ACÓRDÃO
Nº 481/2010
Processo n.º 506/09
2ª
Secção
Relator:
Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal
Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Tributário de Lisboa, em
que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso de
constitucionalidade, da sentença daquele Tribunal, nos seguintes termos:
«(…)
O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea a) do n.°
1 do artigo 70.° e alínea a) do n.° 1 e n.° 3 do artigo 72.° da mencionada Lei do Tribunal
Constitucional, e
Visa:
A apreciação da inconstitucionalidade da
norma que se extrai do artigo 7.º-A do Regime Jurídico das Infracções Fiscais
não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 20-A/90,
de 15 de Janeiro na redacção dada pelo Decreto-Lei n.°
394/93, de 24 de Novembro e do art. 8.º do Regime Geral da Infracções
Tributarias, aprovado pela Lei n.° 15/2001, de 5 de
Junho, respectivamente, no segmento relativo à responsabilidade subsidiaria dos
administradores, gerentes e outras pessoas, em relação ao pagamento de coimas
aplicadas à sociedade.»
2. Notificado o representante do Ministério Público junto deste
Tribunal Constitucional para esclarecer o objecto do recurso veio dizer o
seguinte:
«1.º
Embora pelo parecer emitido pelo Ministério
Público (fls. 84 e 85) fossemos levados a crer que estaria apenas em causa o
artigo 7.º-A do RGIFNA, a decisão é clara ao dizer que os “preceitos que se
consideram inconstitucionais, são os artigos 7.º-A do RGIFNA e o artigo 8.º do
RGIT.”
2.º
Pela análise de jurisprudência do Supremo
Tribunal Administrativo em que se funda a decisão recorrida, parece-nos que
constituirá objecto do recurso a questão de inconstitucionalidade das normas
dos artigos 7.º-A do RGIFNA e 8.º do RGIT na parte em que se referem à
responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes pelos
montantes correspondentes às coimas aplicadas às pessoas colectivas em processo
de contra-ordenação.»
3. Por despacho de fls. 126 foram as partes notificadas para
alegar, coma advertência de que o objecto do recurso se cinge à norma do artigo
7.º-A do RJIFNA, no segmento apontado, por manifestamente ser a única em causa
no âmbito deste processo, por força da aplicação dos critérios de vigência
temporal.
4. O recorrente apresentou alegações
onde conclui o seguinte:
«1.º
A norma do artigo 7.º-A do Regime Jurídico
das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
20-A/90, de 15 de Janeiro, na parte em que se refere à responsabilidade civil
subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às
coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal,
não viola os princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência
do arguido, consagrados no n.º 3 do Artigo 30.º e no n.º 2 do artigo 32.º da
Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
2.º
Termos em que deverá proceder o presente
recurso.»
5. O recorrido não contra-alegou.
II - Fundamentação
6. Constitui objecto do presente recurso a apreciação da
constitucionalidade da norma do artigo 7.º-A do Regime Jurídico das Infracções
Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de
Janeiro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de
Novembro) na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos
administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas
a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal.
A norma em questão estabelece o seguinte:
«ARTIGO
7.º-A
Responsabilidade civil subsidiária
1 - Os administradores, gerentes e outras
pessoas que exerçam funções de administração em pessoas colectivas e entes
fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis, em caso de
insuficiência do património destas, por si culposamente causada, nas relações
de crédito emergentes da aplicação de multas ou coimas àquelas entidades
referentes às infracções praticadas no decurso do seu mandato.
2 - Se forem várias as pessoas responsáveis
nos termos do número anterior, é solidária a sua responsabilidade.»
A sentença recorrida julgou parcialmente procedentes os autos de
oposição à execução fiscal deduzidos por A., tendo-o, além do mais, absolvido
do pedido executivo quanto às coimas, pelas quais este vinha responsabilizado
como gerente da sociedade “B., Lda.”. Para o efeito, considerou que a
“responsabilidade subsidiária, quer no domínio do RJIFNA, quer no domínio do
RGIT, é inconstitucional”.
A sentença é absolutamente omissa quanto aos fundamentos de tal
juízo. Limita-se a invocar, nesse sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal
Administrativo de 12/03/2008 e de 28/05/2008. Vendo nessa citação uma remissão
integradora, é de considerar que os fundamentos da decisão são os que constam
destes arestos.
Deles se deduz que o
fundamento onde basicamente se alicerça este juízo de inconstitucionalidade é a
violação da regra da intransmissibilidade da responsabilidade penal, consagrada
no artigo 30.º, n.º 3, da CRP, regra tida por extensível à responsabilidade contra-ordenacional. Adicionalmente, são referidos como
violados o princípio da presunção de inocência (artigo 30.º, n.º 2, da CRP), a
garantia dos direitos de audiência e de defesa do arguido (artigo 30.º, n.º 10,
da CRP), e, através da citação de uma posição doutrinal, o princípio da
necessidade de qualquer restrição a direitos fundamentais (artigo 18.º, n.º 2,
da CRP).
7. A questão da invocada violação da proibição contida no artigo
30.º, n.º 3, da CRP só ganha corpo se dermos previamente por assente que o
artigo 7.º-A do RJIFNA estabelece um mecanismo de transmissibilidade de
responsabilidade de natureza contra-ordenacional. Se
assim não for, a solução legal coloca-se, à partida, fora do âmbito de previsão
e de protecção do preceito constitucional, sem qualquer possibilidade de
afectação do bem por ele tutelado.
Esta é uma autêntica questão prévia, que, como tal, deve ser
enfrentada e decidida com anterioridade em relação a todas as demais que a
questão de constitucionalidade posta suscita.
8. Diga-se, desde já, que se reveste de um elevado grau de problematicidade uma reconstrução dogmática da norma
impugnada coerente com a qualificação constante da epígrafe, de
“responsabilidade civil subsidiária”.
Esta qualificação foi tida como traduzindo apropriadamente o
alcance do enunciado normativo do n.º 1 do artigo 7.º-A do RJIFNA no Acórdão
n.º 150/2009, reiterando uma posição já expendida no Acórdão n.º 129/2009, a
propósito de questão semelhante, suscitada pelas alíneas a)
e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT
(Regime Geral das Infracções Tributárias).
Lê-se naquele primeiro Acórdão:
«Efectivamente, não é aqui menos evidente do que era na norma
apreciada nesse outro acórdão a natureza civilística da responsabilidade em
causa, ou seja, que se trata de efectivar uma responsabilidade de cariz ressarcitório, fundada numa conduta própria, posterior e
autónoma relativamente àquela que motivou a aplicação da sanção à pessoa
colectiva. O chamamento do terceiro a responder pela quantia que não foi
possível obter mediante execução do património do primitivo devedor resulta de
ser imputada a uma sua conduta culposa a não satisfação das “relações de
crédito emergente da aplicação de multas ou coimas” às pessoas colectivas e
entes fiscalmente equiparados a que a sanção foi aplicada. Não é a sanção
aplicada pelo ilícito contra-ordenacional que se
transmite, mas a responsabilidade culposa pela frustração da satisfação do
crédito correspondente que se efectiva contra o gerente ou administrador que,
incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade
efectuasse o pagamento da coima em que estava definitivamente condenada e
deixou criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para
assegurar a cobrança coerciva».
A atribuição de natureza civilística à responsabilidade dos
administradores abre as portas e justifica uma leitura do preceito no sentido
de que não se tem em vista uma responsabilidade pelo cometimento, em si mesmo,
da infracção tributária, mas antes uma responsabilidade pela causação culposa
de uma situação de insuficiência do património das pessoas colectivas obrigadas
ao pagamento da multa ou coima, situação a que é imputável a não satisfação do
crédito emergente da aplicação dessas medidas punitivas. Os administradores e
equiparados são responsabilizados por facto próprio (como
não pode deixar de ser, tratando-se de uma responsabilidade subjectiva), não
coincidente com o facto gerador da sanção pecuniária, com esta conexionada
apenas porque impossibilitante do pagamento da
prestação a que, pela infracção cometida, a pessoa colectiva ficara vinculada.
Estaríamos em face de duas relações, de fonte e natureza
distintas: uma, tendo por sujeito passivo a pessoa colectiva e por objecto o
dever de prestar a importância correspondente à coima, dever constituído em
decorrência da violação de uma obrigação tributária; uma outra, consistente num
vínculo de responsabilidade, activado em caso de incumprimento daquele dever,
por força da insuficiência do património do devedor, culposamente causada pelo
administrador responsável. À dualidade de sujeitos corresponderia uma dualidade
de relações obrigacionais, sendo que uma se constitui como eventual sucedâneo
da outra, pois o seu nascimento está condicionado à verificação, em processo
executivo, da impossibilidade, imputável a uma conduta faltosa do
administrador, de realização coerciva do débito que recai sobre a pessoa
colectiva acoimada.
A interposição do conceito de dano marca a linha de diferenciação
entre as duas relações. A ele se chega por um percurso de causalidade em
cadeia: o não pagamento da coima é devido a insuficiência do património e este
é causado por actuação culposa do administrador. Sobre este recai então o dever
de indemnizar as consequências danosas desta conduta, traduzidas na não
percepção, pela Administração, da importância monetária devida a título de
coima. A efectivação da responsabilidade dos administradores remove esse dano,
na medida em que faz entrar nos cofres do Tesouro o que este auferiria com o
cumprimento do dever de pagar a coima.
Nesta visão dual, de diferenciação dos factos constitutivos e de
títulos de chamamento à responsabilidade dos dois sujeitos sucessivamente
obrigados, não há lugar para a aceitação da ocorrência de um fenómeno de
transmissão, já que este pressupõe, no rigor dos termos, uma modificação
subjectiva, uma sucessão na titularidade de um direito ou de uma obrigação, no
âmbito de uma relação que não perde, por isso, a sua identidade.
9. A qualificação da responsabilidade dos administradores como civil permite, pois, resolver facilmente, em sentido
negativo, a questão da ocorrência de um fenómeno de transmissão, na medida em
que acentua e estabelece com nitidez máxima a diferenciação das situações debitórias da pessoa colectiva que cometeu a infracção e a
dos administradores que podem ser chamados a responder: enquanto que a
responsabilidade da pessoa colectiva é de cariz sancionatório, a dos
administradores configura-se como puramente civilística, com função e natureza ressarcitórias.
Mas esta construção interpretativa da solução estatuída no artigo
7.º-A da RJIFNA, à luz da qualificação constante da epígrafe, não é
incontroversa, podendo legitimamente questionar-se a adequação dessa
qualificação à substância real do mecanismo de substituição debitória
consagrado no corpo do preceito.
Na verdade, a dissociação total entre
responsabilidade pela violação do dever tributário e responsabilidade pelo não
pagamento do montante sancionatório correspondente parece algo artificial e de
sentido precário, desmembrando uma posição subjectiva que forma uma unidade
conceptual e vital — Nuno Brandão, pronunciando-se sobre o lugar paralelo do
artigo 11.º, n.º 9, do Código Penal (responsabilidade subsidiária dos
administradores pelo pagamento de multas e indemnizações em que a pessoa
colectiva for condenada), não poupa palavras críticas, considerando que «esta
distinção não é aceitável e constitui uma autêntica burla de etiquetas, ao
travestir de responsabilidade pelo cumprimento da sanção aquilo que na
realidade é uma autêntica transmissão da responsabilidade penal, ainda que
operada por via legal» (“O regime sancionatório das pessoas colectivas na
revisão do Código Penal”, Direito penal económico e
europeu: textos doutrinários, III, Coimbra, 2009, 461 s., 469).
Na realidade dos efeitos prático-jurídicos,
o Estado vai conseguir, por via indirecta, através do património de sujeitos
não vinculados pela obrigação que, em termos sancionatórios, a coima
consubstancia, a cobrança do débito correspondente. Chamando à colação o
incumprimento de deveres funcionais perante um outro credor (a pessoa
colectiva), a Administração Tributária, apoiando-se numa justificação de
causalidade indirecta ou consequencial, para imputação de responsabilidade a um
sujeito alheio à relação que dera origem à coima, vai obter o mesmo que obteria
no caso de a prestação desta ser cumprida pela pessoa colectiva vinculada ao
seu pagamento ou coercitivamente obtida à custa do seu património. “Forçando” a
relatividade estrutural das relações de crédito, a Administração credora vai
buscar ao modo como se desenrolou uma outra relação de que não é parte a
justificação causal para a satisfação do seu crédito por um terceiro, parte
passiva nessa outra relação.
Dever de prestar e dever de indemnizar confundem-se aqui, tanto
mais que estamos perante uma obrigação pecuniária, susceptível, por natureza,
de execução específica. Através do chamamento à responsabilidade dos
administradores, o Estado faz valer a coercibilidade do direito insatisfeito à
prestação da coima, removendo, desse modo, o facto antijurídico que o seu
incumprimento representa e realizando, em pleno e em espécie, o seu interesse
creditório.
10. Em face deste resultado, está naturalmente criada uma forte
aparência de um fenómeno de transmissibilidade da responsabilidade pelo
pagamento da coima. Por detrás do “biombo” da responsabilidade dos
administradores pela insuficiência do património da pessoa colectiva, estaria a
assunção, por aqueles, da posição de responsabilidade que a esta cabia, na
relação com a Administração.
E convém frisar que a
formulação do enunciado da norma em análise não rejeita, antes permite
sustentar esta construção. Na verdade, o que nele se diz é que os
administradores e equiparados “são subsidiariamente responsáveis […] nas
relações de crédito emergentes da aplicação de multas ou coimas […]”. Isto é,
em caso de insuficiência do património das pessoas colectivas, por eles
culposamente causada, os administradores passam a figurar como sujeitos
passivos nas relações de crédito que têm as multas e coimas por objecto, com a
responsabilidade inerente.
O texto do artigo 8.º da RGIT, que sucedeu à norma em análise,
sugere igualmente esta leitura do alcance da responsabilização que se faz
recair sobre administradores e gerentes. Quer na epígrafe, quer em várias das
suas normas, o que se estabelece é directamente a responsabilidade civil por
multas ou coimas, sem a mediação de qualquer outro débito, de outra natureza e
objecto.
E a colocação da obrigação no plano da responsabilidade não
introduz qualquer quebra de nexo com o dever de pagar a coima, tendo por efeito
a pretendida deslocação do regime para um terreno puramente civilístico de
reparação de danos. Ela justifica-se apenas em atenção à fase de
desenvolvimento da relação em que se situa o chamamento dos administradores. Já
estamos num momento de exercício da acção creditória e de execução forçada,
consequente à falta de cumprimento pelo devedor primitivo. Já se constatou que
este não pagou, nem pode pagar, por insuficiência de meios. A posição debitória assumida pelos administradores configura-se então
necessariamente como de responsabilidade - entenda-se, de responsabilidade
patrimonial, a que cabe a qualquer devedor numa relação jurídica,
traduzida na sujeitabilidade dos seus bens à
execução.
Nesta construção, é no quadro unitário da relação que nasce com a
imposição da coima que se inscreve a responsabilidade dos administradores. Com
o não cumprimento do dever de a pagar não surge uma nova relação creditória
(como aconteceria se estivéssemos perante uma responsabilidade
extracontratual), tendo os administradores por sujeitos passivos. O vínculo de
responsabilidade acompanha e garante, em estado de latência, a obrigação de
pagar a coima, desde o seu início. O incumprimento dessa obrigação apenas
activa essa responsabilidade, dando título à execução do património do devedor
(pessoa colectiva). A insuficiência do património deste, quando imputável aos
administradores, legitima, por sua vez, o seu chamamento à responsabilidade,
dando-se continuidade ao processo, através do mecanismo da reversão.
E o regime processual correspondente a esta figura reforça a nota
de que estamos perante uma efectivação da responsabilidade indissociavelmente
ligada ao dever de pagar a coima. Não se exige a formação de novo título
executivo, com base no vínculo que estrutura uma outra relação, autónoma em
face da relação tributária de que emergiu aquele dever. É o mesmo título,
aquele de que consta a obrigação (incumprida) de pagar a coima, que continua a
ser processado, fundando a agressão do património dos administradores. A
causação, a estes imputável, da insuficiência patrimonial da pessoa colectiva é
apenas uma condição (no sentido preciso de facto sem o qual um determinado
efeito se não produz) adicionalmente requerida para que tenha lugar a assunção,
pelos administradores, da responsabilidade que não foi possível efectivar
contra a pessoa colectiva.
11. Acresce que, a admitir-se que a mudança dos sujeitos
responsáveis vem acompanhada por uma mudança da natureza da responsabilidade,
então também é forçoso admitir que não são atingidos os fins que justificam a
imposição da coima. De facto, e ainda que similares quanto à estrutura e
objecto, os dois vínculos divergem, nesta óptica, quanto à função, não podendo,
por falta de homologia funcional, a responsabilidade
dos administradores substituir-se à da pessoa colectiva, “fazer as vezes”
desta, como um mecanismo subrogatório da que se
traduz, a título sancionatório, no pagamento da coima.
Responsabilidade contra-ordenacional e
responsabilidade civil não são sobreponíveis, preenchem distintos espaços de
imputação de condutas lesivas de valores juridicamente tutelados, resultam de
ilícitos de natureza distinta, pelo que a responsabilidade civil não pode ser
actuada subsidiariamente, em consequência da frustração da responsabilidade contra-ordenacional, para satisfazer, por via
indirecta, os fins próprios desta.
Na responsabilidade contra-ordenacional,
a vinculação ao pagamento de uma importância monetária, a título de coima, tem
carácter instrumental da realização de fins de outra natureza, de reafirmação
da ordem de condutas desrespeitada, de sanção ao agente por se ter desviado dos
deveres decorrentes do exercício de determinada actividade social e de
dissuasão de práticas futuras contra-ordenacionais. A
sua função é puramente sancionatória e preventiva.
Já a responsabilidade civil visa a reposição de um equilíbrio
patrimonial afectado por um facto danoso. Através da efectivação do crédito
indemnizatório, ingressa na esfera do lesado, à custa do lesante, um valor
correspondente à perda ou frustração de ganho, assim se eliminando o dano
sofrido. A transferência patrimonial, em si mesma, satisfaz a finalidade primária
da responsabilidade civil: a reparação de um dano.
Dados os distintos fundamentos e fins dos dois sistemas de
responsabilidade, é problemático ver no não pagamento da coima um prejuízo
patrimonial configurável como um dano de natureza civil, indemnizável ao abrigo
da correspondente responsabilidade. Se o fim da coima não era a obtenção de uma
receita (mas a imposição de um sacrifício económico, com fins repressivos e
preventivos), dificilmente se pode considerar que o não pagamento (ainda que
associado a outros factores) gera um dano enquadrável, como um dos seus
pressupostos, na responsabilidade civil.
Contra essa visão patrimonialista da
responsabilidade contra-ordenacional se pronunciou
João Matos Viana (“A inconstitucionalidade da responsabilidade subsidiária dos
administradores e gerentes pelas coima aplicadas à sociedade. Comentário ao
Acórdão do STA, de 4 de Fevereiro (processo n.º 0829/08) e ao Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 129/2009, de 12 de Março”, Finanças
Públicas e Direito Fiscal, ano II (2009), 199 s., 206), em termos
que, a nosso ver, não merecem contestação:
«Ainda que o produto da coima, actualmente, possa assumir uma
importância relevante nos orçamentos das autoridades administrativas (o que é
legítimo e tem cobertura legal), a “coima”, enquanto figura jurídico-sancionatória
(enquanto figura repressiva), com finalidades de advertência social, legitimada
pela censura de uma culpa funcional, deve estar desligada da lógica
economicista da mera garantia de obtenção de receita».
Em suma: não pode haver responsabilidade civil onde não estejam
presentes todos os pressupostos que lhe dão
nascença, designadamente o dano, cuja reparação constitui a razão de ser e a
finalidade primária da figura. Não satisfaz esse requisito, em nosso juízo, e
não obstante a qualificação legal, o regime aqui presente.
12. O fenómeno da responsabilidade civil conexa à criminal, de
verificação corrente, não infirma, antes confirma, o que acaba de ser dito.
Na verdade, essa situação distingue-se bem da aqui em análise.
A responsabilidade civil conexa à criminal configura-se como uma
cumulação de responsabilidades, derivada da circunstância de o mesmo facto
lesar um bem jurídico-criminalmente tutelado e um bem
protegido pelas normas de imputação da responsabilidade civil. Sendo assim, só
pela activação simultânea de ambas as responsabilidades se satisfazem os
valores e os interesses que fundam cada uma delas.
Na responsabilidade, dita civil, que recai sobre os
administradores e gerentes por lhes ser imputável uma situação de insuficiência
patrimonial da pessoa colectiva, causadora do não pagamento de uma coima em que
esta fora condenada, o mecanismo da responsabilidade surge, inicialmente, pela
lesão de um único bem, que desencadeia a aplicação da coima, no quadro da
responsabilidade contra-ordenacional. Em caso de
pagamento da coima, nesta se esgota a reacção à infracção cometida, com
satisfação plena das razões que a justificam. É em face do incumprimento
daquele dever e da constatação da inviabilidade da sua execução forçada que a
Administração, ainda que lançando mão de uma imputação distinta da que servira
de base à responsabilização da pessoa colectiva, vincula os administradores a
um débito de responsabilidade, tendo por objecto o valor patrimonial da coima não
paga.
Isto é, a responsabilidade, ainda que qualificada como civil, não
nasce autonomamente, à partida, pela verificação simultânea dos seus
pressupostos conjuntamente como os da responsabilidade contra-ordenacional.
Está umbilicalmente ligada a esta, só surgindo sequencialmente, a título
subsidiário, em razão da impossibilidade de satisfação, pelo património do
devedor originário, da coima em que a responsabilidade contra-ordenacional
se traduz. Não é em consequência do mesmo facto primário de responsabilização,
de projecção lesiva bifrontal, tanto no plano da
responsabilidade contra-ordenacional, como no da
responsabilidade civil, que esta nasce. É antes a impossibilidade de
efectivação da responsabilidade que recai sobre a pessoa colectiva que leva a recorrer,
para garantir a produção de um mesmo resultado patrimonial, à responsabilidade
civil, posta a cargo de um outro sujeito, chamado a responder em função da sua
actuação sobre o património do devedor da coima.
É justamente esta colocação da responsabilidade na dependência da
falência do processo executivo do pagamento da coima (processo onde se constata
a insuficiência do património das pessoas colectivas) que distancia o regime do
artigo 7.º-A do RJIFNA do figurino da responsabilidade civil conexa com a
criminal. Não estamos perante duas responsabilidades que correm em paralelo,
conexionadas apenas pela identidade do facto responsabilizador e do sujeito
responsável. Estamos perante a imputação de responsabilidade a uma certa
categoria de sujeitos para suprir a inoperatividade
prática da responsabilidade contra-ordenacional que
recaía sobre a pessoa colectiva em falta.
13. Essa ligação genética
comprova, em nosso juízo, que, com a imputação de responsabilidade aos
administradores, não há qualquer desvio dos fins da relação que funda a
execução: a relação de crédito emergente da aplicação de multas ou coimas pela
prática de uma infracção contra-ordenacional. O que
resulta da norma desaplicada, em correspondência com o seu teor literal, é a
imposição aos administradores de uma posição de responsabilidade nas relações de crédito nascidas pela prática de uma infracção contra-ordenacional e
tendo por objecto as multas ou coimas respectivas,
não o surgimento de uma outra relação, dotada de natureza, objecto e fins
próprios. com aqueles sujeitos por sujeitos passivos. É a satisfação das
finalidades repressivas e preventivas dessas sanções que continua a estar na
mira do legislador — “carácter marcadamente sancionatório” atribui Saldanha
Sanches à responsabilidade tributária subsidiária, prevista no lugar paralelo
do artigo 24.º da LGT (Manual de direito fiscal,
3.ª ed., Coimbra, 2007, 270). A responsabilização dos administradores e
gerentes funciona ainda na órbita funcional da relação contra-ordenacional,
como garantia suplementar de cumprimento dos deveres que, nesta, impendiam
sobre a pessoa colectiva, perante a Administração.
A alteridade de sujeitos não obsta a
este entendimento, dada a relação de representação orgânica
que une as pessoas físicas responsabilizadas e a pessoa colectiva vinculada
àqueles deveres. Em face desta, os administradores e equiparados não são
quaisquer terceiros, mas sujeitos que integram os seus órgãos cimeiros. Como constructum jurídico, a
pessoa colectiva, sem deixar de ser um centro de imputação jurídica autónomo,
age necessariamente através da actividade dos indivíduos que compõem os seus
órgãos. Dada essa relação interna, estes não podem ser vistos simplesmente como
um “outro”, como sujeitos alheios à estrutura orgânica e operativa da pessoa
colectiva. É da sua conduta, da forma como cumprem as funções de direcção e de
execução que lhes cabem, que vai depender a actuação deste ente, designadamente
quanto ao cumprimento de deveres perante a Administração Pública.
Por isso mesmo, a responsabilização
dos administradores pode ser considerada um instrumento auxiliar de consecução
dos objectivos repressivos e preventivos associados às multas e coimas. A
possibilidade legal de verem o seu património afectado, em caso de não
cumprimento, pela pessoa colectiva, dos débitos emergentes dessas sanções, é
uma instigação suplementar para que os administradores actuem, no âmbito da sua
função gestionária, de forma a que a pessoa colectiva mantenha uma situação
patrimonial solvente, propiciadora da satisfação voluntária dessas obrigações,
ou, pelo menos, da sua realização coactiva, por via da execução.
E é justamente atendendo à relação muito particular entre a pessoa
colectiva e a pessoa física que nela exerce funções de administração que os fins
que justificam a coima podem ser ainda alcançados com a imposição do seu
pagamento a este último sujeito, apesar de ele não ser o autor da infracção que
subjaz a essa sanção. Por isso, a adequação e a necessidade da medida não podem
ser postas em causa.
14. Mas, se assim é, se a responsabilidade dos administradores se
pode justificar como uma garantia adicional de satisfação dos fins das medidas
sancionatórias em causa, mostrando-se funcionalmente adequadas a atingi-los,
cumpre indagar se tal não tem como consequência inevitável o admitir-se que
estamos perante uma transmissão da responsabilidade contra-ordenacional.
A responsabilidade dos administradores é também qualificada, pela
norma em causa, como responsabilidade
subsidiária. A designação pode admitir-se, como conotação da forma
como se articulam entre si as duas responsabilidades, a que vincula a pessoa
colectiva e a que vincula os administradores. O nascimento da segunda está
dependente da não satisfação do direito do credor no seio da primeira, pelo que
esta situação funciona como uma espécie de pressuposto negativo da constituição
da responsabilidade que passa a recair (ou a recair também) sobre os
administradores, já que estes são chamados a responder na decorrência da
constatada impossibilidade de realização coactiva, à custa do património do
devedor originário, da obrigação de pagar a multa ou coima.
Mas há que atentar nos termos precisos em que se processa essa
responsabilidade. Ela não se activa apenas por força daquela vicissitude,
ocorrida na esfera jurídica do devedor em falta. De facto, não basta a
insuficiência patrimonial do devedor originário para que o devedor subsidiário
seja chamado à responsabilidade, como é timbre de um regime de subsidiariedade
autêntica. A isso tem que acrescer, como pressuposto necessário, um facto da
autoria do devedor subsidiário e a ele imputável: a causação culposa da
situação obstativa da satisfação do crédito emergente da multa ou coima. É esse
dado que justifica que os administradores, ainda que não vinculados ao dever de
pagar a coima, sejam responsabilizados pela não realização do crédito
correspondente, em sede da execução movida, a título primário, contra o
devedor.
Como acentua o Acórdão n.º 129/2009 — e independentemente da
qualificação da responsabilidade por que opta —, é, pois, absolutamente certo
que os administradores e gerentes respondem apenas quando verificado um facto
próprio, autónomo em relação à infracção contra-ordenacional,
com base “num comportamento pessoal”. Ainda que como condição primeira da
situação de responsabilidade esteja a impossibilidade de efectivar as
consequências sancionatórias dessa infracção, contra a pessoa colectiva que a
cometeu, na génese última dessa situação releva, como factor adicional sine qua non, uma conduta própria,
determinante daquela impossibilidade.
Não há, assim, a automática transposição, sem mais, para a esfera
de um sujeito, da responsabilidade inicialmente gerada na esfera de um outro,
por força de factores exclusivamente atinentes à esfera jurídica deste último.
A norma não põe a cargo dos administradores uma responsabilidade por factos
alheios à sua esfera de domínio e de actuação voluntária. Antes os vincula ao
pagamento de um débito para cuja insatisfação foi causalmente determinante uma
conduta pessoal culposa.
Este requisito, se não
permite, em nosso entender, a “conversão” do valor patrimonial da coima em
“dano” (como frustração da aquisição de um valor patrimonial pelo credor), com
a consequente qualificação da responsabilidade como “responsabilidade civil”,
autonomiza-a suficientemente, evidenciando que estamos perante uma
responsabilidade com um fundamento não inteiramente coincidente com o da
originária.
O chamamento do gerente ou administrador à responsabilidade não se
dá por força dos mesmos factores de imputação que conduziram à responsabilidade
da pessoa colectiva, meramente redireccionados, por um mecanismo de
transmissão, para a esfera debitória daquele sujeito.
Dá-se porque esse sujeito «incumprindo deveres
funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade efectuasse o
pagamento da coima em que estava definitivamente condenada e deixou criar uma
situação em que o património desta se tornou insuficiente para assegurar a
cobrança coerciva» (Acórdão n.º 150/2009).
Daí que esteja assegurada a conexão da sanção com a prática de
actos ou omissões por aqueles que a sofrem, mesmo que se admita, na esteira do
que acima defendemos, uma comunhão de natureza das duas responsabilidades, o
que implica atribuir natureza sancionatória também à que recai sobre os
administradores. As consequências sancionatórias a que os administradores ficam
sujeitos poderiam ter sido por eles evitadas, mediante práticas de gestão não
culposas.
Ora, quando carregado com o
sentido valorativo adveniente do princípio da pessoalidade das
penas que o informa, o conceito de transmissão não abrange situações deste
tipo. Não dispensando a solução em juízo, como elemento da matriz de imputação
da responsabilidade, um pressuposto ligado à conformação, por vontade própria,
da actuação do sujeito subsidiariamente responsável, ela satisfaz
suficientemente, quanto aos pressupostos da
responsabilidade, o princípio da pessoalidade, não comprometendo os
valores que lhe subjazem.
15. Mas, se assim é quanto ao fundamento da responsabilidade, o
mesmo não se pode dizer quanto ao seu objecto.
De facto, se a culpa imputável ao responsável é condição do
nascimento da situação de responsabilidade, ela é inteiramente desconsiderada
na determinação da sanção aplicável. Na concretização da medida da coima, é
completamente ignorado aquele factor atinente à pessoa do responsável,
sendo-lhe aplicado o montante sancionatório que resultara da valoração da
conduta de um outro sujeito, devedor originário. A responsabilidade do
revertido não é graduável em função das circunstâncias que lhe dizem
pessoalmente respeito, como a modalidade de culpa, a sua gravidade, a sua
situação económica.
O regime processual da reversão associado a esta imputação de
responsabilidade não faz mais do que confirmar, com evidência reforçada, o que,
no respeitante ao objecto da responsabilidade,
já resulta do enunciado normativo do artigo 7.º-A do RJIFNA. A responsabilidade
dos administradores pressupõe que, em momento anterior, tenha sido estabelecida
a responsabilidade contra-ordenacional da pessoa
colectiva, com aplicação de uma coima ou multa. Esta decisão punitiva da
Administração Tributária faz nascer uma relação de crédito, tendo por sujeito
passivo a pessoa colectiva em falta e por objecto a prestação pecuniária em que
se traduz qualquer daquelas sanções. O montante em dívida é, naturalmente,
fixado por factores exclusivamente atinentes à esfera do autor da infracção. A
responsabilidade dos administradores constitui-se posteriormente, quando se
constata, no decurso da execução movida contra o devedor originário, a
“insuficiência do património” deste, culposamente causada pelos
administradores. É para esta situação que o artigo 7.º-A estatui a
responsabilidade subsidiária destes sujeitos “nas relações de crédito emergentes
da aplicação de multas ou coimas àquelas entidades” [as pessoas colectivas]. Ao
enunciar, nestes termos, a responsabilidade dos administradores, a norma está a
prescrever que o quantitativo que lhes vai ser exigido (seja qual for o modo
processualmente operativo dessa imposição) é o da multa ou coima a que estava
sujeita a pessoa colectiva. Ter responsabilidade patrimonial numa relação de
crédito não pode, na verdade, significar outra coisa que não seja ficar
obrigado à satisfação desse crédito. E o crédito em causa é o que tem por
objecto as coimas ou multas aplicadas à pessoa colectiva.
Deste ponto de vista, do ponto de vista do objecto da
responsabilidade dos administradores, é indiscutível que eles respondem por uma
dívida alheia, uma dívida de responsabilidade
cujo montante é fixado com total independência do pressuposto subjectivo que
levou à identificação da pessoa do responsável subsidiário.
Evidencia-se aqui, em pleno, a função garantística
que a responsabilidade dos administradores primacialmente desempenha. Ainda que
a responsabilidade não dispense o estabelecimento de uma conexão causal com um
comportamento censurável dos responsáveis, uma vez satisfeito este requisito,
estes vão responder como responderia o devedor da coima, e não em função da sua
própria conduta. Posto que dependente, no seu surgimento, de um facto próprio,
a responsabilidade dos administradores acaba, assim, por se configurar como uma
responsabilidade por uma dívida de outrem: o que a Administração Tributária
podia exigir da pessoa colectiva, por uma infracção a ela imputável, passa a
poder exigi-lo dos administradores.
Estes sujeitos só não intervêm como puros garantes justamente
porque a responsabilidade destes últimos constitui-se à margem de qualquer
avaliação do seu contributo pessoal para a insatisfação do crédito. Sendo
contrário à situação assegurada, esse resultado basta para que seja accionada a
responsabilidade do garante.
Não é esse, como desenvolvidamente vimos, o figurino da solução
aqui em juízo. A exigência de culpa própria, como condição da responsabilidade,
permite sustentar que esta visa também finalidades repressivas e preventivas,
conjugando-se a função de garantia com a função sancionatória – no sentido da
combinação de ambas as funções, quanto à solução paralela constante do artigo
24.º, n.º 3, da LGT, cfr. Jónatas
Machado/Vera Raposo, “A responsabilidade subsidiária dos TOC’S (Algumas
considerações constitucionais a propósito do art. 24.º/3 da LGT”, Fiscalidade, 2007, 5 s.).
Simplesmente, nesse mix
legal, é a primeira que acaba por prevalecer, tendo em conta que a culpa do
responsável releva apenas para o se da
responsabilidade, mas não para o quantum
do seu objecto. Ao não fazer decorrer quaisquer consequências, no plano da
fixação da coima ou multa aplicável, do juízo concreto quanto à censurabilidade
da conduta do responsável, designadamente quanto ao seu grau de culpa, a
solução afasta-se, na verdade, da que resultaria de um puro critério sancionatório,
para atender apenas à intenção de satisfazer o montante integral do crédito
correspondente à coima. Poderá, porventura, dizer-se, neste sentido, que a
função repressiva é instrumentalizada (e subordinada) a fins de garantia.
16. Em face do exposto, a questão de constitucionalidade que nos
ocupa pode ser formulada, em último termo, como sendo a de decidir da
admissibilidade constitucional de um regime sancionatório em que a medida da coima não depende da avaliação, em concreto, do
grau de culpa do responsável e das circunstâncias específicas que rodearam a
sua actuação.
Assim posta, a questão apresenta fortes atinências,
quanto à valoração que suscita, com a da admissibilidade de sanções fixas, uma vez que, tal como nestas, deparamos com a
insusceptibilidade de individualização, pelo julgador, da sanção a aplicar ao
revertido.
O tema tem sido objecto de numerosas pronúncias deste Tribunal,
justificando-se dedicar alguma atenção reflexiva à linha de orientação que tem
prevalecido.
Em matéria criminal, tem sido constante e reiterado um juízo de proibição constitucional de penas fixas, em resultado da
aplicação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade
(cfr. os Acórdãos n.ºs
202/2000, 203/2000, 95/2001, 70/2002, 485/2002 e 124/2004).
Pode ler-se, por exemplo, neste último aresto:
«(…) O princípio da culpa,
enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de direito, proíbe
– já se disse – que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da
pena ultrapasse a da culpa.
(…) Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a
existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu limite, é em função dela
(e. obviamente também, das exigências de prevenção) que, em cada caso, se há-de
encontrar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto
na lei para aquele tipo de comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o
juiz não pode, na determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender
ao grau de culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.
A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o
juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de
ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas
consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente,
nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham
a favor ou contra ele.
Ora isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a
tratar de modo igual situações que só aparentemente são iguais, por,
essencialmente, acabarem por ser muito diferentes.
(…) A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o
juiz se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da
infracção, assim deixando de observar o princípio da proporcionalidade, que
exige que a gravidade das sanções criminais seja proporcionada à gravidade das
infracções.
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o
princípio da culpa, que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade,
que o juiz há-de observar na determinação da medida da pena. E pode violar
também o princípio da proporcionalidade».
Mas o Tribunal também tem vincado, com clareza, que as razões
contrárias à admissibilidade da cominação de penas fixas para ilícitos de
natureza criminal «não são transponíveis, sem mais, para a apreciação da
conformidade constitucional das penas pecuniárias fixas estabelecidas nos restantes
espaços sancionatórios» (Acórdão n.º 344/2007).
Desenvolvendo essa ideia, escreveu-se neste aresto, a propósito de
uma multa fixa, em caso de utilização de transporte colectivo de passageiros
sem título válido:
«Deste modo, não pondo
em dúvida que os princípios da proporcionalidade e da igualdade e mesmo o
princípio da culpa também vinculem o legislador na configuração dos ilícitos
contravencionais (como nos de contra-ordenação) e respectivas sanções (…) é
diferente o limite que deles decorre para a discricionariedade legislativa na
definição do que o legislador pode assumir e o que deve ser deixado ao juiz na
determinação concreta da situação.
Designadamente, não ocorre aqui colisão com nenhum dos preceitos
constitucionais em que se funda a violação do princípio da culpa, que é o
nuclear na fundamentação da referida jurisprudência do Tribunal a propósito da
ilegitimidade constitucional de penas criminais fixas. Na verdade, não está em
causa minimamente o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1) porque a multa
contravencional, diversamente da multa criminal, não tem prisão sucedânea. E só
de modo muito remoto – e nunca por causa da sua invariabilidade – uma sanção
estritamente pecuniária, num ilícito sem qualquer efeito jurídico
estigmatizante, pode contender com o princípio da dignidade da pessoa humana
(artigo 1.º), que é de onde o Tribunal tem deduzido o princípio da culpa na
“Constituição criminal”.
(…) Assim entendido, o princípio da culpa pode ser pressuposto da
imposição da sanção (fundamento), mas não é um factor constitucionalmente
necessário da sua medida concreta (limite individual), não significando a
cominação de uma multa contravencional fixa, por si só, a violação dos artigos
1.º e 27.º, n.º 1, da Constituição».
Este juízo, firmado a propósito de uma contravenção punida com
multa, foi expressamente estendido às contra-ordenações punidas com coima,
“porque estas sanções significam exactamente o mesmo na esfera jurídica do
respectivo destinatário: apenas e só sacrifício patrimonial”.
Pode concluir-se deste juízo, tomado em Plenário, que o Tribunal,
não rejeitando a vigência, no domínio contra-ordenacional,
dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, admitiu uma
diferente gradação da sua força impositiva, nessa área sancionatória.
No caso concreto, o Tribunal pronunciou-se pela não
inconstitucionalidade da cominação da multa fixa em apreciação. Mas, nessa
decisão, pesaram decisivamente três factores especificamente caracterizadores
da medida sancionatória em causa.
Foi entendido, por um lado, que ela aparecia «como razoavelmente
proporcionada relativamente à gama de comportamentos susceptíveis de recondução
ao concreto tipo de ilícito» o que, só por si, garantia um respeito adequado
pelos princípios em presença.
Salientou-se também estarmos em face da prestação de um serviço em
massa «em que a eventual diversidade das motivações individuais é pouco
significativa no que revela de atitude perante a ordenação do comportamento
social que se quer assegurar e é indiferente no plano das consequências desse
comportamento para o regular funcionamento do sistema de transportes colectivos
de passageiros».
Considerou-se, por último, que, sendo a multa não graduável
«determinada por um método de cálculo que ainda reflecte a gravidade concreta
da infracção», ela «não parece afastar-se de montantes razoavelmente
suportáveis pelo comum das pessoas». Tratando-se, como no caso, de quantias de
montante pouco elevado «haverá um claro desfasamento entre o investimento na
recolha séria de elementos para essa tarefa diferenciadora e a sua expressão
prática, o que também é lícito ao legislador levar em conta, numa afectação
racional de meios».
Sendo estes fundamentos de decisão especificamente atinentes à
norma em juízo, deixou-se em aberto a posição a tomar quanto a configurações
normativas de multas ou coimas não individualizáveis que não obedeçam ao mesmo
figurino.
Ora, nenhum desses fundamentos pode valer, quanto à norma sub judicio.
Há que ponderar, antes de mais, que, neste caso, a total
insensibilidade a factores pessoais, na determinação da medida da sanção, não
resulta apenas da irrelevância de elementos de responsabilização reportados à
culpa, em concreto, do responsável. É a própria moldura
sancionatória aplicada que é fixada em função de um tipo de agente
que não corresponde ao do sujeito que, a título subsidiário, vem a ser
responsabilizado. Na verdade, pessoas colectivas e pessoas físicas são entes
morfologicamente bem distintos, com estrutura e grandeza de património
tipicamente diferenciáveis. Em resultado, a incidência patrimonial subjectiva,
o “grau de sacrifício” que uma mesma multa ou coima comporta, não são
idênticos, quando aplicadas a uma pessoa colectiva ou a um sujeito individual.
O que o legislador, de forma praticamente constante e por um imperativo de
justa medida, leva em conta, fixando valores mais elevados para os limites
mínimo e máximo das sanções a aplicar a entes colectivos.
Tal como vem fixada no
artigo 7.º-A do RJIFNA, a responsabilidade subsidiária subverte esse critério diferenciador,
ao pôr a cargo do administrador o pagamento de uma multa ou coima fixadas
dentro de uma moldura estabelecida por reporte a uma categoria de sujeitos de
natureza distinta — a pessoa colectiva responsável pela infracção tributária
que deu motivo à sanção. Porque determinadas dentro de uma moldura ajustada à
natureza própria da personalidade colectiva do devedor primário, a multa ou
coima, quando passam a incidir, em igual medida, sobre a pessoa individual
chamada, a título subsidiário, à responsabilidade, revelam-se, à partida,
desproporcionadamente agravadas. E, ao parificar,
quanto ao objecto, situações de responsabilidade que, pelo menos do ponto de
vista da natureza do sujeito responsável, são estruturalmente desiguais, a
solução gera desconformidades com o que o princípio da igualdade exigiria.
Para além desta
inadequação que contamina, in radice, todo o processo
sancionatório da conduta culposa dos administradores, não pode ignorar-se que
esta, pela heterogeneidade de comportamentos potencialmente englobados, não é
susceptível de recondução a um tipo de ilícito e a um grau de culpa
tendencialmente uniformes. Não pode dizer-se, assim, que a sanção apareça aqui
“razoavelmente proporcionada à gama de comportamentos susceptíveis de recondução
ao concreto tipo de ilícito”.
A necessidade, quanto à
responsabilidade dos administradores, de diferenciações casuísticas minimamente
conectadas com a valoração, em concreto, da sua conduta, afigura-se aqui
incontroversa, para que não se perca toda a ligação, ao nível da determinação
da sanção, com o princípio da culpa. Dada a diversidade de situações possíveis
e o montante elevado que a multa ou coima podem atingir, essas diferenciações
são susceptíveis de assumir uma expressão prática significativa. E essa
graduação da responsabilidade do revertido, não obstante o carácter expedito da
reversão, não encontra dificuldades insuperáveis, tendo até em conta que ela é
precedida da sua audição e deve ser fundamentada — como hoje expressamente se
comina no artigo 23.º, n.º 4, da LGT, mas já resultava de princípios
gerais.
17. O não atendimento mínimo de
limites sancionatórios decorrentes do princípio da culpa abre a porta a que os
princípios da igualdade e da proporcionalidade resultem também insatisfeitos, e
de forma agravada, dado o desajustamento da própria moldura aplicável, prevista
para infracções cometidas por pessoas colectivas. Uma negligência ligeira na
condução da gestão pode ser sancionada com coimas de elevado montante,
desproporcionado em relação à gravidade do ilícito e da culpa e gerador de
situações de tratamento infundadamente inigualitário.
Não se contesta que o princípio da culpa não tem, em matéria contra-ordenacional, o mesmo significado e valência
axiológica que lhe cabem, em sede jurídico-penal,
desde logo porque a censura não encerra, naquele âmbito, um juízo de desvalor
ético-jurídico dirigido à personalidade do agente. Nem, por outro lado, à
sanção estão associados quaisquer efeitos estigmatizantes. Mas esse diferencial
de força impositiva não pode levar a admitir sanções estabelecidas por factores
inteiramente alheios à conduta culposa do agente, numa objectivação rigidamente
fixa de montantes sancionatórios, sem qualquer correlação (ainda que apenas em
termos limitativos) com o seu pressuposto subjectivamente fundante.
Em si mesma, mas, sobretudo, pela sua potencial projecção na ofensa a valores
constitucionais de vigência incontroversamente geral, como os da igualdade e da
proporcionalidade, uma tal denegação de qualquer eficácia delimitativa à culpa
do agente do facto responsabilizador apresenta-se como constitucionalmente
desconforme.
Conclui-se, pois, pela inconstitucionalidade do artigo 7.º-A do
RJIFNA, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar
inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da
igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 7.º-A do Regime Jurídico das
Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º
394/93, de 24 de Novembro) na parte em que se refere à responsabilidade
subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às
coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal.
b) Consequentemente,
negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Dezembro de 2010.- Joaquim de
Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura
Mariano (com declaração de voto) – Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, nos termos da declaração de
voto junta.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a presente decisão por entender que no
artigo 7.º - A, do RJIFNA, apesar do seu título, não está consagrado um regime
de responsabilidade civil aquiliana, mas sim um
regime de transmissão legal da obrigação de pagamento duma coima, o qual,
conforme este acórdão bem explica, viola os princípios constitucionais da
culpa, da igualdade e da proporcionalidade, sem que isso signifique que esteja
constitucionalmente vedado ao legislador, responsabilizar civilmente as pessoas
que exerçam funções de administração em pessoas colectivas, pelos prejuízos que
resultaram da insuficiência do património colectivo para solver as suas
dívidas, incluindo as que resultaram de aplicação de coimas, em consequência de
comportamento culposo destes.-João Cura Mariano.
DECLARAÇÃO
DE VOTO
Dissenti da declaração de
inconstitucionalidade por não poder excluir, como faz o acórdão, que a
responsabilidade prevista no preceito em questão possa ser qualificada como
revestindo natureza civil. Assim sendo, entendo que não está vedada ao
legislador a sua previsão. O que não significa que os termos da respectiva
efectivação (maxime através do mecanismo da reversão) não possam ser objecto de
censura constitucional. Mas tal não pode ser directamente imputado à norma do
artigo 7º - A do RJIFNA (e o mesmo se diga da regra paralela do artigo 8º do
RGIT), mas a outros locais do sistema convocados (ainda que implicitamente)
pela aplicação daquele comando – situação hipotética cuja verificação ficou precludida pelo juízo de recusa de aplicação formulado pelo
tribunal a quo.- Rui Manuel
Moura Ramos.