ACÓRDÃO N.º 540/2012
Processo n.º 18/11
Plenário
Relatora: Conselheira Maria João
Antunes
Acordam, em plenário, no Tribunal
Constitucional
1. Nos
presentes autos, vindos do Supremo Tribunal
de Justiça, em que é recorrente o Ministério
Público e recorrido A., foi
interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele
Tribunal de 25 de novembro de 2010.
2. A
este Tribunal foi requerida a apreciação dos «artigos 399.º e 400.º do Código
de Processo Penal, na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto,
interpretados no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação,
proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim,
revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da
liberdade». Pelo Acórdão n.º 153/2012, a norma foi julgada inconstitucional por
violação do princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa).
3. Notificado
deste acórdão, o Ministério Público
interpôs dele recurso obrigatório para o plenário, nos termos do artigo 79.º-D,
n.º 1, da LTC, invocando o seguinte:
«3 -
Anteriormente, pelo Acórdão n.º 546/2011 [3.ª secção], o Tribunal não julgara
inconstitucional a norma constante dos artigos 399.º e 400.º do Código de
Processo Penal, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de
agosto, quando interpretada no sentido de ser admissível recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo
assistente, de acórdão do Tribunal da Relação, proferido em
recurso, que, ao absolver o arguido de um dado crime, revogue a condenação do
mesmo em pena não privativa da liberdade imposta na primeira instância.
4 – Assim, o
juízo de inconstitucionalidade constante do Acórdão recorrido é contraditório
com o juízo de não inconstitucionalidade formulada no Acórdão n.º 546/2011 – na
parte respeitante ao recurso interposto pelo assistente -, cabendo ao Plenário
dirimir tal conflito jurisprudencial.
5 – Efetivamente, quanto à questão da inconstitucionalidade da
admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça sendo recorrente
o assistente, a dimensão normativa agora julgada inconstitucional, coincide
integralmente com a não julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 546/2011».
4. Admitido
o recurso, o Ministério Público alegou, formulando as seguintes conclusões:
«1.º
A norma
constante dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal, na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, na interpretação de que é
admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal da
Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1ª instância
numa pena não privativa da liberdade,
afronta o princípio da igualdade de armas e o núcleo fundamental do direito de defesa do arguido.
2.º
Pelo que tal
norma é materialmente inconstitucional, por
violação dos artigos 13.º e 32.º, n.º 1 da Constituição».
5. O
recorrido não contra-alegou.
6. Concluída
a discussão e tomada a decisão, nos termos previstos no n.º 5 do artigo 79.º-D
da LTC, cumpre agora formulá-la.
II. Fundamentação
1. Segundo
o artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, se o Tribunal
Constitucional vier julgar a questão da inconstitucionalidade em sentido
divergente do anteriormente adotado quanto à mesma
norma, por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso para o
plenário do Tribunal.
É o que se verifica nos presentes autos. A 1.ª secção e a 3.ª julgaram
em sentido divergente a questão de saber se é constitucionalmente conforme
interpretar os artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal,
na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, no sentido de que é
admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto
pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em
recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a
condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade. Esta
norma constitui, pois, o objeto do presente recurso.
2. As
disposições legais a que se reporta a norma em causa têm a seguinte redação:
«Artigo 399.º
Princípio geral
É permitido
recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não
estiver prevista na lei.
Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 - Não é
admissível recurso:
a)
De despachos de mero expediente;
b)
De decisões que ordenam atos dependentes da livre
resolução do tribunal;
c)
De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final,
do objeto do processo;
d)
De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem
decisão de 1.ª instância;
e)
De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações,
que apliquem pena não privativa da liberdade;
f)
De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem
decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g)
Nos demais casos previstos na lei.
2 - Sem
prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença
relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja
superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável
para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
3 - Mesmo que
não seja admissível recurso quanto à material penal, pode ser interposto
recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil» (itálico aditado).
O artigo 399.º
do CPP consagra o princípio geral de que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja
irrecorribilidade não estiver prevista na lei, dispondo o artigo
400.º do mesmo Código sobre as decisões que não admitem
recurso – as elencadas nesta disposição legal e nos demais casos
previstos na lei. No que se refere ao duplo grau de recurso de decisões que
conheçam, a final, do objeto do processo, a regra é a
da recorribilidade das decisões proferidas, em recurso, pelas relações (artigo
399.º do CPP), sendo irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça os
acórdãos proferidos em recurso previstos nas alíneas d),
e) e f) do n.º 1 do
artigo 400.º do CPP.
Não obstante
ter arredado a norma segundo a qual não é admissível recurso
de acórdãos das relações em recursos interpostos de decisões em primeira
instância (artigo 400.º, n.º 1, alínea c),
do CPP, na redação primitiva), tem sido propósito do
legislador circunscrever o recurso em segundo grau perante o Supremo Tribunal
de Justiça aos casos de maior gravidade,
aos casos de maior merecimento penal (cf.
Exposição de Motivos da Proposta de Lei que esteve na origem das alterações
introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, Projeto de Revisão do Código de
Processo Penal. Proposta de Lei apresentada à Assembleia da República,
Ministério da Justiça, 1998, p. 27, e Exposição de Motivos da Proposta de Lei
n.º 109/X, na base das alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de
agosto). Num primeiro momento, o legislador fez “uso discreto do princípio da
dupla conforme”, combinando-o com o critério da gravidade da pena abstrata correspondente ao crime (artigo 400.º, n.º 1,
alíneas d), e) e f), do CPP, na redação de 1998);
num momento posterior, combinou aquele princípio com o critério da gravidade da
pena aplicada (pena concreta), para restringir, ainda mais, “o recurso de
segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior
merecimento penal” (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d),
e) e f), do CPP, na atual redação). A partir de
Pelo
contrário, o propósito afirmado era o de restringir o recurso em segundo grau
aos casos de maior merecimento penal e, em
geral, o de limitar o recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, quer por
via da irrecorribilidade de decisões proferidas pelas relações, em recurso, que
confirmem decisão absolutória da 1.ª instância
ou que confirmem decisão condenatória de 1.ª instância,
aplicando pena de prisão não superior a oito anos (artigo 400.º, n.º
1, alíneas d) e f), do CPP);
quer através da limitação constante da alínea c)
do n.º 1 do artigo 432.º do CPP – recorre-se para o Supremo
Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo
tribunal coletivo, visando exclusivamente o reexame
de matéria de direito, apenas quando apliquem pena de prisão superior a cinco
anos.
3. Para
apreciar a conformidade constitucional da norma que é objeto
do presente recurso, importa ter presente as normas e os princípios
constitucionais que integram a denominada “constituição processual penal”.
De acordo com
o artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o
processo penal assegura ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o recurso
e a garantia de que se presume inocente até ao
trânsito em julgado da sentença de
condenação. Já perante a redação anterior do artigo –
o processo criminal assegurará todas as garantias
de defesa – se entendia que o direito de o arguido recorrer em
processo penal se insere no
complexo de garantias que integram o direito de defesa, não tendo, por isso,
sido decisiva a alteração introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20
de setembro, ao acrescentar que são asseguradas todas
as garantias de defesa, incluindo o recurso
(cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 178/88, 132/92,
322/93, 418/2003, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A alteração tão-pouco modificou o entendimento de que não é constitucionalmente
imposto o duplo grau de recurso em processo penal, sustentando-se
que “mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente
assegurado um triplo grau de jurisdição”, existindo, consequentemente, “alguma
liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso” (cf.
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 189/2001 e, entre outros, Acórdãos n.ºs
178/88, 49/2003 e 645/2009, disponíveis naquele sítio).
A inserção do direito ao recurso em processo
penal no complexo de garantias que integram o direito de defesa do arguido já
levou o Tribunal a entender que não violam o princípio da
igualdade disposições processuais que regulem, em termos divergentes
para o arguido e para o assistente e, em geral, para a acusação e a defesa, a
possibilidade de recorrer de determinada decisão judicial. O Tribunal não
julgou inconstitucional a norma do artigo 646.º, n.º 6, do Código de Processo
Penal de 1929, interpretada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 20
de maio de 1987, na parte em que dispunha não haver recurso dos acórdãos
absolutórios das relações proferidos sobre recursos interpostos em processo correcional, por parte do assistente e do Ministério
Público, sendo certo que tal não era vedado ao arguido relativamente a acórdãos
condenatórios (Acórdão n.º 132/92, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
O princípio da igualdade no âmbito do
processo criminal tem de ser perspetivado em
consonância com a específica natureza de um processo que assegura ao arguido
todas as garantias de defesa, “podendo significar aí, não que os sujeitos do
processo devam ter estatutos processuais absolutamente idênticos e paritários,
simetricamente decalcados, mas essencialmente que o arguido poderá, por vezes,
beneficiar de um estatuto formalmente «privilegiado», como forma de compensar
uma presumida fragilidade ou maior debilidade relativamente à acusação, no
confronto processual penal”. O que significa também que “o arguido não deve ter
menos direitos do que a acusação, mas
não que não possa ter mais” (Lopes do Rego, “Acesso ao direito e
aos tribunais”, Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal
Constitucional, Aequitas/Editorial de
Notícias, 1993, pp. 76 e 70 e s.,
com especial referência ao Acórdão n.º 132/92, e à declaração de voto aposta ao
Acórdão n.º 8/87 pelo Conselheiro Vital Moreira, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Em geral, é de concluir que, “dada a radical
desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder
institucional do Estado) e a defesa”, há “uma orientação do processo penal para
a defesa”, que o vincula a assegurar todas as
garantias, o que vale por dizer que é um processo que tem nos direitos do
arguido “um limite infrangível” (cf. Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 32.º,
ponto II. e, ainda, Acórdãos do Tribunal
Constitucional n.ºs 54/87, 150/87 e 356/91, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Designadamente no direito ao recurso e no direito à presunção de inocência até
ao trânsito em julgado da decisão, no sentido específico de em processo
criminal não serem admissíveis recursos em segundo grau de decisões
absolutórias, quando são irrecorríveis acórdãos condenatórios proferidos em
recurso. O direito à presunção de inocência do arguido tem
de projetar-se de modo diferente na estabilidade das
decisões penais consoante sejam condenatórias ou absolutórias, não sendo
constitucionalmente conforme uma diferenciação de tratamento que facilite a
estabilização de decisões condenatórias (encurtando as possibilidades de defesa
do arguido) em termos negados às absolutórias (protelando a discussão sobre os
factos imputados ao arguido).
O que vem de ser dito é reforçado por da
“constituição processual penal” não decorrer uma qualquer
equiparação do estatuto processual do ofendido/assistente ao do arguido,
limitando-se o n.º 7 do artigo 32.º a estatuir que o ofendido
tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei. Tem-se
entendido que a questão da admissibilidade de recurso por parte do assistente
deve ser perspetivada à luz do que se dispõe no
artigo 20.º, n.º 1, da CRP (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 259/2002,
464/2003 e 399/2007, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt),
de onde não decorre sequer o direito ao recurso por parte dos sujeitos
processuais, com o consequente dever de o legislador consagrar, em regra, um
duplo grau de jurisdição. Sem prejuízo de se dever entender que o direito
constitucionalmente conferido ao ofendido de intervir no processo penal (artigo
32.º, n.º 7) obsta a que este seja privado dos poderes processuais que se revelem
decisivos para a defesa dos seus interesses, privando-o, nomeadamente, do poder
de recorrer (em primeiro grau) de sentenças absolutórias (cf. Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 464/2003. E, ainda, Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit.,
anotação ao artigo 32.º, ponto XIV.).
4. A
norma que é objeto de apreciação não respeita estas
normas e princípios da “constituição processual penal”. A admissibilidade de
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo assistente,
de acórdão da relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por
determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância
numa pena não privativa da liberdade viola o princípio da
igualdade, enquanto dele decorre que a posição
dos sujeitos processuais seja nivelada dentro das garantias de defesa e em
favor da mesma defesa (Acórdão n.º 132/92). Há violação, na medida
em que não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo arguido, de acórdão da relação, proferido em
recurso, que condene o arguido em pena não privativa da liberdade e que, assim,
revogue a absolvição do mesmo na 1.ª instância. O arguido não tem o direito de
aceder ao segundo grau de recurso, com a consequente estabilização da decisão
condenatória, apesar de se presumir inocente, diferentemente do assistente que
tem o direito de aceder ao segundo grau de recurso, protelando a estabilização
de uma decisão que absolve quem se presume inocente.
III. Decisão
Em face do
exposto, decide-se:
a) Julgar
inconstitucional a norma dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal,
na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é
admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo
assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que
absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do
mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade, por violação das
disposições conjugadas dos artigos 13.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição
da República Portuguesa; e, consequentemente,
b) Negar
provimento ao recurso.
Lisboa,
15 de novembro de 2012.- Maria João Antunes – Maria José Rangel de Mesquita – Catarina Sarmento
e Castro – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral (Com declaração
anexa) – J. Cunha Barbosa – Carlos Fernandes Cadilha (repensando
anterior posição que adoptei no acórdão n.º 546/11, considero agora que é
possível formular apenas um juízo de inconstitucionalidade com base na violação
das garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso pelo arguido,
consagrados no art.º 32, n.º 1, da CRP) – Maria
de Fátima Mata-Mouros (com declaração) – João Cura Mariano (com a fundamentação constante da
declaração junta pelo Conselheiro Pedro Machete) – Pedro Machete (com declaração) – Ana Maria Guerra Martins (vencida nos termos do acórdão n.º
546/2011) – Vítor Gomes (vencido,
nos termos do acórdão n.º 546/2011) – Joaquim
de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE
VOTO
Fui relatora do Acórdão nº 546/2011, no qual o
Tribunal concluiu que a norma sob juízo
não merecia qualquer censura. Não obstante, adiro agora à fundamentação e à
decisão da maioria, que julga em sentido contrário. Devo portanto explicar por
que razão o faço.
As normas constitucionais que consagram os direitos
das pessoas não detêm apenas uma dimensão subjetiva: esta é uma
afirmação que já se tornou corrente, tanto na jurisprudência quanto na
doutrina. A este respeito disse o Tribunal (e para recordar apenas uma
referência recente) no Acórdão nº 496/2010: “[n]ada impede que uma norma se conceba como estabelecendo um
direito subjetivo fundamental e ao mesmo tempo uma
garantia objetiva, para usar a expressão do Tribunal
Constitucional Federal Alemão (…) As normas de direitos fundamentais não contêm
apenas direitos subjetivos de defesa de cada sujeito
frente ao Estado. Incorporam simultaneamente uma ordem objetiva
de valores que, como decisão fundamental jurídico-constitucional,
rege em todos os campos do Direito e dá diretrizes e
impulsos à legislação, administração e jurisprudência”.
As normas constantes
do artigo 32.º da CRP, sobre as garantias de processo criminal, não escapam a
esta dupla dimensão. O que significa que, objetivamente, consagram escolhas fundamentais da ordem constitucional
que, conformando todas as normas de processo penal, se estendem também, e
evidentemente, ao próprio sistema de recursos.
Segundo creio, é
perante as vinculações objetivas a que está sujeito o nosso sistema de
recursos em processo penal que deve ser julgada a “norma” em
discussão. Uma ordem processual penal que seja axiologicamente orientada pelos
princípios que decorrem dos nºs 1 e 2 do artigo 32.º da CRP não pode conter um
“sistema” de recursos do qual resulte o seguinte: o Estado
“investe” menos (no sentido lato do termo “investir”) na confirmação de uma condenação do que na sua infirmação, já
que apressa o trânsito em julgado de uma sentença condenatória (por impedir que
dela se interponha recurso), ao mesmo tempo que difere o trânsito em julgado de
uma sentença absolutória (por permitir que a “acusação” dela interponha
recurso). Não faz sentido que uma ordem que seja objetivamente orientada
pelos princípios das garantias de defesa do arguido e da presunção da sua
inocência contenha um sistema de recursos que, pelo seu desenho positivo,
chegue a tal resultado.
Continuo a pensar –
como o pensou o Tribunal no Acórdão nº 546/2011 – que esta ausência de
sentido do sistema não implica “arbítrio legislativo”, nos termos do
nº 1 do artigo 13.º da CRP, ou violação as garantias de defesa do arguido, nos
termos do nº 1 do artigo 32.º. Como então se disse, não está em causa nem uma
coisa nem outra: não me parece que o juiz constitucional possa censurar este
modelo de recursos por razões atinentes à violação das posições jurídico-subjetivas do arguido, constitucionalmente tuteladas, ou
por desigualdade arbitrária na relação que se estabelece entre as posições
jurídico-subjetivas das “partes” num processo que,
como então se disse, não é constitucionalmente configurado como um “processo de
partes”. O que está em causa é a legitimidade objetiva
do poder punitivo do Estado, quando o seu sistema de recursos em processo penal
se apresenta desenhado de tal forma que conduz a resultados que contrariam os
valores decorrentes do artigo 32.º da Constituição.
Foi por não ter tido
em necessária linha de conta esta dimensão objetiva do problema
que me orientei, no Acórdão nº 546/2011, pelo juízo de não
inconstitucionalidade. Revejo assim, com este sentido – que vejo refletido na fundamentação da presente decisão, na medida
em que nela se invoca o princípio da igualdade enquanto refração
dos valores da chamada “constituição processual penal” –, a posição que
anteriormente assumi.
Maria Lúcia Amaral.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei
a decisão, não os seus fundamentos.
1.
Cumpre apreciar a conformidade
constitucional dos artigos 399.º e 400.º do CPP, na versão dada pela Lei n.º
48/2007, de 29 de agosto, interpretados no sentido de que é admissível recurso
para o STJ, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação,
proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim,
revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da
liberdade.
2. A Constituição
assume o direito ao recurso do arguido como integrando o núcleo essencial das
suas garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1 da CRP). Deste preceito decorre a
consagração de um processo penal orientado para a defesa. Um processo penal
que, nessa medida, longe de dever ser neutro, encontra nos direitos do arguido
um limite inultrapassável a respeitar na conformação infraconstitucional do respetivo regime e, designadamente também do regime legal
dos recursos. É, portanto, à luz das garantias de defesa do arguido, e não de
qualquer pretensão de igualdade a estabelecer entre os diversos sujeitos do
processo (que em processo penal não tem de existir), que a interpretação
normativa submetida à fiscalização de constitucionalidade deve ser analisada.
Determinante será, assim, perceber se a solução normativa em apreciação permite
o exercício de todas as garantias de defesa pelo arguido, designadamente do seu
direito ao recurso.
3. O artigo 32.º, n.º 1
assegura ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o direito de
recurso, designadamente da decisão condenatória. O exercício deste direito não
se mostra, porém, compatível com a admissão do direito de recurso pelo
assistente de decisão absolutória proferida pela Relação. Com efeito, admitir
um tal direito ao assistente implica aceitar a eventualidade de o arguido ser
condenado pelo Supremo sem que lhe seja facultada a possibilidade de recorrer
dessa condenação e, nessa medida, sem garantia de defesa. Na verdade, o direito
do arguido ao recurso da sua condenação não se basta com a sua intervenção no
recurso interposto pelo assistente da sua absolvição. No momento em que o
arguido responde ao recurso não são conhecidos os fundamentos da (futura e
hipotética) condenação. Uma decisão condenatória proferida pela instância de
recurso em revogação de absolvição anteriormente proferida, tendo embora por
base o mesmo objeto da decisão recorrida, integra
conhecimento de matéria que excede o âmbito da anterior apreciação,
designadamente todo o processo decisório referente à escolha e determinação da
medida da pena (artigos 368.º, 369.º e 371.º do CPP). Só a sentença
condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da
sanção aplicada (artigo 375.º do CPP). Por conseguinte, não é pelo mero
exercício do contraditório no recurso interposto pelo assistente da absolvição
do arguido, que este necessariamente tem oportunidade de contrariar os
fundamentos da decisão que poderá vir a condená-lo. E sendo assim, diante da
inevitável limitação das instâncias de recurso, imperioso será concluir que a
concessão ao assistente do direito de recorrer da decisão que, em 2.ª
instância, e em revogação da condenação proferida em 1.ª instância, absolve o
arguido, não se compadece com o exercício de todas garantias de defesa,
designadamente do direito ao recurso assegurado no artigo 32.º, n.º 1 da CRP.
4.
A necessidade de alcançar a estabilidade
das decisões judiciais impõe a limitação das instâncias de recurso. Em processo
penal, por imposição da Constituição, aquela limitação não pode resolver-se em
desfavor das garantias de defesa do arguido. Ora é precisamente neste ponto que
a norma em apreciação se apresenta como desconforme à Constituição. Na verdade,
a solução normativa que admite o recurso do assistente de absolvição do arguido
proferida em 2.ª instância resolve, em desfavor do arguido, a limitação das
instâncias de recurso. Um desfavor que se instala, independentemente do não
reconhecimento ao arguido do direito de recorrer na situação simetricamente
oposta. I.e., mesmo acautelado ao arguido o direito de recurso de acórdão
condenatório em pena não privativa da liberdade proferido pelo Tribunal da
Relação, em revogação de absolvição da primeira instância (o que, de acordo com
o que vem de explanar-se constitui também solução imposta pelo artigo 32.º, n.º
1 da CRP), a admissão do recurso do assistente na situação em apreciação
continuaria a trazer em si implicada a violação da Constituição, por
comprometimento das garantias de defesa do arguido, designadamente do direito a
recorrer da sua condenação (direito igualmente garantido pelo artigo 14.º, n.º
5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos nos casos em que a
condenação é imposta por um tribunal de recurso, após absolvição em 1.ª
instância – cfr. Comité dos Direitos do Homem das
Nações Unidas, General Comment
n.º 32, Article 14, CCPR/C/GC/32, 23 de agosto de 2002).
5.
Em conformidade, votei a declaração de
inconstitucionalidade da norma dos artigos 399.º e 400.º do CPP, na versão dada
pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é admissível recurso para
STJ, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal de Relação, proferido
em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a
condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade, não
por violação do princípio da igualdade, mas por uma tal solução normativa
trazer em si implicada a violação das garantias de defesa do arguido, em
especial o seu direito ao recurso enquanto garantia constitucional de defesa
prevista no artigo 32.º, nº 1 da CRP.- Maria de Fátima
Mata-Mouros.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão, por considerar
que a norma em causa não se compagina com um sistema de recursos consagrado na
lei processual penal respeitador das vinculações teleológicas decorrentes do art. 32.º, n.os 1 e 2, da
Constituição. Tal norma introduz um desvio no aludido sistema, fazendo-o infletir num sentido contrário ao intencionado pela
Constituição: subjetivamente,
onera o arguido, sujeitando-o a mais uma decisão, enquanto, na situação
paralela, a condenação se torna definitiva; objetivamente,
o trânsito em julgado da absolvição é dificultado, por comparação com o que
sucede nos casos paralelos de condenação. Entendo, também, que a dimensão objetiva das garantias de defesa previstas no citado
preceito constitucional – e que corresponde à essência da «constituição
processual penal» referida no acórdão – acolhe já, no seu âmbito particular, os
valores e ponderações objetivos decorrentes do
princípio da igualdade, pelo que não se justifica a invocação – autónoma ou em
articulação com o art. 32.º, n.os
1 e 2 - do art. 13.º, n.º 1, da Constituição como
fundamento do juízo de inconstitucionalidade.
Pedro Machete