ACÓRDÃO N.º 404/2012
Processo n.º 773/11
Plenário
Relator: Conselheiro Joaquim de
Sousa Ribeiro
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - RELATÓRIO
1. Requerente e pedido
O Provedor de Justiça veio requerer, ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República
Portuguesa (CRP) e no n.º 1 do artigo 51.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, das normas constantes do artigo 34.º, n.º 1, da Lei Orgânica
n.º 1-B/2009, de 7 de julho, que aprova a Lei de
Defesa Nacional, e dos artigos 1.º, 2.º, n.ºs 1, 2 e 3, 4.º, n.ºs 1 e 2, e 5.º,
n.ºs 1, 2 e 3, da Lei n.º 19/95, de 13 de julho,
diploma que estabelece o regime de queixa ao Provedor de Justiça em matéria de
defesa nacional e Forças Armadas.
A norma do artigo 34.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de julho (retificada e aprovada em
anexo à Declaração de Retificação n.º 52/2009, de 20
de julho), que aprova a Lei de Defesa Nacional, tem a
seguinte redação:
«Artigo 34.º
Provedor de Justiça
1 ― Os militares na efetividade
de serviço podem, depois
de esgotados os recursos administrativos legalmente previstos, apresentar
queixas ao Provedor de Justiça por ações ou omissões
dos poderes públicos responsáveis pelas Forças Armadas de que resulte violação
dos seus direitos, liberdades e garantias, exceto em
matéria operacional ou classificada.
2 ― (…).»
O teor dos artigos 1.º, 2.º, n.ºs 1, 2 e 3, 4.º, n.ºs 1 e 2, e 5.º,
n.ºs 1, 2 e 3, da Lei n.º 19/95, de 13 de julho,
diploma que estabelece o regime de queixa ao Provedor de Justiça em matéria de
defesa nacional e Forças Armadas, é o seguinte:
«Artigo 1.º
Queixa ao Provedor de Justiça
Todos os cidadãos, nos termos da Constituição e da lei,
podem apresentar queixa ao Provedor de Justiça por ações
ou omissões dos poderes públicos responsáveis pelas Forças Armadas de que tenha
resultado, nomeadamente, violação dos seus direitos, liberdades e garantias ou
prejuízo que os afete.»
«Artigo 2.º
Queixa por parte de militares ou de agentes militarizados das Forças
Armadas
1 ― Sendo queixosos os militares ou os
agentes militarizados das Forças Armadas, a queixa referida no artigo anterior só pode ser apresentada ao Provedor de
Justiça uma vez esgotadas as vias hierárquicas estabelecidas na lei.
2 ― O recurso interposto nos termos do número anterior considera-se indeferido
decorridos que sejam 15 dias úteis sem que seja decidido.
3 ― Quando não haja lugar ao recurso hierárquico ou estiver esgotado o prazo para
interpor recurso hierárquico da ação ou omissão, nos
termos do n.º 1, a queixa é levada ao conhecimento do Chefe do
Estado-Maior-General das Forças Armadas ou do chefe de estado-maior do respetivo ramo, conforme os casos, que dispõe de 10 dias
úteis para se pronunciar, findos os quais, sem que a pretensão individual tenha
sido satisfeita, pode a mesma ser dirigida diretamente
ao Provedor de Justiça.
4 ― (…).»
«Artigo 4.º
Processo
1 ― A queixa deve conter o
nome completo do queixoso e a indicação da sua residência, a sua identificação
militar completa, a referência à força, unidade, estabelecimento ou órgão em
que desempenha funções, bem como a menção de que foram esgotadas as vias
hierárquicas ou de que dela foi previamente dado conhecimento ao Chefe do
Estado-Maior-General das Forças Armadas ou ao Chefe de Estado-Maior respetivo, tendo decorrido, sem satisfação do pedido, o
prazo referido no n.º 3 do artigo 2.º
2 ― A queixa é apresentada por escrito ou oralmente, devendo neste caso ser reduzida
a auto.»
«Artigo 5.º
Âmbito pessoal de aplicação
1 ― O disposto nos artigos 2.º, 3.º e 4.º aplica-se:
a) Aos militares dos quadros permanentes das Forças Armadas na situação
de ativo ou que, encontrando-se na situação de
reserva, estejam em serviço efetivo;
b) Aos militares das Forças Armadas que cumpram o serviço efetivo normal ou que prestem serviço efetivo
em regime de voluntariado ou em regime de contrato;
c) Aos militares das Forças Armadas que cumpram serviço efetivo decorrente de convocação ou de mobilização, nos
termos da legislação respetiva.
2 ― O disposto no artigo 3.º aplica-se ainda aos militares que se
encontrem na situação de reserva fora do serviço efetivo ou na situação de reforma.
3 ― O disposto nos artigos 2.º e 4 .º não se aplica aos agentes
militarizados das Forças Armadas que estejam na situação de reforma,
aplicando-se-lhes, contudo, o disposto no artigo 3.º»
2. Fundamentos do pedido
Entende o Provedor de Justiça que tais normas, nos segmentos em que,
por um lado, fazem depender a apresentação de queixa ao Provedor de Justiça da
exaustão dos recursos administrativos previstos na lei e, por outro,
circunscrevem a possibilidade de apresentação de queixa ao Provedor de Justiça
às situações que envolvam a violação de direitos, liberdades e garantias dos
próprios militares queixosos ou prejuízo para estes, violam as normas contidas
nos artigos 23.º, n.ºs 1 e 2, e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa
(CRP).
Quanto à questão da alegada inconstitucionalidade da solução legal que
impõe a prévia exaustão das vias hierárquicas previstas na lei para a
apresentação de queixa ao Provedor de Justiça por parte dos militares ou
agentes militarizados das Forças Armadas, os fundamentos do pedido são, em
síntese, os seguintes:
― Não obstante o Tribunal Constitucional ter apreciado questão jurídico-constitucional idêntica no Acórdão n.º 103/87, e ter decidido, com vários votos de vencido, pela sua não inconstitucionalidade, entende o
Requerente, Provedor de Justiça, colocar de novo a questão, por não concordar
com os fundamentos da tese que fez vencimento no citado Acórdão.
― O direito de queixa ao Provedor de
Justiça (artigo 23.º da Constituição) é um direito fundamental que beneficia do regime constitucional próprio
dos direitos, liberdades e garantias, vertido nos artigos 17.º e 18.º do texto
constitucional.
― Fazer depender a possibilidade de
apresentação de queixa ao
Provedor de Justiça do esgotamento
prévio dos meios de impugnação hierárquicos dentro da estrutura militar não
constitui uma mera regulamentação do direito em causa, como se defendeu no
Acórdão n.º 103/87, mas antes uma verdadeira restrição ao exercício, neste caso
por parte dos militares, daquele direito fundamental.
― Resulta inequivocamente do n.º 2 do artigo 23.º da Constituição que o legislador constituinte
conformou o direito fundamental de queixa ao Provedor de Justiça como independente dos meios graciosos
e contenciosos previstos na Constituição e nas leis, pelo que qualquer
concretização do direito que faça depender o seu exercício da utilização
obrigatória, prévia ou póstuma, de meios de reclamação graciosos ou
contenciosos previstos na lei, não está apenas a proceder à sua regulamentação,
antes limita-o num dos seus elementos estruturantes – a que, de resto, o
legislador constitucional deu expressão direta no n.º
2 do art.º 23.º da Lei Fundamental – impondo-lhe uma verdadeira restrição.
― Não pode aceitar-se, como se pretende no citado Acórdão n.º 103/87, que a
obrigatoriedade de exaustão de recursos administrativos por parte dos militares
queixosos constitua um limite imanente da garantia constitucional associada ao
direito fundamental de queixa ao Provedor de Justiça. Sendo certo que a atividade política dos órgãos de soberania ou a atividade judicial constituirão limites imanentes à atividade do Provedor de Justiça (e ao correspondente
direito fundamental de queixa de todos os cidadãos, como se reconhece no artigo
22.º do Estatuto do Provedor de Justiça), o mesmo não poderá dizer-se de
limites associados ao estatuto constitucional específico de certos cidadãos
pelo facto de estarem inseridos numa determinada instituição, neste caso
caracterizada por uma estrutura de hierarquia, de comando e de disciplina, como
é a das Forças Armadas.
― Se há que admitir que os valores de hierarquia, de comando e de disciplina «constituirão limites ao exercício de determinados direitos por parte dos referidos cidadãos – desde logo os elencados no art.º 270.º da Constituição –, também é verdade que a Constituição é clara
ao afirmar que a definição legal de eventuais restrições concretas ao exercício
de direitos por parte dos militares tem de ser feita “na estrita medida das
exigências próprias das respetivas funções”. Não é
manifestamente o caso do direito individual e privado de queixa ao Provedor de
Justiça de que beneficiam todos os cidadãos».
― Estando em causa uma restrição ao direito de queixa ao Provedor de
Justiça, torna-se
imprescindível verificar se
a restrição em análise passa o teste do artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP.
― Antes de tudo, ela não encontra arrimo no art.º 270.º da Constituição, que consagra um elenco taxativo de direitos cujo exercício por parte designadamente dos
militares é suscetível de ser objeto de
eventuais restrições, a regular por lei, e que não abarca o direito de queixa
ao Provedor de Justiça. Pelo que a restrição decorrente da imposição do
esgotamento dos recursos hierárquicos para a apresentação de queixa ao Provedor
de Justiça por parte dos militares não é expressamente autorizada pela Lei
Fundamental. Deste modo, a análise da sua eventual admissibilidade passará pela
verificação da necessidade de conjugação do direito fundamental de queixa ao
Provedor de Justiça com eventuais princípios, objetivos
ou valores constitucionais que com aquele possam contender, com vista à sua
harmonização.
― Partindo do pressuposto de que a restrição em causa foi estabelecida pelo
legislador ordinário para
permitir a compatibilização de diferentes bens com relevância constitucional – por um lado, o
direito fundamental de queixa ao Provedor de Justiça, por outro o princípio
constitucional relacionado com o especial estatuto dos militares, inseridos que
estão no âmbito de uma instituição marcada por uma estrutura hierarquizada de
comando, direção e disciplina (princípio que
justificará igualmente o tipo de restrições a que alude o art.º 270.º da
Constituição), ainda assim, não passará tal restrição o crivo dos critérios
constitucionais para a sua legítima admissão impostos pelo art.º 18.º da Lei
Fundamental.
― Desde logo não se revelará tal restrição necessária a garantir o referido desiderato. Por imperativo legal, o Provedor
de Justiça ouve sempre as
entidades visadas – no caso, as entidades responsáveis pelas Forças Armadas –, antes de
tomar qualquer iniciativa por motivo de ação ou
omissão praticadas pelos referidos poderes públicos, ou por quaisquer outros.
Assim sendo, a legítima preocupação de que qualquer assunto que esteja a ser
apreciado, discutido ou tratado referente à instituição Forças Armadas seja do
conhecimento desta, alcança-se com esta simples regra geral de atuação do Provedor de Justiça.
― Tão pouco a medida legal contestada no presente requerimento passa o
teste da proporcionalidade. Para se alcançarem os objetivos
implícitos na legislação aqui contestada bastaria, tão só, por exemplo, que ao
militar queixoso fosse imputado o ónus de dar conhecimento da queixa
apresentada ao Provedor de Justiça – e do respetivo
teor – simultaneamente aos órgãos competentes das Forças Armadas. Uma solução
do tipo da enunciada – ajudada, para retomar uma ideia anterior, pela imposição
de um limite de não divulgação pública do conteúdo da queixa e do próprio ato
de apresentação de queixa – seria igualmente eficaz na concretização do objetivo da preservação da hierarquia de comando e
disciplina das Forças Armadas, ao mesmo tempo tendo a virtude de não limitar o
exercício do direito de queixa ao Provedor de Justiça à verificação de uma
condição diretamente relacionada com a necessidade de
utilização prévia de meios de impugnação, neste caso graciosos, que é
precisamente o que a Constituição pretende evitar com o teor da norma do seu
art.º 23.º, n.º 2.
― Finalmente, a referida legislação não é adequada a
garantir o fim pela mesma visado, por dois motivos:
porque o Provedor de Justiça pode utilizar a prerrogativa da iniciativa própria
para o tratamento de situações decorrentes de atuações
dos poderes públicos (nos quais se incluem naturalmente os poderes públicos
responsáveis pelas Forças Armadas); e porque o Provedor de Justiça pode – e
fá-lo na prática – tratar situações que caem no âmbito de aplicação da Lei n.º
19/95, motivadas por queixas subscritas por familiares ou amigos do militar que
pretende queixar-se, mas que, por motivo da legislação em vigor, não assume ele
próprio a autoria da queixa, antes é representado para esse efeito por cidadãos
civis.
― Ainda que se entendesse que os
pressupostos materiais de legitimidade das leis restritivas se encontrariam
cumpridos, nunca se daria como assente o último destes pressupostos, que impõe
que as restrições não possam diminuir a extensão e o alcance do conteúdo
essencial dos preceitos constitucionais que os estabelecem.
― A mencionada utilidade do direito de
queixa ao Provedor de Justiça, enquanto garantia alternativa aos meios de
impugnação, graciosa ou contenciosa, é, no caso dos militares que pretendam
apresentar reclamações relativamente a ações ou
omissões dos poderes públicos responsáveis pelas Forças Armadas, praticamente
aniquilada com a previsão da questionada restrição.
― O conteúdo do direito de queixa ao Provedor de Justiça, na parte em que é posto em causa pelas normas objeto desta iniciativa de fiscalização da constitucionalidade, não é sequer deixado para delimitação pela lei ordinária, resultando direta e inequivocamente da norma consignada no n.º 2 do
art.º 23.º da Constituição, sem margem para conformação legislativa em sentido
não coincidente. Nesta perspetiva, a restrição em
causa é violadora não só da garantia associada ao direito fundamental de queixa
ao Provedor de Justiça, como da garantia que se traduz na atividade
institucional do Provedor de Justiça, tal como configurada desde logo pela
Constituição (artigo 23.º, n.º 2).
― Admitindo que os militares não deixam
de poder queixar-se ao Provedor de Justiça, a verdade é que a restrição a que
estão sujeitos quanto ao exercício desse direito retira, na prática, a
verdadeira mais-valia que representa, na arquitetura
global da Constituição da República Portuguesa, segundo a qual a atividade do Provedor de Justiça é independente dos meios
de impugnação administrativos e judiciais e, nessa medida, caracterizada pela
informalidade e celeridade.
― Conclui-se que as questionadas normas
da Lei de Defesa Nacional e da Lei n.º 19/95, que estabelecem a obrigatoriedade
da prévia exaustão das vias hierárquicas previstas na lei para a apresentação
de queixa ao Provedor de Justiça por parte dos militares, violam o artigo 23.º,
n.ºs 1 e 2, da Constituição, referente ao órgão Provedor de Justiça e o artigo
18.º, n.ºs 2 e 3, da Lei Fundamental, que estabelece o regime substantivo das
restrições aos direitos, liberdades e garantias.
Quanto à questão da alegada inconstitucionalidade da solução legal que
limita a possibilidade de apresentação de queixas ao Provedor de Justiça por
motivo de ações ou omissões das Forças Armadas de que
resulte violação dos direitos, liberdades e garantias dos próprios militares
queixosos ou prejuízos para estes, os fundamentos do pedido são, em suma, os
seguintes:
― As normas em causa parecem exigir que o
militar que apresenta a queixa tenha um interesse pessoal e direto
na resolução da questão que a motiva. Questão idêntica foi igualmente tratada no Acórdão n.º 103/87, no qual se decidiu não ser
constitucionalmente admissível a exclusão da possibilidade de apresentação, no
caso pelo pessoal da PSP, de queixas ao Provedor de Justiça por ações ou omissões dos poderes públicos (responsáveis pela
PSP) violadoras de direitos de terceiros ou causadoras de prejuízos a estes,
bem como ofensivas, em termos objetivos, da ordem
constitucional e da legalidade democrática.
― Mais se afirmou neste Acórdão que a garantia de queixa ao PJ assume já, ao nível constitucional, um alcance, não apenas subjetivo, mas também justamente objetivo, que não se compagina com a sua limitação à única
finalidade da defesa dos direitos ou da reparação de prejuízos do queixoso.
― O direito de queixa em apreço mais não é do que uma
manifestação qualificada
do direito de petição, o qual a Constituição genericamente reconhece (artigo
52.º, n.º 1) como direito de os cidadãos apresentarem, aos órgãos de soberania
ou «quaisquer autoridades», «petições, representações, reclamações ou queixas»,
não só para defesa dos seus direitos», mas igualmente «da Constituição, das
leis ou do interesse geral».
― Ligando as duas questões envolvidas no pedido de fiscalização, sublinha-se que precisamente uma das
dimensões do princípio constitucional da independência da atividade
do Provedor de Justiça dos meios de recurso administrativos e contenciosos
previstos na Constituição e nas leis, tal como resulta do artigo 23.º, n.º 2,
do texto constitucional, é a independência da existência de um interesse direto, pessoal e legítimo da parte de quem apresenta a
queixa. Na verdade, exigir ao queixoso a existência de um interesse direto, pessoal e legítimo na resolução da questão objeto de queixa ao Provedor de Justiça (como efetivamente parece decorrer do regime legal de queixa ao
Provedor de Justiça por parte dos militares), nos mesmos termos em que tal
interesse é exigido para efeitos de apresentação dos recursos administrativos e
contenciosos previstos na lei, constitui um desvirtuamento grosseiro do
referido comando constitucional, que em circunstância alguma se pode ter por
admissível.
― A imposição ao particular (pessoa singular ou pessoa coletiva),
que apresenta queixa ao Provedor de Justiça, de critérios de legitimidade para a apresentação dessa queixa conduz à descaracterização do direito fundamental de queixa ao Provedor de Justiça.
O Requerente conclui pedindo a inconstitucionalidade das normas
referidas, nos segmentos em que, por um lado, fazem depender a apresentação de
queixa ao Provedor de Justiça da exaustão dos recursos administrativos
previstos na lei e, por outro, circunscrevem a possibilidade de apresentação de
queixa ao Provedor de Justiça às situações que envolvam a violação de direitos,
liberdades e garantias dos próprios militares queixosos ou prejuízo para estes,
por violação dos artigos 23.º, n.ºs 1 e 2, e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição.
3. Resposta do órgão autor da norma
Notificada para se pronunciar sobre o pedido, a Presidente da Assembleia da República veio oferecer o
merecimento dos autos.
4. Memorando
Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do
Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a
orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em harmonia com o que então se estabeleceu.
II −
FUNDAMENTAÇÃO
5. Delimitação do objeto do pedido
O pedido questiona, do ponto de vista da sua constitucionalidade, duas
soluções legais que, por um lado, estabelecem a obrigatoriedade da prévia
exaustão das vias hierárquicas previstas na lei para a apresentação de queixa
ao Provedor de Justiça por parte dos militares; e, por outro, limitam a
possibilidade de apresentação de queixas ao Provedor de Justiça à verificação
de ações ou omissões das Forças Armadas de que
resulte violação dos direitos, liberdades e garantias dos próprios militares
queixosos ou prejuízos para estes. Para o efeito, o requerente indicou um
conjunto de normas das quais extrai as soluções questionadas.
Acontece que nem todas as normas identificadas como objeto
do pedido contêm previsões respeitantes às soluções que o requerente pretende
questionar.
É o que ocorre com a norma do artigo 1.º da Lei n.º 19/95, segundo o
qual «[T]odos os cidadãos,
nos termos da Constituição e da lei, podem apresentar queixa ao Provedor de Justiça
por ações ou omissões dos poderes públicos
responsáveis pelas Forças Armadas de que tenha resultado, nomeadamente,
violação dos seus direitos, liberdades e garantias ou prejuízo que os afete.» É verdade que o segmento final da norma aparenta
restringir o direito de queixa ao Provedor de Justiça – por parte dos cidadãos
em geral – em matéria de defesa nacional e Forças Armadas aos casos em que
ocorra «violação dos seus direitos, liberdades e garantias [dos cidadãos] ou
prejuízo que os afete [àqueles cidadãos].»
Simplesmente esta dimensão normativa, no universo subjetivo
a que, no quadro desta norma, é aplicável, não foi objeto
do presente pedido de fiscalização abstrata da
constitucionalidade. Embora no artigo 61.º do pedido se aluda ao “particular
(pessoa singular ou pessoa coletiva)”, a verdade é que a fundamentação desenvolvida e o próprio
pedido, formulado a final, respeitam apenas à solução legal de circunscrever a
apresentação de queixa ao Provedor de Justiça às situações que envolvam a
violação de direitos, liberdades e garantias dos próprios
militares queixosos ou prejuízo para
estes.
Ora, por razões melhor explicitadas infra, no ponto 7.1, o disposto no
artigo 1.º da Lei n.º 19/95 não se aplica aos militares, dado que o objeto admissível do direito de queixa ao dispor destes
sujeitos está conformado (em termos, aliás, mais restritivos) pelo artigo 34.º
n.º 1, da Lei de Defesa Nacional.
Não pode, assim, considerar-se que o artigo 1.º da Lei n.º 19/95 esteja
incluído no objeto do presente pedido de fiscalização
abstrata sucessiva da constitucionalidade.
Da mesma forma, mas por razões diversas, também não integram o pedido
as normas dos artigos 5.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 19/95.
A primeira destas duas normas precisa o âmbito pessoal de aplicação da
norma do artigo 3.º da mesma lei, norma que, como o Requerente expressamente
reconhece (artigo 4.º do pedido) não se inclui no objeto
do pedido, nada dispondo sobre as duas soluções legais cuja constitucionalidade
vem questionada. É certo que, sem impugnar a solução constante do artigo 3.º, o
Requerente poderia ter questionado a sua aplicação “aos militares que se
encontrem em situação de reserva fora do serviço efetivo
ou na situação de reforma”, o que corresponde ao conteúdo precetivo
do n.º 2 do artigo 5.º Mas não o fez, constatando-se que as questões de
constitucionalidade suscitadas se situam inteiramente à margem do regime
constante do n.º 2 do artigo 5.º
Quanto ao n.º 3 do artigo 5.º, contém dois segmentos distintos. O
segundo estabelece a aplicabilidade do artigo 3.º “aos agentes militarizados
das Forças Armadas que estejam na situação de reforma”, pelo que valem, em
relação a este segmento, as mesmas razões de exclusão do objeto
do pedido atrás enunciadas, em relação ao disposto no n.º 2 do artigo 5.º A
primeira parte do preceito, por sua vez, ao estabelecer a não aplicação a esses
agentes das normas de dois artigos que são objeto do
pedido (os artigos 2.º e 4.º), do mesmo passo elimina, no seu âmbito, as
questões de constitucionalidade que neste se suscitam.
Pelo exposto, o pedido deve considerar-se circunscrito à apreciação da
constitucionalidade das normas dos artigos 34.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º
1-B/2009, de 7 de julho, e dos artigos 2.º, n.ºs 1, 2
e 3, 4.º, n.ºs 1 e 2, e 5.º, n.º 1, da Lei n.º 19/95, de 13 de julho, na medida em que delas resulta, por um lado a
imposição da prévia exaustão das vias hierárquicas previstas na lei para a
apresentação de queixa ao Provedor de Justiça por parte dos militares ou
agentes militarizados e, por outro, a limitação da possibilidade de apresentação de queixas ao
Provedor de Justiça por motivo de ações ou omissões
das Forças Armadas aos casos em que ocorra violação dos direitos, liberdades e
garantias dos próprios militares queixosos ou prejuízo para estes.
6. A inconstitucionalidade da solução legal que
exige o prévio esgotamento das vias hierárquicas previstas na lei para a
apresentação de queixa ao Provedor de Justiça
6.1. Com a
instituição do Provedor de Justiça, como órgão a que “os cidadãos podem
apresentar queixas por ações ou omissões dos poderes
públicos” a Constituição criou, no artigo 23.º, uma garantia suplementar de
tutela dos direitos e interesses dos particulares.
A amplitude do
âmbito possível das queixas torna patente que «a função do Provedor é mais
vasta do que a defesa da legalidade da administração: trata-se de “prevenir e
reparar injustiças” (n.º 1, in fine)
praticadas, quer por ilegalidade quer por violação dos princípios
constitucionais que vinculam a atividade
discricionária da Administração, (…) (devendo notar-se que a justiça é um dos princípios gerais vinculativos de toda a atividade administrativa, incluindo portanto a atividade discricionária, nos termos do art.
266.º-2 da CRP)» – Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição
da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, p. 442-443.
Ainda que instrumento privilegiado de defesa dos direitos fundamentais (todos
eles), o Provedor de Justiça é, mais amplamente, um «órgão de garantia da
Constituição, independentemente da defesa de direitos fundamentais», como
reconhecem os mencionados Autores (ob. cit.,
440-441).
Sendo o objeto de proteção da norma do
artigo 23.º da CRP um produto da ordem jurídica, sem qualquer prefiguração na
realidade social, a conformação institucional do órgão e o regime do direito de
apresentar queixas a ele dirigidas só ganham traços mais precisos a nível da
legislação ordinária que regula o estatuto e a atividade
do Provedor de Justiça. Mas essa legislação tem que respeitar, como é óbvio, as
indicações normativas extraíveis do desenho constitucional da figura.
Entre essas
indicações consta a regra de que «a atividade do
Provedor de Justiça é independente dos meios graciosos e contenciosos previstos
na Constituição e nas leis» (artigo 23.º, n.º 2). Estando em apreciação uma
norma que determina o esgotamento prévio dos recursos administrativos previstos
na lei, como condição de exercício do direito de queixa ao Provedor de Justiça,
cumpre, antes de mais, ajuizar da compatibilidade deste regime com aquela regra
constitucional.
A questão já
foi analisada e decidida no Acórdão n.º 103/87. Aí se escreveu, no que a este
ponto se refere:
«É certo que no n° 2 do art.
23° da Constituição se qualifica a atividade do PJ
como "independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na
Constituição e nas leis". Mas, em boa verdade, ao dizer isso o preceito
ora citado apenas estabelece o princípio da "autonomia" desse direito
de queixa relativamente a outros direitos de reclamação e recurso, com a
consequente possibilidade do seu uso cumulativo – princípio e consequência que
não são afectados quando se "condiciona" o exercício daquele primeiro
direito ao prévio esgotamento da via hierárquica. Esta exigência, no fundo,
apenas significa que a queixa ao Provedor há de ser
dirigida da ação ou omissão da entidade que fecha a
hierarquia administrativa em causa, e cuja decisão é, assim, a única com valor
“definitivo”».
O conceito de
“independência” presta-se, neste contexto, a interpretações não coincidentes,
com graus variáveis de imposição da separação das duas formas de intervenção.
Mas o Tribunal entende que a apreciação feita no Acórdão n.º 103/87 é de
manter, não obstante a norma ter sido objeto, na
doutrina, de interpretações mais rigoristas (cfr. ob. cit., 441 e 442; André Salgado de Matos, “O Provedor de
Justiça e os meios administrativos e jurisdicionais de controlo da atividade administrativa”, O Provedor
de Justiça. Novos Estudos, Lisboa, 2008, 157 s., 172 e 176-177).
Note-se que,
nos termos do artigo 23.º, n.º 2, a independência é reportada à “atividade do Provedor de Justiça”. E essa norma encontra
concretização imediata na possibilidade de o Provedor de Justiça atuar por iniciativa própria (artigos 4.º e 24.º, n.º1, do respetivo Estatuto).
Reportada,
especificamente, ao direito de queixa, a independência da atividade
do Provedor de Justiça em relação aos meios graciosos e contenciosos significa
apenas, a bem dizer, que estamos perante instrumentos cumulativos de tutela,
pois obedecem a pressupostos e perseguem objetivos
distintos, não implicando o recurso àqueles meios o decaimento da possibilidade
de exercício do direito de queixa. Aquela via não substitui esta, nem o
resultado da sua ativação se projeta,
por qualquer forma, na tramitação e na sorte desta. A obrigatoriedade, para o
militar queixoso, de exaurir os recursos hierárquicos previstos não lhe retira
a disponibilidade do direito de queixa, não sendo o respetivo
procedimento, quando desencadeado, minimamente influenciado pela forma como foi
instruído e decidido o recurso hierárquico prévio. Em suma, o direito de queixa
assume autonomia em relação àqueles outros meios porque a existência destes não
é condição nem preclude o seu exercício, nem o
resultado da sua utilização pode interferir com a atividade
do Provedor de Justiça e com a sua liberdade de apreciação.
Fica sempre
salvaguardada, deste ponto de vista, a garantia que a instituição
constitucional do Provedor de Justiça consagra, como órgão que atua “fora do
sistema” (a expressão é de Maria Eduarda Ferraz, O Provedor
de Justiça na defesa da Constituição, Provedoria de Justiça, 2008,
31), sem qualquer dependência dos pressupostos de atuação,
dos modos de funcionamento e dos critérios de decisão deste.
6.2. Não se opondo a regra do artigo 23.º, n.º 2, da CRP à
conformidade constitucional do regime em apreço, há que passar a apreciá-la à
luz dos princípios constitucionais pertinentes.
Uma primeira
questão que, neste quadro, se pode suscitar é a da qualificação precisa da
solução legal do prévio esgotamento das vias hierárquicas em confronto com o
direito de queixa ao Provedor de Justiça constitucionalmente reconhecido.
No Acórdão n.º
103/87 acima citado, o Tribunal propendeu para a tese de que não havia
verdadeiramente uma restrição a este direito, mas tão-só uma “regulamentação”
do seu exercício. Em justificação desse entendimento, discorreu o Tribunal do
seguinte modo:
«Com efeito, a
faculdade de os membros da PSP se queixarem ao PJ de “acções ou omissões dos
poderes público” responsáveis por essa Polícia não é afetada
no seu conteúdo substantivo, não é reduzida ou amputada de qualquer das suas
dimensões; por outro lado, tão-pouco é posta em causa a faculdade de, em
resultado da apreciação das queixas que lhe vierem a ser apresentadas, o PJ
“dirigir aos órgãos competentes as recomendações necessárias para prevenir e
reparar injustiças” (cf. o artigo 23.º, n.º 1, da CRP). O que se faz é
simplesmente “condicionar” o exercício do direito de queixa a um determinado
pressuposto com a consequência de que as eventuais recomendações do PJ só poderão ser dirigidas à entidade que se situa no
vértice da hierarquia da Polícia, e nunca a quaisquer escalões intermédios da
mesma hierarquia».
E, na verdade,
não há dúvida de que a exigência de esgotamento prévio das vias hierárquicas
legalmente previstas é uma intervenção legislativa que não provoca qualquer
efeito ablativo do conteúdo de tutela constante no âmbito normativo do artigo
23.º da CRP, nem qualquer efeito obstativo do acesso individual ao bem por ele
protegido. Compreender-se-á, nessa medida, que o conceito de “condicionamento”
pudesse ter sido visto como o mais adequado a traduzir o alcance da solução e a
sua projeção sobre o exercício do direito de queixa
ao Provedor de Justiça.
Mas não é
menos verdade que estamos perante uma regulação do direito de queixa ao
Provedor de Justiça a qual, em tutela de um interesse
alheio ao dos titulares desse direito, prescreve vinculativamente um
modo de exercício de que resulta, para uma certa categoria de cidadãos, uma
dificultação ou, pelo menos, uma certa postergação temporal, do acesso ao bem
protegido. Impondo o recurso prioritário às vias hierárquicas legalmente
previstas, o legislador veda uma opção livre do interessado quanto à iniciativa
a tomar ou a utilização daquele instrumento de tutela simultaneamente com o
exercício do direito de queixa. Nessa medida, não custa admitir que essa
regulação, não comprimindo o conteúdo de tal direito, afeta,
todavia, desvantajosamente, por razões que nada têm a ver com imperativos de
conformação organizativa ou de exequibilidade prática, a ativação,
por parte dos militares ou agentes militarizados, da posição jusfundamental que, prima facie,
lhes advém do artigo 23.º da CRP.
É quanto basta
para que não se dispense aqui a aplicabilidade dos parâmetros próprios do
Estado de direito, com as ponderações valorativas a que ela dá lugar, em
particular no quadro do princípio da proporcionalidade. Admitindo as categorias
de “condicionamento” e “restrição”, em si mesmas de contornos fluidos,
múltiplas configurações intermédias e gradações tipologicamente aproximativas,
de mais ou de menos, uma qualificação conceptual, para além de se prestar
sempre a controvérsia, não pode resolver concludentemente questões de regime de
uma intervenção normativa deste tipo.
6.3. Seguindo
essa metódica de fundamentação, pode, desde já, ser liminarmente rejeitada uma
arguição do Requerente, à luz do que ficou dito, sem necessidade de mais
considerações.
Referimo-nos
ao invocado desrespeito pelo núcleo ou conteúdo essencial do direito de queixa
ao Provedor de Justiça, argumentando-se que a utilidade desse direito resulta
“praticamente aniquilada”.
Como vimos, a
solução legal não comporta qualquer amputação de uma dimensão do conteúdo do
direito de queixa, de natureza essencial ou não. Como reconhece o Requerente (“No caso de que nos ocupamos, se é certo que os militares não deixam de
poder queixar-se ao Provedor de Justiça (…)”),
os militares não se viram privados do direito de queixa ao Provedor de Justiça,
o qual se mantém incólume e exercitável, com o conteúdo que constitucional e
legalmente lhe cabe, apesar da imposta exaustão prévia das vias hierárquicas de
recurso.
6.4. Dando por
assente esta conclusão, não pode, todavia, esquecer-se que esta imposição legal
representa uma interferência desvantajosa num direito que, prima facie, admitiria qualquer forma de exercício e
uma disponibilidade incondicionada. Na verdade – frisa-se, de novo – com a
solução de prévio esgotamento das vias de recurso, a regulação em apreço conduz
a que o titular do direito de queixa perca possibilidades de ação que de outro modo teria, dentro do âmbito de proteção do artigo 23.º (o exercício imediato, em exclusivo
ou em simultâneo com o recurso hierárquico, das faculdades contidas nesse
direito). Consequência que obriga a equacionar a legitimidade desta eficácia
indiscutivelmente limitadora, ainda que somente no plano do tempo e do modo de
exercício.
Há que deixar
em claro, antes de mais, que a falta de previsão expressa, no programa
normativo do artigo 23.º, de autorização para uma intervenção restritiva do
legislador não obsta, só por si, à conformidade constitucional da solução,
mesmo que se lhe atribua uma tal designação. Como acentua Reis Novais, «a
consagração constitucional de um direito fundamental sem a simultânea previsão
da possibilidade da sua restrição não constitui qualquer indicação definitiva
sobre a sua limitabilidade» – As
restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição, Coimbra, 2003, 569. De facto, em superação do teor
literal do requisito fixado na 1.ª parte do n.º 2 do artigo 18.º, para as
restrições aos direitos, liberdades e garantias, a doutrina e a jurisprudência
vêm admitindo, ainda que através de construções dogmáticas não coincidentes,
restrições não expressamente autorizadas pela Constituição. Independentemente
da terminologia (variável) utilizada, trata-se de limites não
escritos, como limites a posteriori,
tornados necessários pela exigência de salvaguarda de outros direitos ou bens
constitucionalmente garantidos (cfr. Gomes Canotilho,
Direito constitucional e teoria da Constituição,
7.ª ed., Coimbra, 2003, 1277). Há, mesmo, quem aponte uma “reserva geral
imanente de ponderação” (Reis Novais, ob. cit., 569
s.), como fundamentação e via de acesso a limites não expressamente
autorizados.
É deste ponto
de vista, o da necessidade de harmonização e compatibilização dos direitos
fundamentais, não só entre si (colisão de direitos), como com a tutela de
outros bens jurídicos a que o Estado está também constitucionalmente vinculado,
que pode ser obtida uma resposta definitiva quanto à admissibilidade de limites
não expressos, quer a questão se coloque, em concreto, ao nível da solução
judicial de colisões ou conflitos, quer se coloque ao nível das intervenções
legislativas que, em abstrato, procuram realizar a
mencionada harmonização.
Na formulação
desse juízo, há que apreciar se a medida com alcance, de algum modo, restritivo
tem por fundamento a tutela de um bem jurídico constitucionalmente credenciado
e, em caso afirmativo, se a intervenção que persegue esse fim se contém ou não
dentro de limites que assegurem a sua proporcionalidade.
6.5. Quanto ao
primeiro pressuposto, não é difícil identificar o bem jurídico-constitucional
onde mergulham raízes as valorações justificativas do regime em apreço.
Trata-se da “defesa nacional”, que é obrigação do Estado assegurar (artigo
273.º da CRP), o que faz através das Forças Armadas (artigo 275.º). Estando em
causa a “segurança existencial do Estado”, ninguém contestará que esta é, em
princípio, “um bem legitimador de importantes restrições aos direitos
fundamentais” (cfr. Gomes Canotilho, ob. cit., 1272).
Para
cumprimento cabal da sua tarefa de defesa nacional, a instituição militar tem
uma estrutura organizativa que obedece a características muito próprias,
salientadas no referido Acórdão n.º 103/87, nestes termos:
«Ora, como notas características da instituição militar
avultam, decerto, as seguintes: - o estrito enquadramento hierárquico dos seus
membros, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos; correspondentemente,
a subordinação da atividade da instituição (e,
portanto, da atuação individualizada de cada um dos
seus membros), não ao princípio geral de direção e
chefia comum à generalidade dos serviços públicos, mas a um peculiar princípio
de comando em cadeia, implicando em especial dever de obediência, (…)».
E são
múltiplas as decisões em que o Tribunal Constitucional relevou as exigências
próprias da instituição militar, como causa legítima de restrições aos direitos
fundamentais.
Assim, por
exemplo, no recente Acórdão n.º 229/2012, sobre o Regulamento de Disciplina
Militar, foi destacado que é necessário ponderar o equilíbrio entre o “superior
interesse da disciplina e da hierarquia militar” e os direitos dos militares
individualmente considerados, acentuando-se que a instituição militar é uma
«instituição onde a hierarquia e a disciplina assumem, em nome do superior
interesse da eficácia e da eficiência da defesa nacional e das Forças Armadas,
uma importância sem paralelo na generalidade dos domínios da Administração
Pública».
Já
anteriormente, o Acórdão n.º 662/99, não contestando que os “funcionários
públicos militares” integram o conceito mais amplo de “funcionários públicos”,
reconheceu que há uma diversidade de regimes da administração pública civil e
da administração pública militar, com as inerentes diversidades estatutárias
(ainda que estas diversidades tenham sido consideradas, no caso, insuficientes
para fundamentar um tratamento não igualitário).
Essa
singularidade não deixou, aliás, de ser reconhecida pelo Requerente, ao caracterizar as Forças Armadas como uma «instituição marcada por uma estrutura hierarquizada de comando, direção e disciplina (princípio que justificará igualmente
o tipo de restrições a que alude o art.º 270.º da Constituição (…)».
É certo que se
pode distinguir «o campo da hierarquia estritamente militar – de postos e
funções de comando e direção – do da hierarquia
funcional-administrativa» (assim, Jorge Miranda, in Jorge Miranda/Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª
ed., Coimbra, 2010, 493). Sem dúvida alguma que são diferentes as exigências de
restrição aos direitos fundamentais que decorrem de cada um desses planos. E de
tal modo o são que, no que concerne o direito de queixa, não é contestada a
proibição, constante do artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 19/95, de 13 de julho, de ela versar sobre matéria operacional ou
classificada.
Simplesmente,
o menor grau de atendimento a um princípio hierárquico de comando, na esfera
propriamente administrativa, não vai ao ponto de justificar, nesse âmbito, o
tratamento absolutamente igualitário do militar e de qualquer outro
funcionário. Sendo necessariamente unas a estrutura organizativa e a cadeia de
comando, e uno o estatuto militar, as esferas de atuação
operacional e administrativa não são inteiramente autonomizáveis entre si, de
modo a que se pudesse sustentar a indiferença de cada uma às vicissitudes que a
outra sofre. Há interferências recíprocas evidentes, pelo que a eficácia de
comando operacional sofreria afetações desvantajosas
se, na esfera administrativa, o militar gozasse, sem restrições, de
prerrogativas idênticas ao de qualquer trabalhador público.
6.6. Mas não
basta apurar que exigências próprias da instituição militar justificam que os
que nela estão integrados se rejam por um estatuto específico, com deveres de
comportamento e limitações de direitos a que não está sujeita a generalidade
dos cidadãos. Cumpre, mais concretamente, apreciar se a condição militar
fornece ou não uma razão suficiente para o particular regime de exercício do
direito de queixa ao Provedor de Justiça, constante das normas cuja
constitucionalidade vem impugnada.
Neste
quadrante valorativo, assume realce, como elemento de ponderação, a ideia de
que uma estrutura, como a das Forças Armadas, que tem no princípio de comando,
segundo regras estritas de disciplina e de sujeição a ordens, segundo uma
rígida escala hierárquica, a essência do seu modo organizativo e de
funcionamento, é particularmente refratária a
intromissões externas que se possam sobrepor, sem mais, e ainda que a título de
“recomendações”, ao exercício dos poderes de condução da vida institucional que
internamente competem à cadeia hierárquica. Contrariamente ao que se pode ler
no pedido, não é um “objetivo de ordem prática” o que
está subjacente à regulamentação em apreço. É antes a intenção de preservar,
dentro do admissível (isto é, sem lesão excessiva dos interesses dos cidadãos
em funções militares) a “administração autónoma” da instituição “Forças
Armadas”, segundo o princípio de comando que lhe é próprio.
Deste ponto de
vista, constitucionalmente credenciado, justifica-se que, quando um militar
ponha em causa uma decisão que o afete, não se
conformando com ela, sejam chamados a pronunciar-se, em primeira linha, os
detentores do poder de reapreciação e eventual revisão dessa decisão, dentro da
cadeia hierárquica de comando que estrutura a instituição militar. A possibilidade
de o queixoso apelar, de imediato, para uma instância externa de controlo,
desprezando as vias em aberto de solução dentro e pela própria instituição,
representaria um desnecessário apoucamento e desconsideração do papel da
hierarquia por alguém que a ela está sujeito, contrários a um princípio
organizacional funcionalmente imprescindível.
Para
salvaguarda desse princípio, só deve comprometer as Forças Armadas, perante o
órgão constitucional de controlo que é o Provedor de Justiça, uma decisão que
tenha sido abonada ou ratificada pelas chefias, em termos de ser considerada
definitiva. Por outras palavras, quem está em posição de comando, dentro das
Forças Armadas, só deve ser interpelado a alterar, por recomendação do Provedor
de Justiça, uma decisão tomada na instituição que dirige, se previamente tiver
tido oportunidade de exercitar essa posição. Dada a reforçada e muito peculiar
posição de autoridade que detém o titular de comando na instituição militar,
faz sentido e é razoável que ele não possa estar sujeito a receber, de fora da
instituição, recomendações de alteração de uma decisão (o objeto
de queixa) tomada por um subalterno e que tenha ficado subtraída, por
iniciativa do militar queixoso, à sua esfera de controlo. Nessa linha se
compreende o disposto no n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 19/95, para a hipótese
de inexistência de recurso hierárquico ou de esgotamento do prazo para a sua
interposição.
6.7. E a
solução respeita todos os parâmetros em que se desdobra o princípio da
proporcionalidade.
Sendo idónea à
preservação da hierarquia de comando e de disciplina das Forças Armadas, uma
vez que garante a sua atuação, ela revela-se
igualmente necessária à consecução daquele objetivo.
O Requerente
contesta esta avaliação, com base em que, «por imperativo legal, o Provedor de
Justiça ouve sempre as entidades visadas – no caso as entidades responsáveis
pelas Forças Armadas –, antes de tomar qualquer iniciativa por motivo de ação ou omissão praticadas pelos referidos poderes públicos
ou por quaisquer outros». Este dever de audição prévia, constante do Estatuto
do Provedor de Justiça (artigo 34.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril), seria o bastante para satisfazer «a legítima
preocupação de que qualquer assunto que esteja a ser apreciado, discutido ou
tratado referente à instituição Forças Armadas seja do conhecimento desta (…)».
Simplesmente,
uma tal visão desfoca o objetivo a atingir, que não
consiste na garantia de conhecimento do assunto objeto
de queixa, mas o de obstar a que o exercício deste direito se sobreponha ao
funcionamento das vias internas de impugnação de uma decisão.
Nem,
contrariamente ao defendido, seria “igualmente eficaz” na concretização do objetivo real da solução questionada – o da preservação da
hierarquia de comando das Forças Armadas – a solução alvitrada, no pedido, como alternativa, de
imputação ao militar queixoso do «ónus de dar conhecimento da queixa
apresentada ao Provedor de Justiça – e do respetivo
teor – simultaneamente aos órgãos competentes das Forças Armadas», acompanhada
do dever «de não divulgação pública do conteúdo da queixa e do próprio ato de
apresentação da queixa».
Ainda que menos distante do exigível, por vincular o próprio militar
queixoso a uma iniciativa que tem em conta a hierarquia, esta solução não
assegura verdadeiramente o respeito pelos valores da disciplina militar. Do
ponto de vista valorativamente relevante, uma coisa é
os órgãos competentes das Forças Armadas serem confrontados com uma impugnação
a uma decisão, em resultado do funcionamento dos mecanismos internos de recurso
que interpelam diretamente (e responsabilizam) os
escalões mais elevados da hierarquia, outra, bem diferente, é terem
conhecimento de uma queixa, num momento posterior à sua apresentação a uma
entidade exterior à instituição. No primeiro caso, as regras funcionais do
sistema de comando são postas a atuar, em plena
normalidade institucional; no segundo, elas são colocadas de lado.
Por último, é de entender que a exigência de prévio esgotamento das
vias hierárquicas de recurso não afeta o direito de
queixa para além da justa medida. Tendo em conta o elevado valor constitucional
do bem protegido e, sobretudo, os muito diminutos grau e intensidade do
sacrifício causado ao direito de queixa – um direito, à partida, juridicamente
determinado e, por isso, mais acessível a conformações limitativas do que os
direitos de liberdade mais ou menos materialmente determinados (cfr. Reis Novais, ob. cit., 163
s.) −,
pode bem sustentar-se que o custo a suportar, no âmbito normativo deste
direito, está em relação materialmente proporcionada com o benefício alcançado,
tendo por referência a ordem constitucional, no seu conjunto. Atente-se em que
aquela medida apenas torna imperativo um modo de articulação entre duas vias de
contestação de uma decisão do foro militar, impondo o exercício prioritário
(mas não exclusivo) da via de recurso hierárquico. Privilegia-se, desse modo, o
autocontrolo, mas sem eliminar a possibilidade de o interessado acionar o heterocontrolo que o
exercício do direito de queixa representa. A solução leva equilibradamente em
conta a natureza própria da instituição militar e as suas exigências
funcionais, bem como o estatuto específico que rege aqueles que nela prestam
serviço, mas sem sacrifício desmesurado do direito de queixa, como direito
fundamental de cidadania.
6.8. Uma última objeção pode ser levantada à
admissibilidade constitucional do regime em apreço.
Prende-se ela com o disposto no artigo 270.º da CRP, norma que prevê
“restrições ao exercício de direitos” dos militares, dos agentes militarizados
e dos serviços e forças de segurança. Não estando aí referido o direito de
queixa, a atribuição de caráter taxativo ao elenco de
direitos suscetíveis de restrição (assim, Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., II,
845) levantaria um obstáculo aparentemente insuperável à conformidade
constitucional da solução.
Simplesmente, pode entender-se que, para este efeito, uma vinculação
que tem o alcance jurídico de um simples ónus não deve ser tida como uma restrição
exatamente com natureza e alcance restritivos
equivalentes aos das expressamente nomeadas no artigo 270.º e que, tal como
estas, necessitaria de expressa e específica autorização constitucional, para
se admitir a sua viabilidade operativa.
Ademais, as restrições consagradas nesta norma visam fundamentalmente
impedir atuações coletivas
dos militares, em forma concertada, a que os direitos aí restringidos são
especialmente propícios, ou, no caso da capacidade eleitoral passiva, obstar a
que seja posta em causa a isenção político-partidária das Forças Armadas. O
direito individual de queixa, aqui em apreço, situa-se, à partida, à margem
destas preocupações do legislador constituinte.
De resto, há boas razões para sustentar que os direitos dos militares suscetíveis de afetação
desvantajosa não são apenas os elencados no artigo 270.º (neste sentido, Jorge
Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., 628).
Sem se pôr em causa a
necessidade de uma específica fundamentação, no estrito plano
jurídico-constitucional, de qualquer regime legal, sempre excecional,
com alcance, de algum modo, restritivo dos direitos fundamentais dos militares,
ao literalmente disposto no artigo 270.º não pode ser atribuído caráter exauriente de todas as
medidas que podem afetar posições subjetivas
dos militares, atendendo ao seu estatuto próprio.
A essa específica fundamentação, decorrente da interpretação da
Constituição, no seu todo, foram dedicados os pontos anteriores.
6.9. Deste modo, pode concluir-se que a solução legal analisada –
contida no n.º 1 do artigo 34.º da Lei de Defesa Nacional e no
n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º
19/95 –, não obstante consubstanciar uma limitação à liberdade de exercício do
direito de queixa ao Provedor de Justiça, não pode ser considerada uma
restrição inconstitucional ao dito direito, contrariamente ao pretendido pelo
Requerente.
Em virtude do sentido desta decisão, fica de pé a solução do
esgotamento prévio das vias hierárquicas de recurso. Mas o regime, em concreto,
do respetivo procedimento e sua articulação com o
direito de queixa, regulamentados no artigo 2.º, n. os
2 e 3, 4.º, n.os 1 e 2, e 5.º, n.o 1, da Lei n.º 19/95, exigiria uma apreciação
autónoma, que, no entanto, está fora do objeto do
presente pedido de fiscalização.
7. A solução legal que
limita a possibilidade de apresentação de queixas ao Provedor de Justiça por
motivo de ações ou omissões das Forças Armadas de que
resulte violação dos direitos, liberdades e garantias dos próprios militares
queixosos ou prejuízo para estes”
7.1. Muito embora o Requerente impute esta solução legal, algo
indiferenciadamente, “ao conteúdo das normas acima identificadas da Lei de
Defesa Nacional e da Lei n.º 19/95” (cfr. o artigo
53.º do pedido), ou seja, a todas as normas identificadas como objeto do pedido, a verdade é que as normas dos artigos
2.º, n.os 2 e 3, 4.º, n.os
1 e 2, e 5.º, n.º1, referíveis ao regime da exaustão prévia das vias
hierárquicas de recurso, nada têm a ver com esta segunda questão de
constitucionalidade.
E das duas
únicas normas que contêm segmentos atinentes à questão em apreciação – as
enunciadas nos artigos 34.º, n.º 1, da Lei de Defesa Nacional, e 1.º da Lei n.º
19/95, de 13 de julho – só a primeira, de acordo com
a delimitação logo de início por nós efetuada, pode
ser tida em consideração.
Relembre-se
que o pedido se restringe à apreciação de dois pontos do regime de queixa dos militares. Ora, a Lei n.º 19/95 tem um âmbito aplicativo
não restrito aos militares, uma vez que esse âmbito se define pelo objeto: o “regime de queixa ao provedor de Justiça em
matéria de defesa nacional e Forças Armadas”, de acordo com a epígrafe do
diploma. Compreende-se, assim, que o artigo 1.º indique como titulares do
direito de queixa, nesta matéria, “todos os cidadãos”.
Mas a norma,
quanto à definição da situação sobre que pode versar a queixa, não se aplica
aos militares, uma vez que, quanto a estes, prevalece o disposto no artigo
34.º, n.º 1, da Lei de Defesa Nacional. É nesta sede – uma lei orgânica, aliás
– que foi fixado o âmbito do direito de queixa dos militares. A remissão do n.º
2 do mencionado preceito para outra lei (a Lei n.º 19/95, que já se encontrava,
e continuou, em vigor) tem em vista o direito tal como configurado no n.º 1,
sem abrir a possibilidade de ele ser moldado de outro modo por essa lei,
reguladora unicamente do exercício.
Esta precisão
delimitativa reveste suma importância, pois o artigo 1.º da Lei n.º 19/95
define um âmbito do direito de queixa dos cidadãos, em geral, mais alargado do
que cabe aos militares, pois, além do mais, não o fecha a qualquer situação que
não seja a violação dos direitos, liberdades ou garantias ou prejuízo que afete o próprio queixoso, na medida em que faz anteceder o
segmento que refere esses elementos do advérbio “nomeadamente”.
Deste termo se infere que o direito de queixa aí referido tem como objeto primário, mas não exclusivo,
as situações apontadas na norma.
Mas, mesmo
quando reportado apenas ao artigo 34.º, n.º 1, da Lei da Defesa Nacional, como
seu suporte normativo, pode constatar-se que a formulação que o Requerente deu
ao objeto do pedido, nesta dimensão, não coincide com
os termos daquela disposição legal. Ao incluir, no direito de queixa, a
causação de um prejuízo que afete os militares,
aquela formulação reproduz, ipsis verbis, na parte relevante, o
teor do n.º 2 do artigo 33.º da Lei n.º 29/82, a anterior Lei de Defesa
Nacional, em vigor à data da emissão do Acórdão n.º 103/87. Mas o artigo 34.º,
n.º 1, omitiu essa referência, traçando o âmbito do direito de queixa ao
Provedor de Justiça, por parte de militares, em moldes mais restritivos do que
a Lei n.º 29/82, pois, fá-lo incidir sobre “ações ou
omissões dos poderes públicos responsáveis pelas Forças Armadas de que resulte
violação dos seus direitos, liberdades e garantias”, sem mais.
A questão de constitucionalidade a apreciar
deverá, pois, ajustar-se ao que esta norma dispõe, tendo por objeto a restrição do direito de queixa dos militares ao
Provedor de Justiça às “ações ou omissões dos poderes
públicos responsáveis pelas Forças Armadas de que resulte violação dos seus
direitos, liberdades e garantias”
7.2. A questão
já foi também apreciada no Acórdão n.º 103/87. Aí se pode ler, na parte que
agora releva:
“Acresce que,
estabelecendo esse preceito, por força da dita remissão, o direito de os elementos
da PSP apresentarem queixas ao Provedor de Justiça contra os poderes públicos
responsáveis pela própria Polícia, todavia fá-lo apenas com referência a ações ou omissões de que resulte "violação dos seus
direitos, liberdades e garantias ou prejuízo que os afecte". Afigura-se
assim que o mesmo preceito exclui afinal o direito de os membros da PSP
apresentarem queixa ao Provedor por ações ou omissões
dos referidos poderes públicos que violem direitos ou causem prejuízos a
terceiros ou ofendam objetivamente a ordem
constitucional e a legalidade democrática. Ora, será esta exclusão
constitucionalmente admissível?
Entende o
Tribunal que não. E entende que não, por considerar que a garantia de queixa ao
Provedor de Justiça assume já, ao nível constitucional, um alcance, não apenas subjetivo, mas também justamente objetivo,
que se não compagina com a sua limitação à única finalidade da defesa dos
direitos ou da reparação de prejuízos do queixoso. De facto, o art.º 23.°, n.° 1, da Constituição reporta-se
genericamente, por um lado, a queixas "por ações
ou omissões dos poderes públicos", sem mais, e, por outro lado, às
recomendações do Provedor "necessárias para prevenir e reparar
injustiças", também sem mais. Mas a isso acresce que o direito de queixa
em apreço mais não é do que uma manifestação qualificada do direito de petição,
o qual a Constituição genericamente reconhece - no seu art.º 52.°, n.° 1 - como
o direito de os cidadãos apresentarem, aos órgãos de soberania ou
"quaisquer autoridades", "petições, representações, reclamações
ou queixas", não só para "defesa dos seus direitos", mas
igualmente "da Constituição, das leis ou do interesse geral".
De resto, um
tal entendimento da garantia de queixa ao Provedor de Justiça é o que está na
linha da concepção logo de início reconhecida entre nós à Provedoria (antes
mesmo da Constituição, e no Decreto-Lei n.º 212/75, de 21 de abril, que a criou), e depois confirmada pela Lei n.º
81/77, de 22 de novembro, que é o seu actual estatuto
(cfr., em particular, art.º 22.º, n.ºs 1 e 2). É
legítimo, pois, pensar que neste último diploma o legislador se limitou a
explicitar o sentido constitucional da instituição”.
Conforme se
pode constatar da leitura destes excertos, o objeto
de controlo não foi propriamente a norma que estabelecia a exigência de que o
direito de queixa ao Provedor de Justiça se limitasse às ações
ou omissões das Forças Armadas de que resultasse a violação dos direitos,
liberdades e garantias dos próprios militares queixosos ou prejuízos para
estes, mas uma norma, atinente ao regime aplicável aos elementos da PSP (o
artigo 69.º, n.º 2, da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, então em
vigor), que remetia para esse preceito.
Não obstante,
não pode deixar de se reconhecer que, efetivamente, foi emitido por este Tribunal um juízo em relação a essa
exigência, constante, na altura, do artigo 33.º, n.º 2, da Lei de Defesa
Nacional e das Forças Armadas (Lei n.º 29/82), norma com um conteúdo
prescritivo bastante similar ao do artigo 34.º, n.º 2, da atual
Lei de Defesa Nacional.
Esclarecido isto, cumpre
averiguar se o entendimento então preconizado pelo Tribunal Constitucional deve
ser mantido.
7.3. Pode,
desde já, dizer-se que é inteiramente de renovar, por maioria de razão, o juízo
emitido no Acórdão n.º 103/87.
Na verdade, a
norma do mencionado artigo 34.º, n.º 1, no segmento questionado, tem uma
eficácia excludente de conteúdos do direito de queixa ao Provedor de Justiça
que contraria, sem fundamento razoável, o desenho constitucional desta
instituição de controlo dos poderes públicos. De fora ficam a violação de
direitos fundamentais do queixoso que não revistam a natureza de direitos,
liberdades ou garantias, a violação de direitos, do mesmo titular, que não
sejam direitos fundamentais, de quaisquer direitos de terceiros e a lesão de
interesses, do queixoso ou de terceiros, não tutelados por direitos. Esta
compressão do conteúdo do direito de queixa não se compagina com as indicações
normativas fornecidas pelo artigo 23.º, n.º 1, da CRP, que se reporta
genericamente a “ações ou omissões dos poderes
públicos”, sem qualquer restrição, caracterizando ainda funcionalmente o
direito de queixa como destinado a “prevenir ou remediar injustiças”.
Se a conformação
legal retira do direito de queixa dos militares a afetação
de posições subjetivas
que dele devem ser objeto, por imperativo
constitucional, ignora completamente, a mais disso, a dimensão objetiva da atividade do Provedor de Justiça, a quem também compete
emitir recomendações, ou desenvolver outras ações,
até por iniciativa própria, que obstem ou ponham termos a ações
ou omissões dos poderes públicos “que ofendam objetivamente a ordem constitucional e a legalidade
democrática”, como se pode ler no Acórdão n.º 103/87. Cabe-lhe genericamente
assegurar, por meios informais, “a justiça e a legalidade do exercício dos
poderes públicos” como, em concretização dos “termos da Constituição”, refere o
artigo 1.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril (Estatuto
do Provedor de Justiça). E para isso, tanto pode tomar iniciativas próprias
(artigos 4.º e 24.º, n.º 1, do mesmo diploma) como desenvolver ações em seguimento de queixas apresentadas pelos cidadãos
(artigo 24.º, n.º 1). Nesta perspetiva institucional,
nada justifica que estas se cinjam a matérias de interesse pessoal e direto do próprio queixoso. Deste ponto de vista, o regime
do artigo 24.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça não representa uma
livre criação legislativa, mas uma vinculada concretização de parâmetros
constitucionais.
Nem se diga,
em contrário, que, desta forma, o
direito de queixa pode servir para o exercício sub-reptício
daqueles outros direitos que o artigo 270.º da CRP admite especificamente
poderem ser restringidos aos militares e, com isto, esvaziar de sentido o
preceituado neste artigo, comprometendo os objetivos
que o legislador constituinte aí pretendeu prosseguir (genericamente, como se
disse, impedir ações de organização ou exercício coletivos e assegurar a isenção política dos militares,
“ideia inspiradora do Estado de Direito democrático” – cfr.
Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa
Anotada, ob. cit., p.
627).
Não é pelas
hipóteses anómalas de exercício abusivo ou de desvirtuamento funcional que se
deve medir a justeza ou a conformidade constitucional de uma garantia. Compete
antes ao Provedor de Justiça, utilizando os seus poderes de apreciação
preliminar das queixas (artigo 27.º do respetivo
Estatuto), não admitir as que possam canalizar protestos ou contestações coletivas.
Em face do
exposto, é de concluir que a norma do artigo 34.º, n,º 1, da Lei de Defesa
Nacional, na parte em que prescreve que as queixas dos militares ao Provedor de
Justiça têm por objeto “ações
ou omissões dos poderes públicos responsáveis pelas Forças Armadas de que
resulte violação dos seus direitos, liberdades e garantias”, representa uma
restrição inconstitucional do direito de queixa consagrado no artigo 23.º da
Constituição da República.
III - Decisão
Pelos fundamentos
expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a)
Não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das
normas constantes dos artigos 34.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 1-B/2009, de 7
de julho, e do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 19/95,
de 13 de julho, no segmento em que impõem a prévia
exaustão das vias hierárquicas previstas na lei para a apresentação de queixa
ao Provedor de Justiça por parte dos militares ou agentes militarizados
b)
Declarar a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 23.º
da Constituição, da norma constante do artigo 34.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º
1-B/2009, de 7 de julho, na parte em que limita a
possibilidade de apresentação de queixas ao Provedor de Justiça por motivo de ações ou omissões das Forças Armadas aos casos em que
ocorra violação dos direitos, liberdades e garantias dos próprios militares
queixosos.
Lisboa, 18 de setembro de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – J. Cunha
Barbosa – Maria João Antunes – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins –
Catarina Sarmento e Castro (vencida, qto à
alínea a), nos termos e pelas razões expostas na declaração de voto junta) – Carlos Fernandes Cadilha
(vencido nos termos da declaração em anexo) – Rui Manuel
Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi
da maioria relativamente à decisão da alínea a),
na medida em que não se declarou a inconstitucionalidade das normas constantes
do artigo 34.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de julho, e do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 19/95, de 13 de julho, no segmento em que impõem a prévia exaustão das vias
hierárquicas previstas na lei para a apresentação de queixa ao Provedor de
Justiça por parte dos militares ou agentes militarizados.
Faço-o
pela seguinte ordem de razões:
A
primeira respeita ao entendimento do disposto no artigo 23.º da Constituição,
quando atribui aos cidadãos em geral o direito fundamental de apresentação de
queixa ao Provedor de Justiça, e estabelece, no n.º 2, que “a atividade do Provedor de Justiça é independente dos meios
graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis”. Não creio que a
independência afirmada no texto constitucional traduza fundamentalmente a ideia
de que uma decisão proferida na sequência do acionamento
daqueles mecanismos de defesa não deve condicionar a recomendação que o
Provedor entenda emitir. Em meu entender, sendo a independência característica
constitucional atribuída à atividade do Provedor de
Justiça em si mesma (v.g., no que
respeita aos seus próprios critérios de apreciação e de decisão), dela
resultará, ainda, que o esgotamento prévio da via hierárquica não pode ser
legalmente configurado enquanto condição (prévia) de que necessariamente
dependa o exercício do direito de queixa.
A
apresentação de queixa ao Provedor de Justiça é um outro meio mais, uma via
suplementar que se abre para defesa dos direitos, que, pelo seu caráter, deve poder ser utilizada de modo cumulativo, mas
também alternativo, relativamente aos demais meios graciosos e contenciosos.
Embora
se concorde que a obrigatoriedade da prévia exaustão dos recursos hierárquicos
não retira a disponibilidade do direito de queixa – podendo, à utilização da
via hierárquica seguir-se, depois, cumulativamente, a apresentação de queixa –
na verdade, tal obrigatoriedade, como está consagrada, significa que, sem que
se percorra a via hierárquica, não se pode aceder ao Provedor de Justiça. Ou
seja, a queixa ao Provedor de Justiça depende, nas normas em apreciação, do
prévio acionamento de tais mecanismos.
Como
escrevem, na doutrina, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição
da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, p. 442)
«A função do Provedor de Justiça é fundamentalmente caracterizada pela sua
natureza informal e não jurisdicional, e pela sua independência em relação aos
meios graciosos e contenciosos de defesa dos administrados (n.º 2) (…). O
Provedor pode intervir, quer quando o cidadão tenha à sua disposição um meio
gracioso e contencioso (recorrendo, ou não, simultaneamente a ele), quer quando
o não tenha, por terem passado os prazos de reclamação ou de recurso (…)».
Ora,
prever a necessária exaustão das vias hierárquicas como condição de acionamento de um mecanismo de garantia que poderá ser o
único (ou o último) meio “para prevenir e reparar injustiças”, traduz-se na
imposição de um sacrifício que, a meu ver, não se cinge a condicionar o tempo e
o modo de exercício do direito de queixa. A obrigatoriedade de exaurir
previamente os mecanismos de impugnação administrativa limita, gravemente, o
modo de exercício do direito de apresentação de queixa ao Provedor de Justiça
(afastando o acesso imediato e direto, prejudicando a
informalidade), estende excessivamente o tempo necessário à obtenção da tutela
que se pretende obter (causando excessiva demora, prejudicando a celeridade que
deve caracterizar o recurso a este mecanismo), dificultando de modo intenso ou,
em muitos casos, obstaculizando, qualquer efeito útil da apresentação da
queixa. Não pode, consequentemente, deixar de se considerar que tal imposição,
capaz, até, de conduzir à irreversível consolidação do prejuízo a que com a
queixa se procuraria obstar, comprime em forte grau e intensidade o direito de
queixa ao Provedor de Justiça, não sendo um mero ónus ao seu exercício, antes afetando esse direito de forma intolerável. Nalgumas
circunstâncias – em que a celeridade, desde logo, se justificaria – argumentar
que o direito de queixa sempre se manteria exercitável não basta, desde logo
quando, apesar de ser ainda possível o seu exercício, este possa já não ter
utilidade.
Note-se,
ainda, que do artigo 23.º da Constituição não resulta uma autorização expressa
de restrição do direito de queixa ao Provedor de Justiça.
Não
se esquece que esta limitação é, no caso das normas em apreciação, imposta a
militares e agentes militarizados, cujos direitos fundamentais podem ser
sujeitos a restrições acrescidas, em virtude do seu especial estatuto.
Acontece, todavia, que a previsão em apreciação também não encontra respaldo na
autorização constitucional expressa no artigo 270.º da Constituição.
Tal,
por si só, poderia não obstar a que se estabelecesse a solução legal impugnada.
Mas, ainda que assim não fosse, sempre se diria que não se tem por demonstrado
que a necessidade de salvaguardar «o superior interesse da eficácia e da
eficiência da defesa nacional e das Forças Armadas», enquanto bem
jurídico-constitucional, para cuja garantia concorrem a hierarquia de comando,
a coesão e a disciplina militares, imponha que apenas a última decisão do órgão
máximo da hierarquia militar possa ser contestada junto do Provedor de Justiça.
Tal
como sempre nos afastaríamos da linha do acórdão quando este considera que o
prévio esgotamento das vias hierárquicas de recurso não afeta
o direito de queixa para além da justa medida, como já resulta do que atrás se
sustentou.
Por
tudo isto, não pude deixar de considerar que as normas constantes do artigo
34.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de julho,
e do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 19/95, de 13 de julho,
no segmento em que impõem a prévia exaustão das vias hierárquicas previstas na
lei para a apresentação de queixa ao Provedor de Justiça por parte dos
militares ou agentes militarizados, violam os artigos 23.º, n.º 2, e 18.º, n.º
2, da Constituição.
Catarina Sarmento e Castro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido com base nas seguintes considerações.
I – Contrariamente ao que
se afirma no acórdão, a independência da atividade do
Provedor de Justiça em relação aos «meios graciosos e contenciosos previstos na
Constituição e nas leis», tal como previsto no n.º 2 do artigo 23º da Lei
Fundamental, não pretende apenas garantir a possibilidade de cumulação da
queixa ao Provedor de Justiça com outros meios de impugnação das decisões
administrativas – caso em que a norma ficaria desprovida de qualquer efeito
útil -, mas significa antes que o acesso ao Provedor de Justiça, enquanto órgão
de garantia dos direitos fundamentais perante os poderes públicos, não pode
ficar «dependente de condições especiais ou restrições particulares», o que
implica a «não dependência de prazos ou nem de outros condicionamentos» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª
edição, pág. 441; Jorge Miranda/Rui
Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada,
2ª edição, Tomo I, pág. 494).
No seu conteúdo dispositivo essencial, a norma
pressupõe que o cidadão, na defesa dos seus direitos, possa optar livremente
por solicitar a intervenção do Provedor de Justiça, independentemente
do recurso a qualquer forma de impugnação administrativa ou a um qualquer tipo
de reação jurisdicional. Dito de outro modo, o
interessado pode preferir exercer o direito de
queixa ao Provedor ainda que disponha de outros meios de reação
administrativa ou contenciosa, e pode fazê-lo mesmo que se encontrem já
esgotados os prazos legalmente previstos para o exercício de qualquer desses
outros mecanismos de tutela.
Não faz, por isso, qualquer sentido interpretar o
requisito de independência consignado no
citado artigo 23º, n.º 2, como correspondendo a uma forma de intervenção
complementar, que poderia ficar condicionada, segundo o livre arbítrio do
legislador, pelo prévio esgotamento de outros meios de resolução do litígio.
Por outro lado, a sujeição da queixa ao Provedor de
Justiça ao princípio da exaustão do meios graciosos, no interior da
administração militar, constitui, não apenas um mero condicionamento temporal relativamente ao exercício do direito, mas um
condicionamento substancial, no ponto em que
implica que o militar tenha de informar previamente os superiores hierárquicos da
sua discordância relativamente a qualquer situação suscetível
de constituir violação dos seus direitos ou interesses legítimos – e, no fundo,
manifestar a sua intenção de exercer o direito de queixa perante o Provedor de
Justiça -, o que objetivamente coarta
o livre uso desse direito.
Deve notar-se, noutro plano, que a queixa ao Provedor
de Justiça não se enquadra no elenco de restrições do artigo 270º da
Constituição, nem pode ser entendida como uma limitação implícita decorrente da
necessidade de compatibilizar o exercício desse direito com o valor
constitucional atinente ao estatuto militar. Ainda que se admita a
possibilidade de restrição aos direitos fundamentais no quadro das relações
especiais de poder, em ordem à necessidade de assegurar a realização dos objetivos da respetiva
instituição (como seja o objetivo da defesa
nacional), o que sucede é que, em relação aos militares e agentes militarizados
e agentes de serviços e de forças de segurança, essas restrições estão já
especialmente previstas naquele artigo 270º, apenas podendo ser alargadas a
outros direitos aí não elencados nos casos em que a restrição se mostre
justificada pela natureza das coisas (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág.
846; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, pág. 628; veja-se
ainda Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976,
5ª edição, págs. 293-294).
Ora, não se vê que a condição militar possa ser
encarada como uma cláusula geral de restrição dos direitos dos militares, em
contraposição ao que estabelecem os artigos 18º, n.º 2, e 270º da Constituição,
e que, por outro lado, o simples direito de queixa perante um órgão
constitucional independente, sem poder decisório, seja suficiente para pôr em causa
o estatuto jurídico-público do serviço militar e a cadeia hierárquica de comando que
está subjacente à estrutura militar.
Mas, para além disso, importa reter que a restrição, a
ser constitucionalmente admissível com base no critério dos limites imanentes,
nunca poderia afetar o conteúdo essencial do direito
(Vieira de Andrade, ob. cit,, pág. 293). E vimos já
que a exigência da prévia exaustão dos meios hierárquicos, imposta pelos
artigos 34º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de julho,
e 2º, n.º 1, da Lei n.º 19/95, de 13 de julho,
constitui um forte constrangimento ao uso livre do direito de queixa, e impede,
na prática, o seu exercício, tanto que, em muitos casos, o que poderá estar em
causa é, não o mero direito de solicitar a revogação, a modificação ou a
substituição de atos administrativos praticados pelos
órgãos militares em matéria de serviço ou relativa ao estatuto profissional do
interessado, mas diversas outras situações que, afetando
os direitos ou interesses legítimos do militar, não possam ser solucionadas no
quadro legal vigente por via da intervenção do superior hierárquico.
Tudo leva a concluir, por conseguinte, no sentido da
inconstitucionalidade das referidas disposições legais, por violação do
disposto no artigo 23º, n.º 2, da Constituição.
II – Discordei ainda da
decisão do Tribunal no que se refere à declaração de inconstitucionalidade da
norma do artigo 34º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 1-B/2009, na parte em que
limita a possibilidade de apresentação de queixas ao Provedor de Justiça por ações ou omissões dos poderes públicos responsáveis pelas
Forças Armadas de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias dos
próprios militares queixosos.
A limitação assim prevista, conferindo uma dimensão subjetiva ao direito de
queixa dos militares, pode justificar-se por aplicação do disposto no artigo
270º da Constituição, podendo dizer-se, agora com propriedade, que se trata aí
de uma restrição específica decorrente do estatuto especial dos militares e que
poderá retirar-se de uma interpretação teleológica do preceito constitucional.
A admissibilidade de um direito de queixa objetivo, permitindo que o
militar possa imputar
aos órgãos de comando a violação de direitos ou interesses
legítimos de terceiros – incluindo os de outros militares -, dá azo a que possa
ser posta em causa, na relação externa - sem nenhuma evidente vantagem para a
esfera jurídica do queixoso -, a estrutura hierarquizada de comando, direção e disciplina das Forças Armadas e favorecer o
exercício encapotado de direitos (como a petição coletiva),
que, justamente, poderão estar cobertos pelas restrições do artigo 270º.
Não releva aqui o argumento – invocado no acórdão – de
que o Provedor de Justiça poderá opor-se à utilização abusiva do direito de
queixa para defesa de direitos ou interesses de terceiros, através dos seus
poderes de apreciação preliminar, que permitirão aferir da sua admissibilidade.
O ponto é que a restrição estabelecida no segmento final do citado artigo 34º,
n.º 1, encontra justificação plausível no regime especial aplicável aos
militares, com assento constitucional, o que é suficiente para excluir o juízo
de inconstitucionalidade.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha