ACÓRDÃO N.º 21/2012
Processo n.º 483/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura
Mariano
Acordam na 2.ª
Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Nos presentes
autos, que correm termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, o Ministério
Público deduziu despacho de encerramento do inquérito, tendo nesse despacho,
além do mais, determinado a separação de processos relativamente a parte da
factualidade denunciada cuja investigação não se encontrava concluída.
O arguido A.
requereu a abertura da instrução, tendo suscitado, a título de questão prévia,
uma irregularidade/nulidade consistente no desaforamento e separação de
processos conexos e juntos na fase de inquérito.
Foi proferida
decisão instrutória que declarou a invalidade – inexistência jurídica – do
despacho em que o Ministério Público decidiu determinar a separação processual
nos termos do disposto nas alíneas b) e c), do n.º 1, do artigo 30.º, do Código de Processo Penal, e
a subsequente extração de certidão para conclusão
autónoma da investigação, por violação do disposto nos artigos 30.º e 269.º,
n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal,
e 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa.
Inconformado,
o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães
que, por acórdão de 29 de março de 2011, concedeu
provimento ao recurso e, revogando a decisão recorrida, determinou a sua
substituição por outra que pressuponha que cabe ao Ministério Público, na fase
de inquérito, a competência para ordenar a separação de processos nos termos do
artigo 30.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo
264.º, n.º 5, do mesmo Código.
O Arguido
interpôs então recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
do disposto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC).
O Recorrente
apresentou as respetivas alegações, culminando as mesmas
com a formulação das seguintes conclusões:
«[...]
A) Do acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, não cabe qualquer tipo de
recurso ordinário.
B) A
apreciação da constitucionalidade foi suscitada no requerimento de abertura de
instrução, apreciada na decisão proferida pela 1ª instância (da forma que ora
se defende) e apreciada novamente no acórdão recorrido.
C) O artigo
30º do C.P.P., aplicável à fase de inquérito por força do artigo 264º / nº 5 do
C.P.P. consagra que cabe ao Tribunal ordenar a separação de processos, a
requerimento do M.P.
D) Do Acórdão
recorrido decorre que na fase de inquérito a separação de processos cabe ao
M.P., por ser este quem dirige tal fase, mais a mais, entendendo-se que tal
separação não limita nenhum dos Direitos, Liberdades e garantias do arguido.
E) No entanto
a interpretação destas normas, da forma como vem defendida no Acórdão recorrido
é manifestamente inconstitucional, por afrontar os princípios consagrados na
Lei Fundamental nos artigos 32º / nº 4 e 9 e artigo 202º / nº 2.
F) Com efeito,
o ato de ordenar a separação de processos não se insere na competência
exclusiva do M.P. para a investigação ou recolha de provas.
G) Por uma
razão de sistemática, faz-se notar que o artigo 30º se insere no capítulo das
competências do Tribunal,
H) Por uma
razão de semântica e de interpretação literal, sublinha-se que a separação sob
ser ordenada a requerimento do M.P.
I) Por uma
razão teleológica deve considerar-se que cabe ao Juiz, onde se lê Tribunal,
ordenar a separação de processos.
J) Por uma
razão de reserva ou controlo jurisdicional o Juiz é o único que pode assegurar
a natureza jurisdicional da decisão, e a possibilidade de defender as garantias
do arguido, como seja do seu direito ao recurso.
K) A separação
de processos não cabe na recolha de provas, nem na investigação, antes sim na proteção das garantias em processos penal, já que também o
arguido tem o direito constitucional a não ver recair sobre si o eterno juízo
de censura criminal, difundido por um número ilimitado de Tribunais (o que no
caso dura para além de 10 anos).
L) Assim,
entendendo-se que a separação de processos cabe nas garantias do processo penal
e contende com os Direitos do arguido, então a decisão recorrido só por si
seria uma afronta ao Princípio consagrado no artigo 32º / nº 4 da C.R.P.
M) A não ser
assim, tendo o JIC sido chamado a intervir no processo que ainda se encontra em
fase de inquérito, a decisão de separação de processos não lhe podia ser
usurpada pelo M.P., sob pena de violar o princípio do Juiz Natural.
N) Também por
este argumento enfermaria o Acórdão recorrido de inconstitucionalidade, já que
por força da distribuição judicial, a causa foi submetida ao JIC.
O) Assim, a
decisão de separar processos é jurisdicional, dela cabe recurso, pelo que a
competência para a prática deste ato está adstrita ao JIC, mais a mais, quando
este já foi chamado a intervir no processo, ainda que em fase de inquérito.
P) As normas
dos artigos 264º / nº 5 e 30º do C.P.P., assim interpretadas são
inconstitucionais.
Termos em que
deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, declarada a
inconstitucionalidade dos artigos 264º / nº 5 e 30º do C.P.P., com a interpretação
que lhes foi dada, e em consequência revogado o Acórdão recorrido, assim se
fazendo, JUSTIÇA! ”
O Ministério
Público contra-alegou e concluiu pela seguinte forma:
“[…]
a) Questão prévia
1. A decisão impugnada não aplicou,
para resolver a causa penal, a “norma” (ou “interpretação normativa”), que a
recorrente identifica como sendo objeto do recurso,
ou seja, aquela extraída “dos artigos 30º, nº 1 e 268º nº 1, alínea f) do CPP”.
2. Por conseguinte, a preterição de tal
pressuposto processual determinará a impossibilidade do conhecimento deste
meio impugnatório.
Sem conceder,
b) A “reserva de juiz de instrução”
3. A decisão de separação de algum ou alguns
“inquéritos” opera na fase de “inquérito”, não configura um “ato de instrução”
e não determina, nunca, a abolição da “instrução”, sendo sempre competente
para a dirigir o “juiz de instrução criminal”, nos termos da
Constituição e da lei.
4. Por todas essas razões, a decisão de separação de algum ou alguns
inquéritos, tomada pelo competente Ministério Público, não viola a
“reserva de juiz”, garantida pela lei constitucional em sede de
“instrução”.
c) O juiz “legal” ou “natural”
5. O “desaforamento” que, eventualmente,
decorra da decisão de separação de algum ou alguns inquéritos, no sentido da
lei processual penal, não é “concreto e, portanto,
discricionário”.
6. Antes, opera segundo critérios gerais, abstratos
e objetivos, dispostos pela lei processual penal
anterior ao facto, pelo que não afronta o princípio do “juiz legal”
(determinado mediante aplicação objetiva de prévios
critérios legais) ou do “juiz natural”.
d) Função jurisdicional
7. A Constituição não estabelece qualquer
“reserva de juiz” para efeitos de direção do
“inquérito” e, em particular, para nele decidir sobre a separação de
alguns ou alguns inquéritos, por isso que tal ato não materializa o exercício
da jurisdição.
8. A Constituição não consagra qualquer “direito
fundamental” à conexão processual, passível de ser lesado pela
decisão de separação de algum ou alguns inquéritos e que incumba aos tribunais
proteger.
Nestes termos, não é de conhecer do objeto do
presente recurso de inconstitucionalidade ou, sem conceder, é de negar
provimento ao mesmo, por não proceder qualquer questão de inconstitucionalidade
nele suscitada (LOFPTC, art. 78.º-A, n.º 1).
O Recorrido B.
contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
«I - A decisão recorrida não viola o artigo 32º, nº 9, nem os
artigos 24º e 27º e nem o artigo 202º, todos do C.R.P.;
II - Foram apenas estas as normas contempladas na decisão, se
bem que apenas na fundamentação, e não na parte decisória;
III - O recurso não obedece aos requisitos dos artigos 70º,
alínea b) e 72º, nº 2, da Lei 28/82, de 15 de novembro,
pois o recorrente nem sequer alega ter levantado a questão da
inconstitucionalidade com vista à decisão recorrida;
IV - O recurso não concretiza, nas suas conclusões ou pedido, o
sentido com que devem ser interpretadas as normas que impugna de
inconstitucionalidade;
V - As normas dos artigos 264º, nº 5 e 30º do CPP,
interpretadas no sentido de que é o M.P. o competente para decidir a conexão ou
separação de processos, em inquérito, não são inconstitucionais.
Termos em que
deve ser negado provimento ao recurso
Como é de
JUSTIÇA»
Fundamentação
1. Do
conhecimento do recurso
O Ministério
Público e o Recorrido, B., nas suas contra-alegações, suscitaram questões
respeitantes à falta de requisitos para que o recurso possa ser conhecido.
Alega o
Ministério Público que no requerimento de interposição de recurso não consta,
conforme determina o art. 75.º-A, nº 1, da LTC, “a norma cuja
inconstitucionalidade (…) se pretende que o tribunal aprecie” e que, nas
alegações de recurso, juntas no tribunal a quo, com
aquele requerimento, o Recorrente descreveu o objeto
do recurso como sendo a “fiscalização da constitucionalidade dos artigos 30.º,
n.º 1, alíneas b) e c), e 269.º, n.º 1, alínea f), ambos do C.P.P., quando interpretados no sentido de
caber ao Ministério Público a competência para ordenar, em fase de inquérito, a
separação processual, quando o Juiz de instrução foi já chamado a aí tomar
decisões”, e conforme resulta literalmente da fundamentação e, sobretudo, do
dispositivo do acórdão recorrido, a “norma de decisão” foi deduzida das
disposições conjugadas dos artigos 30.º e 264.º, n.º 5, do Código de Processo
Penal, pelo que a decisão impugnada não aplicou, para resolver a causa penal, a
“norma” (ou “interpretação normativa”), que o recorrente identifica como sendo objeto do recurso, ou seja, aquela extraída “dos artigos
30.º, n.º 1, e 268.º, n.º 1, al. f), do CPP”.
O Recorrido B.,
por sua vez, sustenta que o Recorrente invoca a violação dos artigos 34.º, n.ºs 4 e 9, e 202.º, n.º 2, da Constituição, mas não se deteta, nem o Recorrente alega ter levantado tal questão de
inconstitucionalidade com o alcance que ora suscita perante o tribunal
recorrido.
As questões
suscitadas pelo Ministério Público e pelo Recorrido são prévias ao
conhecimento do mérito do recurso, pelo que importa começar pela sua
apreciação. Tais questões são, em síntese, as seguintes:
- falta de indicação, no requerimento de interposição de
recurso, da norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o tribunal
aprecie;
- falta de aplicação, pela decisão recorrida, da norma que o
Recorrente identifica como sendo objeto do recurso;
- falta de suscitação prévia da questão de
inconstitucionalidade com o alcance que consta do requerimento de interposição
de recurso.
1.1. Falta de indicação, no
requerimento de interposição de recurso, da norma cuja inconstitucionalidade se
pretende que o tribunal aprecie.
Analisado o
requerimento de interposição de recurso, constata-se, como refere o Ministério
Público, que aí não consta, conforme determina o artigo 75.º-A, nº 1, da LTC,
“a norma cuja inconstitucionalidade (…) se pretende que o tribunal aprecie”.
Tal omissão
determinaria que fosse efetuado, nos termos do artigo
75.º-A, n.ºs 5 e 6, da LTC, um convite ao Recorrente
no sentido de suprir tal deficiência. Contudo, no caso dos autos, o Recorrente
apresentou junto do tribunal a quo, em
simultâneo com o requerimento de interposição de recurso, as “alegações”, das
quais fez constar que pretende sindicar a “constitucionalidade dos artigos 30.º, n.º 1,
alíneas b) e c), e 269.º, n.º 1, alínea f), ambos do C.P.P., quando
interpretados no sentido de caber ao Ministério Público a competência para
ordenar, em fase de inquérito, a separação processual, quando o Juiz de
instrução foi já chamado a aí tomar decisões”, pelo que se entendeu desnecessário efetuar
o aludido convite ao aperfeiçoamento, considerando-se suprida a mencionada
omissão com a apresentação do texto que acompanhava o requerimento de
interposição do recurso.
1.2. Falta de aplicação, pela
decisão recorrida, da norma que o Recorrente identifica como sendo objeto do recurso
Outra questão
suscitada pelo Ministério Público prende-se com o facto de, segundo alega, a
“norma de decisão” ter sido deduzida das disposições conjugadas dos artigos
30.º e 264.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, não tendo a decisão impugnada
aplicado, para resolver a causa penal, a norma que o Recorrente identifica
como sendo objeto do recurso, ou seja, aquela
extraída “dos artigos 30.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1, al. f) do CPP”.
A questão que
se coloca traduz-se, assim, em saber se a interpretação normativa arguida de
inconstitucional constitui ratio decidendi
do acórdão recorrido.
Vejamos se
assim é.
O Recorrente,
nas “alegações” que acompanharam o requerimento de interposição de recurso
disse que pretendia ver fiscalizada a “constitucionalidade dos artigos 30.º, n.º 1,
alíneas b) e c), e 269.º, n.º 1, alínea f), ambos do C.P.P., quando
interpretados no sentido de caber ao Ministério Público a competência para
ordenar, em fase de inquérito, a separação processual, quando o Juiz de
instrução foi já chamado a aí tomar decisões”.
A decisão
instrutória proferida neste processo considerou que, na fase processual de
inquérito, a competência para decidir da separação de processos pertence ao
Ministério Público no caso de o inquérito não ter sido ainda presente ao juiz
de instrução e que, nos casos em que o processo já tenha sido previamente
apresentado ao juiz de instrução, tal competência cabe a este, não tendo o
Ministério Público competência para a determinar.
Refere-se
ainda na decisão instrutória que o entendimento segundo o qual a referida
competência pertence ao Ministério Público põe em causa o princípio do juiz
natural e as garantias de defesa do arguido, tendo-se decidido, assim, declarar
a invalidade – inexistência jurídica – do despacho em que o Ministério Público
determinou a separação processual nos termos do disposto nas alíneas b) e c), do n.º 1,
do artigo 30.º, do Código de Processo Penal, e a subsequente extracção de
certidão para conclusão autónoma da investigação, por violação do disposto nos
artigos 30.º e 269.º, n.º 1, alínea f), do Código
de Processo Penal, e 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa.
Ora, ao ter
decidido que a competência para determinar a separação de processos na fase
processual de inquérito pertence, em qualquer circunstância, ao Ministério
Público, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães entendeu necessariamente
que, mesmo nos casos em que o juiz de instrução já tenha sido chamado a tomar
decisões no inquérito (como acontece no presente caso), tal competência cabe
ainda ao Ministério Público, pelo que se tem de concluir que a decisão
recorrida aplicou precisamente a interpretação normativa arguida de
inconstitucional pelo Recorrente.
Por outro
lado, é certo que na interpretação normativa que indicou como objeto do presente recurso, no texto apresentado com o respetivo requerimento de interposição, o Recorrente apenas
menciona as normas dos artigos 30.º, n.º 1, alíneas b)
e c), e 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, como aquelas em que se
ancorou a interpretação questionada. Mas nas alegações de recurso que
apresentou posteriormente essa interpretação já é imputada, indistintamente,
quer ao arco normativo constituído pelos referidos preceitos, quer ao arco
normativo constituído pelos artigos 30.º e 264.º, n.º 5, do Código de Processo
Penal, coincidindo nesta última referência com aquela que consta do segmento
decisório do Acórdão recorrido.
É sabido que a
identificação da interpretação normativa sindicada, para efeitos de cumprimento
dos requisitos formais de interposição do recurso constitucional assenta
prioritariamente na enunciação, de forma certeira, do conteúdo do critério
normativo adotado como seu fundamento pela decisão
recorrida. Quanto à indicação dos preceitos legais a que se reporta essa
interpretação, deverá existir alguma flexibilidade na apreciação de tal
“coincidência”, particularmente nos casos em que ocorra alguma indefinição ou
flutuação da decisão recorrida na referência aos preceitos que surgem como
“fundamento de direito” da solução jurídica alcançada, desde que o critério
normativo enunciado pelo recorrente encontre suporte bastante nos preceitos
legais mencionados como núcleo fundamental do regime jurídico em causa (vide, neste sentido Lopes
do Rego, em “Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei
e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, p. 208-209, da
edição de 2010, da Almedina e jurisprudência do Tribunal Constitucional aí citada) .
Verifica-se
que a norma do n.º 5, do artigo 264.º, do Código de Processo Penal, está
necessariamente incluída na dimensão normativa cuja inconstitucionalidade foi
suscitada, uma vez que é tal norma que, ao remeter para o artigo 30.º, do mesmo
diploma, justifica a sua aplicação na fase de inquérito. A isto acresce que,
embora a decisão recorrida não se refira expressamente, na parte decisória, ao
artigo 269.º, n.º 1, alínea f), do Código
de Processo Penal, este preceito coadjuvou a interpretação sustentada na
decisão recorrida, pois uma das razões pelas quais se entendeu que a
competência para ordenar a separação de processos na fase de inquérito cabia ao
Ministério Público, resultou do entendimento de que a separação de processos
não pertence ao catálogo dos atos processuais que só
podem ser praticados pelo juiz de instrução ou que carecem de ser ordenados ou
autorizados por este, não integrando qualquer das hipóteses previstas nos
artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal e, designadamente, a hipótese
da alínea f) do n.º 1, do artigo 269.º.
Deve
considerar-se, pois, que na indicação pelo Recorrente dos preceitos legais em
que se ancorou a interpretação aqui em análise, se encontrava incluído o
disposto no artigo 264.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, e na fundamentação
da decisão recorrida essa interpretação se baseou também no disposto no artigo
269.º, n.º 1, alínea f), do mesmo
diploma.
Assim, no caso
concreto, pelas razões referidas, não deverá constituir fundamento para não
conhecimento do objeto do presente recurso a
circunstância de, não obstante ter indicado com precisão o conteúdo da
interpretação normativa aplicada, o Recorrente não ter indicado expressamente
no texto que acompanhava o requerimento de interposição de recurso, com
rigorosa coincidência, os preceitos legais referidos na parte decisória da
decisão recorrida.
1.3. A falta de suscitação da
questão de constitucionalidade em termos procedimentalmente
adequados
O Recorrido B.
levanta ainda a questão de saber se o Recorrente suscitou perante o tribunal
recorrido a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada
pelo Tribunal Constitucional e se o fez em termos adequados.
Importa, pois,
analisar em que termos é que o Recorrente suscitou a questão de
inconstitucionalidade por forma a apreciar se esta foi
validamente suscitada.
Relembrando,
quando notificado do despacho de encerramento do inquérito, em que foi
determinada, pelo Ministério Público, a separação de processos, o ora Recorrente
requereu abertura de instrução e em tal requerimento alegou, além do mais, que
tal separação não se mostrava fundamentada em nenhuma das alíneas do citado
artigo 30.º, do Código de Processo Penal, e sustentou ainda ter havido
desrespeito pelos direitos dos arguidos, constitucionalmente garantidos nos
artigos 26.º e 32.º da CRP.
A decisão
instrutória considerou que, na fase processual de inquérito, a competência para
decidir da separação de processos pertence ao Ministério Público no caso de o
inquérito não ter sido ainda presente ao juiz e que, nos casos em que o
processo já tenha sido apresentado ao juiz de instrução, tal competência cabe a
este e não ao Ministério Público. Refere-se ainda em tal decisão que o entendimento
segundo o qual, nesta última hipótese, a referida competência pertence ao
Ministério Público põe em causa o princípio do juiz natural e as garantias de
defesa do arguido. Decidiu-se, assim, declarar a invalidade – inexistência
jurídica – do despacho em que o Ministério Público determinou a separação
processual nos termos do disposto nas alíneas b)
e c) do n.º 1 do artigo 30.º do Código de
Processo Penal, e a subsequente extração de certidão
para conclusão autónoma da investigação, por violação do disposto nos artigos
30.º e 269.º, n.º 1, alínea f) do Código de
Processo Penal e 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa.
Tendo o
Ministério Público recorrido desta decisão, o arguido – ora Recorrente –,
terminou as suas contra-alegações formulando, entre outras, as seguintes
conclusões:
“(…)
C) Entende o recorrido que, tendo o Juiz de
Instrução sido chamado a decidir no âmbito deste inquérito, estando em causa
como estão a limitação dos Direitos, Liberdades e Garantias do arguido, caberia
sempre ao JIC a competência material para conhecer e decidir do mérito da
separação de processos.
D) Doutra
forma, sempre estaria a decisão pretendida pelo M.P. ferida de morte, por
afrontar claramente os princípios constitucionais previstos no artigo 32.º, n.ºs [4] e 9 da C.R.P.”
O Acórdão do
Tribunal da Relação de Guimarães debruçou-se sobre a possibilidade da
interpretação por si defendida atentar contra o disposto no artigo 32.º, n.º 4
e 9, da Constituição, tendo concluído não ocorrer a violação dos respectivos
princípios constitucionais.
Da leitura do
excerto das conclusões das contra-alegações acima transcrito verifica-se que o
agora Recorrente apesar de ter escolhido uma enunciação pela negativa da
questão de constitucionalidade que posteriormente colocou ao Tribunal
Constitucional, não deixou de confrontar o tribunal recorrido com a alegação
da inconstitucionalidade duma interpretação que atribuísse ao Ministério
Público a decisão de separação de processos em fase de inquérito quando o Juiz
de Instrução Criminal já tivesse sido chamado a intervir no inquérito.
E se esse tipo
de enunciação é suficiente para conferir legitimidade para o Recorrente
posteriormente colocar essa questão ao Tribunal Constitucional, pois revela o
seu interesse em vir a discuti-la, a sua posterior apreciação pela decisão
recorrida supre as ligeiras deficiências da formulação adotada
na suscitação da questão perante o tribunal recorrido, uma vez que se mostram
alcançadas as finalidades visadas com a exigência desse requisito.
Daí que também
se considere verificado o cumprimento do requisito da suscitação perante o
tribunal recorrido da questão de constitucionalidade que agora se coloca ao
Tribunal Constitucional, pelo que nada obsta ao conhecimento do mérito do
recurso.
2. Da delimitação do objeto do recurso
O recurso de
constitucionalidade em fiscalização sucessiva concreta tem natureza
instrumental, apenas tendo utilidade o seu conhecimento quando a decisão nele
proferida seja suscetível de determinar a reforma da
decisão recorrida.
No presente
processo apenas está em causa um despacho proferido pelo Ministério Público que
determinou a separação de processos com fundamento nos motivos enunciados nas
alíneas b) e c), do artigo
30.º, do Código de Processo Penal, pelo que apenas interessa apreciar a constitucionalidade
da atribuição da competência ao Ministério Público para decidir da separação de
processos com fundamento nas razões mencionadas nas referidas alíneas.
Assim, deve
este recurso ter por objeto a norma resultante da
interpretação dos artigos 30.º, n.º 1, alínea b)
e c), 264.º, n.º 5, e 269.º, n.º 1, alínea
f), do Código de Processo Penal,
segundo a qual o Ministério Público tem competência para, em fase de inquérito,
determinar a separação processual com fundamento nas razões previstas nas alíneas
b) e c), do artigo
30.º, do Código de Processo Penal, quando o Juiz de instrução foi já chamado a
aí tomar decisões.
3. Do mérito do recurso
3.1. A
questão suscitada no presente recurso tem subjacente a determinação da
competência para, em sede de inquérito, determinar a separação de processos,
nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Esta questão,
em sede de direito infraconstitucional, insere-se na problemática da
competência por conexão, regulada nos artigos 24.º a 30.º do Código de Processo
Penal.
A regra geral
é a de que a cada crime corresponde um processo, para o qual é competente
determinado tribunal, em resultado da aplicação das regras de competência
material, funcional e territorial. Contudo, tendo em vista objetivos
de harmonia, unidade e coerência de processamento, celeridade e economia processual,
bem como para prevenir a contradição de julgados, em certas situações previstas
nos artigos 24.º e 25.º do Código de Processo Penal, a lei admite alterações a
esta regra, permitindo a organização de um único processo para uma pluralidade
de crimes, exigindo-se, no entanto, que entre eles exista uma ligação (conexão)
que torne conveniente para a melhor realização da justiça que todos sejam apreciados
conjuntamente.
Uma vez
operada a conexão, em determinadas situações poderá vir a ter lugar a separação
de processos, verificados certos pressupostos.
Entendeu-se
que mantendo cada crime a sua autonomia e sendo a junção num único processo
justificada pela procura de uma melhor justiça, se dessa junção resultar maior
dano do que benefício, deve essa unidade processual desfazer-se (neste sentido, Germano
Marques da Silva, em “Curso de processo penal”,
vol. I, pág. 201, da 5.ª ed., da Verbo).
O artigo 30.º,
n.º 1, do Código de Processo Penal, prevê os casos em que se pode fazer cessar
a conexão:
«Separação dos
processos
1 –
Oficiosamente, ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do
assistente ou do lesado, o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação
de algum ou alguns processos sempre que:
a) Houver na
separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente
no não prolongamento da prisão preventiva;
b) A conexão
puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o
interesse do ofendido ou do lesado;
c) A conexão
puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos; ou
d) Houver
declaração de contumácia, ou o julgamento decorrer na ausência de um ou alguns
dos arguidos e o tribunal tiver como mais conveniente a separação de processos.
2 – […]»
Por sua vez,
com relevância para a questão objeto dos presentes
autos, o artigo 264.º, do Código de Processo Penal, dispõe o seguinte:
«Artigo 264º
Competência
1 – É
competente para a realização do inquérito o Ministério Público que exercer
funções no local em que o crime tiver sido cometido.
2 – Enquanto
não for conhecido o local em que o crime foi cometido, a competência pertence
ao Ministério Público que exercer funções no local em que primeiro tiver havido
notícia do crime.
3 – Se o crime
for cometido no estrangeiro, é competente o Ministério Público que exercer
funções junto do tribunal competente para o julgamento.
4 – Independentemente
do disposto nos números anteriores, qualquer magistrado ou agente do Ministério
Público procede, em caso de urgência ou de perigo na demora, a atos de inquérito, nomeadamente de detenção, de interrogatório
e, em geral, de aquisição e conservação de meios de prova.
5 – É
correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 24º a 30º.»
Finalmente, a
alínea f) do n.º 1 do artigo 269.º do Código de
Processo Penal, tem o seguinte teor:
«Artigo 269º
Atos a ordenar ou autorizar pelo juiz de
instrução
1 – Durante o
inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar:
[…]
f) A prática
de quaisquer outros atos que a lei expressamente
fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.»
Tendo em
atenção o teor destas normas, nas situações em que um processo ainda se
encontra em fase de inquérito onde se investiga a prática de uma pluralidade de
crimes, tem sido discutido na jurisprudência e na doutrina, a quem é atribuída
a competência para determinar a separação de processos, podendo distinguir-se
três orientações distintas:
- uma delas entende que, em sede que inquérito, a competência
para determinar a separação de processos cabe ao Ministério Público;
- uma segunda orientação, sufragada pela jurisprudência
maioritária, sustenta que, no decurso do inquérito, compete exclusivamente ao
juiz de instrução apreciar a questão da separação de processos, uma vez que as
situações elencadas no artigo 30.º do Código de Processo Penal contendem diretamente com as garantias do processo criminal (v.,
neste sentido, Maia Gonçalves, em “Código de Processo Penal Anotado”, pág. 128,
da 17.ª Edição, Almedina);
- por fim, uma terceira orientação entende que a competência
para decidir da separação de processos em sede de inquérito pertence ao
Ministério Público apenas no caso de o inquérito não ter sido ainda presente ao
juiz de instrução (v., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da
República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág. 111,
da 4.ª ed., da Universidade Católica Editora).
Como é sabido,
não compete ao Tribunal Constitucional tomar posição sobre qual destas soluções
é a mais acertada no plano infraconstitucional, optando por uma das
interpretações dos preceitos em análise. Cabe-lhe apenas decidir se a solução adotada pela decisão recorrida (correspondente à primeira
das orientações acima referidas), é conforme com a Lei Fundamental,
designadamente, com o disposto nos seus artigos 32.º, n.ºs
4 e 9, e 202.º, n.º 2.
3.2.
Segundo alega o Recorrente, o ato de ordenar a separação de processos não se
insere na competência exclusiva do Ministério Público para a investigação ou
recolha de provas na fase de inquérito, antes sim na proteção
das garantias de defesa do arguido em processo penal já que este tem o direito
a não ver recair sobre si um eterno juízo de censura criminal, difundido por um
número ilimitado de tribunais, assim como o direito ao recurso, pelo que, por
uma razão de reserva ou necessidade de controlo jurisdicional, o juiz é o único
que pode assegurar a defesa das garantias do arguido.
Conclui,
assim, que a interpretação normativa seguida pela decisão recorrida ofende o
disposto no n.º 4, do artigo 32.º, da Constituição.
Vejamos se
assim é.
Dispõe esta
norma constitucional que “Toda
a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei,
delegar noutras entidades a prática dos atos
instrutórios que se não prendam diretamente com os
direitos fundamentais”.
Se a intenção
original da Constituição de 1976 foi a de atribuir exclusivamente a um juiz a direção da investigação preliminar à acusação (vide o DAC, n.º 38, de 28
de agosto de 1975, pág. 1049-1052), as dificuldades
práticas de aplicar integralmente esta exigência (sinais dessas dificuldades
foram os sucessivos diplomas que procuravam soluções para colmatar a falta de
juízes para assegurar essa nova competência, como os Decretos-Lei n.º 321/76,
de 4 de maio, n.º 618/76, de 27 de julho, n.º 354/77, de 30 de agosto,
e n.º 377/77, de 6 de setembro) e as discussões sobre
a constitucionalidade da figura do inquérito preliminar sob a direção do Ministério Público, entretanto criado pelo
Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de novembro, e alterado
pelo Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de setembro (vide, Rui Pinheiro/Artur
Maurício, em “Constituição e o Processo Penal”,
pág. 35-88, da 2.ª ed., do Rei dos Livros, Germano Marques da Silva, em “Da inconstitucionalidade do inquérito preliminar”, na Scientia Iuridica, tomo XXI, pág.
325, João Castro e Sousa, em “A tramitação do processo
penal”, e os Pareceres da Comissão Constitucional n.º 6, de 5 de maio de 1977, n.º 39, de 6 de outubro
de 1977, e n.º 49 de 23 de novembro de 1977,
publicados em “Pareceres da Comissão Constitucional”,
respetivamente nos vol. 1 e
4) conduziram a que na 1.ª Revisão Constitucional de 1982 se reformulasse o
texto do artigo 32.º, n.º 4, passando a nova redação
a facilitar uma leitura que restringisse essa exigência a uma fase instrutória
facultativa, sob a égide do contraditório, posterior a um inquérito
investigatório, onde apenas seria necessário que um juiz interviesse nos atos instrutórios que se prendessem diretamente
com direitos fundamentais, conferindo ao legislador ordinário inteira
liberdade para atribuir a outra entidade a direção da
investigação que precede a dedução da acusação (foi esta leitura que efetuaram, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.º
7/87, em ATC, 9.º vol., pág. 7, n.º 23/90, em 15.º vol., pág. 119, n.º 334/94, no BMJ n.º 436, pág. 96) , n.º 517/96, acessível em www.tribunalconstitucional.pt,
n.º 610/96, em ATC, 33.º vol, pág. 841, n.º 694/96,
acessível em www.tribunalconstitucional.pt, n.º
581/2000, em ATC, 48.º vol., pág. 587, e 395/2004, em
ATC, 59.º vol., pág. 595).
Esta
modificação permitiu, assim, ao legislador do Código de Processo Penal de 1987
atribuir, sem grandes resistências, ao Ministério Público, cujo estatuto
constitucional é o de uma magistratura autónoma, na qual vai implicada a
obrigação de se mover por critérios de objetividade e
imparcialidade, a competência para dirigir a investigação preliminar,
prevendo, contudo, a possibilidade de ser requerida uma posterior fase
instrutória, presidida por um Juiz de Instrução Criminal, de controlo do
despacho que encerra o inquérito.
Mas o disposto
no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, quanto aos atos
processuais que possam ofender direitos fundamentais de qualquer pessoa, também
exige a intervenção de um juiz, não só pelo seu estatuto de independência, mas
também pela sua distância relativamente à atividade
investigatória.
Assim, o
processo penal tem necessariamente de permitir a intervenção do Juiz de
Instrução Criminal em todos os atos instrutórios que possam
afetar negativamente direitos fundamentais, de modo a
cumprir-se a exigência contida no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição. Nesse
domínio, existe uma reserva de juiz até onde se revele necessária para proteção efetiva dos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos (sobre esta reserva de juiz, vide Anabela
Rodrigues, em “A jurisprudência constitucional portuguesa e
a reserva do juiz nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente
acusatória do processo penal, em “XXV anos de jurisprudência constitucional
portuguesa”, pág. 47 e seg., da ed. de
2009, da Coimbra Editora, e Fátima Mata-Mouros, em “Juiz das
Liberdades. Desconstrução de um mito do processo penal”, pág. 29 e seg, ed. de 2011, da Almedina).
Por isso,
embora a direção do inquérito seja da incumbência do
Ministério Público e não de um juiz, quando nesta fase se mostre necessário
praticar quaisquer atos instrutórios que possam
restringir severamente direitos fundamentais, deve ser um juiz a decidir a sua
realização, na sua veste de “juiz das liberdades”. Isto porque a independência
da magistratura judicial e o seu maior distanciamento em relação à atividade investigatória, lhe confere uma maior disponibilidade
funcional e psicológica para, com objetividade,
decidir os limites toleráveis do sacrifício dos direitos fundamentais em favor
do interesse da realização da justiça penal.
Na
interpretação normativa aqui sindicada está apenas em causa o reconhecimento ao
Ministério Público da competência para ordenar a separação de processos, na
fase de inquérito, sem necessidade de qualquer intervenção de um juiz, com o
fundamento que a conexão de processos representa um grave risco para a
pretensão punitiva do Estado para o interesse do ofendido ou do lesado (artigo
30.º, n.º 1, alínea b), do Código
de Processo Penal), ou quando essa conexão possa retardar excessivamente o
julgamento de qualquer dos arguidos (artigo 30.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal). Afastados deste julgamento
de constitucionalidade encontram-se os casos em que a separação de processos
visa assegurar direitos ou liberdades do arguido, designadamente o não
prolongamento da prisão preventiva, os quais se encontram abrangidos pela
previsão da alínea a) do n.º 1 do
artigo 30.º do Código de Processo Penal.
A separação de
processos na fase de inquérito apenas tem repercussões diretas
no âmbito do objeto da investigação de um determinado
processo penal, uma vez que com essa medida se retira desse âmbito determinada
factualidade com relevância criminal, a qual passa a ser investigada num outro
processo que, para esse efeito passa a correr autonomamente. Com esta decisão
apenas cessa a investigação conjunta de diferentes crimes, passando a
investigação dos mesmos a ser efetuada em processos
com uma tramitação independente. Mas o termo da unidade processual não
determina por si só qualquer medida que afete os
direitos fundamentais do arguido, podendo este continuar a exercer em todos os
processos todos os direitos de defesa que lhe assistem, incluindo o direito ao
recurso.
Se a separação
de processos pode resultar num acréscimo de incómodos ou no retardamento do
desfecho dos processos abertos na sequência da separação, há que ter presente
que não assiste ao arguido qualquer garantia constitucional no sentido da sua responsabilidade
criminal por diferentes comportamentos ser apurada conjuntamente, mantendo-se
a aplicação de todos os prazos que visam assegurar uma decisão definitiva em
tempo útil.
Por isso, se a
separação de processos pode não ser conveniente aos interesses estratégicos da
defesa do arguido, pelos mais variados motivos, não se vê de que forma possa
contender com o núcleo dos direitos, liberdades e garantias deste, de forma a
que seja constitucionalmente exigível que essa decisão tenha que ser tomada por
um juiz.
3.3. O
Recorrente quando refere que essa medida põe em causa o direito ao recurso,
implicitamente também acusa a interpretação sindicada de impedir que a própria
decisão que determina a separação de processos seja recorrível, o que
resultaria numa violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Uma vez que o
Tribunal Constitucional não está limitado na sua apreciação pelos parâmetros
constitucionais indicados pelo Recorrente (artigo 79.º - C, da LTC), cumpre dar
resposta a esta alegação.
Sendo
entendimento uniforme deste Tribunal que a garantia constitucional do recurso
não abrange todas as decisões tomadas no processo penal, mas apenas as decisões
penais condenatórias e as que tenham como consequência a privação ou restrição
da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais do arguido (vide,
neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 31/87,
178/88, 300/98, 216/99, 471/2000, 30/2001, 463/2002 e 235/10, todos acessíveis
em www.tribunalconstitucional.pt), aí não se incluindo,
como se acabou de se verificar, a decisão que determina a separação de
processos em fase de inquérito, também não se pode considerar que o critério
normativo sindicado viole esse direito constitucional do arguido.
3.4.
Sustenta ainda o Recorrente que a interpretação normativa sob fiscalização
viola o disposto no n.º 9, do artigo 32.º, da Constituição, segundo o qual “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja
competência esteja fixada em lei anterior”.
Consagra-se
neste preceito o princípio do juiz legal ou do juiz natural, que visa garantir
que nenhuma causa seja julgada por um tribunal criado ad hoc
para esse efeito ou por um tribunal designado discricionariamente, devendo essa
competência resultar da aplicação de normas orgânicas e processuais que contenham
regras dirigidas à determinação do tribunal que há de intervir em cada caso,
segundo critérios objetivos (vide, sobre o sentido e
alcance do princípio do juiz natural, Figueiredo Dias, em “Sobre o
sentido do princípio jurídico-constitucional do “juiz-natural”, na R.L.J., Ano 111.º, pág. 83-88,
e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 614/2003, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).
Na hipótese da
interpretação normativa sindicada, a possibilidade de o Ministério Público, na
fase de inquérito, determinar a separação de processos, não implica um
“desaforamento” arbitrário do juiz de instrução que já tenha sido chamado a
proferir alguma decisão no inquérito originário que contenda com o princípio
consagrado no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição.
É que, ainda
que seja o Ministério Público a decidir da separação de processos, é a própria
lei que fixa os critérios objetivos que poderão
fundamentar tal separação, bem como o tribunal com competência para conhecer
dos processos separados (critérios esses que são precisamente os mesmos no caso
de a decisão ser proferida pelo juiz de instrução criminal).
A
possibilidade conferida ao Ministério Público de, na fase de inquérito,
determinar a separação de processos, não implica, pois, a criação de um
tribunal ad hoc, nem a manipulação arbitrária
das regras processuais ou de repartição de competência entre tribunais,
resultando a eventual alteração do
juiz de instrução criminal competente para intervir na fase de investigação da
aplicação das regras gerais e abstratas definidoras
da competência funcional dos diversos tribunais que integram a organização
judiciária portuguesa, e não de uma qualquer determinação discricionária para
intervir em determinado processo, pelo que não se mostra violada a proibição
contida no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição.
3.5.
Entende ainda o Recorrente que a interpretação normativa aplicada pela decisão
recorrida viola o disposto no artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, que reserva
ao juiz o exercício das funções materialmente jurisdicionais, cabendo-lhe
assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
cidadãos.
Segundo este
preceito constitucional “Na
administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos
e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da
legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e
privados”.
Conforme referem
Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada,
Volume II, pág. 508-509, da 4.ª Edição Revista, da Coimbra Editora):
«diferentemente do que acontece noutros ordenamentos constitucionais, a função
de dizer o direito em nome do povo é atribuída pela CRP, aos tribunais e não
aos juízes. A função jurisdicional pertence, porém, aos juízes, sendo os
tribunais (nos quais se incluem magistrados do Ministério Público, funcionários
judiciais administrativos, gestores judiciais) esquemas indispensáveis ao
exercício da jurisdictio pelo juiz. Tribunal terá
aqui um sentido jurídico-funcional – daí a epígrafe
«função jurisdicional» - conexionada com um sentido
inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material («jurisdictio»
como atividade do juiz materialmente caracterizada).
(…) Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (artigo 202º-1) a
Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos
tribunais só os juízes poderão ser chamados a praticar atos
materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função
jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a
determinadas entidades (magistrados) que atuam
estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade,
imparcialidade)».
Sem
necessidade de previamente se efetuar uma delimitação
doutrinária dos atos que se consideram integrar a
reserva do juiz na atividade jurisdicional,
facilmente se constata que, se a nossa Constituição permite, como acima se evidenciou,
a atribuição da direção da fase de investigação
preliminar em processo penal ao Ministério Público, a decisão de separação de
processos nessa fase não pode ser considerado um ato que exija a sua autoria
por um juiz.
Avaliar se
subsistem as vantagens de uma investigação conjunta de uma pluralidade de
crimes ou se as finalidades visadas com a conexão de processos justificam o
eventual comprometimento de interesses dos assistentes e lesados, ou possam
provocar algum retardamento do julgamento dos arguidos dentro dos prazos
legalmente previstos, é um juízo que se compreende ainda nas opções estratégicas
da atividade de investigação criminal da qual o
Ministério Público se encontra incumbido.
Daí que se possa dizer que, tal ato, assim
como aqueles que anteriormente determinaram a investigação no mesmo processo de
diversas realidades com relevância criminal, insere-se naturalmente nos
poderes de direção do inquérito e gestão do processo
em fase de inquérito, não lhe assistindo nenhuma característica especial que
exija a intervenção obrigatória de um juiz, pelo que também carece de fundamento
a acusação que a interpretação sob fiscalização viola o disposto no artigo
202.º, n.º 2, da Constituição.
3.6.
Nestes termos, não é de considerar incompatível com as normas constitucionais
invocadas pelo Recorrente a interpretação conjugada dos artigos 30.º, n.º 1, b)
e c), 264.º, n.º 5, e 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal,
quando interpretados no sentido de que o
Ministério Público tem competência para, em fase de inquérito, determinar a
separação processual com fundamento nas razões previstas nas alíneas b) e c),
do artigo 30.º, do Código de Processo Penal, quando o Juiz de instrução foi já
chamado a aí tomar decisões.
Deve, assim,
este recurso ser julgado improcedente porque não se vislumbrar que a
interpretação normativa aqui fiscalizada viole qualquer parâmetro
constitucional.
Decisão
Nestes termos,
decide-se:
a) Não julgar
inconstitucionais as normas constantes dos artigos 30.º, n.º 1, alíneas b) e c), 264.º, n.º
5, e 269.º, n.º 1, alínea f), do Código
de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que o Ministério Público
tem competência para, em fase de inquérito, determinar a separação processual
com fundamento nas razões previstas nas alíneas b)
e c), do artigo 30.º, do Código de
Processo Penal, quando o Juiz de instrução foi já chamado a aí tomar decisões.
b)
Consequentemente, negar provimento ao recurso interposto para o Tribunal
Constitucional por A., do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido
nestes autos em 29 de março de 2011.
Custas pelo
Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os
critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de janeiro de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa
Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.