ACÓRDÃO N.º 568/2012
Processo n.º 37/12
Plenário
Relatora: Conselheira Maria João
Antunes
Acordam, em plenário, no Tribunal
Constitucional
I. Relatório
1. Os deputados à Assembleia Legislativa da
Região Autónoma dos Açores do grupo parlamentar do Partido Socialista requerem
a declaração, com força obrigatória geral, «da inconstitucionalidade da norma
contida no artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro – “Orçamento do
Estado para
O pedido tem os seguintes fundamentos:
«1. A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de
Dezembro, aprova o Orçamento do Estado para o ano de 2012, como decorre do seu
artigo 1.º.
Dispõe o
artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro:
(…)
3. O normativo acima plasmado colide com os
seguintes preceitos constitucionais e/ou legais:
i. A
ii. O Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, “lei de valor
reforçado”, na redacção da Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro, estabelece no
artigo 19.º, n.º 1 que “A Região dispõe, para as
suas despesas, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da Lei de
Finanças das Regiões Autónomas, das receitas fiscais nela cobradas ou geradas,
de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo
com o princípio da solidariedade nacional, bem como de outras receitas que lhes
sejam atribuídas”.
iii. Acresce que o n.º 2,
alínea b), do mesmo artigo refere que “Constituem, em especial,
receitas da Região:
-
Todos os impostos, taxas, multas, coimas e adicionais cobrados no seu
território, incluindo o imposto do selo, os direitos aduaneiros e demais
imposições cobradas pela alfândega, nomeadamente impostos e diferenciais de
preços sobre a gasolina e outros derivados do petróleo”.
iv. A Lei de Finanças
das Regiões Autónomas – Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro – também
“lei com valor reforçado”, dispõe no artigo 15.º n.º 1 que “De harmonia
com o disposto na Constituição e nos respectivos Estatutos Político-
Administrativos, as Regiões Autónomas têm direito à entrega pelo Governo da
República das receitas fiscais relativas aos impostos que devam pertencer-lhes,
nos termos dos artigos seguintes, bem como a outras receitas que lhes sejam
atribuídas por lei.”
v. Ainda em sede da
Lei de Finanças das Regiões Autónomas, cumpre mencionar o disposto no artigo
19.º alínea a), que estabelece que “Constitui receita de cada
Região Autónoma o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares:
-
Devido por pessoas singulares consideradas fiscalmente residentes
vi. Por outro lado, a
“As autarquias locais têm património e finanças próprios.”
vii. Acrescentando
o n.º 2 do artigo supra referido o seguinte:
“O
regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa
repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária
correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau.”
viii. Por sua
vez, a
“A
repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, tendo em vista
atingir os objectivos de equilíbrio financeiro horizontal e vertical, é obtida
através das seguintes formas de participação:
c) Uma participação variável de 5% no IRS,
determinada nos termos do artigo 20.º, dos sujeitos passivos com domicílio
fiscal na respectiva circunscrição territorial, calculada sobre a respectiva
colecta liquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do
ix. Acresce que o artigo
10.º da
“Constituem receitas dos municípios:
d) O produto da participação nos recursos
públicos determinada nos termos do disposto nos artigos 19.º e seguintes;”
x. Por fim, estatui o
n.º 1 do artigo 25.º da
“São
anualmente inscritos no Orçamento do Estado os montantes das transferências
financeiras correspondentes às receitas municipais previstas nas alíneas a), b)
e c) do n.º 1 do artigo 19.º.”
4. Assim, atendendo a que o ordenamento jurídico
vigente consagra, expressamente, a atribuição às Regiões das receitas de IRS
nelas geradas, não se compreende, nem se pode aceitar que o Orçamento do Estado
ouse dispor de receitas da titularidade da Região, atribuindo-as a sujeito
jurídico distinto, mesmo que se trate de municípios da Região.
5. Nestes termos, a norma vertida no artigo
212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, consubstancia, simultaneamente,
uma inconstitucionalidade material por violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea
j) e artigo 238.º da
2. Notificada para se pronunciar, querendo,
sobre os pedidos, a Presidente da Assembleia da República ofereceu o
merecimento dos autos.
3. Debatido o memorando apresentado pelo
Presidente e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver,
procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
II. Fundamentação
1. Os requerentes pedem a declaração, com força obrigatória geral, «da
inconstitucionalidade da norma contida no artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de
30 de Dezembro – “Orçamento do Estado para
A disposição
legal em causa tem a seguinte redacção:
«Artigo 212.º
Norma interpretativa
Para efeitos
do disposto na alínea c) do n.º 1
do artigo 19.º da Lei n.º
2/2007, de 15 de Janeiro, alterada pelas Leis n.ºs 22-A/2007, de 29 de Junho,
67-A/2007, de 31 de Dezembro, 3-B/2010, de 28 de Abril, e 55-A/2010, de 31 de
Dezembro, a participação variável de 5 % no IRS a favor das autarquias locais
das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma, devendo o Estado proceder diretamente à sua entrega às autarquias locais».
Face ao teor do requerimento, é de concluir que a questão de
constitucionalidade posta tem a ver com a conformidade
constitucional do artigo 212.º da Lei do Orçamento de Estado para 2012, na
parte em que dispõe que «a participação variável de 5 % no IRS a favor das
autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma». Não tem a ver propriamente com
a parte da norma que estatui que cabe ao «Estado proceder directamente à sua
entrega às autarquias locais». A argumentação dos requerentes centra-se toda
ela na dedução daquela participação à receita de IRS cobrada na região
autónoma, uma vez que entendem que «o ordenamento jurídico vigente consagra,
expressamente, a atribuição às Regiões das receitas [de todas as receitas] de
IRS nelas geradas». Uma argumentação deste tipo não deixa sequer margem para a
questão de saber se a Constituição da República Portuguesa (CRP) permite ou não
a entrega directa do Estado às autarquias locais.
2. O
artigo 212.º da Lei do Orçamento de Estado para 2012, ao determinar que, para
efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º da
Este artigo
185.º-A da Lei do Orçamento de Estado para 2011 já foi objecto de um pedido de
fiscalização abstrata sucessiva, também por um grupo
de deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (Processo
n.º 910/11), tendo sido então convocados fundamentos perfeitamente idênticos
aos que agora constam do presente pedido. A questão de constitucionalidade foi
apreciada e decidida no Acórdão n.º 412/12 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt)
nos seguintes termos:
«
«1 - A
repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, tendo em vista
atingir os objetivos de equilíbrio financeiro
horizontal e vertical, é obtida através das seguintes formas de participação:
(…)
c) Uma participação
variável de 5% no IRS, determinada nos termos do artigo 20.º, dos sujeitos
passivos com domicílio fiscal na respetiva
circunscrição territorial, calculada sobre a respetiva
coleta líquida das deduções previstas no n.º 1 do
artigo 78.º do Código do IRS».
O artigo 20.º (Participação variável no IRS) determina, para o que
agora releva, que:
«1 - Os
municípios têm direito, em cada ano, a uma participação variável até 5% no IRS
dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva
circunscrição territorial, relativa aos rendimentos do ano imediatamente
anterior, calculada sobre a respetiva coleta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo
78.º do Código do IRS.
2 - A
participação referida no número anterior depende de deliberação sobre a percentagem
de IRS pretendida pelo município, a qual deve ser comunicada por via eletrónica pela respetiva câmara
municipal à Direção-Geral dos Impostos, até 31 de dezembro do ano anterior àquele a que respeitam os
rendimentos.
3 - A ausência
da comunicação a que se refere o número anterior ou a receção
da comunicação para além do prazo aí estabelecido equivale à falta de
deliberação.
(…)
7 -
O produto da participação variável no IRS é transferido para os municípios até
ao último dia útil do mês seguinte ao do respetivo
apuramento pela Direção-Geral dos Impostos».
Por seu turno,
o artigo 63.º (Adaptação às Regiões Autónomas) da mesma lei dispõe, no n.º 3, que:
«A aplicação
às Regiões Autónomas do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º e no
artigo 20.º da presente lei efetua-se mediante
decreto legislativo regional».
A
Aquela norma
está inserida no Orçamento de Estado para 2011, apontando no sentido de se
tratar de uma disposição orçamental com vigência anual (artigo 106.º, n.º 1, da
CRP), o que sai reforçado por o seu conteúdo ter sido replicado no artigo 212.º
do Orçamento de Estado para 2012, aprovado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro. Independentemente da questão de saber se a norma
em causa tem natureza interpretativa ou se é apenas parcialmente
interpretativa, por dispor que a «participação variável de 5 % no IRS a favor
das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada
na respetiva região autónoma», o conteúdo daquele
artigo 185.º-A não coincide com o do artigo 63.º, n.º 3, da Lei das Finanças
Locais, nos termos do qual a aplicação às regiões autónomas do disposto na
alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º e no artigo 20.º desta lei se efetua mediante decreto legislativo regional. A razão de o
Tribunal ter decidido não declarar a inconstitucionalidade dos artigos 19.º,
n.º 1, alínea c), 20.º e 59.º da Lei das Finanças Locais, na sua aplicação aos
Municípios da Região Autónoma da Madeira, assentou precisamente no estatuído
naquele artigo 63.º, n.º 3, por fazer depender da «vontade expressa dos órgãos
regionais, plasmada num decreto-legislativo regional» a entrega aos seus
municípios da participação no IRS (Acórdão n.º 499/2008, já citado. Vai no
mesmo sentido um Acórdão recente do Supremo Tribunal Administrativo, tirado em
28-06-2012 no Processo 0272/12, disponível em www.dgsi.pt).
A questão de
constitucionalidade, tal como posta pelos requerentes, não tem a ver
fundamentalmente com a parte da norma que se refere à entrega por parte do
Estado da participação das autarquias locais da região autónoma respetiva no IRS. Tem antes a ver com a conformidade
constitucional do artigo 185.º-A da Lei do Orçamento de Estado para 2011, na
parte em que dispõe que «a participação variável de 5 % no IRS a favor das
autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma», face ao disposto no artigo
227.º, n.º 1, alínea j), da CRP.
7.1.
A questão de constitucionalidade não é nova, se atentarmos no Parecer da
Comissão Constitucional n.º 28/78, mediante o qual não houve pronúncia pela
inconstitucionalidade de um Decreto da Assembleia da República sobre «Finanças
locais» (Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7, 1980, p. 3 e ss.):
«19.
A primeira questão que se pode suscitar é a de saber se ao atribuir aos
municípios a totalidade do produto de certos impostos diretos
cobrados na respetiva circunscrição e ao fazer participar
a totalidade dos municípios numa determinada percentagem de outros impostos diretos cobrados no conjunto do país, o Decreto n.º 183/I
não viola o preceituado na alínea f) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição
[alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º].
Esta
última disposição determina que, entre as atribuições das regiões autónomas, a
definir nos respetivos estatutos, se encontra a de
«dispor das receitas fiscais nelas cobradas e de outras que lhes sejam
atribuídas e afetá-las às suas despesas».
Ao
atribuir diretamente aos municípios certas receitas
fiscais cobradas nas regiões autónomas, estar-se-ia, assim, a subtrair a estas
a faculdade de disposição que lhes é assegurada pela Lei Fundamental.
Como
resulta da própria letra do artigo 229.º [227.º], é nos estatutos das regiões
autónomas que se há de procurar a «definição» das
atribuições nele enunciadas.
(…)
Verifica-se,
assim, que o poder de disposição das receitas fiscais atribuído às regiões
autónomas pelo artigo 229.º [227.º] foi sempre entendido como não prejudicando
o regime das finanças locais a instituir posteriormente.
(…)
O
problema reduz-se, assim, a saber como pode o Estado satisfazer simultaneamente
o direito das regiões a dispor das receitas fiscais nelas cobradas e o direito
dos municípios a participar nas receitas provenientes de impostos diretos.
Mas,
quanto a esta questão, parece não poder levantar-se qualquer dúvida.
O
direito atribuído às regiões não pode deixar de se encontrar negativamente
delimitado pelo direito atribuído aos municípios.
É
que, enquanto o artigo 229.º [227.º] se refere genericamente a todas as
receitas fiscais, o artigo 255.º [254.º] se refere especificamente a apenas uma
parte de certas receitas fiscais, os impostos diretos.
Nestes
termos, às regiões autónomas cabe dispor das receitas fiscais nelas cobradas,
salvo daquela parte destas que se destina a assegurar a participação dos
municípios nas receitas provenientes de certos impostos, nos termos da
Constituição e da lei».
Por outro
lado, é reiterado o entendimento doutrinal de que um dos limites do direito de
disposição regional das receitas fiscais (para afetação
às despesas das regiões) decorre do direito das autarquias locais
(designadamente os municípios) a receitas fiscais próprias (assim, Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., anotação ao artigo 227.º, ponto XXVI., Paz
Ferreira, ob. cit., p. 579, e Maria Luisa Duarte, “As
Receitas Tributárias das Regiões Autónomas”, Estudos de Direito Regional, Lex, 1997, p. 507).
7.2.
Face ao estatuído nos artigos 254.º e 238.º da CRP os municípios participam,
por direito próprio, nas receitas provenientes dos impostos diretos
e têm finanças próprias. Este imperativo de autonomia financeira das autarquias
locais tem, por isso, de se compatibilizar com o poder que as regiões autónomas
têm de dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas para afetação às suas despesas.
O princípio do
Estado unitário (artigo 6.º da CRP) compatibiliza o regime autonómico insular
com a autonomia das autarquias locais e, consequentemente, duas diferentes
sedes de autonomia financeira – a das regiões autónomas (artigos 227.º, n.º 1,
alínea j), e 232.º, n.º 1, da CRP) e a das autarquias locais
(artigos 238.º e 254.º da CRP). Às regiões autónomas é garantido o poder de
dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas afetando-as
às suas despesas, com exclusão das que caibam, por direito próprio, aos
municípios.
Reiterando o
entendimento que se extrai do Parecer da Comissão Constitucional citado,
importa concluir que o
direito atribuído às regiões no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), não pode deixar
de se encontrar negativamente delimitado pelo direito atribuído aos municípios.
Assim sendo, o artigo 185.º-A da Lei do Orçamento do Estado para 2011 não viola
esta norma constitucional, já que as autarquias locais das regiões autónomas
participam no IRS nelas cobrado por direito próprio.
Independentemente do disposto nos estatutos das regiões autónomas e na Lei das
Finanças das Regiões Autónomas (cf. supra ponto 6.1.).
7.3.
Além de não padecer do vício de inconstitucionalidade por violação do artigo
227.º, n.º 1, alínea j), da CRP, o artigo 185.º-A da Lei do Orçamento do Estado
para 2011 não desrespeita o artigo 238.º da CRP. Diferentemente do que está
subjacente à argumentação dos requerentes no Processo n.º 910/11, a remissão
que o n.º 2 deste artigo faz para a lei, estatuindo que o regime das finanças
locais será estabelecido por lei, não leva à integração das normas da Lei das
Finanças Locais no artigo 238.º, elevando-as a parâmetro de aferição da
conformidade constitucional».
Este entendimento, que agora é reiterado, conduz à não declaração, com
força obrigatória geral da inconstitucionalidade da norma contida no artigo
212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2012),
por violação do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea j), e 238.º da CRP.
III. Decisão
Face ao exposto, decide-se não declarar, com força obrigatória geral, a
inconstitucionalidade da norma contida no artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de
30 de Dezembro.
Lisboa, 27 de novembro de 2012.- Maria João Antunes –
Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – João Cura Mariano –
Ana Maria Guerra Martins – Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Fernando
Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – J. Cunha Barbosa – Maria de Fátima
Mata-Mouros (vencida de acordo com declaração junta) – Pedro Machete (vencido conforme declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO
DE VOTO
Votei a inconstitucionalidade da norma contida no
artigo 212.° da Lei n.°
64-B/2011, de 30 de dezembro (Lei do Orçamento do
Estado para 2012), por violação dos artigos 227.°, n.° 1, alínea j) e 229.º, n.º
3 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A definição do regime das finanças
locais contida na norma do Orçamento de Estado para 2012, em apreciação,
interfere no poder de disposição das receitas fiscais cobradas nas regiões
autónomas (artigo 227.º, n.º 1, alínea j) da
Constituição e artigos 15.º e 19.º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas - Lei
Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro).
O problema reside em conciliar o
poder das regiões, no caso a Região Autónoma dos Açores, de dispor das receitas
fiscais cobradas no seu território, e afetá-las às
suas despesas (artigo 227.º, n.º 1, alínea j),
da Constituição) com a autonomia financeira
reconhecida às autarquias locais (artigo 238.º, n.º 1 da Constituição) e, em
especial, o reconhecimento de que os municípios (e portanto também os
municípios da região autónoma) têm direito a participar nas receitas
provenientes de impostos diretos (artigo 254.º, n.º 1
da Constituição).
A conciliação necessária entre aquelas normas não
pode, porém, ser imposta unilateralmente, pela República, no Orçamento de
Estado, designadamente através de inserção no mesmo de «norma interpretativa»
de preceito constante da Lei de Finanças Locais.
Desde logo porque a necessidade
de uma participação efetiva dos órgãos próprios da
Região Autónoma dos Açores na solução a adotar
decorre do princípio da cooperação, consagrado no artigo 229.º da Constituição,
em cujo n.º 3 se inscreve a ideia fundamental de coordenação nas relações
financeiras entre a República e as regiões autónomas a justificar um regime de
finanças fixado por lei reforçada da Assembleia da República (artigo 164.º, t) da CRP).
Depois, porque a referida compatibilização tem que
passar pela correta ponderação de todos os interesses em presença. Sendo a
República um dos vértices da relação, na medida em que exerce os poderes
tributários de liquidação e cobrança dos impostos em referência, não pode, unilateralmente,
atribuir parte da receita gerada e cobrada na região – e que a ela pertence,
nos termos do artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da
Constituição – às autarquias locais. Uma tal solução normativa,
independentemente da razoabilidade que possa oferecer, não respeita o
direito de interferência das regiões autónomas e ignora o sistema institucional
inscrito na Constituição assente na existência de órgãos do Estado, das regiões
autónomas e do poder local.
Lisboa, 27 de novembro
de 2012.
Maria de
Fátima Mata-Mouros
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei
vencido, por entender que o artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição
exige que a atribuição com caráter permanente (com
exclusão, portanto, de receitas provenientes de impostos extraordinários) a
outras entidades – ao Estado ou a autarquias locais - de receitas fiscais
cobradas ou geradas nas regiões autónomas se faça nos termos previstos nos
estatutos político-administrativos e na lei das finanças regionais – diplomas
legais com valor reforçado que, em vista da garantia da autonomia regional na
sua vertente financeira, e em atenção ao direito constitucionalmente
reconhecido de as regiões autónomas disporem de receitas próprias, exigem uma
intervenção de tais regiões no respetivo procedimento
legislativo (cfr. os artigos 226.º e 229.º, n.º 3,
ambos da Constituição) -; a previsão de uma tal atribuição de receitas fiscais
a favor dos municípios apenas na lei das finanças locais, precisamente porque
se trata de diploma legal aprovado sem qualquer interferência das regiões
autónomas, não é suficiente para a legitimar e, ao colocar na disponibilidade
exclusiva do legislador ordinário receitas fiscais cobradas ou geradas nas
regiões autónomas, atenta contra uma dimensão essencial da respetiva
autonomia político-administrativa.
Com efeito,
o artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro
(a Lei do Orçamento do Estado para 2012), esclarece, com força de lei
interpretativa, que a receita dos municípios correspondente à participação
variável até 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, a determinar nos
termos do artigo 20.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro
(a Lei das Finanças Locais), é uma quota na
receita total do IRS, e não uma quantia ou valor de cálculo correspondente àquela percentagem do valor
total da receita de IRS. A diferença é substancial: no primeiro caso –
correspondente à interpretação acolhida no citado artigo 212.º da Lei n.º
64-B/2011 – a parte da receita de IRS atribuída aos municípios já não pode ser
entregue a outras entidades, em especial às regiões autónomas; no segundo caso,
a percentagem considerada funciona como simples base de cálculo do valor a
atribuir aos municípios, nada impedindo que a receita de IRS consignada como
receita própria de determinadas entidades, nomeadamente das regiões autónomas,
continue a ser-lhes entregue.
É exato que, por força do princípio da unidade do Estado, a
autonomia regional e a autonomia local não se movem em planos distintos; as
duas esferas de autonomia afirmam-se separadamente, em simultâneo e com base na
Constituição, frente ao Estado. Daí que, assim como existem relações imediatas
entre o Estado e as duas regiões autónomas, também sejam admissíveis, com
ressalva das exceções constitucionalmente previstas
(como sucede, por exemplo, no caso da tutela administrativa – artigo 227.º, n.º
1, alínea m), da Constituição), relações imediatas entre o Estado e as
autarquias locais situadas nos arquipélagos dos Açores e da Madeira (e, por
isso, nada obsta à solução adotada no segmento da
noma sob fiscalização, segundo o qual a entrega do valor correspondente à
participação variável dos municípios na receita de IRS é feita diretamente pelo Estado aos municípios situados nas regiões
autónomas, sem a intermediação destas últimas; cfr. o
n.º 21 do Parecer da Comissão Constitucional n.º 28/78 citado no Acórdão; v.
também, ANTÓNIO LOBO XAVIER e FRANCISCO MENDES DA SILVA, “A Repartição dos
Recursos Públicos entre o Estado, as Regiões Autónomas e as Autarquias Locais:
Uma abordagem a Propósito de Controvérsia Recente Acerca do Direito dos
Municípios a uma Participação Variável no IRS” in Estudos em
Homenagem a Miguel Galvão Teles, vol. I, Almedina, Coimbra, 2012, p.
893 e seguintes, pp. 917-918). Daí, também, que, em princípio, não possa haver
por parte do Estado diferenças de tratamento entre autarquias localizadas nos
arquipélagos dos Açores e da Madeira e autarquias localizadas no continente.
Contudo,
nesse plano das relações imediatas, importa considerar o modo como tais
relações se encontram conformadas constitucionalmente, em especial no tocante à
vertente das finanças públicas.
O poder de
disposição, “nos termos dos estatutos e da lei de
finanças das regiões autónomas”, das receitas fiscais cobradas ou
geradas nas regiões autónomas representa uma garantia
mínima de autonomia financeira das regiões autónomas (no Acórdão
deste Tribunal n.º 499/2008 – no respetivo n.º 8 - é
referido, a propósito, o conceito de «reserva regional de receitas cobradas e
geradas no respetivo território»), uma vez que tem o
sentido de estabelecer aquilo que, em princípio, deverá ser o mínimo da
contribuição do Estado (a «República») para as finanças regionais: os
residentes das Ilhas não contribuem para as despesas gerais do Estado; os
impostos estaduais por si pagos revertem para a respetiva
região autónoma (nesse sentido, v. ANTÓNIO LOBO XAVIER, “As receitas regionais
e as receitas das outras parcelas do território nacional: concretização ou
violação do princípio da igualdade?” in Direito e Justiça,
vol. X, tomo I, 1996, p. 173 e seguintes, p. 177). Relativamente à Região
Autónoma dos Açores, resulta dos preceitos do respetivo
Estatuto Político-Administrativo e da Lei das Finanças das Regiões Autónomas
transcritos no Relatório do presente Acórdão que a totalidade das receitas
fiscais cobradas ou geradas nessa Região, incluindo as receitas de IRS, é
deferida a essa mesma Região Autónoma. Consequentemente, ao contrário daquela
que seria, porventura, a situação normativa à data do referido Parecer n.º
28/78 da comissão Constitucional, não se pode hoje afirmar que «o direito das
regiões autónomas a dispor das receitas fiscais nelas cobradas é delimitado
negativamente pelo direito atribuído aos municípios de participarem na receita
dos impostos diretos».
É certo que
a Constituição também não exige o inverso: que o direito dos municípios de
participarem nas receitas dos impostos diretos seja
delimitado negativamente pelas receitas fiscais afetadas
às regiões autónomas. O que a Constituição exige, isso sim, é que a atribuição
permanente a outras entidades – ao Estado ou a autarquias locais – das receitas
fiscais cobradas ou geradas nas regiões autónomas se faça em termos compatíveis
com o disposto no seu artigo 227.º, n.º 1, alínea j): o mesmo é dizer, em
conformidade com as previsões do estatuto político-administrativo aplicável e
da lei das finanças regionais – diplomas em cujo procedimento de formação se
encontra assegurada a participação das regiões autónomas. A mesma atribuição
feita por qualquer outro diploma legal – como sucede in casu com a Lei das Finanças Locais, interpretada
nos termos do artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011 - viola, pelo exposto, o artigo
227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição. Acresce que a solução que fez
vencimento permite que o principal interessado – o Estado, que é a entidade a
quem incumbe o financiamento das autarquias locais (cfr.
o artigo 238.º, n.º 2, da Constituição) – resolva sozinho, e a seu favor, o
conflito de interesses que neste domínio o opõe às regiões autónomas (sobre a
necessidade de salvaguardar a intervenção institucional das regiões autónomas
neste domínio, v. as declarações de voto de Jorge Miranda e de Isabel Magalhães
Collaço no mencionado Parecer n.º 28/78). Tal solução
permite, em suma, um esvaziamento e a desvalorização da autonomia
político-administrativa das regiões autónomas, sendo, por isso, incompatível
com a respetiva garantia constitucional.
Pedro Machete