas pela lei nova a prazos de prescrição que
já haviam começado a correr ao abrigo da lei antiga é assimilável a uma
situação de aplicação retrospetiva de
norma fiscal desfavorável.
Com efeito,
não há dúvida de que, correspondendo a prescrição à “extinção de
uma obrigação vencida em consequência do decurso de um prazo” (Saldanha Sanches,
Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição,
2007, p. 261), por razões de certeza, de segurança e de paz jurídicas (Benjamim Silva
Rodrigues, “A prescrição no direito tributário”, Problemas
Fundamentais do Direito Tributário, Lisboa, 1999, p. 263), a
introdução de novas causas de interrupção ou de suspensão dos prazos de
prescrição gera situações prejudiciais ou
de desvantagem para os sujeitos passivos
daquela obrigação, potencialmente lesivas das expectativas
legítimas que mantinham na conservação do concreto conteúdo de tais
garantias.
Porém, ao
contrário do que defende a recorrente (fls. 400), não tem a norma extraída,
pelo tribunal recorrido, dos preceitos em crise eficácia retroativa, mas tão-só retrospetiva. A recorrente argumenta que “não é pelo
facto de o prazo de prescrição se encontrar a decorrer que se poderá deixar de
considerar que ocorre, neste caso, uma questão de retroatividade
autêntica. Na verdade, mesmo no âmbito de uma relação jurídica duradoura, que
não se encontre ainda esgotada, existirá sempre retroatividade
autêntica quando haja uma alteração do regime jurídico quanto ao efeito
conexionado a factos que já ocorreram, v.g., citação, execução, impugnação,
etc., são para efeito do cômputo do prazo de prescrição, factos que têm aí um
efeito instantâneo, o qual não pode deixar de ser regulado pela lei que estiver
em vigor no momento em que os mesmos se verificam (...).”
Apesar de
impressiva, esta tese não vinga. Na verdade, a prescrição constitui uma causa de extinção da obrigação tributária de formação contínua, prevendo a lei que, no decurso desse período de
formação, possam ocorrer factos ou serem
praticados atos suscetíveis de causar a sua interrupção. Talqualmente
interpretados pelo tribunal recorrido, os preceitos em crise aplicam-se a
factos ocorridos após a sua entrada em vigor, ao
abrigo das novas causas de interrupção dos prazos
de prescrição neles previstas, muito embora tais prazos tenham começado a
correr na vigência da lei antiga e ainda não tivessem terminado no momento em
que se deu a cessação da sua vigência. Trata-se, portanto, de uma norma fiscal
com natureza retrospetiva.
Assumindo como
corretos estes pressupostos, necessário se revela
fazer passar o critério em causa pelos testes que
reiteradamente o Tribunal Constitucional vem propondo nos casos que não se
reconduzem, tout court, às situações de retroatividade
expressamente proibida nos termos do artigo 103.º, n.º 3, da CRP. Nesses casos,
recordando as palavras deste Tribunal no Acórdão n.º 128/2009 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), “saber se a norma é ou não
inconstitucional (por violação da proteção da
confiança) obriga a que se tenha em conta, e se pondere, tanto o contexto da administração tributária quanto o contexto do particular tributado.”
Assim, antes
da entrada em vigor da LGT, valia em matéria de causas de interrupção e
suspensão dos prazos de prescrição o disposto no artigo 34.º, do CPT:
«(...)
Artigo 34.º
Prescrição das
obrigações tributárias
1 – A
obrigação tributária prescreve no prazo de 10 anos, salvo se outro mais curto
estiver fixado na lei.
2 – O prazo de
prescrição conta-se desde o início do ano seguinte àquele em que tiver ocorrido
o facto tributário.
3 – A
reclamação, o recurso hierárquico, a impugnação e a instauração da execução
interrompem a prescrição, cessando, porém, esse efeito se o processo estiver
parado por facto não imputável ao contribuinte durante mais de um ano,
somando-se neste caso o tempo que decorrer após este período ao que tiver
decorrido até à data de autuação.
(...)»
Já o artigo
49.º, da LGT, na sua versão originária (Decreto-lei n.º 398/98, de 17 de dezembro), dispunha nos seguintes termos:
«(...)
Artigo 49.º
Interrupção e
suspensão da prescrição
1 - A citação,
a reclamação, o recurso hierárquico, a impugnação e o pedido de revisão
oficiosa da liquidação do tributo interrompem a prescrição.
2 - A paragem
do processo por período superior a um ano por facto não imputável ao sujeito
passivo faz cessar o efeito previsto no número anterior, somando-se, neste
caso, o tempo que decorrer após esse período ao que tiver decorrido até à data
da autuação.
3 - O prazo de
prescrição legal suspende-se por motivo de paragem do processo de execução
fiscal em virtude de pagamento de prestações legalmente autorizadas, ou de
reclamação, impugnação ou recurso.
(...)»
Cotejados os
regimes, a principal diferença entre ambos radica, pois, na introdução, pela
LGT, da citação (em lugar da instauração da execução) e do pedido de revisão
oficiosa como factos capazes de desencadear a interrupção do prazo de
prescrição; e nas novas causas suspensivas do prazo de prescrição das
obrigações tributárias, previstas no n.º 3, do artigo 49.º (hoje alterado).
Na verdade,
porém, as expectativas dos contribuintes na manutenção em bloco das causas de
interrupção e suspensão dos prazos de prescrição vigentes à luz do CPT não
assumem a magnitude necessária para que se verifique uma violação
do princípio constitucional da proteção da confiança.
Desde logo,
porque assumindo a prescrição, enquanto facto extintivo da obrigação
tributária, natureza contínua ou de formação sucessiva – dependente, portanto, de uma situação
de inércia prolongada do sujeito ativo da relação tributária – é pouco expectável que
durante esse período não se processem alterações do quadro jurídico vigente com
efeitos imediatos nos prazos em curso. Com efeito, se quando estão em causa impostos periódicos, em que a formação do facto tributário
se prolonga por alguns meses ou anos, este Tribunal vem afastando - em caso de
alterações legislativas reconduzíveis a um agravamento da carga
fiscal durante aquele período de formação - a intolerabilidade
da violação das legítimas expectativas dos cidadãos (cfr.,
novamente, o Acórdão n.º 399/10), a mesma conclusão, por maioria
de razão, há de poder extrair-se quando
estejam em causa normas fiscais relativas a factos extintivos
da obrigação tributária e cuja formação é bem mais prolongada.
Depois,
analisadas em conjunto, as alterações legislativas produzidas em matéria de
prazos de prescrição apresentam um saldo positivo
para o sujeito passivo: os prazos de prescrição diminuíram (de 10 para 8 anos),
e uma das causas de interrupção da respetiva contagem
– a instauração da execução fiscal (cfr. artigo 34.º,
n.º 3, do CPT) – foi substituída por uma outra – a citação – algo que veio antecipar o termo do prazo de prescrição (Benjamim Silva
Rodrigues, “A prescrição no direito tributário”, Problemas
Fundamentais do Direito Tributário, Lisboa, 1999, p. 280).
Concluindo,
não só a mutação verificada na ordem jurídica não é de molde a provocar uma efetiva lesão na
confiança dos cidadãos-contribuintes, como tal confiança, a existir, não se
afigura plenamente justificada à luz da atuação estadual e do longo período de inércia
da administração tributária de que está dependente a consumação do prazo prescricional. Por conseguinte, atenta a natureza cumulativa dos critérios/testes supra identificados, resulta não estarem preenchidos os
requisitos de que depende a tutela da confiança à luz do princípio
constitucional da segurança jurídica e da “herança” da
jurisdição constitucional nesta matéria.
III.
Decisão
8.
Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) - Não
conhecer parcialmente o objeto do recurso, ou seja,
quanto às questões de inconstitucionalidade material do artigo 5.º, n.º 1, do
diploma preambular da LGT, conjugado com o disposto no artigo 297.º do Código
Civil (7.1) e inconstitucionalidade orgânica do artigo 5.º do diploma
preambular da LGT (7.2).
b) - Não julgar
inconstitucional os artigos 12.º e 49.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, na sua
versão originária, interpretados no sentido de que as causas de interrupção da
prescrição previstas ex novo são aplicáveis aos prazos
de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor da LGT; e, por
conseguinte, negar provimento ao recurso de constitucionalidade interposto.
Custas pela
recorrente, que se fixam em 25 (vinte e cinco) UCs.,
sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 5 de dezembro de 2012.- J. Cunha Barbosa – Maria
João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de
Sousa Ribeiro.