ACÓRDÃO N.º 383/2012
Processo n.º 437/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina
Sarmento e Castro
Acordam
na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos
presentes autos, vindos do 2.º Juízo de Competência Cível de Vila Franca de
Xira, veio o Ministério Público interpor recurso da sentença datada de 5 de janeiro de 2010, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro
(Lei do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No requerimento de interposição do
recurso, consta que “a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o
Tribunal aprecie é o art. 64.º, n.ºs 7 a 9, do DL n.º
291/2007, de 21 de agosto, na redação que lhe foi
conferida pelo DL n.º 153/2008, de 6 de agosto.”
3. A presente ação
declarativa, sob a forma de processo ordinário, proposta pelo aqui recorrido
contra a A. – Companhia de Seguros S.A., foi
instaurada com base em pretensão de recebimento de indemnização por danos
sofridos na sequência de acidente de viação.
A ré apresentou contestação.
Realizado o julgamento, foi proferida
sentença, em 5 de janeiro de 2010, concedendo parcial
procedência à ação.
Na parte relevante, para efeito de apreciação
do objeto do presente recurso, é do seguinte teor a
fundamentação da aludida sentença:
“A respeito do valor do rendimento mensal do
lesado a ter em conta na determinação da indemnização por danos patrimoniais
decorrentes da perda de rendimentos em consequência de incapacidade, foi
recentemente introduzida uma alteração legislativa, acerca da qual se impõe
tecer algumas considerações.
O Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto,
relativo ao seguro obrigatório automóvel, que veio substituir o Decreto-Lei n.º
522/85, de 31 de dezembro, tendo como principal objetivo a transposição de diretivas
do Conselho e do Parlamento Europeu neste domínio, foi recentemente alterado
pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, que introduziu no seu art. 64.°, inserido no Capítulo V
relativo às “Disposições Processuais” e que rege sobre “Legitimidade das partes
e outras regras”, os n.°s 7 a 9, que estabelecem
regras a aplicar pelo tribunal na averiguação e fixação do valor da
indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado em acidente de viação,
a saber:
“7— Para efeitos de apuramento
do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da
indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve
basear -se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se
encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas
relativas àquele período, constantes de legislação fiscal.
8 — Para os efeitos do número
anterior, o tribunal deve basear -se no montante da retribuição mínima mensal
garantida (RMMG) à data da ocorrência, relativamente a lesados que não
apresentem declaração de rendimentos, não tenham profissão certa ou cujos
rendimentos sejam inferiores à RMMG.
9 — Para os efeitos do n.° 7, no caso de o lesado estar em idade laboral e ter
profissão, mas encontrar-se numa situação de desemprego, o tribunal deve
considerar, consoante o que for mais favorável ao lesado:
a) A média dos últimos três
anos de rendimentos líquidos declarados fiscalmente majorada de acordo com a
variação do índice de preços no consumidor, considerando o seu total nacional, exceto habitação, nos anos em que não houve rendimento; ou
b) O montante mensal recebido a
título de subsídio de desemprego.”
Esta alteração legislativa, segundo consta do
preâmbulo do citado DL 153/2008, pretende contribuir para a concretização da
medida prevista na resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de novembro, de “revisão do regime
jurídico aplicável aos processos de indemnização por acidente de viação,
estabelecendo regras para a fixação do valor dos rendimentos auferidos pelos
lesados para servir de base à definição do montante da indemnização, de forma
que os rendimentos declarados para efeitos fiscais sejam o elemento mais
relevante”.
Medida essa que, como outras previstas nessa
Resolução, segundo o referido preâmbulo, visa diminuir a fonte de litigiosidade que contribui para o congestionamento dos
tribunais, consistente em as seguradoras em regra basearem o cálculo da
indemnização devida por danos patrimoniais nos rendimentos declarados pelos
lesados à administração tributária, enquanto estes não raramente invocam em
juízo rendimentos bastante superiores sem correspondência com as declarações
fiscais.
Assim, conforme o referido preâmbulo, a
alteração legislativa em apreço surge “para pôr cobro ao
potencial de litigiosidade que aquela situação
encerra, procurando, por um lado, contribuir para acentuar a tendencial
correspondência entre a remuneração inscrita nas declarações fiscais e a
remuneração efetivamente auferida — sinalizando-se
também aqui o reforço de uma ética de cumprimento fiscal — e por outro,
aumentar as margens de possibilidade de acordo entre seguradoras e segurados
(...).” E ainda, de uma cajadada só, consegue-se com estas regras
introduzidas no citado art.° 64° “que nestas matérias exista mais objetividade
e previsibilidade nas decisões dos tribunais, criando também condições para que
a produção de prova seja mais fácil e célere e a decisão mais justa.”
(…)
Admite-se por compreensível, que as
seguradoras se baseiem nas declarações de rendimentos apresentadas para efeitos
fiscais pelos lesados para apresentarem as suas propostas indemnizatórias, o
que, como é evidente, não resulta de terem tomado o encargo louvável de defesa
da verdade tributária e da captação de receitas fiscais, visando antes a
finalidade egoísta de defesa do seu património e aumento dos seus lucros,
eximindo-se do cumprimento da sua obrigação contratual de ressarcir os danos
patrimoniais efetivamente sofridos pelos lesados,
traduzidos na perda de rendimentos presentes ou redução da capacidade de ganho
futuro, em consequência de incapacidade com reflexos negativos no exercício da
profissão.
Da nossa experiência judicial resulta ainda
que, quando estão em causa valores acima de certo limite, como sucede em
especial no que respeita a este tipo de danos patrimoniais, as seguradoras
apenas fazem acordo se o lesado aceitar receber uma indemnização inferior, por
vezes em mais de metade, ao valor concreto dos danos sofridos, sendo
preferível, do ponto de vista financeiro, para as seguradoras, obrigar o lesado
a propor a competente ação judicial, cuja tramitação
em regra exige o decurso de vários anos enquanto se realizam as consabidamente
morosas mas imprescindíveis periciais médico-legais para fixação da(s) incapacidade(s), período esse durante o qual o montante
indemnizatório que devia estar nas mãos do lesado é investido de forma
lucrativa pelas seguradoras dos lesantes devedoras.
Não cremos, pois, que as regras em apreço
sejam dotadas da virtualidade de poderem, em alguma medida, contribuir para a
diminuição da litigiosidade entre lesados e
seguradoras dos lesantes nos acidentes de viação nem para o descongestionamento
dos tribunais, apenas podendo redundar em injusto beneficio do património
destas à custa do prejuízo do património daqueles.
De outra sorte, estamos certos de que da sua
aplicação nunca poderá resultar a facilitação da produção de prova dos
rendimentos auferidos pelos lesados e menos ainda uma decisão assente em
critérios objetivos e materialmente justa.
Com efeito, sendo com base nas declarações de
rendimentos apresentadas à administração tributária que esta calcula o montante
de imposto devido pelo apresentante, o qual naturalmente tem interesse em
declarar o menos possível por forma a pagar o menos possível, é evidente que
raramente tais declarações refletem os verdadeiros
rendimentos auferidos e, consequentemente, calcular com base nelas o valor dos
rendimentos perdidos em consequência de incapacidade resultante de acidente de
viação, é falsear a realidade, em benefício dos lesantes, ou melhor, das
seguradoras que se lhes substituem, por obrigação contratual, na indemnização
desses danos.
(…)
Não é atribuindo a esse documento — que
apenas prova que o emitente declarou o que nele consta - uma especial força
probatória em matéria de acidentes de viação, desse modo conduzindo a decisões
injustas por baseadas em valores sem correspondência na realidade, que se
sensibilizam os contribuintes para a necessidade de não omitirem rendimentos
nas declarações fiscais, tanto mais que para essa omissão, a lei prevê sanções
de natureza contraordenacional e penal no Regime
Geral das Infrações Tributárias (RGIT — aprovado pelo
D.L. n.º 15/2001, de 05/06).
A este respeito, por lapidar, veja-se o Ac. do STJ de 14/10/2008, no qual se entendeu, no sentido
que propugnamos, que:
“Considerado provado pelas
instâncias que o autor auferia o rendimento diário de 40€ no exercício da sua
profissão, mas que declarou vencimento inferior para efeito de declaração de
IRS e de descontos à Segurança Social, tal situação pode configurar uma infração de natureza fiscal, mas não se afigura que
preencha uma situação de abuso de direito que impeça o autor de ser indemnizado
pelo dano patrimonial apurado, com base no rendimento que efetivamente
deixou de auferir.”
Nunca uma decisão exclusivamente baseada na
declaração de rendimentos para efeitos fiscais, de duvidosa força probatória no
que concerne aos rendimentos realmente auferidos, ou na ausência dessa
declaração baseada num valor ficcionado correspondente ao escalão mais baixo de
rendimentos — a RMG -, equiparando situações que podem ser muito diferentes e
não permitindo atender às particularidades de cada caso concreto, poderá ser objetivamente justa, no sentido pretendido de atribuir aos
lesados uma indemnização de valor correspondente ao dos danos sofridos, antes
favorecendo injustificadamente as seguradoras em desfavor das vítimas dos
acidentes de viação.
Não se vislumbra como pode o tribunal atender
às regras estabelecidas nos n.ºs 7 a 9 do citado art.
64.°, na averiguação dos danos patrimoniais sofridos
pelos lesados em acidente de viação e na fixação da indemnização por eles
devida, sem afrontar as disposições contidas nos citados art.°s
562° e segs., que visam a indemnização do dano
concreto realmente sofrido pelo lesado, nem ofender intoleravelmente os
princípios constitucionalmente consagrados da igualdade (cfr.
art.° 13° da CRP) e da tutela jurisdicional efetiva (cfr. art.°
20º da CRP), e contrariar frontalmente os princípios gerais do direito
comunitário nesta matéria, em especial o direito dos lesados a uma indemnização
suficiente, independentemente do país em que sofram o acidente.
Em sede judicial, em ordem a alcançar uma
decisão materialmente justa, impõe-se fixar a indemnização devida aos lesados
em acidentes de viação como em qualquer outra situação, com base no dano
concreto efetivamente sofrido, apurado a partir da
análise e valoração de todos os elementos de prova admissíveis em direito, com
respeito pelos referidos princípios basilares constitucionais e de direito
comunitário, não aplicando as regras contidas nos n.°s
7 a 9 do citado art.° 64°, por materialmente
ofensivos desses princípios cuja superioridade impõe a sua observância em
detrimento da aplicação destes normativos legais.
Nesta conformidade, no caso dos autos, será
com base no rendimento realmente auferido pelo autor aquando do acidente de que
foi vítima, apurado a partir da análise e valoração dos diversos elementos
probatórios produzidos nessa matéria, que será fixada a indemnização que lhe é
devida tanto pela perda de rendimentos em consequência de incapacidade
temporária, ora em apreço, como pela perda de capacidade de ganho em
consequência de incapacidade permanente e consequentes esforços acrescidos no
exercício da profissão, a seguir apreciada. (…).”
4. É
desta decisão que o Ministério Público interpõe o presente recurso,
apresentando alegações, onde conclui, nos termos seguintes:
“1º
As
normas constantes dos nºs 7 a 9 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de
21 de agosto, com a redação introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, na interpretação efetuada
pela sentença recorrida, no sentido de que ao tribunal é vedado o recurso a
outros meios de prova para a aferição dos rendimentos dos lesados, vítimas de
acidente de viação, opera uma discriminação relativamente à aferição dos
rendimentos dos lesados, vítimas de outros acidentes e/ou eventos originadores
de responsabilidade civil.
2º
Essa discriminação, ao não consentir o uso de
outros meios de prova para além das declarações fiscais ou do montante do RMMG,
acaba por cercear, injustificada e desrazoavelmente, o direito de produção de
prova, ínsito na garantia de acesso aos tribunais.
3º
E, ao coartar a
averiguação dos reais danos patrimoniais sofridos pelos lesados em acidente de
viação, assente na verdade dos factos, origina um sistema diferente de fixação
do quantum indemnizatório, que se repercute, indelével e negativamente, na
fixação da indemnização devida por tais danos.
4º
Efetivamente,
a total e radical proibição de recurso a outros meios de prova, pode conduzir a
que se lesione o direito do lesado a uma indemnização suficiente, tendo em
conta o dano concreto, realmente sofrido, provocando-lhe prejuízos efetivos para os seus interesses.
5º
Como tal, a interpretação normativa
questionada, é suscetível de afrontar os princípios
constitucionais da igualdade e da tutela jurisdicional efetiva,
na vertente do direito à produção de prova, consagrados, respetivamente,
nos artigos 13.º e 20.º da Lei Fundamental.
6º
Assim
sendo, deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade da interpretação
normativa, objeto do presente recurso.”
5. O recorrido igualmente apresenta alegações, com
as seguintes conclusões:
“1º As normas dos n.ºs 7
a 9 do artigo 64.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, aditadas pelo
Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, entraram em vigor em 11 de agosto de
2008;
2º O acidente dos autos de que emergiram os
danos cuja indemnização foi peticionada ocorreu no dia 05/09/2001;
3º Não sendo, em consequência, tais
aplicáveis retroactivamente ao caso dos autos;
4º Dão-se por reproduzidas as 6 conclusões
das alegações do Exmº Procurador-Geral Adjunto.
Termos em que não merece censura a sentença
recorrida, devendo ser mantida (…)”
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. Em
primeiro lugar, impõe-se delimitar o objeto do
presente recurso.
Não obstante o recorrente referir que a
sentença recusou a aplicação das normas contidas nos n.os
7 a 9 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de
agosto – o que, de resto, é textualmente afirmado na própria sentença – a
verdade é que resulta da análise do teor da decisão que apenas a norma do n.º 7
do referido artigo 64.º é alvo de efetiva recusa, na
interpretação segundo a qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente
de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito
da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir
ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à
data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento
das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período.
Na verdade, as normas contidas nos números 8
e 9 do mesmo preceito reportam-se a situações que não se verificavam no caso,
pelo que a sua convocação, na decisão recorrida, é meramente
argumentativa.
A
interpretação normativa enunciada e efetivamente
recusada, no caso, traduz-se numa restrição dos meios
de prova, em geral admissíveis, vedando o recurso a outros meios para além da
prova documental decorrente do cumprimento das obrigações fiscais declarativas
de rendimentos auferidos.
7. Uma
vez que o recorrido refere, nas alegações apresentadas, que “as normas dos n.ºs
7 a 9 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, aditadas
pelo Decreto –Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto” não
são aplicáveis ao caso dos autos, importa salientar que tal juízo se encontra
subtraído à sindicância deste Tribunal.
Na
verdade, como se refere no Acórdão n.º 44/85, disponível em www.tribunalconstitucional.pt,
“para o Tribunal Constitucional, a norma de direito infraconstitucional que vem
questionada no recurso é um dado (…). Saber se essa norma era ou não aplicável
ao caso, se foi ou não bem aplicada – isso é da competência dos tribunais
comuns, e não do Tribunal Constitucional. Em princípio, o Tribunal
Constitucional não pode censurar o modo como os restantes tribunais aplicam o
direito infraconstitucional; apenas lhe compete controlar o modo como eles
aplicam (ou não) o direito constitucional”. Enfatiza ainda o mesmo aresto que: “Em matéria de fiscalização concreta da
constitucionalidade (…) o dado normativo a ser submetido ao parâmetro
constitucional chega já definido ao Tribunal Constitucional, não lhe cabendo
pô-lo em causa.”
Pelo exposto, no presente recurso, apenas se
apreciará a questão de saber se a interpretação normativa, que foi alvo de
recusa pelo tribunal a quo, com
fundamento em inconstitucionalidade, comporta violação de algum parâmetro da
Lei Fundamental.
8. Estatui
o preceito, que serve de suporte ao critério normativo em sindicância, o
seguinte:
“Artigo 64.º
(…)
7 – Para efeitos de apuramento do rendimento
mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por
danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos
líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados,
uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período,
constantes de legislação fiscal.
(…)”
Tal redação resulta
da revisão do “regime aplicável aos processos de indemnização por acidente de
viação”, operada pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto.
De acordo com o Preâmbulo do referido diploma
legal, as alterações introduzidas inserem-se no âmbito da execução de um plano
de ação para o descongestionamento dos tribunais, com
vista a “restaurar a capacidade de resposta dos tribunais, através da
eliminação do crónico crescimento da pendência processual” e, desta forma, a
“garantir que o espaço disponível no sistema judicial fica mais liberto para
resolver efetivos conflitos que afetem
as pessoas e as empresas.”
Com especial pertinência para a compreensão
do concreto preceito, que suporta o objeto do
presente recurso, pode ler-se, no mesmo Preâmbulo:
“Uma das medidas previstas na Resolução do
Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de novembro,
diz respeito à “revisão do regime jurídico aplicável aos processos de
indemnização por acidente de viação, estabelecendo regras para a fixação do
valor dos rendimentos auferidos pelos lesados para servir de base à definição
do montante da indemnização, de forma que os rendimentos declarados para
efeitos fiscais sejam o elemento mais relevante.”
Com efeito, hoje sucede que a determinação do
valor dos rendimentos auferidos pelos lesados em processos de indemnização por
acidente de viação, na medida em que contribuem para a definição do quantum indemnizatório por danos patrimoniais, gera litígios
evitáveis, uma vez que as seguradoras, em regra, baseiam o respetivo
cálculo nos rendimentos declarados pelos lesados à administração tributária, ao
passo que os sinistrados, não raras vezes, invocam em juízo rendimentos
superiores, sem qualquer correspondência com as respetivas
declarações fiscais.
Trata-se, portanto, de uma área que, em razão
da potencial litigiosidade que lhe está associada,
requer a aprovação de regras mais objetivas, que
baseiem o cálculo da indemnização, quanto aos rendimentos do lesado, na
declaração apresentada para efeitos fiscais.
Assim, não obstante o avanço trazido pela
Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, que veio fixar os critérios e valores
orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel de
proposta razoável para indemnização do dano corporal, torna-se imperioso pôr
cobro ao potencial de litigiosidade que aquela
situação encerra, procurando, por um lado, contribuir para acentuar a
tendencial correspondência entre a remuneração inscrita nas declarações fiscais
e a remuneração efetivamente auferida –
sinalizando-se também aqui, o reforço de uma ética de cumprimento fiscal – e,
por outro, aumentar as margens de possibilidades de acordo entre seguradoras e
segurados, evitando o foco de litigância que surge associado à dissemelhança de
valores que estas situações comportam. A introdução desta regra contribui
igualmente para que nestas matérias exista mais objetividade
e previsibilidade nas decisões dos tribunais, criando também condições para que
a produção de prova seja mais fácil e célere e a decisão mais justa.”
9. A
decisão recorrida baseia a recusa
de aplicação da norma - que reputa como abstratamente
aplicável ao caso – na violação dos princípios constitucionais da tutela
jurisdicional efetiva e da igualdade, consagrados, respetivamente, nos artigos 20.º e 13.º da Constituição da
República Portuguesa (doravante, CRP).
Comecemos por analisar o princípio da tutela
jurisdicional efetiva.
O direito fundamental de acesso ao direito e
à tutela jurisdicional efetiva corresponde a um
alicerce estruturante do Estado de Direito democrático, que se traduz na
faculdade de obter, pela via judiciária, a garantia de proteção
e realização de direitos e interesses legalmente protegidos, nomeadamente
através de uma solução justa de conflitos, com
observância de imperativos de imparcialidade e
independência.
De entre as várias dimensões em que se
desdobra o direito à tutela jurisdicional efetiva,
salienta-se, como alvo da presente análise, a garantia de um processo
equitativo, por ser essa a vertente que mais se evidencia como potencialmente
beliscada pela interpretação normativa posta em crise.
O princípio da equitatividade
é expressamente referido no n.º 4 do artigo 20.º da Lei Fundamental, que dispõe
o seguinte:
“Todos têm direito a que uma causa em que
intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável
e mediante processo equitativo.”
10. O
direito fundamental a um processo equitativo pressupõe uma estrutura processual
adequadamente conformada aos fins do processo, que conduza ao seu
desenvolvimento em condições de equilíbrio, direcionada
à obtenção de uma decisão ponderada, materialmente justa do litígio, que
proporcione aos interessados meios efetivos de defesa
dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (Acórdão n.º 632/99). Da
conformação justa e adequada do processo – de um processo equitativo -
dependerá a efetividade do direito à tutela
jurisdicional.
Um processo equitativo implica uma dialética, em que cada uma das partes tenha a
possibilidade, em igualdade de armas, de apresentar a sua versão e os seus
argumentos, de facto e de direito, oferecer provas e pronunciar-se sobre os
argumentos e material probatório carreado pela parte contrária, antes da
prolação da decisão judicial.
No âmbito do direito a um processo
equitativo, está compreendido um “direito constitucional à prova” abrangendo “o
direito à prova em sentido lato (poder de demonstrar em juízo o fundamento da
própria pretensão) e o direito à prova em sentido restrito (alegando matéria de
facto e procedendo à demonstração da sua existência)”
(J.J. Gomes Canotilho, “Estudos sobre Direitos Fundamentais”, 2.ª edição,
Coimbra Editora, 2008, p. 170).
Na síntese de M. Teixeira de Sousa, a prova
pode ser definida como a atividade direcionada, num processo, à “demonstração convincente (…)
de uma afirmação de facto”, com o objetivo de
contribuir para que, na mente do julgador, se forme a convicção sobre a
realidade dos factos relevantes para a decisão (cfr.
M. Teixeira de Sousa, “As partes, o objeto e a prova
na ação declarativa”, Lex,
Lisboa 1995, p. 195).
A atividade
probatória assenta na apresentação dos meios de prova: “os elementos sensíveis
ou percetíveis, nos quais o tribunal pode alicerçar a
convicção sobre a realidade do facto” (M. Teixeira de Sousa, op. cit, p. 236).
Não obstante ser constitucionalmente
garantida, como refração do direito a um processo
equitativo, a faculdade das partes, num determinado processo, exporem as suas
razões, trazendo ou produzindo, perante o tribunal, as provas que apoiam as
suas pretensões, é reconhecida ao legislador uma ampla margem de liberdade de
conformação processual, que lhe permite introduzir restrições ou limitações à
admissibilidade dos meios de prova, em termos qualitativos ou quantitativos, e
à respetiva valoração pelo julgador, desde que tais restrições
sejam razoavelmente ajustadas, não desnecessariamente excessivas, nem
desmesuradas.
A este propósito, refere o Acórdão n.º
452/2003 do Tribunal Constitucional (disponível no sítio da internet já
aludido, onde é possível encontrar os acórdãos doravante mencionados):
“ (…) a garantia de
acesso ao Direito e aos tribunais prevista no artigo 20.º da Constituição não
contempla a possibilidade de utilização irrestrita de todos os
meios de prova em qualquer processo judicial (…), nem proíbe o
legislador de restringir o uso de certos instrumentos probatórios, desde que
tal restrição não se configure como desproporcionada ou irrazoável”
Mas a margem de liberdade do legislador,
neste âmbito, encontra-se condicionada, desde logo, pelo princípio da proporcionalidade
das restrições ao direito à tutela jurisdicional efetiva
e ao direito a um processo equitativo, nos termos dos n.os
2 e 3 do artigo 18.º da CRP.
11.
Vejamos de que forma as considerações expendidas se aplicam à concreta questão
de constitucionalidade colocada.
Encontramo-nos no âmbito da responsabilidade
civil decorrente de acidentes de viação.
O Acórdão n.º 25/2010, pronunciando-se sobre
matéria atinente ao mesmo âmbito de responsabilidade, referiu o seguinte:
“O princípio
do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, tem ínsito um
princípio jurídico fundamental, historicamente objetivado
e claramente enraizado na consciência jurídica geral, segundo o qual todo e
qualquer autor de ato ilícito gerador de danos para terceiros se constitui na
obrigação de ressarcir o prejuízo que causou (Maria
Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado
e Dever de Indemnizar do Legislador, pág. 442). E
o lesado tem o direito correspondente, a exercer contra o autor do facto lesivo
ou contra aquele a quem a responsabilidade seja juridicamente imputável.
Porém, em muitos casos, como se frisou no
acórdão n.º 270/09, este direito à reparação dos danos depara-se com uma
inultrapassável dificuldade de concretização prática: a inexistência de
património do obrigado à reparação suscetível de
execução. É, por isso, frequente que o legislador institua o dever de cobrir
com um seguro de responsabilidade civil a obrigação de indemnizar que possa
estar ligada ao exercício de determinadas atividades
potencialmente geradoras de danos para terceiros de modo a que, verificado o
evento que obriga à reparação, os lesados possam ter perante si uma entidade
cuja solvabilidade esteja, em princípio, garantida (a seguradora) e não (ou não
apenas) o lesante, cujos acasos de fortuna podem esvaziar de conteúdo prático o
direito à indemnização.
O seguro automóvel obrigatório é precisamente
um destes institutos. As regras gerais da responsabilidade civil tornaram-se
inidóneas para dar resposta, prática, equitativa e economicamente equilibrada,
ao problema da reparação dos danos emergentes de acidentes de viação. Sendo a
circulação rodoviária uma das atividades em cujo
desenvolvimento mais frequentemente ocorrem acidentes suscetíveis
de causar danos pessoais ou patrimoniais a terceiros, ao estabelecer a
obrigação de cobrir a responsabilidade civil emergente da circulação de
veículos, não deixando a sua sorte ao acaso da previdência dos responsáveis, o
legislador protege de modo genérico as potenciais vítimas e futuros titulares
do direito à reparação.”
Como decorre do excerto transcrito, os
acidentes de viação estão, frequentemente, na origem de danos graves, pelo que
o legislador, reconhecendo a utilidade social da circulação rodoviária, e
pretendendo salvaguardar o direito ao efetivo
recebimento da justa indemnização pelos lesados, criou mecanismos adequados a
proteger o equilíbrio entre a manutenção de tal atividade
e a proteção das vítimas. É nessa lógica que se
integra a instituição do regime de seguro obrigatório.
A norma em apreciação no presente recurso
insere-se no âmbito de uma revisão do “regime aplicável aos processos de
indemnização por acidente de viação”, operada pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de
6 de agosto, introduzindo alterações ao Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de
agosto, que aprovou o “regime do sistema do seguro obrigatório de
responsabilidade civil automóvel”.
Na interpretação normativa assumida pela
decisão recorrida, o n.º 4 do artigo 67.º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de
agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º
153/2008, de 6 de agosto, determina que, nas ações
destinadas à efetivação da responsabilidade civil
decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento
mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por
danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os
rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente
comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas
para tal período.
De acordo com tal entendimento, a norma
restringe os meios de prova admissíveis, vedando ao julgador a possibilidade de
valorar outros meios de prova, para além da prova documental decorrente do
cumprimento das obrigações fiscais declarativas de rendimentos auferidos.
De tal
restrição decorrerá que o incumprimento do dever de verdade do contribuinte,
relativamente a tais obrigações declarativas – que, como salienta a decisão
recorrida, frequentemente ocorre através de uma declaração inexata,
por defeito, dos rendimentos auferidos, por forma a diminuir o valor do imposto
a pagar – terá efeitos incontornáveis sobre o cálculo da indemnização que lhe
possa vir a ser devida, na sequência de acidente de viação.
Desta forma, cria-se uma situação em que
danos importantes como a perda de rendimentos provenientes do trabalho, por
incapacidade temporária, e sobretudo a perda ou redução da capacidade de ganho,
por incapacidade permanente – que frequentemente correspondem à maior fatia do
montante global indemnizatório devido por força de acidentes de viação -
poderão não ser suficientemente ressarcidos.
Embora, como se afirmou, não caiba ao
Tribunal Constitucional substituir-se à margem de liberdade do legislador no
juízo valorativo que conduz à opção pela restrição probatória em causa,
traduzida na introdução da norma em sindicância, respeitante ao regime da
fixação da indemnização devida por acidente de viação, com fundamento,
designadamente, no objetivo de celeridade processual,
cabe-lhe, ainda assim, apreciar se tal opção comprime, de forma
desproporcionada, sem justificação razoável e suficiente, a formatação,
constitucionalmente imposta, de um processo equitativo, e consequentemente, o
sentido útil da tutela jurisdicional efetiva.
Ora, apesar de se reconhecer a importância da
proteção do bem jurídico
constitucional da celeridade processual, enunciado pelo legislador como
fundamento da introdução da norma em sindicância, no regime da fixação da
indemnização devida por acidente de viação, e da adequação da medida para o
realizar, aquele desígnio não pode comprometer, de forma desproporcionada, a
funcionalidade ou sentido útil do direito à tutela jurisdicional efetiva.
Sucede que a solução legislativa em causa,
dando prevalência à celeridade na resolução do conflito, prejudica,
precisamente, os lesados em acidente de viação que, sendo, embora, os
principais interessados na celeridade da obtenção do ressarcimento, são, ao mesmo tempo, os prejudicados pela exclusão de
outros meios de prova que coadjuvassem a fixação da indemnização do efetivo dano sofrido. É por esta razão que os lesados estão
dispostos a abdicar da celeridade, sempre que discordam da fixação do montante
indemnizatório, atacando-a em juízo. Com a solução normativa em apreciação, a
parte mais fragilizada vê cerceada, sem justificação bastante, a possibilidade
de, em juízo, fazer corresponder o valor da indemnização à realidade dos danos
sofridos, por impossibilidade de valoração judicial dos rendimentos realmente
auferidos, o que, nalguns casos, pode ter consequências de extrema gravidade.
Também não se vê que o facto de ter sido
apresentada pelo próprio lesado, para fins fiscais, a declaração que servirá
como único comprovativo do rendimento a atender para efeitos de cálculo da
indemnização – declaração que pode não corresponder à verdade - deva pesar
decisivamente no sentido de vedar a valoração, pelo tribunal, de outros meios
de prova mediante os quais fosse possível chegar aos rendimentos efetivamente auferidos e, com isso, ao montante
indemnizatório justo.
Afastar a ponderação de outros meios de
prova, pelo tribunal, com o intuito de fomentar a coincidência entre a
remuneração inscrita nas declarações fiscais e a remuneração efetivamente auferida – no “reforço de uma ética de
cumprimento fiscal” -, é uma opção que pode prejudicar de forma irrazoável e
excessiva o direito ao justo ressarcimento, em momento de particular
fragilidade da vítima de acidente de viação.
Isto dito, verifica-se que a pesada
desvantagem para o lesado em acidente de viação, acarretada pela solução de
afastar outros meios de prova, não encontra justificação bastante nas
finalidades pretendidas. O prejuízo sentido pelos lesados excede, de forma
desmesurada, os benefícios perseguidos pela solução legal em análise.
Assim sendo, no caso, a limitação probatória
imposta no regime de fixação da indemnização devida por acidente de viação,
impedindo, em absoluto, a valoração de meios de prova que poderiam demonstrar
factos relevantes e imprescindíveis para apurar o valor indemnizatório justo a
atribuir aos lesados, não se mostra equilibrada em face do direito fundamental
à tutela jurisdicional efetiva. Tal limitação,
associada à especial fragilidade da vítima de acidente de viação, pode pôr em
causa, de forma intolerável, o justo ressarcimento dos danos sofridos, sendo
desconforme com a justiça e equidade que devem ser apanágio do processo.
A restrição probatória ínsita na
interpretação normativa em análise, na medida em que constitui um obstáculo a
que o julgador apure o dano efetivo do lesado, numa
componente tão importante, anulando a margem de liberdade de decisão, quanto à
pertinência de valoração e utilidade de produção de outros meios de prova,
comporta uma significativa afetação do direito à
tutela jurisdicional efetiva, na vertente da garantia
de um processo equitativo, conducente ao justo ressarcimento do lesado, vítima
de acidente de viação.
Concluímos, desta forma, pela
inconstitucionalidade da interpretação normativa em apreciação, por violação do
direito à tutela jurisdicional efetiva, na vertente
da garantia de um processo equitativo.
Encontrando-se assente o juízo de
inconstitucionalidade, torna-se desnecessário analisar a eventual violação de
outros parâmetros da Lei Fundamental.
III - Decisão
13. Pelo
exposto, decide-se:
a) julgar
materialmente inconstitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, na vertente da garantia de um processo equitativo,
consagrada no artigo 20.º, n.º 4, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, ambos
da Constituição, e do direito à justa reparação dos danos, decorrente do artigo
2.º da Constituição, a interpretação normativa extraída do n.º 7 do artigo 64.º
do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação
introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, correspondente ao
entendimento segundo a qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente
de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito
da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir
ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à
data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento
das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período;
b) e, em
consequência, julgar improcedente o recurso.
Sem custas.
Lisboa, 12 de julho
de 2012 – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa
Ribeiro – José da Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos