ACÓRDÃO
Nº 75/2010
Processos n.ºs 733/07 e 1186/07
Plenário
Relator:
Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I -
Relatório
A) - Pedido formulado no
âmbito do processo n.º 733/07
1. Requerente e objecto do
pedido
Um
grupo de trinta e três deputados à Assembleia da República apresentou um pedido
de apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade
e ilegalidade da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, que estabelece a “Exclusão da
ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez”.
Para além de terem suscitado a
inconstitucionalidade formal da referida Lei, alegaram os requerentes que ela
“consagra diversas soluções inconstitucionais”.
Ainda
que se requeira genericamente, no pedido, a apreciação da conformidade
constitucional da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, sem especificar as
disposições alegadamente feridas de inconstitucionalidade material, é possível
extrair do teor da fundamentação que as soluções impugnadas são as contidas no
artigo 1.º, que dá nova redacção ao artigo 142.º do Código Penal – na parte em
introduz, neste preceito, a alínea e) do n.º 1 e a
alínea b) do n.º 4 –, no artigo 2.º, n.º 2, e
no artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril.
Uma
vez que um perfeito entendimento do alcance dos preceitos visados pelo pedido
postula a intelecção do contexto normativo em que eles se inserem,
transcrevemos integralmente, de seguida, a Lei n.º 16/2007, com excepção da
parte em que deixa intocado o artigo 142.º do Código Penal:
Artigo 1.º
Alteração
do Código Penal
O
artigo 142.º do Código Penal, com a redacção que lhe foi introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, e pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho,
passa a ter a seguinte redacção:
Artigo 142.º
[…]
1-
Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua
direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido
e com o consentimento da
mulher grávida, quando:
a)
………………………………………………….. .
b)
………………………………………………….. .
c)
Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma
incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas
primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos
inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d)
………………………………………………….. .
e)
For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.
2 -
A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da
gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da
intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção
é realizada, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 -
Na situação prevista na alínea e) do n.º 1, a certificação referida no número
anterior circunscreve-se à comprovação de que a gravidez não excede as 10
semanas.
4 -
O consentimento é prestado:
a)
Nos casos referidos nas alíneas a) a d) do n.º 1, em documento assinado pela
mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima
de três dias relativamente à data da intervenção;
b) No
caso referido na alínea e) do n.º 1, em documento assinado pela mulher grávida
ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao
momento da intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a três
dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à
mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão
livre, consciente e responsável.
5 -
No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz,
respectiva e sucessivamente, conforme os casos, o consentimento é prestado pelo
representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por
quaisquer parentes da linha colateral.
6 -
Se não for possível obter o consentimento nos termos dos números anteriores e a
efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência, o médico decide
em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer
de outro ou outros médicos.
7 -
Para efeitos do disposto no presente artigo, o número de semanas de gravidez é
comprovado ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges
artis.»
Artigo 2.º
Consulta,
informação e acompanhamento
1 -
Compete ao estabelecimento de saúde oficial ou
oficialmente reconhecido onde se pratique a interrupção voluntária da gravidez garantir, em tempo
útil, a realização da consulta
obrigatória prevista na alínea b) do n.º
4 do artigo 142.º do Código Penal e dela guardar registo no processo próprio.
2 -
A informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código
Penal é definida por portaria, em termos a definir pelo Governo, devendo
proporcionar o conhecimento sobre:
a)
As condições de efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção
voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher;
b)
As condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à
maternidade;
c) A
disponibilidade de acompanhamento psicológico durante o período de reflexão;
d) A
disponibilidade de acompanhamento por técnico de serviço social, durante o
período de reflexão.
3 -
Para efeitos de garantir, em tempo útil, o acesso efectivo à informação e, se
for essa a vontade da mulher, ao acompanhamento facultativo referido nas
alíneas c) e d) do número anterior, os estabelecimentos de saúde, oficiais ou
oficialmente reconhecidos, para além de consultas de ginecologia e obstetrícia,
devem dispor de serviços de apoio psicológico e de assistência social dirigidos
às mulheres grávidas.
4 -
Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde se
pratique a interrupção voluntária da gravidez garantem obrigatoriamente às
mulheres grávidas que solicitem aquela interrupção o encaminhamento para uma
consulta de planeamento familiar.
Artigo 3.º
Organização
dos serviços
1 - O Serviço Nacional de
Saúde deve organizar-se de modo a garantir a possibilidade de realização da
interrupção voluntária da gravidez nas condições e nos prazos legalmente
previstos.
2 - Os estabelecimentos
de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos em que seja praticada a
interrupção voluntária da gravidez organizar-se-ão de forma adequada para que a
mesma se verifique nas condições e nos prazos legalmente previstos.
Artigo 4.º
Providências
organizativas e regulamentares
1 - O Governo adoptará as
providências organizativas e regulamentares necessárias à boa execução da
legislação atinente à interrupção voluntária da gravidez, designadamente por
forma a assegurar que do exercício do direito de objecção de consciência dos
médicos e demais profissionais de saúde não resulte inviabilidade de
cumprimento dos prazos legais.
2 - Os procedimentos
administrativos e as condições técnicas e logísticas de realização da
interrupção voluntária da gravidez em estabelecimento de saúde oficial ou
oficialmente reconhecido são objecto de regulamentação por portaria do Ministro
da Saúde.
Artigo 5.º
Dever de
sigilo
Os médicos e demais
profissionais de saúde, bem como o restante pessoal dos estabelecimentos de saúde,
oficiais ou oficialmente reconhecidos, em que se pratique a interrupção
voluntária da gravidez, ficam vinculados ao dever de sigilo profissional
relativamente a todos os actos, factos ou informações de que tenham
conhecimento no exercício das suas funções, ou por causa delas, relacionados
com aquela prática, nos termos e para os efeitos dos artigos 195.º e 196.º do
Código Penal, sem prejuízo das consequências estatutárias e disciplinares que
no caso couberem.
Artigo 6.º
Objecção de consciência
1 - É assegurado aos médicos e demais profissionais de
saúde o direito à objecção de consciência relativamente a quaisquer actos
respeitantes à interrupção voluntária da gravidez.
2 -
Os médicos ou demais profissionais de saúde que invoquem a objecção de consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes à
interrupção voluntária da gravidez
não podem participar na consulta prevista na
alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar durante o período de reflexão.
3 - Uma vez invocada a objecção de consciência, a
mesma produz necessariamente efeitos independentemente da natureza dos
estabelecimentos de saúde em que o objector preste serviço.
4 - A objecção
de consciência é manifestada em documento assinado pelo objector, o qual deve
ser apresentado, conforme os casos, ao director clínico ou ao director de
enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objector preste serviço
e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez.
Artigo 7.º
Revogação
São revogadas as Leis
n.ºs 6/84, de 11 de Maio, e 90/97, de 30 de Julho.
Artigo 8.º
Regulamentação
O Governo procede à
regulamentação da presente lei no prazo máximo de 60 dias.
2. Fundamentação do pedido
Os requerentes
fundamentaram o pedido nos seguintes termos:
2.1.
Inconstitucionalidade formal da Lei
n.º 16/2007, de 17 de Abril
- A
Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, foi aprovada na sequência de um referendo
sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, realizado a 11 de Fevereiro de
2007, o qual não logrou obter a participação de votantes necessária para que o
mesmo revestisse carácter juridicamente vinculativo.
- Na
verdade, o artigo 115.º, n.º 11, da CRP, estabelece que “o referendo só tem efeito
vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores
inscritos no recenseamento”, o que não se verificou.
-
Não tendo sido obtido esse “quorum”, a proposta de alteração legislativa
apresentada aos eleitores não colheu legitimação referendária para prosseguir.
- A
CRP não admite o referendo consultivo e o princípio da legalidade, a que estão
sujeitos os órgãos de soberania, exige que sejam retiradas consequências de um
referendo não vinculativo.
- No
cumprimento do estatuído na CRP, o resultado eleitoral do Referendo sobre o
aborto não permite alterar a respectiva Lei (ou o Código Penal), sob pena de
inconstitucionalidade formal por violação do disposto no artigo 115.º, n.ºs 1 e
11, da CRP.
- A
Assembleia da República tem legitimidade parlamentar para fazer leis, podendo
alterar o Código Penal.
-
Contudo, no caso do aborto, a maioria dos deputados não está materialmente
mandatada pelo Povo para alterar a respectiva Lei.
- A
soberania reside no povo e este exerce-a, entre outras formas, através do voto,
nomeadamente na escolha que faz dos programas partidários submetidos a
sufrágio.
- Os
partidos que compõem a larga maioria do Parlamento (PS e PSD), nos últimos
programas eleitorais com que se apresentaram a eleições legislativas, declararam
submeter esta matéria à deliberação directa do Povo, tendo-se comprometido a só
alterar a Lei em causa por referendo.
-
Através do respectivo programa eleitoral, os partidos celebram pactos com os
eleitores.
- O
mandato conferido ao actual parlamento não legitima a alteração da Lei da
Interrupção Voluntária da Gravidez no decurso da mesma legislatura em que foi
realizado o referendo que não teve efeito vinculativo.
- A
aprovação da Lei n.º 16/2007 à revelia do voto vinculativo do Povo fere a soberania
popular, correspondendo à violação do disposto nos artigos 1.º a 3.º, 108.º e
109.º da CRP.
2.2. Inconstitucionalidade material das normas
constantes dos artigos 1.º, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de 17
de Abril
2.2.1.
Artigo 1.º
- No
seu artigo 24.º, n.º 1, a CRP estatui que a vida humana é inviolável, não
excepcionando as primeiras dez semanas de gestação.
-
Consequência da garantia da vida humana intra-uterina é o reconhecimento de que
o Estado Português está, não só obrigado a abster-se de violar a vida humana
pré-natal, como também a instituir formas destinadas à sua protecção.
- O
ordenamento jurídico português confere protecção à vida humana desde a
concepção, incluindo a atribuição de direitos, o que foi já reconhecido por
este Tribunal (Acórdão n.º 617/2006).
- A
Lei Fundamental da República Portuguesa não deixa quaisquer dúvidas sobre a
indispensabilidade de uma base antropológica constitucionalmente estruturante
do Estado de Direito (artigos 1.º e 2.º), contemplando a afirmação da
integridade física e espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua
individualidade autonomamente responsável (CRP, artigos 24.º, 25.º e 36.º), bem
como a garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre
desenvolvimento da personalidade (cfr. a consagração explícita desse direito no
artigo 26.º da CRP, introduzido pela LC n.º 1/97, e a refracção do mesmo
direito no artigo 73.º, n.º 2, da CRP).
- A
alteração ao artigo 142.º do Código Penal introduzida pelo artigo 1.º da Lei
n.º 16/2007, de 17 de Abril, consistente no aditamento da alínea e) ao respectivo n.º 1, permite a uma mulher pôr fim à vida
de um ser humano em desenvolvimento intra-uterino sem que para tal invoque
fundamentos, o que significa deixar totalmente desprotegida a vida humana até
às 10 semanas.
- A
possibilidade de se praticar aborto sem alegação de motivos, equivale a
conferir a uma ser (Mãe) o direito a decidir da vida de outrem, ainda que por
motivos fúteis.
-
Tal alteração impõe ao Estado que contribua para a eliminação de vidas humanas
(através, por exemplo, do SNS e das prestações sociais inerentes – artigo 35.º,
n.º 6, do Código do Trabalho) sem que para tal seja necessário alegar quaisquer
razões ou fundamentos, o que atenta contra a base antropológica
constitucionalmente estruturante do Estado de Direito, violando desse modo o
disposto nos artigos 26.º e 73.º, n.º 2, da CRP.
- O
aborto constitui para a mulher uma fonte de doença gravíssima – o trauma
pós-aborto.
- Ao
Estado cabe fazer cumprir e implementar o direito à saúde.
- Ao admitir-se a realização do aborto nas condições
fixadas no artigo 142.º, n.º 4, alínea b), do Código
Penal, na versão conferida pela Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, permite-se que
as mulheres corram este risco de doença para o resto da vida, colocando-se em
causa o disposto no artigo 66.º, n.º 1, bem como o disposto no artigo 64.º, n.º
1 e n.º 2, alínea b), da CRP.
-
Sendo hoje reconhecido o aborto como um acto de risco para a saúde física e
mental da mulher, e dando por assente o aborto por carências económicas, o
regime fixado na Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, liberta o Estado da sua
função de solidariedade e protecção da saúde física e psíquica, violando,
assim, o disposto nos artigos 64.º, n.ºs 1 e 2, alínea b),
e 66.º, n.º 1, da CRP.
- Em
matéria de tutela da vida, o Estado limita-se a informar a mulher das condições
de apoio que lhe pode prestar, concedendo-lhe três dias para que reflicta sobre
a sua decisão.
-
Atendendo à dignidade constitucional da vida humana, não parece que a sua lesão
irreversível possa ser compatibilizada com um prazo tão curto de reflexão.
-
Através do seu artigo 67.º, alínea d), a
Constituição garante o exercício da maternidade e paternidade conscientes,
estabelecendo, por sua vez, o respectivo artigo 68.º que a maternidade e a
paternidade constituem valores sociais eminentes.
- O
princípio da igualdade fixado para o exercício da parentalidade trespassa todo
o direito constitucional (artigos 13.º, 36.º, n.ºs 3 e 5, 67.º e 68.º, da CRP).
- A
Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, deixa o progenitor masculino totalmente
arredado da responsabilidade e processo de formação da decisão no aborto,
violando-se desta forma os artigos 1.º, 2.º, 24.º, 67.º, alínea d), da CRP, bem como o princípio da igualdade fixado nos
artigos 13.º e 36.º, n.ºs 3 e 5, da Lei Fundamental.
2.2.2. Artigo 2.º, n.º 2
- Ao
permitir a realização do aborto até às 10 semanas, por opção da mulher, o
legislador resolveu excluir a reacção penal como instrumento de tutela da vida
humana pré-natal, dentro desse período.
- Ao
estabelecer como condição única dessa realização uma prévia consulta médica
informativa, a Lei assegura a liberdade da mulher mas despreza, de forma
constitucionalmente intolerável, o cumprimento do dever que vincula o Estado à
protecção da vida humana do nascituro.
- A
solução assim encontrada pelo legislador para o conflito entre os bens
constitucionais vida humana pré-natal por um lado, e personalidade e liberdade
da mulher, por outro, satisfaz apenas uma das partes do conflito.
-
Ainda que se admita, em última análise, que estamos em presença de uma situação
de conflito e ponderação de valores – o da liberdade da mãe e o da vida do
embrião – e, em tal perspectiva, que o primeiro deverá prevalecer sobre o
segundo, isso não significa que se não deva procurar o equilíbrio possível e,
portanto, o menor sacrifício possível da vida embrionária.
- A
consulta informativa não é idónea ao fim a que se destina – tutela da vida
humana intra-uterina –, privilegiando desnecessariamente um dos bens
constitucionais em conflito – o valor da liberdade de escolha da mulher – e em
nada acautelando o outro dos valores em presença – a vida do feto.
- A
consulta meramente informativa não permite ter por cumprido o dever de
protecção da vida intra-uterina a que o Estado Português se encontra vinculado,
o qual não ficará plenamente cumprido sem que a mulher grávida tenha acesso a
um aconselhamento prestado por uma entidade diferente daquela que se propõe
realizar a interrupção da gravidez.
- É
dever do Estado aconselhar a mulher a não realizar o aborto e a decidir pela
preservação da vida.
-
Sem a realização deste aconselhamento, o Estado Português queda-se indiferente
e neutro perante a ameaça à vida humana, posição que não é compatível com o
dever de protecção da vida humana.
- O
artigo 2.º da Lei n.º 16/2007 atenta, por isso, contra os artigos 24.º, 66.º e
67.º, da CRP, bem como contra a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
- No
artigo 142.º, n.º 4, alínea b), do Código
Penal, na redacção da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, diz-se que a primeira
consulta é destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação
relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável.
-
Porém, da disciplina no n.º 2 do artigo 2.º resulta ser apenas obrigatório
proporcionar à mulher o conhecimento sobre as consequências da efectuação, no
caso concreto, de eventual interrupção voluntária da gravidez e suas
consequências para a saúde da mulher, nada se dizendo quanto ao embrião.
- A
informação a prestar pelo Estado não contempla a indicação das condições de
apoio que instituições não estaduais prestam à prossecução da gravidez e à
maternidade, nem do regime de adopção vigente em Portugal, tal como não prevê a
exibição de imagem ecográfica do feto.
- A
exclusão de tais indicações do âmbito do conteúdo informativo da consulta
constitui uma violação do princípio da proporcionalidade.
- Da
mesma disciplina decorre, relativamente à informação relativa às condições que
o Estado pode dar à prossecução da gravidez e da maternidade (alínea b)) e à disponibilidade de acompanhamento por técnico do
serviço social, durante o período de reflexão (alínea d)),
que: não é obrigatório fornecê-la, mas apenas informar a grávida acerca dos
meios de a obter; mesmo que esta escolha tê-la, tal informação não será
fornecida directamente, mas através de um técnico social; tal informação será
prestada dentro de um acompanhamento de contornos indefinidos à partida.
- O
artigo 2.º, n.º 2, estabelece, assim, um sistema baseado na selectividade da
informação prévia ao consentimento, na assimetria informativa e na natureza
triplamente indirecta da informação a prestar, consagrando um regime discriminado
de informação face aos princípios constitucionais da igualdade e da
proporcionalidade, que proíbem diferenciações legais arbitrárias e, desse modo,
atentando contra o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 25.º, n.º 1, e 27.º, n.º
1, da CRP.
- Uma
vez que se baseia na incompletude da informação a prestar à grávida e aquela
consiste num meio de manipulação e de obliteração da liberdade, o sistema
informativo estabelecido no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de 17 de
Abril, não preserva o valor constitucional que pretende tutelar, ou seja, a
liberdade de escolha da mulher.
- O
regime consagrado nos artigos 142.º, n.º 4, alínea b),
do Código Penal e 2.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, conflitua por isso
com os direitos constitucionais à liberdade e proporcionalidade, tornando-se
deste ponto de vista sindicável perante o disposto nos artigos 25.º, n.º 1 e
27.º, n.º 1, da CRP.
-
Através do disposto no respectivo artigo 2.º, n.º 2, a Lei n.º 16/2007, de 17
de Abril, permite a sua regulamentação por portaria, o que, estando em causa
matéria de direitos fundamentais, fere o disposto nos artigos 67.º, n.º 1,
112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
2.2.3. Artigo 6.º, n.º 2
- A
disciplina constante do n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril,
ao excluir das consultas previstas na alínea b)
do n.º 4 do artigo 142.º, do Código Penal, os médicos objectores de consciência
– e por isso mais próximos da principiologia do artigo 24.º da Constituição –,
contém, relativamente a estes, um tratamento discriminatório, designadamente no
que toca ao acesso a cargos em estabelecimentos públicos.
-
Tal regime, para além de desconforme à Declaração Universal dos Direitos do
Homem e Convenções Internacionais, aplicáveis por força do artigo 8.º da CRP,
viola, quer o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, quer os
artigos 25.º (integridade pessoal dos médicos), e 26.º (bom nome e reputação
dos médicos) da CRP.
3. Resposta do autor das
normas
Notificada
para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, a Assembleia da República, por
intermédio do respectivo Presidente, entregou cópia do Projecto de Lei n.º
19/X, dos Diários da Assembleia da República em
que foram publicados os demais trabalhos preparatórios da Lei n.º 16/2007, de 17
de Abril, e do Diário da República, 1ª Série, de
17 de Abril de 2007, onde esta veio a ser publicada.
No
mais, limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
B) - Pedido formulado no âmbito do processo n.º
1186/07
4. Requerente e objecto do
pedido
O
Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira veio
requerer a declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade, com força
obrigatória geral, dos artigos 1.º – este na parte em que acrescenta a nova
alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º, do Código
Penal, e dá origem às restantes normas da nova versão do mesmo –, 2.º, 3.º,
4.º, 5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos
artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º,
15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º da Portaria n.º
741-A/2007, de 21 de Junho.
As
normas da Lei n.º 16/2007 impugnadas já foram reproduzidas (supra, ponto 1.). Os preceitos da Portaria objecto do pedido
de declaração de inconstitucionalidade (todos eles, excepto os expressos nos
artigos 12.º e 20.º) têm o seguinte teor:
Portaria n.º 741-A/2007 de 21 de Junho
CAPÍTULO I
Disposições
gerais
Artigo 1.º
Objecto
e âmbito de aplicação
A presente portaria
estabelece as medidas a adoptar nos estabelecimentos de saúde oficiais ou
oficialmente reconhecidos com vista à realização da interrupção da gravidez nas
situações previstas no artigo 142.º do Código Penal.
Artigo 2.º
Estabelecimentos
de saúde
A interrupção da gravidez
pode ser efectuada nos estabelecimentos de saúde oficiais e nos
estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos.
Artigo 3.º
Acesso
1 - A mulher pode livremente
escolher o estabelecimento de saúde oficial onde deseja interromper a gravidez,
dentro dos condicionamentos da rede de referenciação aplicável.
2 - Os estabelecimentos
de saúde oficiais de cuidados de saúde primários devem actuar de acordo com os
protocolos estabelecidos pela respectiva unidade coordenadora funcional.
Artigo 4.º
Consentimento
livre e esclarecido
O consentimento livre e
esclarecido para a interrupção da gravidez é prestado pela mulher grávida, ou
seu representante nos termos da lei, em documento escrito, normalizado, cujo
modelo consta do anexo I a esta portaria, que dela faz parte integrante.
Artigo 5.º
Presença
de outra pessoa
A mulher grávida pode
fazer-se acompanhar por outra pessoa durante os actos e intervenções regulados
pelo presente diploma, desde que seja essa a sua vontade.
Artigo 6.º
Acompanhamento
e apoio psicológico e social
1 - Se for essa a vontade
da mulher, deve ser disponibilizado o acesso atempado a acompanhamento por
psicólogo ou por assistente social.
2 - Para garantir o
disposto no número anterior, o conselho de administração do estabelecimento de
saúde oficial, o responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde
primários ou o responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido,
conforme o caso, assegura a existência de profissionais com as competências
necessárias e adequadas para prestar apoio às mulheres grávidas.
Artigo 7.º
Urgência
Os estabelecimentos de
saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos para a realização da interrupção da
gravidez que não disponham de serviço de urgência com atendimento permanente
vinte e quatro horas por dia devem acordar, com, pelo menos, um estabelecimento
de saúde de cuidados diferenciados que esteja a uma distância-tempo inferior a
uma hora, a assistência médico-cirúrgica, sem reservas, às mulheres com
complicações decorrentes da interrupção da gravidez.
Artigo 8.º
Registo
obrigatório
1 - Todas as interrupções
de gravidez, cirúrgicas ou medicamentosas, efectuadas ao abrigo do n.º 1 do artigo
142.º do Código Penal, são de declaração obrigatória à Direcção-Geral da Saúde,
através do registo da interrupção da gravidez, cujo modelo consta do anexo II a
esta portaria, que dela faz parte integrante.
2 - Os estabelecimentos
de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde se realize interrupção da
gravidez devem solicitar à Direcção-Geral da Saúde o registo e a senha de
acesso ao formulário electrónico para o cumprimento dessa obrigação.
3 - Os dados constantes
do registo referido no n.º 1 são anónimos, confidenciais e têm apenas fins
estatísticos de saúde pública.
Artigo 9.º
Dados
pessoais
1 - A mulher presta
autorização escrita quanto à utilização posterior dos seus dados pessoais
relativos à interrupção da gravidez.
2 - Os dados pessoais que não façam parte do processo
clínico nem tenham relevância do ponto de vista clínico devem ser destruídos no
prazo de três meses a contar do dia da interrupção da gravidez.
Artigo 10.º
Dever de
sigilo
Os médicos, outros
profissionais de saúde e demais pessoas que trabalhem nos estabelecimentos de
saúde onde se realize a interrupção da gravidez, ou que com eles colaborem,
estão obrigados ao dever de sigilo relativamente a todos os actos, factos ou
informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções, ou por
causa delas.
Artigo 11.º
Cumprimento
dos prazos
Em quaisquer
circunstâncias, o conselho de administração do estabelecimento de saúde
oficial, o responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários
ou o responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido,
conforme o caso, adoptam todas as providências necessárias ao cumprimento dos
prazos previstos na lei para a interrupção da gravidez.
CAPÍTULO II
Estabelecimentos
de saúde oficiais
Artigo 13.º
Organização
1 - Os responsáveis pelos
estabelecimentos de saúde oficiais de cuidados de saúde primários devem
organizar o acesso e a realização de interrupções da gravidez, nas situações
previstas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo
142.º do Código Penal, de acordo com os protocolos estabelecidos pela
respectiva unidade coordenadora funcional.
2 - Os conselhos de
administração dos estabelecimentos de saúde oficiais com departamento ou
serviço de ginecologia/obstetrícia, nos quais têm lugar as
interrupções cirúrgicas da gravidez, deve:
a) Organizar o
departamento ou serviço de ginecologia/obstetrícia com vista à realização de
interrupções da gravidez nas situações previstas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal;
b) Estabelecer, sob
coordenação da administração regional de saúde territorialmente competente,
acordos de articulação com os cuidados de saúde primários, no âmbito das
unidades coordenadoras funcionais.
3 - Compete ao conselho
de administração do estabelecimento de saúde oficial garantir os procedimentos
administrativos e as condições técnicas e logísticas apropriados à realização
da interrupção da gravidez nas circunstâncias legalmente permitidas, assim como
os meios necessários ao imediato acesso a um método contraceptivo após a
interrupção, quando adequado.
CAPÍTULO III
Estabelecimentos
de saúde oficialmente reconhecidos
Artigo 14.º
Reconhecimento
1 - A Direcção-Geral da Saúde
é a entidade competente para reconhecer a aptidão dos estabelecimentos de saúde
para a realização da interrupção da gravidez.
2 - Compete à
administração regional de saúde territorialmente competente a instrução do
processo de reconhecimento e a verificação dos requisitos mínimos de que
depende o reconhecimento dos estabelecimentos de saúde para a realização de
interrupção da gravidez.
Artigo 15.º
Condições
1 - O reconhecimento
referido no artigo anterior obedece às condições técnicas e logísticas definidas no anexo VI a esta
portaria, que dela faz parte integrante.
2 - Sem prejuízo dos
requisitos e procedimentos previstos na lei e na presente portaria, nomeadamente nos artigos
6.º, 16.º e 19.º, consideram-se reconhecidos:
a) Os estabelecimentos de
saúde oficiais;
b) Os demais
estabelecimentos de saúde que possuam bloco operatório e sala de recobro já
licenciados e que declarem, junto da Direcção-Geral da Saúde, o cumprimento das
disposições legais e regulamentares aplicáveis.
3 - A declaração referida
na alínea b) do número anterior é afixada em local
visível e acessível aos utentes do estabelecimento em causa.
CAPÍTULO IV
Interrupção
da gravidez por opção da mulher
Artigo 16.º
Consulta
prévia
1 - O conselho de administração
do estabelecimento de saúde oficial, o responsável pelo estabelecimento oficial
de cuidados de saúde primários ou o responsável pelo estabelecimento de saúde
oficialmente reconhecido, conforme o caso, devem garantir a realização em tempo
útil da consulta referida na alínea b) do n.º 4 do
artigo 142.º do Código Penal e dela assegurar registo em processo próprio.
2 - Entre o pedido de
marcação e a efectivação da consulta não deve decorrer um período superior a
cinco dias, sem prejuízo do cumprimento dos prazos legais.
3 - No âmbito da
consulta, o médico, ou outro profissional de saúde habilitado, deve prestar
todas as informações e os esclarecimentos necessários à mulher grávida ou ao
seu representante legal, tendo em vista uma decisão livre, consciente e
responsável, designadamente sobre:
a) O tempo da gravidez;
b) Os métodos de
interrupção adequados ao caso concreto;
c) As eventuais
consequências para a saúde física e psíquica da mulher;
d) As condições de apoio
que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade;
e) A existência de um
período obrigatório de reflexão;
f) A disponibilidade de
acompanhamento psicológico e por técnico de serviço social durante o período de
reflexão;
g) Os métodos
contraceptivos.
4 - Os esclarecimentos referidos
no número anterior devem, preferencialmente, ser acompanhados de informação
escrita, desde que tecnicamente validada pelo Ministério da Saúde.
5 - O profissional de
saúde que preste os esclarecimentos previstos no n.º 3 preenche a declaração
que consta do anexo IV a esta portaria e que dela faz parte integrante.
6 - O documento
normalizado para prestar o consentimento, previsto no anexo I a esta portaria,
deve ser entregue à mulher grávida na consulta.
7 - Os atestados,
relatórios e pareceres médicos legalmente exigidos devem ser obtidos em tempo
útil à realização da interrupção da gravidez dentro dos prazos legalmente
previstos.
Artigo 17.º
Comprovação
da gravidez
A comprovação de que a gravidez
não excede as 10 semanas é certificada por médico, diferente daquele por quem
ou sob cuja direcção a interrupção é realizada, em documento normalizado, cujo
modelo consta no anexo V a esta portaria, que dela faz parte integrante.
Artigo 18.º
Período
de reflexão
1 - Entre a consulta
prévia e a entrega do documento sobre o consentimento livre e esclarecido para
a interrupção da gravidez deve decorrer um período de reflexão não inferior a
três dias.
2 - O documento a que se
refere o número anterior pode ser entregue até ao momento da interrupção da
gravidez.
Artigo 19.º
Interrupção
da gravidez
1 - Após a comprovação da
gravidez e após a entrega do documento sobre o consentimento livre e esclarecido
para a interrupção da gravidez, assinado pela mulher grávida, o conselho de
administração do estabelecimento de saúde oficial, o responsável pelo
estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários ou o responsável pelo
estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido, conforme o caso, devem
assegurar que a interrupção da gravidez se realiza dentro dos prazos legais.
2 - Entre a entrega do
documento sobre o consentimento livre e esclarecido para a interrupção da
gravidez e a interrupção da gravidez não deve decorrer um período superior a
cinco dias, salvo se a mulher solicitar um período superior, dentro do prazo
legal.
3 - Os estabelecimentos
de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos devem garantir às mulheres que
interrompam a gravidez:
a) A prescrição de um
método contraceptivo, desde que adequado;
b) A marcação de uma
consulta de saúde reprodutiva/planeamento familiar a realizar no prazo máximo
de 15 dias após a interrupção da gravidez.
4 - Os estabelecimentos
de saúde oficiais hospitalares podem estabelecer, sob coordenação da
administração regional de saúde territorialmente competente, acordos de
articulação com os cuidados de saúde primários, no âmbito das unidades
coordenadoras funcionais, para garantir o seguimento posterior, em consulta de
saúde reprodutiva/planeamento familiar, das mulheres que realizaram uma
interrupção da gravidez.
5 - Os estabelecimentos
de saúde oficialmente reconhecidos podem solicitar à administração regional de
saúde territorialmente competente a indicação de estabelecimentos de saúde
oficiais que garantam o seguimento posterior, em consulta de saúde
reprodutiva/planeamento familiar, das mulheres que realizaram uma interrupção
da gravidez.
CAPÍTULO VI
Disposições
finais e transitórias
Artigo 21.º
Comunicação
1 - O conselho de
administração do estabelecimento de saúde oficial, o responsável pelo
estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários ou o responsável pelo
estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido, conforme o caso, devem
designar um responsável por contactar com a Direcção-Geral da Saúde e com a
administração regional de saúde territorialmente competente, quanto aos
assuntos respeitantes à interrupção da gravidez.
2 - O conselho de administração
do estabelecimento de saúde oficial deve comunicar à Direcção-Geral da Saúde e
à administração regional de saúde territorialmente competente, no prazo de 15
dias a contar da entrada em vigor desta portaria, o responsável designado nos
termos do número anterior.
3 - O responsável pelo
estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido deve comunicar à
Direcção-Geral da Saúde e à administração regional de saúde territorialmente
competente, com a antecedência de 15 dias relativamente ao início dos processos
com vista à realização da interrupção da gravidez, o responsável designado nos
termos do n.º 1.
4 - O conselho de
administração do estabelecimento de saúde oficial deve informar a
Direcção-Geral da Saúde e a administração regional de saúde territorialmente
competente, no prazo de 15 dias, sobre:
a) A forma de acesso ao
processo de interrupção da gravidez;
b) Os horários da
consulta prévia.
Artigo 22.º
Sítio da
Internet
A Direcção-Geral da Saúde
disponibiliza, no seu sítio da Internet, uma área destinada à interrupção da
gravidez com os seguintes campos:
a) Lista actualizada dos
estabelecimentos de saúde oficiais e oficialmente reconhecidos que realizam
interrupção da gravidez e respectivos contactos;
b) Informação sobre a
forma de iniciar o processo de interrupção da gravidez;
c) Formulários e
documentos normalizados;
d) Legislação aplicável.
Artigo 23.º
Auditoria,
inspecção e fiscalização
1 - Compete à
Inspecção-Geral das Actividades em Saúde a realização de auditorias, de
inspecções e de fiscalizações aos estabelecimentos de saúde oficialmente
reconhecidos onde se realize interrupção da gravidez.
2 - A Inspecção-Geral das
Actividades em Saúde deve comunicar à administração regional de saúde
territorialmente competente e à Direcção-Geral da Saúde a instauração dos
processos relativos aos estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos
onde se realize interrupção da gravidez, bem como a respectiva conclusão.
Artigo 24.º
Entrada
em vigor
A presente portaria
entra em vigor no dia 15 de Julho de 2007.
5. Fundamentação do pedido
Os
requerentes justificaram a sua legitimidade processual
activa por estar em causa a protecção de direitos autonómicos, no
caso da Região Autónoma da Madeira.
Arguem
que a entidade que solicita este pedido de fiscalização – o Presidente da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira – é uma das entidades
mencionadas no artigo 281.º, n.° 2, alínea g), da
Constituição da República Portuguesa, como estando constitucionalmente
habilitadas a requerer a fiscalização da constitucionalidade – no tocante à
defesa dos direitos regionais – e da legalidade – no que é atinente à violação
do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
Apontaram,
quer vícios de inconstitucionalidade material, quer vícios de
inconstitucionalidade e ilegalidade orgânico-formal, com os fundamentos a
seguir indicados.
5.1. Inconstitucionalidade material
5.1.1. Por violação da norma constitucional
que consagra o direito à vida
- As
normas objecto do pedido de fiscalização da constitucionalidade violam o
direito fundamental à vida, consagrado no artigo 24.°, n.° 1, da Constituição,
no qual se afirma que “A vida humana é inviolável”.
- A
substância das ditas normas – quer da norma legal principal de despenalização
do aborto livre ou a pedido, quer das normas periféricas, legislativas e
regulamentares, que tornam legitima e organizada tal prática – jamais poderá
conciliar-se com aquela protecção fundamental da pessoa humana.
-
Tal prática abortiva – a partir de agora despenalizada e livre – configura a
destruição de uma vida humana.
- A
Lei n.º 16/2007, ao permitir que a prática do aborto seja feita apenas por
opção da mulher, sem que para tanto apresente qualquer justificação material –
seja ela médica, económica ou social – transfere a decisão de abortar para o
mero arbítrio da mãe, sem qualquer protecção do bebé que vai ver o fim da sua
vida.
- A
protecção penal é a resposta mais convincente que o Direito pode dar na defesa
daquilo que lhe é mais essencial, não parecendo que outra coisa mais relevante
surja do que a protecção da própria vida humana.
- A
desprotecção penal, sendo uma legalização, não é substituída por qualquer outra
protecção equivalente que possa ombrear com a protecção penal, deixando o valor
em causa – a vida humana pré-natal – entregue à disponibilidade das pessoas,
sem que o Estado actue na sua defesa, que tem de ser legislativa,
administrativa e financeira.
-
Sabendo-se que continua a ser crime a mesma prática abortiva feita, com os
mesmos fundamentos, em bebé que tenha 10 semanas e mais um dia, a
despenalização efectuada funda-se numa delimitação arbitrária e, por isso,
juridicamente insuportável.
- A
norma constitucional em causa não deslinda entre vidas humanas “mais fortes” e
vidas humanas “mais fracas”, sabendo-se hoje com segurança, através da Ciência,
que a gravidez implica a existência de um novo ser humano, o qual é gerado no
momento da fecundação, não mais parando a sua evolução até ao momento da sua
morte física.
- É
ontologicamente que se deve sempre conceber a vida humana, a qual deve receber
uma protecção qualitativamente idêntica desde o momento em que aparece, que é a
partir da concepção, mesmo ainda quando não há nidificação do óvulo fecundado.
5.1.2. Por violação do princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana
- A
violação da inviolabilidade da pessoa humana, considerada no artigo 24.°, n.°
1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o «direito à vida»,
não se apresenta como uma ofensa localizada a um mero preceito constitucional,
dado que o aborto despenalizado livre ou a pedido, admitido pela Lei n.°
16/2007, coloca em crise os fundamentos do próprio Estado e do Direito em
Portugal, ao ser intolerável sob o ponto de vista da dignidade da pessoa
humana.
- O
artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa não podia ser mais
peremptório nesta protecção, proclamando que «Portugal é uma República
soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e
empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.
- A
violação da dignidade da pessoa humana cifra-se na condição a que o bebé,
dentro do ventre materno, se sujeitará, até às 10 semanas de vida, depois da
entrada em vigor da Lei n.° 16/2007: a redução a mero “objecto”, que passa a
ser descartável pela mãe a partir do momento em que Estado e a Sociedade não o
defendem, atribuindo o “poder de vida e de morte” sobre uma vida humana àquela
progenitora.
- A
atribuição desse “poder de vida e de morte”, sem qualquer justificação, tem a
conivência do próprio Estado, que para tanto organiza procedimentos
administrativos e médicos.
5.2. Inconstitucionalidade e ilegalidade
orgânico-formal
5.2.1. Inconstitucionalidade e ilegalidade por
violação da autonomia legislativa, administrativa e financeira regional,
constitucional, estatutária e legalmente configurada
- A
Lei n.° 16/2007, assim como a Portaria n.° 741-A/2007, apresentam-se com uma
vocação de aplicação territorial global – logo também no território madeirense
–, o que resulta em qualquer dos casos evidente por se referir “os
estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos”, sem distinção
entre estabelecimentos estaduais e regionais.
-
Aqueles diplomas estaduais – um legislativo e o outro regulamentar – impõem uma
prática de aborto despenalizado, livre ou a pedido aos órgãos regionais, sem
que estes tenham dito o que quer que fosse no tocante à organização dos
cuidados de saúde pertinentes, há muitos anos regionalizados.
- A
pretensão estadual de obrigar o sistema regional de saúde à prática do aborto
despenalizado, livre ou a pedido fora dos quadros da competente decisão
regional não respeita as regras e os princípios, constitucionais e
infra-constitucionais, aplicáveis, violando o núcleo da autonomia regional, que
permite a livre decisão pública em muitos dos respectivos domínios.
- O
acesso à prestação do aborto despenalizado, livre ou a pedido corresponde a uma
tarefa que se situa, do ponto de vista da sua regulação jurídica, no âmbito da
competência regional, pois a «saúde» está enunciada como matéria de interesse
regional na alínea m) do art. 40.º do Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma da Madeira.
-
Essa vem a ser a realidade da saúde no território madeirense, devidamente
enquadrada pelo Sistema Regional de Saúde, que é essencialmente executado pelo
serviço regional de saúde, em desenvolvimento da Lei de Bases da Saúde, nunca
ninguém tendo questionado essa regionalização legislativa da saúde na Madeira.
-
Por outro lado, a matéria da saúde não integra o conjunto das competências que
são constitucionalmente reservadas aos órgãos de soberania, sendo que a única
matéria próxima desta é a das “Bases do Serviço Nacional de Saúde”, matéria
descrita no art. 165°, n.° 1, alínea f), da
Constituição da República Portuguesa, cuja lei estadual respectiva – a Lei de
Bases da Saúde – expressamente aceita a criação do sistema regional de saúde.
-
Acresce que, estando no ambiente dos direitos económicos, sociais e culturais,
a competência estadual não é exclusiva, ao contrário do que sucede em matéria
de direitos, liberdades e garantias, pois que estes são directamente referidos
no artigo 165.°, n.° 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa.
5.2.2
Inconstitucionalidade e ilegalidade por violação do direito, constitucional e
legal, de audição prévia das regiões autónomas
- A
Região Autónoma da Madeira não foi auscultada na instrução do procedimento
legislativo de elaboração da Lei n.° 16/2007.
-
Porém, o texto da Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 229.°,
n.° 2, atribui às regiões autónomas um direito constitucional de audição nas
mais relevantes matérias: “Os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente
às questões da sua competência respeitantes às Regiões Autónomas, os órgãos de
governo regional”.
- O
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela
Lei n.° 130/99, de 21 de Agosto, particularizou este direito nos seus artigos
90.° e seguintes, designadamente definindo o seu âmbito e indicando a
inconstitucionalidade e a ilegalidade dos actos normativos produzidos com a
violação do mesmo.
- A
Lei n.° 40/96, de 31 de Agosto, de um modo mais completo, ainda que sem a força
própria de uma lei estatutária, viria a concretizar este direito
constitucionalmente consagrado, melhor configurando os respectivos contornos,
ao estabelecer no seu art. 4° que, nas matérias de cunho legislativo, é a
Assembleia Legislativa o órgão competente para ser ouvido.
- O
ênfase que o legislador da República quis dar a este direito constitucional
expressa-se no vício cominado para os actos jurídico-públicos desrespeitadores
de tal direito, impondo no artigo 9.º da Lei n.° 40/96, de 31 de Agosto, que «A
não observância do dever de audição, nos termos da presente lei, por parte dos
órgãos de soberania, determina, conforme a natureza dos actos, a sua
inconstitucionalidade ou ilegalidade”.
- A
Assembleia da República nunca ouviu a Assembleia Legislativa da Região Autónoma
da Madeira na elaboração do diploma que viria a tornar-se a Lei n.° 16/ 2007.
- A
omissão de audição prévia por parte da Assembleia da República infringiu a
totalidade deste direito de audição, ao não lhe ter sido dada a oportunidade
sequer de uma mínima pronúncia, e impedindo-se assim de levar à consideração do
decisor legislativo os argumentos que este eventualmente devesse ponderar para
assumir uma solução definitiva.
6. Resposta dos autores das
normas
6.1. Da Assembleia da República
Notificada
para se pronunciar, querendo, sobre o pedido de declaração de
inconstitucionalidade e ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas da
Lei n.º 16/2007, de 16 de Abril, acima identificadas, a Assembleia da
República, por intermédio do respectivo Presidente, optou por limitar o
exercício do respectivo direito de resposta ao suscitado vício de inconstitucionalidade e ilegalidade por violação do
direito, constitucional e legal, de audição prévia das Regiões Autónomas (ponto 5.2.2.), oferecendo, em tudo o
mais, o merecimento dos autos.
No
que respeita à referida suscitação, apresentou os argumentos seguintes:
- A
Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, globalmente considerada, não é manifestamente
uma questão respeitante às Regiões Autónomas, nem, em especial, à Região
Autónoma da Madeira, tratando-se, ao invés, de uma Lei que, pela sua natureza e
pelo seu objecto, se destina a todo o país, sem excepção de regiões ou
parcelas.
-
Por outro lado, também a Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, não se apresenta com
alguma especificidade ou particularidade relevante no que toca às Regiões
Autónomas, que tivesse obrigado à existência de audição das mesmas no processo
legislativo.
-
Conforme abundante jurisprudência deste Tribunal, “o direito de audição
constitucionalmente garantido às Regiões Autónomas refere-se a actos que, sendo
da competência dos órgãos de soberania, incidam de forma particular sobre uma
ou ambas as Regiões ou versem sobre interesses predominantemente regionais”
(Acórdãos n.ºs 42/85, 284/86, 403/89, 670/99, 684/99, 243/2002).
-
Tal como meridianamente espelhado no Acórdão n.º 529/2001, deste Tribunal, em
evocação do Parecer n.º 20/77, da Comissão Constitucional, “são questões da
competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às regiões autónomas, aquelas
que, excedendo a competência dos órgãos do governo regional, respeitem a
interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam no plano
nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em
função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se
revestem para esses territórios”.
- Do
que deva entender-se por “respeitantes às regiões autónomas” reza o recente
Acórdão n.º 551/2007, de 7 de Novembro, do Tribunal Constitucional, ao
pronunciar-se do modo seguinte: “Assim a expressão “respeitantes às regiões
autónomas”, constante do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição deve (continuar
a) ser interpretada no sentido de se tratar de matérias que, apesar de serem da
competência dos órgãos de soberania, nelas os interesses regionais apresentam
particularidades por comparação com os interesses nacionais, quer devido às
características geográficas, económicas, sociais e culturais das regiões, quer
devido às históricas aspirações autonomistas das populações insulares, que
justificam a audição dos órgãos de governo regional.
- A
Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, é uma lei que, pela sua natureza e pelo seu
objecto globalmente considerados, se destina a todo o País, não sendo
manifestamente uma questão respeitante às Regiões Autónomas, nem muito menos à
Região Autónoma da Madeira.
-
Devendo concluir-se que o direito de audição não existe em relação à mesma, não
se verificou qualquer violação do direito de audição dos órgãos do governo
regional.
6.2. Do Ministro
da Saúde
Notificado
para se pronunciar, querendo, sobre o pedido de declaração de
inconstitucionalidade e ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas da
Portaria n.º 741-A/2007, de 16 de Abril, identificadas supra, o Ministro da
Saúde, por intermédio do respectivo Gabinete, respondeu nos seguintes termos:
-
Para que a Portaria n.º 741-A/2007, de 16 de Abril, seja considerada ilegal é
necessário que se demonstre que a mesma padece de desconformidade com a lei
habilitante.
-
Contudo, a Portaria obedece estritamente aos requisitos de legalidade dos
regulamentos, já que foram observados os requisitos, objectivos materiais e
objectivos formais.
- A
Portaria foi assinada pelo Ministro da Saúde ao abrigo da alínea c) do art. 109.º da Constituição, pelo que sempre se cumpre
o requisito subjectivo de autoria do regulamento.
-
Quanto aos requisitos objectivos materiais, o regulamento não invade a reserva
da lei e é perfeitamente conforme com o “bloco de legalidade” que visa
executar.
- Finalmente,
no que respeita aos requisitos objectivos formais, verifica-se que a forma de
regulamento é a prescrita pelo diploma legislativo que autoriza a actividade
normativa consequente, conforme se verifica pelos artigos 2.º, 4.º e 8.º da Lei
n.º 16/2007, de 17 de Abril.
-
Acresce que, ao contrário do que é afirmado no requerimento do Presidente da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, a Portaria do Ministério
da Saúde não tem “uma vocação de aplicação territorial global, logo se aplicando
ao território madeirense”.
- De
facto, não tendo a Assembleia da República, na Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril,
reservado o poder regulamentar, parece ser de entender, de acordo com o
disposto na alínea d) do n.º 1 do
artigo 227.º da Constituição da República Portuguesa, que a matéria em causa,
no que à regulamentação diz respeito, tem cariz concorrencial, pelo que a
aplicação da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho, na Região Autónoma da
Madeira, será apenas subsidiária.
7. Incorporação do Processo
n.º 1186/07 no Processo n.º 733/07
O
requerimento apresentado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira, com o objecto e os fundamentos acima assinalados, bem como
as respostas que sobre ele recaíram do Presidente da Assembleia da República e
do Ministro da Saúde, começaram por integrar os autos do Processo de
Fiscalização Abstracta n.º 1186/07 do Tribunal Constitucional.
Nesse Processo n.º 1186/07, o Presidente do Tribunal Constitucional
lavrou um despacho, ordenando, em conformidade com o disposto no artigo 64.º,
n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, a incorporação dos correspondentes
autos no Processo n.º 733/07, dado que ambos «respeitam ao mesmo complexo
normativo (o que veio proceder à revisão do regime jurídico da interrupção
voluntária da gravidez)» – não fazendo sentido, por isso, que o Tribunal se
pronuncie separadamente sobre os respectivos pedidos».
8. Discussão do
memorando
Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando a que se refere o
artigo 63.º, da Lei do Tribunal Constitucional, e tendo este sido submetido a
debate, nos termos do n.º 2 do referido preceito, cumpre agora decidir de
acordo com a orientação que o Tribunal fixou.
II – Fundamentação
9. Questões prévias
9. 1. Legitimidade dos requerentes
9.1.1.
Dos deputados da Assembleia da República (Processo
n.º 733/07)
O
pedido que deu início aos presentes autos foi formulado ao abrigo do disposto
no artigo 281.º, n.º 2, alínea f),
da Constituição, norma esta que confere legitimidade a um décimo dos Deputados
à Assembleia da República para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração
de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, com força obrigatória geral.
Conforme
se verifica, o pedido apresentado encontra-se subscrito por trinta e três
deputados à Assembleia da República, o que permite dar por preenchido o
requisito de legitimidade constante da referida norma e consistente em um
número mínimo de vinte e três subscrições.
9.1.2. Do
Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira (Processo n.º 1186/07)
A
legitimidade do Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da
Madeira para requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação da
constitucionalidade e da legalidade de normas é-lhe conferida pelo disposto na
alínea g) do n.º 2 do artigo
281.º da Constituição.
Tal
norma confere às entidades aí referidas um poder de iniciativa que, ao invés do
que sucede com aquele que é atribuído aos demais órgãos enumerados naquele n.º
2, não é geral, mas limitado, uma vez que só é reconhecido quando apoiado em
certos fundamentos específicos.
Assim,
se o pedido for de declaração de
inconstitucionalidade, o respectivo fundamento só poderá consistir na “violação
dos direitos das regiões autónomas”; se for de declaração de ilegalidade,
apenas poderá basear-se na violação do Estatuto da Região Autónoma em
cujo âmbito se inscreva a entidade requerente.
Uma
vez que a legitimidade do requerente depende directamente da causa de pedir
apresentada, importa verificar se os fundamentos do pedido em análise se
enquadram na previsão da referida norma constitucional.
Conforme
decorre do já exposto, o pedido de declaração da inconstitucionalidade de um
conjunto de normas constantes da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, e da Portaria
n.º 741-A/2007, formulado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira, funda-se na violação da norma constitucional que consagra
o direito à vida (artigo 24.º, n.º 1, da CRP), do princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), bem como na afectação do núcleo
da autonomia regional.
Quanto
às duas primeiras causas de pedir, o Presidente da Assembleia Legislativa da
Região Autónoma da Madeira não dispõe de legitimidade.
Com
efeito, quando o requerente pede a declaração de inconstitucionalidade das
normas acima referidas, com fundamento na violação dos artigos 1.º e 24.º, n.º
1, ambos da CRP, não formula um pedido de "declaração de inconstitucionalidade fundado em violação dos direitos
das regiões", uma vez que os direitos das regiões são os
direitos regionais constitucionalmente previstos – ou seja, «aqueles que, no
próprio texto constitucional, configuram e concretizam o princípio da autonomia
político-administrativa das Regiões Autónomas» (RUI MEDEIROS, in JORGE MIRANDA/RUI
MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada,
Coimbra, 2007, III, 807) – e no respectivo âmbito não se inscrevem os
princípios constitucionais da protecção do direito à vida e da dignidade da
pessoa humana.
É,
assim, manifesta a falta de legitimidade processual do Presidente da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira para fundamentar o pedido de
declaração de inconstitucionalidade em violação das normas dos artigos 1.º e/ou
24.º, n.º 1, da CRP, já que tal fundamento não é subsumível na previsão do
artigo 281.º, n.º 2, alínea g),
da CRP.
No
mais, o requerente dispõe de legitimidade.
9.2. Delimitação do
objecto do pedido formulado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira
Na
parte em que ao respectivo conhecimento se não opõe a falta de legitimidade do
requerente, o pedido formulado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira tem em vista a declaração de inconstitucionalidade e
ilegalidade orgânico-formal do «art. 1º – na parte em que acrescenta a nova
alínea e) ao n.º 1 do art.142º, do Código Penal – da Lei n.º 16/2007, bem como
de todas as normas conexas com esta
alteração legislativa, que são as restantes normas da nova versão do
art.142º do Código Penal, dada por aquele art.1º, além dos arts. 2º, 3º, 4º,
5º, 7º, e 8º, da Lei n.º16/2007, de 17 de Abril”, e ainda das “normas conexas da Portaria n.º 741-A/2007,
de 21 de Junho, que são as normas dos respectivos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º,
6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 21º, 22º, 23º e
24º» (itálico nosso).
O
conjunto dos preceitos convocados pelo requerente no âmbito da definição do
objecto do pedido compreende a totalidade dos enunciados contidos em ambos os
diplomas questionados, apenas excepcionando, quanto à Lei n.º 16/2007, o
respectivo artigo 6.º – que dispõe sobre a objecção de consciência – e,
relativamente à Portaria n.º 741-A/2007, os respectivos artigos 12.º e 20.º – o
primeiro igualmente dedicado à objecção de consciência e o segundo às comissões
técnicas de certificação no exclusivo âmbito da interrupção da gravidez por
grave doença ou malformação congénita do feto ou fetos inviáveis.
Com
tal extensão, o conjunto dos preceitos convocados começa por integrar dois
tipos de normas: por um lado, aquelas que, procedendo juridicamente da
alteração consistente no aditamento ao elenco previsto no n.º 1 do artigo 142.º
do Código Penal da previsão agora constante da respectiva alínea e), gravitam directamente em torno desta,
tendo por isso o seu sentido e alcance funcionalmente circunscritos à
interrupção voluntária da gravidez (ou,
na terminologia utilizada pelo requerente, ao “aborto
despenalizado, livre ou a pedido”); por outro lado, aquelas normas
que, na medida em que dispõem sobre todas as interrupções da gravidez
contempladas no elenco do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, se aplicam
também à interrupção voluntária da gravidez prevista na referida alínea e), embora não sejam privativas de tal fattispecie e subsistam, portanto, para
além dela.
Naquela
primeira categoria de normas situam-se as insertas nos n.ºs 3 e 4, alínea b), do artigo 142.º do Código Penal, na redacção
conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, nos artigos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º,
deste diploma, bem como as constantes dos artigos 16.º, 17.º, 18.º e 19.º da
Portaria n.º 741-A/2007.
Da
segunda categoria fazem parte as normas dos n.º 2, 5, 6 e 7 do artigo 142.º do
Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, bem
como os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º,
14.º, 15.º, 21.º, 22 e 23.º da Portaria n.º 741-A/2007.
Às
categorias acabadas de enunciar será possível adicionar mais uma: a das
chamadas normas técnicas, auxiliares
ou operacionais, aqui formada pelos artigos
7.º e 8.º da Lei n.º 16/2007 e 24.º da Portaria n.º 741-A/2007.
Em face
dos múltiplos conteúdos normativos extraíveis dos preceitos legais convocados
pelo requerente, a questão que o pedido coloca consiste justamente em saber se
todas as normas acima referidas deverão considerar-se integrantes do respectivo
objecto ou se, incidindo este, como dos seus termos expressamente resulta,
sobre o “art. 1º - na parte em que
acrescenta a nova alínea e) ao n.º1 do art.142º, do Código Penal – da Lei n.º
16/2007” e “normas conexas com
esta alteração legislativa”, somente aquelas que, constando dos
enunciados legais indicados, se encontrem efectivamente conexionadas com a
primeira deverão considerar-se visadas pela declaração de inconstitucionalidade
pretendida.
Dito
de outro modo: trata-se de saber se a circunstância de a totalidade das normas
acima referidas se objectivar nos preceitos legais indicados no requerimento as
imporá automaticamente como objecto do pedido ou se a correcta configuração do
mesmo não suporá a sua restrição àquelas que, cabendo nos preceitos apontados,
desempenhem, relativamente à norma central constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código
Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, a função
instrumental, complementar ou regulamentar que é suposta pela relação de
conexão perspectivada pelo requerente.
Apenas
esta segunda hipótese é consonante, quer com os termos em que o objecto
processual é apresentado, quer com a representação subjacente aos fundamentos
que sustentam o pedido.
Quanto
ao objecto processual e sob esta mesma epígrafe, lê-se no requerimento o
seguinte:
«1)
Em 17 de Abril de 2007, foi publicado no Diário da República, 1ª série, a Lei n.º 16/2007, de 17 de
Abril, que no seu preceito central,
passou a admitir uma nova forma de aborto despenalizado, o aborto livre ou a pedido,
tal como se lê no respectivo art. 1°, que acrescentou uma nova al. e) ao art.
142°, n.º1, do Código Penal, nela se prescrevendo o seguinte: “Não é punível a
interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em
estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o
consentimento da mulher grávida, quando: (...) For realizada, por opção da
mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez”.
2)
Ora, esta norma da Lei n. °16/2007, de 17 de Abril, e por consequência as restantes normas periféricas da mesma Lei n.º
16/2007, bem como as normas da Portaria n.º 74 1-A/2007, de 21 de Junho, que as
regulamentam, violam frontalmente a Constituição da República
Portuguesa, para além de diversas convenções e textos internacionais a que
Portugal se vinculou, sem ainda excluir a infracção de preceitos
constitucionais, estatutários e legais atinentes à configuração da autonomia
regional conferida aos arquipélagos dos Açores e da Madeira com a aprovação da
Constituição da República Portuguesa de 1976.» (itálico nosso).
A
perspectiva subjacente à fundamentação do pedido confirma a relação de conexão
pressuposta na descrição do objecto respectivo.
Os
argumentos aduzidos pelo requerente desenvolvem-se, com efeito, em torno de
afirmações como a de que «aqueles diplomas estaduais – um legislativo e o outro
regulamentar – impõem uma prática de aborto
despenalizado, livre ou a pedido aos órgãos regionais, sem que estes
tenham dito o que quer que fosse no tocante à organização dos cuidados de saúde
pertinentes, há muitos anos regionalizados»; e a de que a «pretensão estadual
de obrigar o sistema regional de saúde à prática do aborto despenalizado, livre ou a pedido fora dos quadros da
competente decisão regional não respeita as regras e os princípios,
constitucionais e infra-constitucionais, aplicáveis, violando o núcleo da
autonomia regional, que permite a livre decisão pública em muitos dos
respectivos domínios»; e ainda a de que «o acesso à prestação do aborto despenalizado,
livre ou a pedido corresponde a uma tarefa que se situa, do ponto de
vista da sua regulação jurídica, no âmbito da competência regional, pois a
“saúde” está enunciada como matéria de interesse regional na alínea m) do art.
40º do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira» (itálico nosso).
Tais
afirmações revelam claramente que a realidade normativa pretendida sujeitar aos
poderes de fiscalização da constitucionalidade é tão-somente aquela que,
respeitando à interrupção voluntária da gravidez, procede da norma central
contida na alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º
16/2007, sendo completada pelas normas desta Lei e da Portaria que directamente
se lhe reportam e, na medida em que a incluem também, ainda pelos conteúdos que
em ambos aqueles diplomas regulam aspectos comuns a todas as modalidades de
interrupção da gravidez admitidas pelo ordenamento.
A
relação de conexão expressamente pressuposta no requerimento exerce, assim, um
efeito determinante da configuração última do objecto processual, funcionando
como fórmula delimitadora dos conteúdos normativos sob efectivo questionamento
e, por consequência, do próprio thema
decidendum fixado ao Tribunal através do pedido.
Em
consonância com o sentido que o pedido globalmente evidencia, o respectivo
objecto deverá considerar-se, pois, limitado ao complexo normativo integrado:
(i) pela norma constante da alínea e)
do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção dada pelo artigo 1.º da
Lei n.º 16/2007; (ii) pelas normas contidas nos n.ºs 3 e 4, alínea b), do artigo 142.º do Código Penal, na
redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, nos artigos 2.º, 3.º,
4.º e 5.º, deste diploma, e nos artigos 16.º, 17.º, 18.º e 19.º da Portaria n.º
741-A/2007, todas daquela complementares; (iii) pelas normas objectivadas nos
n.ºs 2, 5, 6 e 7 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo
artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, bem como nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º,
6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 21.º, 22.º e 23º da Portaria
n.º 741-A/2007, apenas na acepção que completa o regime procedente da primeira.
Por
não se encontrarem conexionados com a “alteração
legislativa” produzida através da edição da norma constante do “preceito central” da alínea e) ao n.º 1 do artigo 142º, do Código
Penal, na redacção do artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, deverão considerar-se
excluídos do objecto do pedido os demais conteúdos normativos reportáveis aos
(restantes) preceitos legais indicados no requerimento.
9.3. Ordem de apreciação dos pedidos
A
fusão, num só, de dois processos com objectos múltiplos não coincidentes, ainda
que respeitantes à mesma área normativa, levanta problemas específicos quanto à
ordem de apreciação dos respectivos pedidos e dos fundamentos que os sustentam.
Para estabelecer uma estruturação consequente dos temas a tratar, há que
avaliar a forma como eles se relacionam entre si.
O pedido formulado pelo grupo de deputados da
Assembleia da República tem em vista a declaração, com força obrigatória geral,
de inconstitucionalidade e ilegalidade da regulação contida na Lei n.º 16/2007,
de 17 de Abril, em especial das normas insertas nos respectivos artigos 1.º –
esta na parte concernente ao segmento que, revendo o artigo 142.º do Código
Penal, acrescentou a alínea e) ao
respectivo n.º 1 e, na sequência de tal acrescento, introduziu o actual n.º 3 e
a alínea b) do n.º 4 –, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2.
Os
fundamentos invocados para a pretendida declaração integram, no que diz
respeito à inconstitucionalidade formal que se lhes aponta, a violação dos
artigos 1.º a 3.º, 108.º, 109.º e 115.º, n.ºs 1 e 11, todos da CRP, e, no que
toca à inconstitucionalidade material, as normas constantes dos artigos 1.º,
2.º, 13.º, 18.º, n.º 2, 24.º 25.º, 26.º, 27.º, n.º 1, 36.º, 64.º, n.ºs 1 e 2,
alínea b), 66.º, n.º 1, 67.º,
68.º, n.º 2, 73.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, 165.º, n.º 1, alínea b), também da Lei Fundamental.
Na parte em que ao respectivo conhecimento se não
opõe a falta de legitimidade do requerente, o pedido formulado pelo Presidente
da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira tem em vista a
declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade orgânico-formal dos artigos
1.º – este na parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º, do Código Penal, e dá origem às
restantes normas da nova versão do mesmo –, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º e 8.º,
todos da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º,
4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º,
19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º, estes da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de
Junho.
Os
fundamentos para a contestação da validade orgânico-formal dos conteúdos
normativos inscritos nos mencionados diplomas consistem na violação da
autonomia legislativa, administrativa, financeira e regional, constitucional,
estatutária e legalmente configurada, bem como na violação do direito,
constitucional e legal, de audição prévia das regiões autónomas, consagrado no
artigo 229.°, n.° 2, da CRP.
A resolução das questões de
constitucionalidade suscitadas pelo Presidente da Assembleia Legislativa da
Região Autónoma da Madeira só reveste utilidade se a aplicabilidade do complexo
normativo impugnado não vier a resultar directamente comprometida pelo eventual
reconhecimento de vícios intrínsecos determinantes da respectiva invalidade
constitucional.
A
questão central que é objecto do pedido legitimamente formulado pelo grupo de
deputados da Assembleia da República assume, manifestamente, natureza
prejudicial em relação à apreciação de vícios atinentes à alegada afectação das
competências da Região.
Assim,
o conhecimento das questões sub judice
principiará pela consideração do pedido que deu origem aos presentes autos e
respectivos fundamentos, pedido esse que, pela razão acabada de apontar,
precede, também logicamente, aquele que cronologicamente lhe sucedeu.
A) - Pedido formulado no âmbito do processo n.º 733/07 e respectivos
fundamentos
10. Os vícios formais
São
dois os vícios formais que, de acordo com os requerentes, afectam a Lei n.º
16/2006, de 17 de Abril: (i) a aprovação de acto legislativo correspondente à
pergunta objecto de resposta positiva no âmbito do referendo proposto na
Resolução n.º 54-A/06 da Assembleia da República e realizado no dia 11 de
Fevereiro de 2007, sem que este tivesse tido eficácia vinculativa; (ii) a
modificação pela Assembleia da República da disciplina jurídica contida em lei
que, no âmbito das eleições em que fizeram eleger os respectivos
representantes, os dois maiores partidos políticos com assento parlamentar se
comprometeram a alterar somente por via referendária.
10.1. A não vinculatividade do referendo e suas
consequências
A Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, teve
origem no Projecto de Lei n.º 19/X, apresentado pelo grupo parlamentar do
Partido Socialista.
Este
projecto de lei foi apresentado em simultâneo com o Projecto de Resolução n.º
148/X – “projecto de resolução convocando um referendo popular sobre o aborto”
–, o qual, tendo sido aprovado em reunião plenária da Assembleia da República,
realizada no dia 19 de Outubro de 2006, veio a dar lugar à Resolução n.º
54-A/2006, publicada no DR, 1.ª série,
de 20 de Outubro de 2006.
Previa
tal Resolução que, através de referendo, os cidadãos eleitores recenseados no território nacional fossem
chamados a pronunciar‑se sobre a seguinte pergunta:
«Concorda com a despenalização da
interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas
primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».
Convocado
o referendo em tais termos aprovado e realizado este no dia 11 de Fevereiro de
2007, os resultados viriam a ser os seguintes: a percentagem dos votantes quedou-se
pelos 43,57% dos eleitores inscritos no recenseamento, correspondendo a
resposta positiva 59,25% dos votos validamente expressos e a negativa a 40,75%
(cfr. Mapa Oficial, DR, 1.ª
série, de 1 de Março de 2007).
Preceitua o n.º 11 do artigo 115.º da CRP
(aditado, conforme é sabido, pela revisão constitucional de 1997), que «o referendo só tem efeito vinculativo quando o número
de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento».
Este princípio encontra-se integralmente reproduzido
no artigo 240.º da Lei n.º 15-A/98, de 3 de Abril (Lei Orgânica do Regime do
Referendo).
Sob
a epígrafe “Dever de não agir da Assembleia
da República e do Governo”, o artigo 243.º do referido diploma legal
estabelece, por seu turno, que «a
Assembleia da República ou o Governo não podem aprovar convenção internacional
ou acto legislativo correspondentes às perguntas objecto de resposta negativa com eficácia vinculativa,
salvo nova eleição da Assembleia da República ou a realização de novo referendo
com resposta afirmativa» (itálico nosso).
Perante
estes dados do regime jurídico-constitucional e legal do referendo, fácil é
concluir pela improcedência do vício formal apontado pelos requerentes.
Com
efeito, encontrando-se definido um quórum de participação com base no número de
eleitores recenseados (cfr. os artigos 115.º, n.º 11, da CRP, e 240.º da Lei
n.º 15-A/98, de 3 de Abril) e não tendo este sido atingido, o referendo
realizado a 11 de Fevereiro de 2007 não foi vinculativo, o que, do ponto de vista
do condicionamento da actividade legislativa subsequente, o torna juridicamente
irrelevante.
De
acordo com o regime jurídico do
referendo, o órgão legiferante com competência para editar a medida legislativa
de sentido normativo correspondente ao da proposta submetida ao eleitorado só
ficará inibido de o fazer na mesma legislatura caso se verifique um duplo
condicionalismo: carácter vinculativo do referendo e vencimento da resposta
negativa. Nenhuma destas condições, cumulativamente exigíveis, se verificou,
pelo que a Assembleia da República não se encontrava impedida de aprovar a Lei
n.º 16/2007.
A
Lei n.º 16/2007 não é, deste ponto de vista, formalmente inválida.
10.2. A ilegitimidade material da Assembleia da
República
Sob
invocação dos artigos 1.º a 3.º, 108.º e 109.º da CRP, os requerentes contestam
ainda a validade da Lei n.º 16/2007, com fundamento em alegada ilegitimidade
material da Assembleia da República para a respectiva aprovação, ilegitimidade
essa decorrente do facto de os dois maiores partidos políticos com assento
parlamentar haverem feito constar dos programas eleitorais com que se
apresentaram a eleições legislativas o compromisso de que somente por via
referendária aceitariam modificar o regime jurídico da interrupção voluntária
da gravidez.
A
demonstração da insustentabilidade jurídico-constitucional da construção
seguida pelos requerentes quase dispensa a análise detalhada do alcance
normativo atribuível ao conjunto dos parâmetros constitucionais invocados.
Em
face do respectivo enunciado, torna-se desde logo evidente a impossibilidade de
extrair deles qualquer regra ou princípio que juridicamente permita projectar
sobre a validade dos actos legislativos aprovados pela Assembleia da República
a responsabilidade, necessariamente política, que porventura possa associar-se
à hipotética inobservância ou incumprimento de compromissos assumidos pelos
titulares dos órgãos legiferantes através dos programas eleitorais apresentados
no âmbito das eleições em que se fizeram eleger.
No
plano da construção jurídica possível, os princípios da soberania popular
(artigos 1.º a 3.º) e da democracia participativa (artigo 2.º), consagrados na
Constituição, não constituem fundamento idóneo de uma teoria que cruze o plano
da legitimidade constitucional dos órgãos com competência legislativa e da
validade dos actos praticados no exercício das respectivas competências com o
plano da eventual desconformidade do sentido ou conteúdo programático de tais
actos relativamente aos compromissos previamente assumidos perante o
eleitorado.
A
responsabilidade adveniente da inobservância de compromissos eleitorais, a
existir, será de natureza exclusivamente política, concretizando-se
primordialmente através do juízo de avaliação do desempenho dos titulares dos
órgãos legiferantes no termo dos respectivos mandatos, juízo esse que, no
exercício do poder político que lhes pertence, aos eleitores caberá formular e
exprimir através do voto.
O sentido para que apontam as normas constitucionais
convocadas é, de resto, inequivocamente contrário à tese sustentada pelos
requerentes.
O
invocado princípio da soberania popular – implicado já, enquanto fundamento da
acção e legitimação do Estado, quer no artigo 1.º (vontade popular), quer no
artigo 2.º (soberania popular) da Constituição (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL
MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 215) –, encontra-se particularmente densificado no n.º 1 do
respectivo artigo 3.º, aí se estabelecendo que «a soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exercerá segundo
as formas previstas na Constituição».
Como
aqueles Autores explicitam (ob. cit.,
216), «por formas previstas na
Constituição entender-se-ão as modalidades e os procedimentos
jurídico-constitucionalmente previstos para a manifestação da vontade política
do povo, nomeadamente as eleições e os referendos segundo os procedimentos
previstos na própria Constituição (…)».
O
exercício da soberania que reside no povo e do poder político a este
pertencente far-se-á, portanto, através dos mecanismos tipificados na
Constituição, os quais, incluindo muito especialmente a eleição, por sufrágio
directo, dos membros da Assembleia da República (artigos 149.º s.), não
contemplam, porém, qualquer um que viabilize a sindicância de uma eventual
desconsideração de compromissos assumidos perante o eleitorado, através da
invalidação, por ilegitimidade do órgão legiferante, dos actos praticados em
desconformidade com o conteúdo do programa eleitoral sufragado pelos eleitores,
sob proposta dos respectivos titulares.
A
argumentação desenvolvida pelos requerentes é, pois, a todos os títulos,
manifestamente improcedente.
11.
Os vícios materiais
11.1. As questões de
inconstitucionalidade material: seu objecto
Os
vícios materiais que os requerentes apontam às normas impugnadas são enunciados
nas alíneas T) a Z) das conclusões do pedido, formuladas nos seguintes termos:
«T) A possibilidade de se
praticar o aborto sem alegação de fundamentos, constitui o arbítrio que deixa a
mulher e a criança totalmente desprotegidos, violando-se, assim, o disposto nos
arts. 1.°, 2.°, 24.°, 25.°, 36.°, 67.°, e
68.° da C.R.P.;
U) A Lei 16/2007, de l7
de Abril, deixa o progenitor masculino totalmente arredado do processo de
responsabilidade e processo de formação da decisão no aborto, violando-se desta
forma os arts. 1.°, 2.°, 24.°, 67.° al. d) da C.R.P. e ainda o principio da
igualdade fixado nos arts. 13.° e 36.° n.°s 3 e 5 da CRP;
V) A objecção de
consciência prevista na Lei 16/2007, de 17 de Abril, parece lesar a dignidade
dos médicos, ao consagrar, no n.º 2 do seu art. 6.°, um tratamento
discriminatório desse mesmos médicos objectores à interrupção voluntária da
gravidez;
W) A informação fixada na
Lei 16/2007, de 17 de Abril, como prévia ao consentimento, assenta na
selectividade de informação, na assimetria informativa e triplamente indirecta,
o que tange com os Princípios Constitucionais de igualdade e proporcionalidade
e, assim, com o disposto nos arts. 18.° n° 2, 25.° n.°1 e 27.° n.°1, da C.R.P.;
X) A alteração ao art.
142.° do Código Penal, introduzindo uma al. e) no seu n.º1, deixa totalmente desprotegida a vida
humana até às 10 semanas, impondo ao Estado que contribua para a eliminação de
vidas humanas (através, por exemplo, do SNS e das prestações sociais inerentes
— art.º 35.° n.° 6 do Código de Trabalho), sem que para tal seja necessário
alegar quaisquer razões ou fundamentos;
Y) Tal disposição atenta,
assim, contra a base antropológica constitucionalmente estruturante do Estado
de Direito, violando, desse modo, os arts. 1.°, 2.°, 24.°, 25.°, 26.°, 68.° n.°
2 e 73.° n.° 2, da C.R.P. e
Z) Sendo hoje reconhecido
o aborto como um acto de risco para a saúde física e mental da mulher, e dando
por assente o aborto por carências económicas, o regime fixado na Lei 16/2007,
de 17 de Abril, liberta o Estado da sua função de solidariedade e protecção da
saúde física e psíquica, violando, assim, o disposto nos arts. 64.° n.°1 e 2,
al. b), e 66.° n.°1 da C.R.P.»
Este
articulado conclusivo, devidamente integrado pelas considerações argumentativas
que o antecedem e sustentam, permite certificar que o objecto do pedido
compreende normas da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, situadas em distintos
planos e dimensões da disciplina legal da interrupção voluntária da gravidez.
Contestada
é, desde logo, a validade constitucional de uma previsão de impunibilidade da
interrupção voluntária de gravidez não dependente da alegação de motivos
taxativamente descritos e de verificação objectivamente controlável. Censura-se
a própria mutação do sistema legal de não punibilidade desse acto, com a
consagração, por via da introdução da alínea e)
do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, de uma solução ajustada ao “modelo de
prazos”, deixando o sistema de se conformar exclusivamente pelo “modelo das
indicações”. Esta opção de fundo, traduzida na despenalização da interrupção
voluntária da gravidez, quando realizada por opção da mulher, nas primeiras dez
semanas da gestação, sem necessidade de invocação de razões justificativas, é,
em si mesma, antes e independentemente da apreciação do concreto regime vazado
nas soluções legislativas que lhe dão corpo, considerada incompatível com o
dever de protecção da vida intra-uterina.
Não
escasseiam, na motivação do pedido, afirmações explicitantes desta posição de
princípio. É assim, por exemplo, que, a dado passo, os requerentes se
interrogam:
«Porém,
se a Lei não exige que a mulher alegue os fundamentos pelos quais procura o
aborto, como pode o Estado exercer o seu papel social de protecção à
maternidade e à vida humana carenciada?».
E,
mais adiante, acrescentam:
«Por
isso, a alteração ao Código Penal que permita a uma mulher decidir da vida ou
morte de um ser humano, sem que para tal invoque fundamentos, é deixar
totalmente desprotegida a vida humana até às 10 semanas.
É
conferir a um ser (Mãe) o direito a decidir da vida de outrem, ainda que por
motivos fúteis.
[…]
Sobretudo, importa insistir em que se prevê um aborto “ad nutum”, discricionário,
sem qualquer necessidade de justificação, quando a restrição a um direito
fundamental como a vida, mesmo que pudesse ser admitida, tem sempre de ser
devidamente justificada.
O
aborto, por outras palavras, não pode nunca ser um direito (espaço de uma
insindicável autonomia privada).
Por
isso é extremamente importante que se faça o cotejo do sistema que temos com o
sistema das indicações, pois só este se apresenta conforme com estas
exigências».
Mas,
a este alegado vício, verdadeiramente matricial, de desconformidade com a
Constituição, haveria, na óptica dos requerentes, que adicionar outros,
atinentes a aspectos parcelares da concreta modelação das soluções
legislativas.
Alguns
desses aspectos contendem ainda com a protecção da vida humana intra-uterina.
É o
caso da disciplina normativa da consulta
obrigatória prevista no artigo 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal, na redacção do artigo
1.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, e no artigo 2. º, n.º 2, deste diploma
legal. Nos termos daquela primeira disposição, tal consulta destina-se a
“facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da
sua decisão livre, consciente e responsável”. Mas, quanto às suas finalidades e ao seu conteúdo, a
informação prevista não preencheria as condições necessárias para
satisfazer o imperativo constitucional de protecção da vida intra-uterina,
mesmo a admitir-se que ele tem que ser confrontado, segundo o método da
concordância prática, com o valor da liberdade da mãe.
Na
verdade, estaríamos perante uma “prestação puramente informativa” e não “um
aconselhamento pró-vida”, arguindo-se que, sem este, “o Estado português
queda-se indiferente e neutro perante a ameaça à vida humana”.
Quanto
ao conteúdo, a norma constante do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º16/2007,
mereceria reparo constitucional, na medida em que exclui do âmbito da
informação a prestar à gestante através da consulta o conhecimento sobre as
consequências da efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção
voluntária da gravidez para o embrião, as condições de apoio que as
instituições não estaduais prestam
à prossecução da gravidez e da maternidade e o regime da adopção em Portugal.
Das informações relevantes, a prestar na consulta médica obrigatória, deveria
também constar uma imagem da ecografia do feto.
Sem
estas informações suplementares, resultaria clara a violação do princípio da
proporcionalidade, «(…) desde logo, porque a consulta informativa não é idónea
à protecção do fim a que se destina – tutela da vida humana intra-uterina – e
porque privilegia desnecessariamente um dos bens constitucionais em conflito –
o valor da liberdade de escolha da mulher – em nada acautelando o outro dos
valores em presença».
Para
isso contribuiria também a opção normativa expressa na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, introduzida
pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, a qual limita a três dias o prazo mínimo de
reflexão que medeia entre a realização da primeira consulta médica e a
concretização da interrupção da gravidez.
Para além da protecção da vida intra-uterina,
outros bens ou valores constitucionais são alegadamente afectados por outros
pontos do regime legal constante da Lei n.º 16/2007.
“O
regime fixado na Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril”, não acautelaria o direito à protecção
da saúde física e psíquica da mulher. Estariam em causa também o direito à
liberdade e o princípio da proporcionalidade, ofendidos pelo disposto nos
artigos 2.º da Lei n.º 16/2007 e 142.º, n.º 4, alínea b),
do Código Penal.
A
omissão da exigência de participação do progenitor masculino do processo de
decisão quanto à interrupção violaria o direito à igualdade na parentalidade.
Esse sujeito “poderia e deveria ser chamado ao aconselhamento a fim de, também
ele, tomar a responsabilidade por aquele filho, ainda que a decisão última
fosse da mulher”.
De
“duvidosa constitucionalidade” é considerado o disposto no artigo 6.º, n.º 2,
na medida em que exclui das consultas previstas na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código
Penal os médicos objectores de consciência.
Por
último, a norma do artigo 2.º, n.º 2, estaria ferida de inconstitucionalidade,
na medida em que admite a regulamentação por portaria da informação a que se
refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do
Código Penal, não obstante estar em causa matéria de direitos fundamentais.
De
uma forma ou de outra, todas estas questões irradiam da questão central da
admissibilidade, e suas condições, da não utilização da sanção penal como
instrumento de tutela da vida intra-uterina. Elas apresentam-se geneticamente
conexionadas com esta última, pelo que a sua consideração poderá vir a
revelar-se prejudicada pela valoração que ela suscite.
Justifica-se,
assim, que a apreciação das questões de inconstitucionalidade material postas
se inicie pela questão central, de primeiro grau, acima enunciada, tratada à
luz do parâmetro nuclear da inviolabilidade da vida humana, consagrada no
artigo 24.º da CRP.
Antes,
porém, impõe-se uma curta alusão à necessidade de consideração de certas normas
de direito internacional invocadas pelos requerentes e aos antecedentes legais
e jurisprudenciais da Lei n.º 16/2007.
11.2.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem como parâmetros
Os requerentes entendem
que a Lei n.º 16/2007 contém várias soluções normativas que violam, não só a
Constituição, mas também a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a
Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Sustentam que os
referidos textos de direito internacional vinculam o Estado português por via
do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição, constituindo as respectivas disposições
parte integrante do ordenamento jurídico português, e que as normas da Lei n.º
16/2007 que as contrariem padecem de um vício de “inconstitucionalidade e ilegalidade”.
Importa, portanto,
averiguar se as ditas Declaração e Convenção podem, no presente processo,
assumir a função paramétrica pretendida pelos requerentes e se o Tribunal
Constitucional é competente para conhecer dos eventuais vícios resultantes da
desconformidade da Lei n.º 16/2007 àquelas declarações e convenções.
A Declaração Universal
dos Direitos do Homem foi adoptada e proclamada pela Assembleia-geral das
Nações Unidas, na sua Resolução 217A (III), de 10 de Dezembro de 1948. Portugal
é membro da ONU desde 14 de Dezembro de 1955.
Por seu turno, a
Convenção Europeia dos Direitos do Homem foi assinada em 4 de Novembro de 1950,
em Roma, e entrou em vigor em 3 de Setembro de 1953, tendo sido ratificada por
Portugal pela Lei n.º 65/78 de 13 de Outubro.
Estamos, no primeiro
caso, perante uma declaração solene adoptada por um órgão de uma organização
internacional que Portugal integra. Tal declaração não constitui, contudo,
direito internacional convencional que vincule o Estado português, à luz do
artigo 8.º, n.º 2, da Constituição.
Somente enquanto contém
normas ou princípios de direito internacional ou comum é que a Declaração tem
valor vinculativo e constitui fonte de direito material, por via do disposto no
artigo 8.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Além disso, a Declaração
Universal dos Direitos do Homem possui uma relevância normativa específica por
ser critério de interpretação e integração das normas constitucionais e legais
relativas aos direitos fundamentais (artigo 16.º, n.º 2, da Constituição) – cfr.,
sobre esta matéria, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit.,. 367, JORGE MIRANDA, “A Declaração Universal dos
Direitos do Homem”, in Estudos sobre a
Constituição, Tomo I, Lisboa, 1977, 58 e 60, e LUÍS SERRADAS
TAVARES, A aplicação interna das convenções
internacionais face ao controlo do Tribunal Constitucional, Lisboa,
1997, 158.
Não obstante – e tal
sucede com o texto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, esse sim,
integrando o direito internacional recebido por força do artigo 8.º, n.º 2, da
Constituição –, a sua convocação não é, conforme adiante melhor se verá,
forçosa, no presente contexto de controlo da constitucionalidade.
Com efeito, quando
confrontada, quer com o artigo 1.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“O
direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei”), quer com o artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem (“Todos os homens têm direito à vida”), a fórmula normativa constante
do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, exprime um parâmetro de controlo que
compreende já em si as injunções de sentido que das primeiras advêm, tornando
dispensável a sua consideração autónoma.
11.3. Antecedentes legais e jurisprudenciais
da Lei n.º 16/2007
Em
matéria de interrupção voluntária de gravidez, assistimos, nas últimas décadas,
a uma evolução faseada do ordenamento jurídico-penal português, com mudanças de
conformação normativa que deram, em pontos decisivos, uma nova configuração à
disciplina legal.
Foi
a Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, que, dando
nova redacção aos artigos 139.º a 141.º da Código Penal de 1982, consagrou,
entre nós, pela primeira vez, um sistema legal de previsões de impunibilidade
da interrupção voluntária de gravidez. Passou a admitir-se a existência de
“causas de exclusão da ilicitude”, em função de determinadas indicações, ditas terapêutica (alíneas a) e b)
do n.º 1 do artigo 140.º), embriopática,
fetopática ou por lesão do nascituro (alínea c) do mesmo artigo) e criminal,
criminológica, ética, jurídica
ou humanitária (alínea d) igualmente do n.º 1 do artigo 140.º) –
cfr. FIGUEIREDO DIAS, Comentário
Conimbricense do Código Penal, I, Coimbra, 1999, 168.
Assim se pôs termo ao regime até aí vigente de proibição
absoluta da interrupção voluntária da gravidez, dando-se concretização
aplicativa ao chamado “modelo das
indicações” – ainda
que de forma restritiva, pois não foi reconhecida a valência, como causa de
exclusão, da indicação social.
Esta viragem no tratamento jurídico-penal da interrupção
voluntária de gravidez deu azo a dois acórdãos deste Tribunal: um primeiro, em
processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, a requerimento do
Presidente da República (Acórdão n.º 25/84, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.º
vol., 7 s.); mais tarde, um outro, em processo de fiscalização abstracta
sucessiva, a requerimento do Provedor de Justiça – Acórdão n.º 85/85, ibidem, 5.º vol., 245 s.). Em ambos, foi
aceite a validade constitucional do modelo das indicações consagrado nos termos
acima referidos, tendo-se concluído pela não inconstitucionalidade das normas
em causa.
A
reforma do Código Penal operada pelo
Decreto‑Lei n.º 48/95, de 15 de Março, a par de aperfeiçoamentos de tipo
formal, introduziu algumas alterações substantivas não essenciais quanto ao
sentido da disciplina.
Mantendo o modelo das indicações nos termos em que o
havia consagrado a Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, a reforma de 95 quedou-se, com
efeito, pelo
alargamento da fattispecie correspondente à indicação criminal –
estendendo-a, para além da já prevista hipótese de violação da mulher, a todos
os casos em que a gravidez tivesse resultado de crime contra a liberdade e
autodeterminação sexual –, e pela alteração da epígrafe do artigo 142.º do
Código Penal: de “exclusão da ilicitude do aborto” passou para “interrupção da
gravidez não punível”.
Note-se que a modelação entre nós consagrada era
notoriamente menos extensa, quanto à zona de impunibilidade, do que as
igualmente tributárias do “modelo de indicações”, mas prevendo, entre estas, a
de carácter económico e social.
Foi este o quadro normativo em que, no decurso do 1997,
três projectos de lei tendentes a alterar o regime jurídico da interrupção da
gravidez foram apresentados na Assembleia da República, um pelo Grupo
Parlamentar do PCP (com o n.º 177/VII) e os restantes dois por Deputados do
Grupo Parlamentar do PS (n.ºs 236/VII e 235/VII).
Formulando os dois primeiros propostas de exclusão da
ilicitude da interrupção
voluntária da gravidez quando realizada nas primeiras 12 semanas, apenas o
terceiro viria a ser aprovado, dele tendo resultado a Lei n.º 90/97, de 30 de
Julho.
Através da nova redacção conferida às alíneas c) e d) do artigo
142.º do Código Penal, tal diploma limitou-se a ampliar de 16 para 24 semanas o
prazo previsto para a interrupção da gravidez por lesão do nascituro,
abolindo-o no caso de fetos inviáveis, e de 12 para 16 semanas nas hipóteses de
indicação criminal.
Na sessão legislativa seguinte, novos projectos de lei
sobre a interrupção voluntária da gravidez foram apresentados: o projecto de
lei n.º 417/VII (PCP) e os projectos de lei n.º 451/VII e n.º 453/VII, ambos
procedentes da bancada parlamentar do PS.
Aquele segundo, aprovado na generalidade, preconizava a
despenalização da interrupção voluntária da gravidez realizada nas 10 primeiras
semanas de gestação, após consulta de aconselhamento, «para preservação da
integridade moral, dignidade social e da maternidade consciente», assentando
assim «numa combinação entre uma solução de prazos e um regime de indicações
genéricas, com obrigatoriedade de aconselhamento antes da decisão final pela
mulher» (“Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos
Liberdades e Garantias”, DAR,
II-A, 29º, de 5-2-98). A par disso, propunha ainda a não punibilidade da
interrupção voluntária da gravidez caso se mostrasse «indicada para evitar
perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física
ou psíquica, da mulher grávida, designadamente por razões de natureza económica
ou social», quando realizada nas 16 primeiras semanas de gestação.
Contudo, em Março de 1998, a Assembleia da República,
enveredando por um outro tipo de procedimento legiferante, viria a aprovar a
Resolução n.º 16/98 (DR, I Série-A,
de 31 de Março de 1998), propondo que, mediante referendo a realizar, os
cidadãos eleitores recenseados no território nacional fossem chamados a
pronunciar‑se sobre a seguinte pergunta: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se
realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de
saúde legalmente autorizado?»
Nos termos do n.º 8 do artigo 115.º da CRP, o Presidente
da República requereu, então, ao Tribunal Constitucional a fiscalização
preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo
aprovada pela mencionada Resolução.
Exercendo os poderes de verificação prévia da
«constitucionalidade e legalidade dos referendos nacionais» que se lhe
encontram atribuídos pelo artigo 223.º, n.º 2, alínea f), da CRP, este Tribunal, pronunciando-se
pela terceira vez sobre o tema, tratou a questão de «saber se a pergunta
formulada não colocava os eleitores perante uma questão dilemática em que um
dos respectivos termos aponta[va] para uma solução jurídica incompatível com a
Constituição».
Pelo
Acórdão n.º 288/98, o Tribunal Constitucional decidiu ter por verificada a
constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na Resolução n.º 16/98 da Assembleia da República.
Realizado
a 28 de Junho de 1998, o referendo apresentou os seguintes resultados: a
resposta negativa foi expressa por 50,9% dos votantes, a afirmativa por 49,1%,
tendo-se abstido 68,1% dos cidadãos com capacidade eleitoral para o acto – cfr.
Mapa Oficial n.º3/98, DR, I Série-A,
de 10 de Agosto de 1998.
Mercê
do nível de abstenção registado, o referendo não foi vinculativo, nos termos do
artigo 115.º, n.º 11, da Constituição, tendo a Assembleia da República, não
obstante, optado por não prosseguir os trabalhos legislativos em curso com a
aprovação na generalidade do projecto de Lei n.º 451/VII.
Em
Setembro de 2005, a mesma pergunta foi apresentada como objecto de uma proposta
de referendo, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 52-A/2005.
Pelo
Acórdão n.º 578/2005, de 28 de Outubro (DR,
I Série-A, de 16 de Novembro de 2005), este Tribunal entendeu, todavia, que não
se encontravam cumpridas as exigências constitucionais, em face do artigo
115.º, n.º 10, da Constituição – designadamente por se infringir a proibição de
renovação da iniciativa do referendo “na mesma sessão legislativa” –, não tendo
chegado a apreciar a substância da pergunta.
Em
Reunião Plenária de 19 de Outubro de 2006, a Assembleia da República aprovou,
após debate, o Projecto de Resolução n.º 148/X.
Previa
tal Resolução (Resolução n.º 54-A/2006, publicada no DR, 1.ª série, de 20 de Outubro de 2006) que, através de
referendo, os cidadãos eleitores recenseados
no território nacional fossem chamados a pronunciar‑se sobre a mesma
exacta pergunta com que haviam sido confrontados em 98 e cujo teor era, por
isso, o seguinte: «Concorda com a
despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção
da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente
autorizado?».
Requerida pelo Presidente da República a fiscalização
preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo em
tais termos aprovada, defrontou-se uma vez mais este Tribunal com a questão de
saber «se uma
concordância com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às
10 semanas, por opção da mulher, em
estabelecimento de saúde legalmente autorizado, implica[ria] uma solução
inconstitucional e, inversamente, se de uma resposta negativa resulta[ria] também
uma tal solução».
Delimitando introdutoriamente o âmbito da análise
requerida e a empreender, o Tribunal não deixou de esclarecer que o mesmo não
abrangeria «a apreciação de todas as
soluções legislativas concretas que uma resposta afirmativa ou negativa
[pudesse] sustentar». Em causa foi considerado apenas estar «a verificação ou controlo sobre se uma das respostas
(ou até as duas) do dilema subjacente à pergunta determina[ria] uma violação da
Constituição, inquinando todas as soluções legislativas concretas que se
apoi[assem] nessa mesma resposta».
À questão assim caracterizada respondeu este Tribunal através do
Acórdão n.º 617/2006,
por meio do qual julgou verificada a constitucionalidade e legalidade do
referendo proposto na Resolução n.º 54-A/06 da AR.
Convocado
o referendo e realizado este no dia 11 de Fevereiro de 2007, os resultados
viriam a ser os seguintes: a percentagem dos votantes quedou-se pelos 43,57%,
correspondendo a resposta positiva a 59,25% dos votos validamente expressos e a
negativa a 40,75% (cfr. Mapa Oficial, DR,
1ª série, de 1 de Março de 2007).
Apesar
do resultado oposto ao de 1998, também este referendo não foi vinculativo, nos
termos do artigo 115.º, n.º 11, da Constituição.
Em 8
de Março de 2007, foi aprovada pela Assembleia da República a Lei n.º 16/2007, promulgada pelo Presidente da
República, sem pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
A
Lei n.º 16/2007 viria a ser regulamentada pela Portaria n.º 741-A/2007, de 21
de Junho (DR, 1.ª série, de 21 de
Junho de 2007), estabelecendo esta as medidas a adoptar nos estabelecimentos de
saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos com vista à realização da
interrupção da gravidez nas situações previstas no artigo 142.º do Código
Penal, na redacção que por aquela lhe foi conferida.
11.4. O
regime de impunibilidade da interrupção voluntária da gravidez introduzido pela
Lei n.º 16/2007 e o imperativo constitucional de protecção da vida humana
11.4.1. Articulação da questão com o
objecto dos Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006. Método da sua apreciação
Como se viu, por ocasião das alterações mais significativas da
disciplina legal da interrupção voluntária da gravidez, o Tribunal
Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre questões de
constitucionalidade por elas suscitadas. Pondo de lado o Acórdão n.º 578/2005,
que não chegou a decidir questões de fundo, é possível agrupar os quatro
restantes arestos sobre a matéria em dois blocos, consoante o thema decidendum: os Acórdãos n.ºs 25/84 e
85/85 tiveram como objecto a reforma legislativa que previu causas objectivas
de exclusão da ilicitude, de acordo com o “modelo das indicações”; os Acórdãos
n.ºs 288/98 e 617/2006, debruçando-se sobre uma pergunta referendária,
pronunciaram-se sobre a constitucionalidade de uma nova previsão de
despenalização da interrupção voluntária da gravidez: a efectuada por opção da
mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente
autorizado – solução que deu guarida ao “modelo de prazos”.
Para além de consagrar normativamente a
previsão de uma interrupção voluntária de gravidez, sem punição, dentro daquele
prazo, a Lei n.º 16/2007 disciplinou, em concreto, o modo operativo desse acto,
através de um conjunto de normas interligadas, de natureza organizatória e procedimental.
Correspondentemente, o objecto do presente recurso de constitucionalidade é
mais amplo e diversificado do que a questão em juízo no âmbito dos
Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006: não se
restringindo à admissibilidade, de princípio, daquela modalidade de intervenção
interruptiva da gravidez, ele recai também sobre algumas opções legislativas
expressas na malha de preceitos que dão unitariamente forma legal precisa e
acabada à disciplina daquele acto.
Nessa medida, o Tribunal confronta-se agora
com questões novas. Mas, mesmo em relação à questão já objecto dos Acórdãos
n.ºs 288/98 e 617/2006, o presente recurso apresenta uma específica dimensão
inovatória, que cumpre precisar.
Naqueles
acórdãos, em juízo esteve, fundamentalmente, a admissibilidade de se
prescindir, dentro das primeiras 10 semanas de gestação, da indicação, como causas justificativas, de
determinadas circunstâncias, de verificação objectivamente controlável.
Ora,
entre as normas impugnadas no presente recurso, figura primariamente a que se
aloja na alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal, introduzida pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007.
Em conjugação com o proémio desse número, nela se determina que «não é punível
a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em
estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o
consentimento da mulher grávida, quando for realizada, por opção da mulher, nas
primeiras 10 semanas de gravidez».
Trata-se
de uma disposição normativa vestibular, que abre a porta a ulteriores
regulações com ela conexionadas, só em conjunto se definindo, com completude,
os traços da solução agora consagrada no ordenamento jurídico-penal português.
Mas,
poder-se-ia dizer que a previsão e a estatuição daquela alínea e), em si mesmas, coincidem, no essencial,
com a proposição normativa sobre que os referidos acórdãos já se pronunciaram.
A
identidade de enunciados e dos campos problemáticos em que se inserem não deve,
todavia, iludir quanto à diversidade das questões suscitadas. Para
consciencializar essa diferença, é imperioso atender aos distintos planos e
contextos em que se situaram aqueles dois arestos, por confronto com os que se
nos deparam nos presentes autos.
Os
Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006 deram resposta à questão da constitucionalidade
de uma proposta referendária. O objecto da consulta a submeter ao voto dos
cidadãos reportava-se a uma opção programática, a uma simples potencialidade de normação futura, visando
obter a expressão de concordância ou não com uma possível reforma legislativa,
apontada sinteticamente, pela opção de fundo que maximamente a caracterizava.
Uma eventual resposta afirmativa não efectivaria, por si só, qualquer mudança
na ordem jurídica, apenas legitimaria a intervenção, nesse sentido, do
legislador, cabendo a este a conformação última do regime concretizador dessa
mudança. E, tratando-se de um regime que coenvolve condições substantivas e
procedimentais de não punibilidade de um acto e regras organizatórias do
exercício do direito a prestações estaduais necessárias para a sua realização,
com múltiplas variantes hipoteticamente possíveis, era impensável que a
pergunta referendária já contivesse, de forma esgotante, as soluções concretas
a adoptar, nesse domínio (cfr., nesse sentido, o Acórdão n.º 617/2006 e a
declaração de voto da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza).
É
particularmente nítido, em face de alterações legislativas deste tipo, que “o
controlo preventivo da constitucionalidade e da legalidade das propostas de
referendo não consome a fiscalização [preventiva] da lei subsequente que o vier
concretizar” (GOMES CANOTILHO, “Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional
n.º 617/2006”, RLJ, ano 136.º,
2007, 311 s., 317).
Por
isso mesmo, o juízo de não inconstitucionalidade que recaiu sobre ambas as
propostas referendárias se contentou com a conclusão de que «nenhuma das
respostas – afirmativa ou negativa – à pergunta formulada implica necessariamente uma solução jurídica incompatível
com a Constituição» – alínea j)
da decisão do Acórdão n.º 288/98 e alínea i)
da decisão do Acórdão n.º 617/2006 [itálico nosso]. Para fundar um
juízo de não inconstitucionalidade da consulta referendária bastou admitir que
o sentido da resposta não fechava a porta a qualquer ulterior solução jurídica
conforme à Constituição, ou, como se diz no último dos referidos Acórdãos, que
“nada permite concluir que, em caso de resposta afirmativa no referendo,
[medidas suficientes de protecção] não possam vir a constar da legislação
aprovada, na sua sequência”.
O
objecto do presente recurso é precisamente parte do complexo normativo que dá
corpo à reforma legislativa referendada. A previsão de uma nova modalidade de
intervenção abortiva não punível, constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código
Penal, já não vem agora, como na pergunta do referendo, descarnadamente
formulada, sem mais indicações normativas a ela associadas. Ela é apenas uma
componente – posto que componente essencial – de um mais amplo sistema
regulador. Sistema que contém aspectos da disciplina legal que constituem
relevantes factores de ponderação da existência e da medida de um nível de
protecção constitucionalmente adequado da vida pré-natal – o que, não é de mais
lembrá-lo, figura como a questão nuclear suscitada pelo recurso em apreciação.
Com
esses elementos normativos certos
e actuais (por constantes da
disciplina em vigor), e não meramente conjecturáveis como de consagração
futura, fechou-se o círculo deixado em aberto pela questão de que se ocuparam
os dois precedentes acórdãos. O Tribunal está agora em condições de formular um
juízo quanto à validade constitucional de um complexo normativo
totalizantemente regulador, com uma unidade de sentido que lhe é dada pela
coligação de uma proposição normativa de base – a da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal – com
disposições complementares, a ela associadas.
Já
não está em causa simplesmente a admissibilidade, de princípio, da directriz
basilar do modelo de prazos, mas a admissibilidade de uma certa forma
legislativa de concretização dessa orientação. Sendo assim, os aspectos modais
que dão rosto acabado ao regime despenalizador, com relevância para o juízo de
constitucionalidade, devem ser sopesados em simultâneo, pois também eles
concorrem para a definição normativa do padrão de conduta tido como dispensador
da criminalização. A valoração conjunta de todos esses dados normativos é
produtiva de sentido, e de sentido relevante para a determinação precisa das
concepções que inspiraram o regime em apreço e da intencionalidade que presidiu
à sua consagração.
O
pedido destaca autonomamente, como vimos, a questão primária da não
punibilidade da intervenção voluntária da gravidez, em determinado período
inicial, por opção da mulher, sem necessidade de justificação. São, mesmo,
invocados os resultados do referendo, a que é atribuído “grande valor
‘consultivo’”, demonstrativo de que “só 25% dos portugueses quer o aborto livre
em Portugal”, para fundamentar que “se volte a apreciar” a questão.
Mas
essa questão não pode ser reposta nos mesmos termos em que anteriormente, nos
Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006, esteve em juízo. Tendo entrado em vigor uma
regulação legislativa, em concreto, dos procedimentos a observar como condição
de impunibilidade da interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, a
consagração desta nova modalidade de interrupção não sancionável criminalmente
não pode ser encarada em abstracto e isoladamente, de forma estanque às
inferências de sentido que advêem dessa regulação.
Tal
só se justificaria se o Tribunal entendesse que uma solução correspondente ao
modelo dos prazos nunca, qualquer
que seja a sua conformação concretizadora, pode satisfazer o mandamento
constitucional aplicável, ou, inversamente, que ela é sempre, independentemente da existência e
da natureza de mecanismos de tutela da vida intra-uterina, constitucionalmente
conforme.
O
Tribunal não adopta, porém, nenhuma destas duas posições, em radical oposição
bipolar.
A
primeira traduziria uma ruptura com a linha de orientação e com as decisões
adoptadas nos Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006. Ora, não se produziu, com
vencimento, qualquer divergência com as concepções que informam aqueles
arestos, mantendo o Tribunal integralmente o entendimento de que o dever de
protecção da vida intra-uterina, que sobre o Estado recai, não exige, como conteúdo mínimo, numa fase
inicial, a invocação de razões, taxativamente indicadas, para lhe pôr termo.
A
segunda posição decorre da assunção de que, nessa fase, o Estado pode alhear-se
do destino do feto, sem que se lhe imponha, em relação a esse período, qualquer
dever de emissão de normas de protecção. Ainda não haveria, nessa fase,
qualquer conflito entre bens constitucionalmente protegidos, pelo que a decisão
da gestante em abortar, do seu estrito foro pessoal, seria livre e
incondicionada – como ainda hoje se reconhece, malgrado todas as contestações,
no sistema jurídico norte-americano, na sequência da jurisprudência firmada
pelo Supreme Court, no caso Roe v. Wade, de 1973.
Também
esta solução não merece acolhimento. O Tribunal perfilha o entendimento
contrário de que a vida intra-uterina é um bem digno de tutela em todas as
fases pré-natais, sem prejuízo de admitir diferentes níveis e formas de
protecção, em correspondência com a progressiva formação do novo ente.
Dentro
destas coordenadas, o se da
admissibilidade da consagração do modelo de prazos é questão que não pode agora
ser desligada do como da sua
concreta configuração. O que cumpre fundamentalmente valorar é se, tendo
em conta a modelação concreta da disciplina legal, a solução da impunibilidade,
dentro desse contexto normativo, corresponde ou não a “deixar totalmente
desprotegida a vida humana até às 10 semanas”, como se sustenta no pedido.
Mas
a unidade valorativa daquelas duas vertentes da questão não se opõe a uma
analítica discursiva, seguindo um percurso argumentativo feito de passos
sucessivos e em cadeia, tomando como ponto de partida as posições de base que
nelas se projectam. Só assim se ganha uma visão clara de todas as dimensões
coenvolvidas e do seu peso próprio na fundamentação da resposta às questões de
constitucionalidade objecto deste recurso.
É
esse método que aqui seguiremos.
11.4.2.
A questão central de constitucionalidade formulada no pedido estrutura-se,
fundamentalmente, em torno da questão de saber se, com o regime constante dos
artigos 142.º, n.º 1, alínea e),
n.º 4, alínea b), do Código
Penal, e 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, o Estado cumpre, ou não, o dever que sobre
ele impende de protecção da vida intra-uterina.
De
relevo determinante, como questão prévia cuja resposta interfere praticamente
em todas as valorações a efectuar, é a definição do estatuto constitucional do
ser em gestação, o mesmo é dizer, a identificação do alcance, no que diz
respeito à protecção da vida intra-uterina, da inviolabilidade da vida humana,
consagrada no artigo 24.º da CRP.
Logo
nos dois primeiros acórdãos sobre este tema, o Tribunal tomou posição clara
quanto a esta questão.
Considerando
que a vida intra-uterina está abrangida pelo âmbito de protecção daquela norma
– o que, anteriormente, o Parecer n.º 31/82 da Procuradoria-Geral da República
(BMJ 320.º, 224 s) não dera como
certo –, o Tribunal acentuou, no Acórdão n.º 25/84, que ela representava “um
valor não juridicamente subjectivado”, o que não podia deixar de ser tido em
conta no confronto a estabelecer “com outros valores juridicamente
subjectivados na mulher grávida, com a natureza de direitos fundamentais”.
Esta
ideia foi precisada e desenvolvida no subsequente Acórdão n.º 85/85, sendo aí
qualificada como uma das duas “ideias determinantes da posição que colhe apoio
dominante no Tribunal”. Escreveu-se, a seu respeito:
«Por
um lado, entende-se que a vida intra-uterina compartilha da posição que a
Constituição confere à vida humana enquanto bem
constitucionalmente protegido (isto é, valor constitucional
objectivo), mas que não pode gozar da protecção constitucional do direito à vida propriamente dito – que só
cabe a pessoas −, podendo
portanto aquele ter que ceder, quando em conflito com direitos fundamentais ou
com outros valores constitucionalmente protegidos.
[…]
Só as pessoas podem ser titulares
de direitos fundamentais – pois não há direitos fundamentais sem sujeito −,
pelo que o regime constitucional de protecção especial do direito à vida, como
um dos “direitos, liberdades e garantias pessoais”, não vale directamente e de
pleno direito para a vida intra-uterina e para os nascituros.
[…]
A verdade é que o feto (ainda) não é uma
pessoa, um homem, não podendo por isso ser directamente titular de
direitos fundamentais enquanto tais. A protecção que é devida ao direito de
cada homem à sua vida não é
aplicável directamente, no mesmo plano, à vida pré-natal, intra-uterina.»
Não
se afastou desta orientação o Acórdão n.º 288/98, onde se deixou registado:
«Nesta
visão das coisas, reconhecer-se-á que o artigo 24.º da Constituição da
República, para além de garantir a todas as pessoas um direito fundamental à
vida, subjectivado em cada indivíduo, integra igualmente uma dimensão
objectiva, em que se enquadra a protecção da vida humana
intra-uterina, a qual constituirá uma verdadeira imposição constitucional.
Todavia,
essa protecção da vida humana em gestação não terá de assumir o mesmo grau de
densificação nem as mesmas modalidades que a protecção do direito à vida
individualmente subjectivado em cada ser humano já nascido – em cada pessoa».
Finalmente,
no Acórdão n.º 617/2007, exarou-se:
«Da
inviolabilidade da vida humana como fórmula de tutela jurídica não deriva,
desde logo, que a protecção contra agressões postule um direito subjectivo do
feto ou que não seja de distinguir um direito subjectivo à vida de uma
protecção objectiva da vida intra-uterina, como resulta da jurisprudência constitucional
portuguesa e de outros países europeus. O facto de o feto ser tutelado em nome
da dignidade da vida humana não significa que haja título idêntico ao
reconhecido a partir do nascimento».
O
Tribunal não vê fundamento para rever esta posição, que sempre tem perfilhado.
Sem dúvida nenhuma que o feto é digno de protecção pela sua potencialidade em
se tornar uma pessoa, um “eu” consciente da sua individualidade própria, mas,
como acentuou OVADIA EZRA, “a potencialidade de aquisição de um determinado
estatuto não confere a titularidade dos direitos associados a esse estatuto” (The Withdrawal of Rights. Rights from a Different Perspective,
Dordrecht/Boston/London, 2002, 204).
Sendo assim, uma resposta negativa, quanto ao
cumprimento, pelo Estado, do seu dever de protecção, só poderá ser emitida se
se concluir que o regime em apreço não traduz um suficiente respeito pela valia
intrínseca da vida humana.
11.4.3.
O tratamento da questão assim enunciada não pode passar sem uma alusão,
perfunctória embora, à dogmática dos imperativos jurídico-constitucionais de
protecção, reportada à inviolabilidade da vida intra-uterina, enquanto bem
objectivo.
O
Estado não está apenas obrigado ao respeito da vida pré-natal, abstendo-se de
qualquer acção susceptível de acarretar a destruição do seu desenvolvimento no
ventre materno. Sobre ele recai também uma vinculação a prestações
satisfatórias da “garantia de efectivação” (artigo 2.º da CRP) de tal valor,
designadamente contra potenciais agressões de terceiros ou da própria gestante
– dimensão sobre que, atenta a sua natureza, repousa o essencial da
consistência prática do bem em causa.
Esta
injunção constitucional comporta seguramente o dever de adopção de medidas preventivas, numa dupla direcção: a de
evitar situações de gravidez indesejada (em que se insere a garantia do
“direito ao planeamento familiar” consagrada na alínea d) do n.º 2 do artigo 67.º da CRP) e a de
contrariar motivações abortivas, uma vez iniciado esse estado. Aqui se incluem
também medidas incentivadoras,
sem esquecer as que visam o exercício (mas também, antes dele, a assunção) de
uma maternidade consciente (cfr. a mesma alínea), as quais têm uma iniludível
projecção irradiante, de sentido tutelador, neste campo.
É
neste vasto e diversificado universo de normas e de estruturas (também) de
protecção do bem da vida pré-natal que se incrusta a regulação do acto
específico de interrupção voluntária da gravidez, onde predominam os
instrumentos de direito penal.
Na
fixação dessa disciplina, goza o legislador ordinário de uma ampla margem de
discricionariedade legislativa, balizada por dois limites ou proibições, de
sinal contrário. Ele deve, por um lado, não desrespeitar a proibição do excesso, por afectação, para além do admissível, da posição
jurídico-constitucional da mulher grávida, nas suas componentes jusfundamentais
do direito à vida e à integridade física e moral, à liberdade, à dignidade
pessoal e à autodeterminação. Mas também deve, no pólo oposto, não descurar o
valor objectivo da vida humana, que confere ao nascituro (à sua potencialidade
de, pelo nascimento, aceder a uma existência autonomamente vivente) dignidade
constitucional, como bem merecedor de tutela jurídica. O cumprimento desse
dever está sujeito a uma medida mínima,
sendo violada a proibição de insuficiência
(“Untermassverbot”) quando as
normas de protecção ficarem aquém
do constitucionalmente exigível.
Como
a doutrina tem justamente salientado – cfr. ROBERT ALEXY, Theorie der
Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986, 420-422, e CLAUS-WILHELM
CANARIS, Direitos fundamentais e direito privado,
Coimbra, 2003, 65-66, e 115-116 – do ponto de vista da liberdade de actuação
estadual e, em particular, de conformação legislativa, é grande a diferença
estrutural entre os deveres negativos, de abstenção, e os positivos, de activa
intervenção tuteladora. No domínio dos primeiros, assente que uma certa e
determinada medida é ofensiva de um direito fundamental, o dever de a omitir
impõe-se, prima facie. Isto
porque a proibição de aniquilar ou afectar esse direito abrange toda e qualquer
ingerência com tal virtualidade, incluindo, portanto, aquela específica medida que está em
apreciação.
Inversamente,
o dever de protecção não importa a automática ordenação de todas as iniciativas a que seja de imputar
esse resultado. E isto porque, enquanto que
a proibição de ingerência só se cumpre com a omissão de todas as acções de
destruição ou afectação, a realização de uma só acção adequada de protecção ou
promoção é condição suficiente do cumprimento do mandato constitucional nesse
sentido. Quando são adequadas diferentes acções de protecção ou promoção,
nenhuma delas é, de per si, necessária para o cumprimento desse mandato: a
única exigência é que se realize uma delas, pertencendo a escolha ao Estado.
Somente se existir uma única acção suficiente de promoção ou protecção é que
ela se torna necessária para o cumprimento do dever de protecção.
O que se retira da Constituição é apenas o dever de
proteger, não estando predeterminado, nessa sede, um específico modo de protecção. Já OTTO BACHOF, em
texto hoje clássico, o pôs em destaque, salientando que nenhum dos concretos
problemas regulativos postos pela protecção da vida ainda por nascer encontra
“resposta imediata na Constituição”, pelo que, para a sua decisão, “o legislador
há-de dispor consequentemente de uma larga margem de liberdade” – “Estado de
direito e poder político: os tribunais constitucionais entre o direito e a
política”, Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra, vol. LVI (1980), 1 s., 19.
As
inevitáveis opções a fazer, neste domínio, são, pois, pertença do legislador
ordinário, sendo este colocado perante um espectro de soluções normativas de
alcance distinto e de desigual intensidade tuteladora.
Dentro
desse espectro, a incriminação representa,
em regra, o grau máximo de protecção.
Mas também, simultaneamente, a lesão, na maior medida, de direitos encabeçados
pelo sujeito penalizado, mormente quando, como neste caso, a verificação do
tipo acarreta privação da liberdade.
É
no campo de valoração delimitado pela proibição do excesso e pela contraposta
proibição de insuficiência que o legislador tem que exercitar a sua competência
de modelação da disciplina da interrupção voluntária da gravidez. Podendo optar
por consagrar uma protecção superior ao mínimo que lhe é
jurídico-constitucionalmente imposto,
o legislador não pode ultrapassar os limites que resultam da proibição do
excesso (em último termo, do princípio da proporcionalidade). Só serão
constitucionalmente conformes as soluções que respeitem ambas as proibições.
11.4.4.
Na apreciação, à luz destes parâmetros, da solução que está especificamente sob
escrutínio, nos presentes autos, não poderemos considerá-la isoladamente, sem
ter em conta o modo como, na sua totalidade,
foi traçada a disciplina da interrupção voluntária da gravidez (e, até, o
conjunto de medidas que, fora deste campo, contribuem para uma redução do
número de abortos). É “na sua globalidade e
no seu funcionamento conjunto” que as medidas de direito infraconstitucional
devem assegurar uma protecção eficiente dos direitos fundamentais, como
sustenta CANARIS (ob. cit.,
117-118). Directriz genérica que impõe, desde logo, e antes do mais, uma
caracterização e valoração da intencionalidade que subjaz a essa disciplina,
como unidade normativa.
Dela
ressalta, como característica fundamental, um crescendo
de intensidade tuteladora, consoante o maior tempo de gravidez, compondo o que
poderemos designar por um regime trifásico:
num período inicial, a decisão é deixada à responsabilidade última da mulher,
em fases subsequentes a interrupção fica dependente de certas indicações, sendo
proibida, em princípio, no último estádio de desenvolvimento do feto.
Esta
tutela progressiva, utilizando como critério o tempo de gestação, representa,
em si mesma, uma opção básica determinada por um intuito de harmonização dos
bens em colisão. Ela procura repercutir, no plano da valoração ético-jurídica,
a mutabilidade dos dados biológicos que conformam a vida ainda não nascida e o
significado que ela assume para os termos da peculiar relação – sem paralelo em
qualquer outro conflito de bens jusfundamentais
– que se estabelece entre o
nascituro e a gestante.
Na
esteira do Bundesverfassungsgericht,
na sua decisão de 28 de Maio de 1993, é como “dualidade na unidade” que melhor
se pode caracterizar essa relação (BVerfGE
88, 203 s., 253). Mas, como bem salientam os juízes MAHRENHOLZ e SOMMER, na sua
declaração de voto (BVerfGE 88,
338 s., 342), tal relação não se mantém estática em todo o período de gravidez:
«enquanto que nas primeiras semanas a mulher e o nascituro (…) se apresentam
ainda completamente como uma unidade, com o crescimento do embrião a
‘dualidade’ evidencia-se mais fortemente. Este processo de desenvolvimento tem
também significado jurídico».
No
entender do Tribunal Constitucional, em período algum do processo natural de
gestação, incluindo a sua fase inicial, se justifica que a solução do conflito
se possa dar pela prevalência absoluta do interesse da mulher, com o sacrifício
total do bem da vida, o que levaria à admissão de um livre e incondicionado
direito a abortar.
Mas
já se justifica que as alterações biológicas que se dão no processo de
gestação, significativas do ponto de vista da progressiva formação do suporte
físico da personalidade humana, tenham incidência na valoração
jurídico-constitucional das soluções de conciliação dos bens em conflito. É
constitucionalmente viável que a ponderação de interesses em causa, na busca
dessas soluções, leve em conta o tempo de gestação, precisamente porque, com o
desenrolar do processo ontogenético, a realidade existencial de um dos bens a
tutelar assume contornos gradativamente distintos, assim se alterando também,
correspondentemente, o ponto de equilíbrio a estabelecer com as exigências
decorrentes do estatuto jusfundamental da mulher grávida. Como acentua a já
mencionada declaração de voto: “(…) o conteúdo da posição jusfundamental da
mulher e o papel do Estado no exercício do seu dever de protecção devem ser
avaliados de modo diferente na fase inicial e em estádio mais adiantado [da
gestação]” (ob. loc. cit.).
Precisamente
porque a sua ideia fundante corresponde a um “sentimento jurídico”
generalizadamente difundido, o atendimento do tempo de gestação é um dado comum
a todas as legislações não radicalmente proibicionistas. Em todas elas, na
variabilidade das suas soluções, com maior ou menor amplitude de consagração de
previsões de impunibilidade, o factor tempo é considerado. O próprio “modelo
das indicações” não o dispensa.
11.4.5.
Mas a solução questionada não contende apenas com a medida da protecção do embrião e do feto, na fase inicial da
gestação. Ela lança a dúvida quanto à própria existência
de protecção e, se admitirmos que ela está consagrada, quanto ao seu modo de efectivação. O que se interroga,
em primeira linha, é se a equilibrada harmonização dos valores em conflito, que
passa – o que se admite – pelo estabelecimento de regimes diferenciados,
consoante o tempo de maturação do embrião e do feto, não é posta em crise quando,
dentro de um período inicial, se reconhece autonomia decisória à mulher,
facultando-lhe a tomada de uma “decisão livre, consciente e responsável”
(alínea b) do n.º 4 do artigo
142.º do Código Penal, na formulação do artigo 1.º da Lei n.º 16/2007). Dando
como líquido que a valoração da vida-uterina e a protecção do feto “será quase
sempre prevalecente nas últimas semanas” (Acórdão n.º 288/98), e que, em fases
precedentes, se justifica, em certas circunstâncias, a solução contrária, fica
em aberto saber se, e em que condições, o atendimento da posição constitucional
da mulher pode ir ao ponto de, nas primeiras semanas, atribuir relevo decisivo
à manifestação da sua vontade em interromper a gravidez.
Esta
enunciação mais precisa da questão de constitucionalidade a solucionar
remete-nos directamente, após o enquadramento efectuado, para a apreciação do
sistema instituído pela Lei n.º 16/2007.
Duas
notas prévias devem aqui ser explicitadas.
A
primeira para evidenciar, em reforço do que já foi dito, que cumpre apreciar
apenas se o regime de direito ordinário, globalmente considerado, traduz ou não
a realização eficiente do mínimo de protecção constitucionalmente exigido da
vida intra-uterina, incluindo da vida do embrião nas primeiras 10 semanas. Não
importa averiguar se outras medidas alternativas às adoptadas protegeriam em
maior grau esse bem. O legislador era livre
(no limite da proibição do excesso) de implantar essas medidas, mas não estava vinculado a fazê-lo. Contrariamente ao que
se lê no pedido, a questão não está, pois, em saber se não existem outros meios
“que melhor protejam o valor da vida”. Está apenas em saber se o meio
concretamente escolhido satisfaz ou não o mínimo de protecção.
É o
cumprimento efectivo de um dever,
não o eventual aproveitamento de uma permissão,
que constitui o objecto de apreciação, pelo que há que ajuizar unicamente se os
meios de que o legislador se socorreu para tal fim levam o direito
infraconstitucional a situar-se num ponto ainda consentido pela proibição de insuficiência.
A
segunda nota destina-se a afastar, in limine,
eventuais representações menos fidedignas do regime posto em vigor. Ele não
pode ser caracterizado, por confronto com um modelo puro de indicações, como
uma “retirada” ou “demissão” do Direito, com criação de um espaço em branco,
“vazio de juridicidade”, dentro do período considerado. Só seria assim se a
grávida fosse deixada só, na sua decisão, encarada esta como uma pura escolha
individual, sem relevo comunitário e, portanto, sem previsão de qualquer tipo
de interferência de representantes credenciados do interesse geral.
É
assim no direito norte-americano, mas assim não é no sistema instituído pela
Lei n.º 16/2007. Esta contém um feixe de indicações normativas, com vinculação
da mulher predisposta a interromper a gravidez a certos ónus procedimentais,
que constituem outras tantas condições legais de impunibilidade do acto.
Não
pode, pois, dizer-se que este acto fique subtraído, no âmbito temporal das 10
primeiras semanas, a toda e qualquer forma de influência e orientação pelo
Direito. Nada justifica que as normas de procedimento e de organização sejam, à
partida, excluídas do conjunto de instrumentos de direito ordinário
mobilizáveis pelo legislador, para fins de tutela de bens constitucionais, pois
também elas podem incrementar a probabilidade de preservação da integridade
desses bens.
A
simples previsão de uma tramitação legal, com imposição à grávida de uma
actuação sequencial, em momentos temporalmente intervalados, de que faz parte a
sujeição a uma consulta prévia de carácter obrigatório, promove, no mínimo, e
desde logo, a consciencialização (ou o reforço da consciencialização) da
gravidade ético-jurídica daquilo que se intenta praticar, com incidência
potencial sobre a própria tomada de decisão.
A
mais disso, a obrigatoriedade de percorrer um iter
procedimental, em estabelecimento oficial ou oficialmente autorizado, com um
prazo entre o pedido de marcação e a efectivação de consulta que pode ir até 5
dias (artigo 16.º, n.º 2, da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho), e um
período de reflexão mínimo de 3 dias, entre a consulta prévia e a entrega do
documento formalizador do consentimento (artigo 142.º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 16/2007, e artigo 18.º, n.º
1, da referida Portaria), traz, com a garantia de um “consentimento livre e
esclarecido”, um obstáculo eficiente à execução de decisões tomadas por
impulso, circunstancialmente motivadas e insuficientemente ponderadas.
Nem
é, sequer, rigoroso caracterizar a solução como exprimindo a renúncia à intervenção do direito penal,
como instrumento de tutela, no período em causa. Não pode falar-se de renúncia,
pelo menos de uma renúncia totalmente
abdicativa, pois a interrupção voluntária de gravidez continua a ser
punível quando praticada, neste período, com desrespeito pelas condições
legalmente fixadas. Nesta medida, estamos apenas perante uma restrição (ainda
que significativa) do âmbito da criminalização.
O
que está em juízo, digamo-lo de uma vez por todas, é saber se os instrumentos
penais de intervenção podem ser substituídos, sem perda de eficiência, ou sem
perda de eficiência comprometedora da satisfação do imperativo de tutela da
vida antes do nascimento, por outros meios jurídicos de conformação, de
carácter não penal.
11.4.6.
Não pode duvidar-se, em face do que já foi dito quanto à vida intra-uterina
comungar, em certos termos, da valia intrínseca e da dignidade da vida humana,
que ela representa um bem digno de tutela
penal. Mas a dignidade jurídico-penal de um bem, se é critério necessário, não é critério suficiente
para a outorga da tutela correspondente. Ouçamos o que, a propósito, nos diz
FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal. Parte geral,
I, 2.ª ed., Coimbra, 2007, 127 s.):
«O
que significa, no fim, que o conceito material de crime é essencialmente
constituído pela noção de bem jurídico dotado de dignidade penal; mas que a
esta noção tem de acrescer ainda um qualquer outro
critério que torne a criminalização legítima. Este critério
adicional é – como, de resto, uma vez mais directamente se conclui a partir do
já tantas vezes referido art. 18.º -2 da CRP – o da necessidade (carência) de tutela penal. […] Uma vez que o
direito penal utiliza, com o arsenal das suas sanções específicas, os meios
mais onerosos para os direitos e liberdades das pessoas, ele só pode intervir
nos casos em que todos os outros meios de política social, em particular da
política jurídica não-penal, se revelem insuficientes
ou inadequados. Quando assim não
aconteça, aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao
princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação dos princípios
da subsidiariedade e da proibição do excesso. […] Neste sentido se
pode e deve afirmar, em definitivo, que a função precípua do direito penal – e
desta deriva o conceito material de crime – reside na tutela subsidiária (de ultima ratio) de bens jurídico-penais.»
“O
inevitável entreposto constituído pelo critério da necessidade ou da carência
de pena” não pode, pois ser ultrapassado (A. ob.
cit., 130), devendo ser objecto de consideração autónoma, dado que a
carência de pena não é inferível, sem mais, da dignidade jurídico-penal do bem,
por mais forte que ela seja.
E
essa tarefa de ponderação da necessidade de criminalização, cabe, em princípio,
ao legislador ordinário, estando inserida, como um dos seus momentos mais
relevantes, no cumprimento do mandato geral de consagração de mecanismos de
tutela. Na falta de uma injunção expressa
de intervenção penal, cai no âmbito da valoração mediadora do legislador uma decisão
a esse respeito – a qual, naturalmente, deverá ser tomada com observância dos
princípios constitucionais aplicáveis, em particular o da proporcionalidade. A
ideia de que “a Constituição impõe (apenas) a protecção como resultado, mas não
a sua conformação específica” (BVerfGE,
88, 254) não deixa de abranger também a própria opção de base de utilização ou
preterição de instrumentos penais, pelo menos para quem admita que não existem
imposições jurídico-constitucionais implícitas
de criminalização – posição que, não sendo incontestada, é defendida, entre
nós, nomeadamente por FIGUEIREDO DIAS (ob.
cit., 129).
11.4.7.
Tem sido esta também a posição que o Tribunal, desde a primeira hora, tem adoptado,
quanto à questão de saber se, por imperativo constitucional, a tutela da vida
pré-natal postula a penalização dos comportamentos que a ofendam.
Logo
no Acórdão n.º 25/84, depois de se chamar a atenção para “a ineficácia da repressão penal”, neste
campo, por força da “falta de reacção das chamadas ‘instâncias sociais de
controle”’, deixou-se expresso:
«Daí
que se compreenda que os estudiosos da matéria não pudessem deixar de
interrogar-se sobre os meios de ordem não-penal capazes de minorar esses males,
sendo certo para mais que a repressão penal, à luz do chamado “princípio da
subsidiariedade”, só se justifica se for proporcionada,
e para o ser precisa de ter eficácia. Quando esta não se alcance, então devem
procurar-se outros meios ou processos de evitar tal flagelo […]».
Essa
ideia foi retomada no Acórdão n.º 85/85, tendo-se aí sustentado, entre outras
afirmações de idêntico teor:
«Por
outro lado, independentemente da natureza da protecção constitucional da vida
intra-uterina, nada, porém, impõe constitucionalmente que essa protecção tenha
de ser efectivada, sempre e em todas as circunstâncias, mediante meios penais, podendo a lei não recorrer a
eles quando haja razões para considerar a penalização como desnecessária,
inadequada ou desproporcionada ou quando seja possível recorrer a outros meios
de protecção mais apropriados e menos gravosos».
Pode
dizer-se que, com estas duas decisões, a jurisprudência constitucional
portuguesa, partindo do princípio que a vida pré-natal é um bem
constitucionalmente protegido, enquanto valor objectivo, de imediato
acrescentou que a sanção penal deve constituir uma última instância, só justificada quando essa protecção não
possa ser garantida de outro modo.
Os
Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006 reiteraram essas duas ideias-força. Assim, pode
ler-se no primeiro:
«Nesta
visão das coisas, reconhecer-se-á que o artigo 24.º da Constituição da
República, para além de garantir a todas as pessoas um direito fundamental à
vida, subjectivado em cada indivíduo, integra igualmente uma dimensão
objectiva, em que se enquadra a protecção da vida humana intra-uterina, a qual
constituirá uma verdadeira imposição constitucional.
Todavia,
essa protecção da vida humana em gestação não terá de assumir o mesmo grau de
densificação nem as mesmas modalidades que a protecção do direito à vida
individualmente subjectivado em cada ser humano já nascido – em cada pessoa.
[…]
De todo o modo, de acordo com esta leitura, o legislador ordinário estará
vinculado a estabelecer formas de protecção da vida humana intra-uterina, sem
prejuízo de, procedendo a uma ponderação de interesses, dever balancear aquele
bem jurídico constitucionalmente protegido com outros direitos, interesses ou
valores, de acordo com o princípio da concordância prática».
Dentro
deste quadro de pensamento, o referido Acórdão consolidou também a orientação,
já seguida pelo Acórdão n.º 85/85, da admissibilidade de uma tutela gradativa, “progressivamente mais
exigente à medida que avança o período de gestação”.
Quanto
aos meios de tutela, ambas as decisões se irmanaram na aceitação do ponto de
vista de que não há uma imposição constitucional de criminalização, na situação
em apreço, tendo o Acórdão n.º 617/2006 expressamente aludido ao princípio da necessidade, nestes termos:
«Tal
como já resultava do Acórdão n.º 288/98, deverá salientar-se que estamos no
terreno da responsabilidade penal, onde prevalece o princípio da necessidade da
pena e não perante uma mera discussão sobre o reconhecimento de valores ou
meras lógicas de merecimento de protecção jurídica».
11.4.8.
Tendo em conta a operatividade autónoma do princípio da necessidade e a
imprescindível conjugação da proibição do défice de protecção com o princípio
da proporcionalidade, é metodicamente incorrecto partir aprioristicamente da
legitimidade da intervenção penal, só afastável mediante a prova da
disponibilidade de um meio alternativo de tutela menos intrusivo e de
eficiência equivalente ou superior. Com isso se inverte o sentido do percurso
valorativo e a colocação do ónus de fundamentação, assumindo-se como ponto de partida o que não pode ser senão
o hipotético ponto de chegada.
Dando
como assente que a sanção penal é o instrumento mais gravoso de intervenção,
com a consequente prioridade aplicativa, deste ponto de vista, de qualquer
outro que o seja menos, a sua utilização não pode resultar, sem mais, da
eventual insatisfação provocada por outros instrumentos de tutela. Há que
evitar, nesta matéria, qualquer juízo prima
facie, pelo que a intervenção penal não pode escapar ao crivo da
comprovação positiva da sua eficiência própria, até porque da ineficiência de
outros meios não pode deduzir-se automaticamente a eficiência do direito penal.
Está hoje assente, na doutrina penal, e na senda da
teoria dos fins das penas de LISZT, que os elementos “necessidade” e
idoneidade” constituem pressupostos justificativos da pena. Assevera, a este
respeito, CLAUS ROXIN:
«Não se pode castigar – por falta de necessidade – quando outras medidas de política social, ou
mesmo as próprias prestações voluntárias do delinquente garantam uma protecção
suficiente dos bens jurídicos e, inclusivamente, ainda que se não disponha de
meios mais suaves, há que renunciar – por falta de idoneidade
– à pena quando ela seja política e criminalmente inoperante, ou mesmo nociva.»
− Problemas fundamentais de direito penal,
2.ª ed.ª, Lisboa, 1993, 57-58.
A utilização do direito penal só se legitima
quando seja de lhe atribuir (como requisito mínimo) eficiência, e quando a
eficiência que se lhe imputa, sendo incontroversamente superior à de qualquer
outro meio alternativo, é também a única capaz de atingir o mínimo de protecção
constitucionalmente imposto. Só nestas condições resultam satisfeitos os
critérios da idoneidade e da necessidade, só assim se justifica a conversão do
imperativo constitucional de tutela, ainda indeterminado quanto aos meios, num
preciso dever de estabelecimento de sanções penais.
Ora,
a tal respeito, a interrupção voluntária da gravidez põe em cheque convicções
adquiridas noutros campos.
Na
verdade, essa acção faculta um bom exemplo de uma das situações em que não pode
partir-se da ideia da eficiência da intervenção do direito penal, como se de
uma apriorística evidência se tratasse. A singularidade da relação conflitual e
da fonte do perigo de lesão explicam, em boa medida, essa falência dos
instrumentos penais.
Dados
os termos da tipificação legal, a questão só se põe quando a interrupção é
realizada com o consentimento da própria grávida. Nessa configuração, em que se
esfuma a alteridade entre autor e vítima, a ameaça de sanção penal para
resolver um conflito “interior”, de carácter existencial, na esfera pessoal de
alguém que simultaneamente provoca e sofre a lesão, não tem a eficiência que,
em geral, lhe cabe.
Os
números aí estão, para o comprovar eloquentemente. O regime de punibilidade,
aplicável em todas as fases da gestação, não evitou a prática, em larga escala,
do aborto, frequentemente em condições atentatórias da dignidade e de grave
risco para a saúde física e psíquica (ou até para a vida) da mulher – bens,
estes, objecto de direitos fundamentais, radicados na esfera da grávida, também
eles, a fortiori, cobertos por um
dever estadual de protecção.
Acresce
que a eficiência da criminalização, neste como em qualquer outro domínio,
depende, em primeira linha, do efectivo exercício dos poderes punitivos do
Estado.
No que agora nos ocupa, só a efectiva perseguição e pronúncia, em número
significativo, dos agentes do crime de interrupção voluntária da gravidez
constituiria, potencialmente, um factor de contenção da sua prática.
Ora,
o que constatamos, ano após ano, é a extrema raridade das condenações com esta
causa. Segundo dados constantes do “Relatório e Parecer da Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias”, intitulado Sobre interrupção voluntária de gravidez, elaborado, em
Fevereiro de 1997, pelo deputado José de Magalhães, foram registados, nos sete
anos anteriores, nos serviços do Ministério Público, a nível nacional, 97
processos relativos à possível ocorrência de crimes de aborto. Quanto a
condenações, foram proferidas, entre 1985 e 1995, em número que oscilou entre
duas (em 1986 e 1988) e treze (em 1992), perfazendo, nesses onze anos, um total
de 66. Constata-se, assim, que, em flagrante contraste com a sua grande
difusão, o crime de interrupção voluntária da gravidez muito poucas vezes
atravessa os umbrais das portas dos nossos tribunais. E quando,
excepcionalmente, tal acontece, a reacção social é mais de mal-estar do que de
aplauso – a evidenciar, conjuntamente com a inércia das instâncias sociais de
controlo, que o alto significado do bem afectado e a gravidade da lesão não são
acompanhados, como seria normal (não fora o particular contexto conflitual do
acto lesivo), por um sentimento de radical intolerabilidade. Isto mostra que,
do ponto de vista comunitário, tal comportamento não é valorado como um crime.
Nem se detecta qualquer movimento social significativo
no sentido da alteração deste estado de coisas, pugnando pelas efectivas
perseguição e punição do maior número de infractoras.
A
observação da realidade – e a ponderação da carência de pena, em função, como
deve ser, da sua eficiência relativa, não pode passar à margem de uma diagnose
da factualidade empírica da vivência social – não é, pois, de molde a conferir,
com um mínimo de consistência, validade a um discurso de criminalização da
interrupção em todo o arco temporal da gravidez, incluindo na sua fase mais
precoce. Não é de esperar que a penalização criminal crie um “ambiente” de
decisão favorável à prossecução da gravidez.
E
esta conclusão não representa uma conjectura ou uma prognose, mais ou menos
falível, sobre o futuro, mas um juízo seguro que assenta em dados
indesmentíveis retirados da experiência passada, uma vez que esse foi o regime
anteriormente em vigor, já testado na sua aplicação.
11.4.9.
Mas o regime instituído pela Lei n.º 16/2007 não se caracteriza apenas pela
forte retracção da intervenção penal, nas primeiras 10 semanas de gravidez. Na
verdade, não estamos perante uma simples ampliação dos casos de impunibilidade,
dentro do mesmo critério inspirador, como seria o caso se, por exemplo,
tivessem sido acrescentadas novas indicações justificativas (a indicação
económico-social, designadamente).
Aquele
diploma operou uma verdadeira mudança do paradigma regulador, na medida em que
passou a admitir uma hipótese de exclusão de punição que passa apenas, no plano
das condições substantivas, pela vontade da gestante. É esta quem, em último
termo, e ainda que tendo que satisfazer requisitos procedimentais, dita a
preservação ou não da vida intra-uterina, não ficando sujeita a punição na
hipótese de se decidir pela interrupção. O juízo definitivamente relevante, a
esse respeito, é o juízo subjectivo da própria grávida, não tendo ela que o
submeter à apreciação, segundo critérios objectivos, de uma entidade terceira.
Ainda que a intervenção desta esteja prevista, como parte num processo
comunicacional que inclui uma consulta obrigatória, ela não goza de qualquer
poder vinculante, impositivo de uma solução contrária à desejada pela grávida.
É
forte a tentação de concluir daqui que o resultado deste regime é a
desprotecção total da vida intra-uterina. Mas esta conclusão seria algo
apressada, não levando em conta, mais uma vez, a singularidade da situação.
O
conceito de “dualidade na unidade”, como um sistema móvel, em que o segundo
termo goza, na fase inicial da gestação, de predominância, que perde
progressivamente, em favor do primeiro, tem, de novo, virtualidades
justificativas desta específica opção legal.
A
relação que aqui se estabelece, mesmo quando conflitual, não é entre
subjectividades em oposição, pois o feto não é sentido pela grávida como um
“outro”, como um ente destacado de si própria. Daí que o conflito
dramaticamente sentido pela grávida, quando coloca a hipótese de abortar, seja,
em grande medida, um conflito consigo própria, travado no âmago da sua
personalidade, sofrido como pessoalíssimo e, como tal, refractário a uma solução
autoritária “vinda de fora”.
Neste
quadro singular, é defensável que o Estado, através do legislador, valore como
cumprindo melhor o seu dever de protecção, numa fase inicial da gravidez,
tentando “ganhar” a grávida para a solução da preservação da potencialidade de
vida, através da promoção de uma decisão reflectida, mas deixada, em último
termo, à sua responsabilidade, do que ameaçá-la com uma punição criminal, de
resultado comprovadamente fracassado (ou, mesmo, segundo alguns, contrário ao
desejado, como o próprio Tribunal Constitucional alemão admite – BVerfGE 88, 265). Através, designadamente, de uma consulta
de aconselhamento, em que a grávida é encarada como “interlocutora” (Ansprechpartnerin) e não como “adversária
de uma pretensão” (Anspruchsgegnerin)
– para utilizarmos os sugestivos termos dos juízes MARENHOLZ e SOMMER, na
declaração de voto citada (BVerfGE
88, 343) –, visa-se influenciar as suas motivações internas, favorecendo um
comportamento espontâneo que não afecte o bem da vida. Estando esse bem
corporizado num embrião ou num feto que a grávida traz em si e dela depende,
como suporte vital, é com ela, e
não contra ela, que se intenta
protegê-lo (ibidem, 266).
Dificilmente
se pode negar a adequação, de princípio, do meio de tutela à situação do bem a
tutelar, a homologia do processo tutelador com a configuração específica do
objecto de tutela.
E a
solução não se apoia tanto numa reponderação dos interesses em conflito, com
melhor acolhimento dos titulados pela grávida (muito embora o atendimento
desses interesses decorra objectivamente da solução agora consagrada e
corresponda a padrões jusculturais sobre a posição da mulher hoje largamente
aceites), mas na correcta compreensão, e devida valoração, da especificidade desse conflito, muito distinto dos que nascem
entre dois sujeitos com vida e personalidades próprias. Foi entendido (e a
experiência judiciária confirma-o) que essa especificidade rouba aos
instrumentos penais a idoneidade e a eficiência de que geralmente dão mostras,
pelo que, levando a sério os critérios da adequação e da necessidade, optou-se
por dar preferência, no período inicial da gravidez, a uma solução que, com
pleno respeito da sua liberdade decisória, faz apelo ao sentido de
responsabilidade da grávida.
11.4.10.
O alcance tutelador deste regime não pode ser objecto de desvalorização total e
imediata, in radice. Não se pode
partir do princípio de que o propósito de não prosseguir com a gravidez se
filia em puras razões hedonísticas, impulsionadoras de decisões apenas ditadas
pelo interesse egoísta da própria grávida. Dados fiáveis da análise sociológica
e, até, o testemunho de profissionais envolvidos nos processos de interrupção –
cfr., para o caso alemão, BVerfGE 88, 349
– apontam, todavia, noutra direcção. Eles evidenciam que a decisão de abortar é
tipicamente tomada, não obstante a angústia que provoca, por genuína convicção
de que se trata da decisão certa, no que pesa o sentido de responsabilidade
perante a vida futura do nascituro e perante outros sujeitos, a quem se quer
evitar dor ou causar prejuízo. Razões de responsabilidade moral, tal como a
grávida as compreende e sente, colocam-se frequentemente de ambos os lados da
opção a tomar. Como diz ROBIN WEST, “(…) a decisão de abortar é quase
invariavelmente tomada dentro de uma rede de responsabilidades e obrigações
entrecruzadas, concorrentes e muitas vezes irreconciliáveis” (apud RONALD DWORKIN, Life’s Dominion. An
Argument about Abortion and Euthanasia, London, 1993, 58).
Num campo de valoração pouco propício a
concepções absolutizantes de imperativos reguladores, em que não se divisam
soluções ideais, de eficiência garantida, mas em que, pelo menos, é certo que a
punição criminal não reduz significativamente o número de abortos e é
contraproducente em relação a bens constitucionalmente protegidos (a saúde da
mulher, designadamente), não se afigura injustificado confiar
na capacidade da grávida para tomar uma decisão responsável. Um direito soft, de base prestativa, mais promocional do que
repressivo, pode criar condições, na mente e na vontade da grávida, para que,
naqueles casos em que a dúvida interior se prolonga, subsistindo mesmo após o
início do processo de externalização da intenção abortiva, a decisão venha a
pender para o lado da vida. E só esses casos importam, pois todos os outros
são, realisticamente, casos “perdidos”.
11.4.11.
Não sendo de rejeitar, à partida, por razões de eficiência, esta solução
abona-se em razões de princípio, na consideração da personalidade e da
dignidade da mulher. Há que atentar em que a carga axiológica do princípio da
dignidade humana não está toda do lado da vida intra-uterina. Ela investe
também a posição jurídico-constitucional da mulher, sendo que, nesta esfera,
não está apenas em causa o valor objectivo da vida humana, mas a sua valia
pessoal para alguém, uma pessoa, um sujeito já reconhecido como titular de
direitos fundamentais.
É
certo que a interrupção voluntária da gravidez representa a denegação pura e
simples da expressão mais essencial desse valor, quando reportado à fase
intra-uterina. Em contrapartida, a hipótese contrária, a futura concretização
de um nascimento com vida, preserva, em princípio, a continuação da existência
da grávida, tendo impacto, por forte que seja, apenas na condução de uma vida com
sentido, na impossibilitação (ou no agravamento da impossibilitação) das
condições que, para a própria, em autodeterminação (e também, eventualmente,
para outros sujeitos directa ou indirectamente envolvidos), são tidas como
dando valor substancial à sua vida.
Nesta
medida, pode dizer-se que é maior a gravidade da lesão causada pela interrupção
voluntária da gravidez. Mas essa conclusão apenas justifica a atribuição de
maior peso ao interesse na sua prossecução, na ponderação a estabelecer com o
interesse contrário. Já não legitima a renúncia à busca de soluções minimamente
compromissórias, em desconsideração total do pólo valorativo formado pelo
reconhecimento do valor constitucional da posição da mulher. Tanto mais que,
para esta, o respeito pela vida intra-uterina não se traduz apenas, como para
terceiros, num dever de omitir qualquer conduta que a ofenda, num deixar
correr, sem interferências lesivas, o processo natural de gestação, vindo
também a implicar, após o nascimento, na vinculação, por largos anos, a deveres
permanentes de manutenção e cuidado para com um outro, os quais oneram toda a
sua esfera existencial (cfr. MARGOT v.
RENESSE, “§ 218 F. StGB – eine unvolkommene Antwort auf ein unlösbares
Problem”, Zeitschrift für Rechtspolitik, 1991, 321
s. 322-323).
Esse
compromisso, não estando em causa um conflito intersubjectivo, protagonizado
por dois titulares de direitos fundamentais, mas um conflito entre bens
pessoais de um sujeito e a tutela objectiva do “bem social” do respeito pela
vida, pode legitimamente ser estabelecido, pois, enquanto valor digno de tutela
independentemente do interesse pessoal de alguém, a vida humana não está
sujeita a uma lógica protectora de “ou tudo ou nada”, refractária a gradações
“de mais ou de menos”, imperante quando ela é objecto de um direito individual.
E
pode bem dizer-se que o conjunto da disciplina da interrupção voluntária da
gravidez tem em conta, na justa medida, o maior peso do valor da vida.
Predominam aí as medidas punitivas, recorrendo o Estado exclusivamente ao
direito penal, para cumprir o seu dever de protecção do embrião e do feto, nos
estádios da gravidez em que a “dualidade” transparece com nitidez. Só nas
primeiras 10 semanas – período mais curto, aliás, do que o de 12 semanas
generalizadamente vigente, em direito comparado – é que o Estado, sem se
demitir desse dever, o prossegue por uma via combinatória da sanção penal com
instrumentos auto-responsabilizadores.
Esses
instrumentos vão ao ponto de admitir que a ultima palavra, nesse período temporalmente
limitado, caiba à grávida. Razões de eficiência e de respeito pelo estatuto
constitucional da grávida casam-se, na justificação desta solução específica,
que não merece, por isso, uma apriorística censura constitucional. Se o
legislador, no uso da sua liberdade de escolha dos meios de tutela, entendeu
ser apropriado recorrer à colaboração da própria grávida, fazendo apelo ao seu
sentido de responsabilidade – opção que, como vimos, tem por si um fundamento
razoável –, a salvaguarda da sua autonomia de decisão, para além de ser a
solução que melhor se ajusta ao reconhecimento da dignidade da mulher, é,
verdadeiramente, uma condição necessária à possibilidade de eficácia daquele
apelo.
11.4.12.
Mas a conclusão de que não há obstáculos, de princípio, à admissão desta
solução, em si mesma, não corresponde ainda a uma resposta definitiva à questão
de constitucionalidade posta, pois essa resposta não pode ser dada sem
valoração das condições que subtraem à punibilidade a decisão, pela grávida, de
interrupção voluntária da gravidez.
Isso
porque dessas condições vai depender, em último termo, que possa ser atribuído
à disciplina legal da forma de realização daquele acto alcance tutelador da
vida pré-natal, em medida satisfatória do mínimo de protecção.
Falta
apreciar, pois, se aos trâmites legalmente fixados pode ser imputado esse
efeito.
De
entre esses trâmites, avulta como de significado primordial, deste ponto de
vista, uma consulta prévia, de carácter obrigatório, a partir da qual se conta
um período de reflexão de um mínimo de 3 dias, necessário para a prestação
eficaz do consentimento.
Nos
termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do
Código Penal, a consulta destina-se “a facultar à mulher grávida
o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre,
consciente e responsável”.
Nesta
redacção legal baseia-se a qualificação da consulta, pelos requerentes, como puramente informativa.
Ora, alega-se, só uma consulta de aconselhamento dissuasora
permitiria concluir que, apesar de tudo, o legislador não voltou as costas ao
dever de protecção. Um regime que não a consagre posiciona-se aquém do que é
constitucionalmente devido, pelo que estaria ferido de inconstitucionalidade.
Uma
tomada de posição sobre este último patamar da questão beneficiará com um breve
excurso pelo direito comparado, com particular incidência sobre este ponto
específico.
Por
aí começaremos.
11.4.13.
Pode dizer-se que o “modelo de prazos” é hoje largamente dominante na Europa,
pois, na grande maioria dos países europeus, o regime legal prevê a
impunibilidade de realização médica da interrupção voluntária da gravidez, por
opção da mulher, dentro de certo período, sem dependência da verificação de
determinadas circunstâncias, taxativamente previstas e heteronomamente
controláveis.
Para
além disso, em certos ordenamentos que exigem a invocação de razões
justificativas, na prática aplicativa, uma interpretação muito liberal dessa
exigência faz com que o regime não se diferencie significativamente daquele
outro. É o caso, notoriamente, do Reino Unido e da Espanha, países onde, aliás,
estão em curso projectos de reforma. Na Bélgica (lei relativa à interrupção voluntária da gravidez, de 3 de Abril de 1990)
e na Suiça (regime entrado em vigor em 1 de Outubro de 2002, após
consulta referendária), exige-se apenas a invocação, pela mulher, de um “estado
de angústia” (state of distress). Mas, como
essa situação não é objecto de qualquer parecer médico de verificação (só
exigível, na Suiça, após o prazo de 12 semanas), a solução corresponde
substancialmente ao modelo de prazos.
No interior deste modelo, são diversos,
porém, os níveis de aceitação da impunibilidade.
Tal
patenteia-se, desde logo, na maior ou menor extensão do período temporal da
gestação a que se aplica este regime.
O
período mínimo é de 10 semanas. Vigora apenas em Portugal, na
Bósnia/Herzegovina, Macedónia e Turquia. Na Estónia, é de 11 semanas, 13 na
Holanda, 14 na Roménia, atingindo o máximo na Suécia, onde é de 18 semanas (Lei
n.º 595, de 14 de Junho de 1974, alterada pela Lei n.º 660, de 1995, e pela Lei
n.º 998, de 2007). Em todos os outros países que aderiram a este modelo, o
prazo é de 12 semanas ou de 3 meses [todos estes dados, actualizados a Janeiro
de 2009, foram recolhidos em Abortion Legislation in
Europe, publicado pela “International Planned Parenthood Federation.
European Network”, www. ippfen.org].
Mas a diferenciação de regimes passa também
pela natureza e número das condições concretas de impunibilidade, nomeadamente
pela previsão ou não de uma consulta prévia obrigatória, e,
em caso afirmativo, pelo conteúdo e finalidade dessa consulta.
Não
estabelecem aquela exigência, por exemplo, os sistemas em vigor na Grécia (Lei n.º 1069, de 3 de Julho de 1986), Dinamarca (Lei n.º 350, de
13 de Junho de 1973, com alterações em 1995 e em 2008), Suécia e também, após
as modificações introduzidas em 2001, em França.
Neste
último país, alterando a chamada Loi
Veil, que procedeu à descriminalização da interrupção voluntária da
gravidez até às dez semanas, em situações de angústia, o novo regime, contido
agora no Code de la Santé Publique
(Ordonnance n.º 2000‑548, de 15 de Junho de 2000), procedeu ao
alargamento do prazo em que a mulher pode solicitar a interrupção voluntária da
gravidez de dez para doze semanas.
E
se, antes de 2001, uma tal intervenção só
poderia ser efectuada após um período de reflexão subsequente a uma consulta de
aconselhamento – no âmbito da qual, designadamente, a mulher fosse informada
dos direitos e ajudas sociais de que poderia beneficiar se viesse a ter o filho
– depois da Lei n.º 2001-588, de 4 de Julho de 2001, que interveio em
matéria de aconselhamento, este tornou-se, facultativo, em regra, só sendo
obrigatório para as menores.
O Conselho
Constitucional pronunciou‑se sobre tal lei, tendo considerado que ela
“não quebrou o equilíbrio que o respeito da Constituição impõe entre, por um
lado, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana contra toda a forma de
degradação e, por outro lado, a liberdade da mulher que decorre do artigo 2.º
da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão” (Décision nº 2001‑446 DC, de
27 de Junho, consultável em www.conseilconstitutionnel.fr/decision/2001/20011446/20011446dc.htm).
Também na Áustria, o Tribunal Constitucional foi chamado
a pronunciar-se sobre a solução do prazo, entrada em vigor em 1975, tendo
concluído pela sua não inconstitucionalidade, por entender que não se
verificava violação do artigo 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(integrada no bloco de constitucionalidade), pois que este apenas protegeria a
vida já nascida, encontrando-se a vida intra-uterina excluída do respectivo
âmbito de protecção. Considerou, por outro lado, que as leis básicas em matéria
de direitos fundamentais apenas asseguram protecção contra o Estado e não
contra outros cidadãos.
A estes regimes,
é possível contrapor aqueles outros que, acolhendo embora o princípio da
exclusão da punibilidade da interrupção voluntária da gravidez medicamente
realizada até um determinado momento da gestação, lhe associaram um sistema de aconselhamento obrigatório.
Mas,
dentro deste bloco modelar, não há inteira homogeneidade de soluções quanto à
disciplina de tal aconselhamento.
Na
grande maioria dos casos a considerar, o comprometimento na formação de
decisões espontâneas de prossecução da gravidez não é explicitamente assumido, a
nível das formulações dos enunciados prescritivos da consulta e do seu
conteúdo. Eles caracterizam-se genericamente por obrigar a grávida, antes da
realização da interrupção da gravidez, a dirigir-se a uma instituição onde, em
regra, lhe são comunicadas, entre outras, informações relativas ao apoio social
de que poderá dispor, antes e depois do nascimento, e informação de diversa
índole, desde os riscos médicos do aborto aos locais onde pode ser
realizado.
A
consulta obrigatória está prevista, por exemplo, na Bélgica. A mulher é sujeita a aconselhamento prévio,
devendo ser informada dos riscos médicos da intervenção e, bem assim, dos
direitos e apoios de natureza social e psicológica que pode obter no caso de
levar a gravidez até ao seu termo. Por outro lado, a intervenção só pode ser
efectuada, no mínimo, seis dias após a primeira consulta.
Na Holanda, a lei da interrupção voluntária da
gravidez de 1 de Maio de 1981, que entrou em vigor em Novembro de 1984, após um
decreto de 17 de Maio de 1984 que a regulamentou, alterou o modelo vigente.
Nos seus termos, o aborto provocado não é penalizado
quando, para além da observância dos requisitos respeitantes ao local e momento
da interrupção da gravidez, se verifica uma situação de necessidade, auto-avaliável
pela grávida. Estabeleceu-se um processo de aconselhamento obrigatório, visando
analisar alternativas à interrupção voluntária da gravidez, impondo-se ao
médico que “se certifique, se a mulher achar que a situação de emergência não
poderá ser resolvida de outro modo, que ela manifestou e manteve o seu pedido
de livre vontade, após cuidadosa reflexão e na consciência da sua
responsabilidade pela vida pré-natal e por si própria e pelos seus”.
Aos
modelos de aconselhamento acabados de descrever contrapõe-se singularmente o
instituído no ordenamento jurídico alemão, em consequência da decisão do
Tribunal Constitucional de 28 de Maio de 1993.
Tal
decisão apreciou a lei aprovada em consequência da reunificação e dirigida a introduzir o «sistema de prazos», despenalizando
o aborto praticado por médico durante as primeiras doze semanas da gravidez,
desde que a mulher se tenha previamente submetido a uma consulta de
aconselhamento em que lhe são dadas as explicações médicas e práticas
necessárias para a orientar correctamente na sua escolha.
Chamado a apreciar esta alteração legislativa, o
Tribunal Constitucional alemão partiu da consideração de que a Constituição obriga expressamente o
Estado à tutela e ao respeito da dignidade que é própria da vida humana e que
desta participa, não apenas a vida humana já nascida ou com personalidade já
formada, mas também a vida pré-natal. Partiu também do reconhecimento de um
direito à vida individual do nascituro, direito esse não dependente da sua
aceitação por parte da mãe. Daí a proibição, de princípio, do aborto e o dever,
de princípio, de levar a gravidez ao termo.
O
cumprimento desta obrigação jurídica deve ser assegurado por meios de tutela,
mas a definição detalhada da modalidade e da extensão da protecção que
constitucionalmente se impõe constitui competência do legislador: a
Constituição prevê a tutela como finalidade, mas não a sua concretização ou
finalização detalhadas.
Ainda
que o direito penal surja geralmente como o sector onde ancorar legislativamente
a tutela da vida humana, não será constitucionalmente censurável que a
valoração cometida ao legislador ordinário se efectue na base de uma análise
segundo a qual, no caso de uma situação de mal-estar devida a uma gravidez, o
desenvolvimento da ameaça de sanção penal actuaria mais no sentido contrário a
uma decisão da mulher favorável à prossecução da gravidez, já que a gestante
vive este conflito de um modo muito pessoal e tende a defender-se do juízo e da
valoração desse estado por parte de terceiros.
Assim,
ao legislador não se encontrará constitucionalmente vedada, em linha de
princípio, a possibilidade de, na realização do seu dever de defender a vida,
se virar para um conceito de tutela que parta da consideração de que, na
primeira fase da gravidez, uma protecção mais eficaz da vida pré-natal resulte
da criação de premissas positivas para uma acção da grávida em favor do
nascituro, evitando que esta se oriente unilateralmente e decida segundo os
seus interesses pessoais.
Nesta
perspectiva, não se exclui que a tutela, na primeira fase da gravidez, se
baseie principalmente na obrigatoriedade de uma prévia consulta da gestante,
destinada a convencê-la a levar a gravidez até ao fim. Para o efeito de
assegurar a necessária abertura e consequente eficácia da consulta,
justifica-se também que se renuncie ao sancionamento penal, bem como ao
controlo por terceiros que é próprio do regime das indicações justificativas.
No
plano da conformação normativa do procedimento de consulta, o legislador pode
partir do princípio de que esta apenas terá possibilidade de funcionar como
meio de tutela da vida pré-natal se for conduzida de modo aberto quanto ao
resultado, pertencendo à grávida a decisão livre e final, ainda que
necessariamente vinculada à prévia concessão ao Estado da faculdade de
desincentivo à interrupção.
Uma
consulta de natureza meramente informativa, neutral quanto à finalidade e
simplesmente destinada a facultar à grávida todos os elementos necessários à
sua livre decisão, não lhe permitiria funcionar como meio de tutela, o que
condenaria a viabilidade constitucional do modelo preventivo, substitutivo da
proibição e ameaça penais, por violação do princípio da proibição do défice de
tutela.
Procurando dar execução à orientação estabelecida na
decisão do Tribunal Constitucional, uma lei de 21 de Agosto de 1995 procedeu a
uma modificação do Código Penal, sendo que, na Alemanha, actualmente, a
interrupção voluntária da gravidez praticada por um médico, com o acordo da
mulher grávida, não será punível desde que efectuada nas primeiras doze semanas
e a mulher se tenha submetido a aconselhamento. Quanto a este, dispõe o § 219,
n.º 1, do Código Penal alemão, no segmento que mais importa:
«O aconselhamento serve a protecção da vida que está por
nascer. Deve orientar-se pelo esforço de encorajar a mulher a prosseguir a
gravidez e de lhe abrir perspectivas para uma vida com a criança; deve ajudá-la
a tomar uma decisão responsável e em consciência».
11.4.14. Por este curto panorama comparatístico, se pode ver que o “modelo de prazos”
oferece múltiplas cambiantes tipológicas, separadas, amiúde, por finas
diferenças de conformação, no que diz respeito, sobretudo, ao regime do
aconselhamento.
Quanto
a este, é incontroverso, atento o disposto na alínea b)
do n.º 4 do mesmo preceito e no artigo 2.º da Lei n.º 16/2007, que a consulta
prévia foi, entre nós, incluída nos trâmites a observar obrigatoriamente, como
condição da não punibilidade da interrupção efectuada ao abrigo da previsão da
referida alínea e). Ao contrário de outros
ordenamentos europeus, o direito português não dispensou uma estrutura
comunicacional de proximidade com a grávida e os seus problemas, solução
manifestamente mais favorecedora da possibilidade de a interrupção não vir a
ocorrer do que a hipótese inversa.
Tendo
isso em conta, e também a fixação do prazo no escalão mínimo, pode, desde já,
dizer-se que a disciplina jurídica recém-instituída não se mostrou insensível
ao interesse na prossecução da gravidez. Mesmo o modo como reservou um certo
espaço para uma decisão ad nutum da
mulher tomou em conta esse interesse. Resta saber se o fez em medida suficiente
para cumprir o imperativo de protecção, para o que temos que nos debruçar, mais
de perto, sobre a modelação, em concreto, do regime da consulta obrigatória.
Da
alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código
Penal resulta que o consentimento da gestante à realização da interrupção
médica da gravidez “é prestado […] em documento assinado pela mulher grávida ou
a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento
da intervenção e sempre após um período de
reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher
grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre,
consciente e responsável”.
Sob
a epígrafe “Consulta, informação e
acompanhamento”, o artigo 2.º da Lei n.º 16/2007 especifica,
por seu turno, a natureza do conhecimento que, através daquela informação, deve
ser proporcionado à grávida no âmbito da primeira consulta, preceituando que o
mesmo deve contemplar: a) as condições de efectuação, no caso concreto, da
eventual interrupção voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde
da mulher; b) as condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da
gravidez e à maternidade; c) a disponibilidade de acompanhamento psicológico
durante o período de reflexão; d) a disponibilidade de acompanhamento por
técnico de serviço social, durante o período de reflexão.
Por
estas notas essenciais, pode concluir-se que o sistema português se distancia
do alemão, na medida em que não contém qualquer injunção expressa dirigida aos
profissionais intervenientes na consulta, no sentido de esta dever ser
orientada pelo objectivo de dissuasão da intenção abortiva.
Ora,
resulta de determinado segmento das alegações do pedido que uma solução análoga
à do direito alemão é considerada – com expressa citação da decisão do Tribunal
Constitucional desse país acima referida – como imprescindível para realizar “o
equilíbrio possível” entre o valor da liberdade da mãe e o da vida “em devir”.
Justifica-se, assim, que, aqui chegados, concentremos neste ponto a questão de
constitucionalidade que nos ocupa, reduzindo-a à questão de saber se aquele
traço distintivo entre os dois sistemas representa também, face à nossa
Constituição, a inultrapassável linha de fronteira de uma disciplina
constitucionalmente conforme. O que, noutros termos, cumpre avaliar é se tem
que transparecer explicitamente da semântica do texto normativo a finalidade
dissuasora da consulta, como garantia ineliminável da sua efectiva actuação
nesse sentido e, desse modo, como exigência do cumprimento pelo Estado do
mínimo de tutela que lhe incumbe.
11.4.15.
O nosso legislador revelou transparentemente a finalidade da consulta, ao
dispor que ela se destina a “facultar à grávida o acesso à informação relevante
para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável” (alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, na nova
redacção).
Mas
daí não pode inferir-se, sem mais, que a consulta é puramente
informativa, no sentido de ficar excluída, ao menos como efeito reflexo,
indirecto, ou consequencial, qualquer outra dimensão operativa. Há que atentar,
na verdade, que a informação não constitui um fim em si, mas antes um meio para
uma tomada de decisão, não só livre, como consciente e responsável.
Se
é assim, o que importa é avalizar ou não este desígnio como compaginável ainda
com o cumprimento do dever de protecção e, num segundo momento, mas
inextrincável do primeiro, ajuizar da suficiência dos mecanismos predispostos,
e, em particular, do momento, conteúdo e modo da informação a prestar, para
alcançar objectivos que ultrapassem a mera tomada de
conhecimento de certos dados.
Com
isto, queremos acentuar que uma valoração ajustada ao alcance real do regime
concretamente estabelecido não pode ser obtida mediante um simples jogo de
contraposição de agrupamentos categoriais, definidos em abstracto e concebidos
em relação de mútua exclusão, sem admissão de manifestações gradativamente
intermédias. Não é num processo subsuntivo de integração no grupo dos chamados
“sistemas de mera informação” ou no grupo
dos “sistemas dissuasores”, por razões de
índole predominantemente nominalista, que poderemos fundar uma segura resposta
negativa ou positiva de constitucionalidade, dependente que ela está de um
critério eminentemente graduável, como é a eficiência dos instrumentos de
protecção.
Para isso, é indispensável atender à
estruturação objectiva da interacção comunicativa a estabelecer com a grávida e
à resultante intelecção, por esta, do seu significado. Ora, pode afirmar-se que
o complexo de elementos informativos a disponibilizar à grávida, numa consulta
de carácter obrigatório, organizativamente integrada num complexo de trâmites
prévios e sucessivos, tem como efeito objectivo a sua consciencialização do
valor da vida que transporta em si (ou, pelo menos, resulta ser visto pela
própria como uma tentativa nesse sentido).
Esse
conjunto de passos a dar, num percurso integrado por um aconselhamento e
culminado por um período suspensivo da prática do acto interruptivo da
gravidez, destila iniludivelmente um sentido enfatizador da gravidade da
decisão a tomar e suficientemente sinalizador da valoração, pelo ordenamento
jurídico, do bem da vida. E o encorajamento para uma tomada de decisão que o
preserve é implicitamente dado quando se proporciona à grávida o conhecimento
de uma série de apoios de que pode beneficiar. Daí que, o não ser a consulta declarada e ostensivamente
orientativa não impõe, ipso facto, a
sua qualificação como meramente informativa, como despida de qualquer intenção
de favorecimento da decisão de prosseguir a gravidez.
Merece
destaque, nesta perspectiva de cumprimento do dever de tutela, o disposto na
alínea b) do artigo 2.º da Lei n.º 16/2007,
segundo o qual a grávida deve ser informada das “condições de apoio que o
Estado pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade”. Com esta
informação, sobretudo em relação às mulheres de mais baixos índices económico e
cultural, pode rasgar-se a visibilidade de um horizonte de viabilidade prática
de uma opção pela maternidade, mormente nos casos, presumivelmente frequentes,
em que ela não é pessoalmente rejeitada, mas apenas tida como de concretização
impossível, por falta de condições materiais. Se, na lógica fundante desta
solução legal, a tutela da vida deve operar pelo incremento das possibilidades
de a grávida adoptar espontaneamente uma conduta que preserve aquele bem, então
nada mais adequado do que torná-la ciente, no decurso do processo decisório,
dos apoios de que pode beneficiar, se fizer essa opção. Esses apoios serão
outras tantas razões a balancear do lado oposto ao da interrupção da gravidez,
contrariando o peso das motivações que levaram a mulher a iniciar os
procedimentos que a ela conduzem. Informá-la do “apoio que o Estado pode dar à
prossecução da gravidez e à maternidade” mais não é, ao fim e ao cabo, do que
“abrir-lhe perspectivas de uma vida futura com a criança”, na fórmula do
direito alemão, tida, pelos requerentes, como expressiva da única solução que
traduz “a mínima tentativa de, através da liberdade da mulher (e não contra
ela) procurar salvaguardar a vida”.
Também
não pode ser esquecido o disposto no n.º 4 do artigo 2.º, nos termos do qual
“os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde se
pratique a interrupção voluntária da gravidez garantem obrigatoriamente às
mulheres grávidas que solicitem aquela interrupção o encaminhamento para uma
consulta de planeamento familiar”. E a necessidade de intervenção neste domínio
fica bem à vista, se considerarmos que, em certas faixas populacionais, a
interrupção voluntária da gravidez continua a ser usada como método contraceptivo
(segundo dados da Direcção-Geral de Saúde, das 17.511 interrupções voluntárias
da gravidez registadas em 2008, em 2.659 casos as mulheres declararam já tê-lo
feito por mais de quatro vezes).
11.4.16.
Levando até ao fim o pensamento inspirador da solução da impunibilidade,
assente na crença de que só a adesão espontânea da grávida à continuidade da
gestação garante minimamente, nesta fase, a tutela da vida intra-uterina, o
legislador absteve-se, mesmo a nível comunicacional, de qualquer indicação que
pudesse ser por ela sentida como um juízo externo pressionante da sua conduta.
Considerou incitação suficiente a informação, em termos objectivos (mas não
neutrais, quanto ao resultado), da disponibilidade de apoios vários, permitindo
que a grávida forme por si, na posse desses dados e a partir deles, e após um
período de reflexão que necessariamente os tem em conta, a sua livre
decisão.
Não
tinha que ser essa a solução legal. Não se contesta que o legislador, na sua
liberdade de conformação, poderia ter utilizado fórmulas verbais de eloquência
expressiva quanto à sua adesão à defesa da vida, logo no plano das enunciações
normativas. Assim como também poderia ter imposto aos operadores do processo
legal de interrupção voluntária da gravidez uma explícita orientação
finalística, em moldes idênticos aos do direito alemão, ou, mesmo,
predeterminado certos conteúdos interlocutórios de apelo directo à não
realização desse acto.
Mas
a primeira via, podendo louvar-se da produção de sentido simbolicamnte relevante,
não goza, só por si, de eficiência garantística, no plano operativo da
conformação da vida social.
Quanto
à segunda, ela está sujeita a limites evidentes, resultantes da opção de base
por uma forma de tutela assente, na fase inicial, na colaboração da grávida. As
razões inspiradoras dessa opção vedam interferências demasiado intrusivas no
processo decisório desta, muito em particular certas formas agressivas de
exploração da emotividade acrescida e da situação de vulnerabilidade
psicológica da mulher grávida. Como o próprio pedido expressamente reconhece,
«(…) o aconselhamento não poderá, em caso algum, significar a imposição de uma
pressão psicológica sobre a mulher, mas apenas esclarecê-la da gravidade da sua
decisão e das alternativas possíveis».
É
objectivamente fundado que um legislador levado a confiar, também por razões de
eficiência, na responsabilidade da grávida, chamando-a a cooperar no
cumprimento do dever de protecção que ao Estado compete, não queira depois
criar um contexto de decisão muito provavelmente desfavorável a esse
desiderato.
Assim
como – agora no plano da preservação da dignidade da mulher grávida – a crença
no seu sentido de responsabilidade e na sua predisposição a sensibilizar-se
pelas razões contrárias à interrupção conjugar-se-iam mal com um tratamento que
a menorizasse enquanto sujeito da decisão, com uma posição de orientação de
cunho paternalista e tutelar. As exigências decorrentes da tutela da dignidade
da mulher afirmam-se também no modo como se deve processar a consulta que lhe é
imposta.
11.4.17.
É de reconhecer que ao legislador se deparou um estreitíssimo canal de
navegação, entre as razões e os princípios que nortearam a decisão de excluir,
em certos termos, a punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, na sua
fase inicial, e a margem oposta desenhada pela proibição do défice de tutela. E
há que reconhecer, de igual forma, que ele não poderia ter ido muito mais além,
na promoção de decisões de prossecução da gravidez, sem exposição séria ao
risco de resultados perversos, comprometedores dos objectivos que justificam
aquela opção. Não se afigura desrazoável, em tal contexto de política
legislativa, a auto-contenção de que ele deu mostras.
Auto-contenção
que, de modo algum, pode ser confundida com uma posição de neutralidade ou de
indiferença perante a decisão que a grávida venha a tomar. Toda a preocupação
revelada na Lei n.º 16/2007, de estruturação de serviços e de imposição de
procedimentos na sua utilização, não tem um significado puramente técnico-organizativo,
só se compreendendo como expressão de empenho na tutela, para além da saúde da
mulher, da vida pré-natal. E não é a omissão de uma expressa vinculação formal
dos serviços à consecução dessa finalidade que pode servir de razão bastante
para negar a presença dessa intencionalidade de tutela, quando só ela dá
objectivamente sentido ao conteúdo de muitas das normas de organização e de
procedimento constantes daquele diploma. A eficiência protectora, nos limites
em que, nesta fase, ela é expectável, é mais resultado da acção
consciencializadora e objectivamente incentivadora de certos trâmites, da dependência procedimental em que, em relação a eles, é
colocada a realização da intervenção, do que de processos comunicacionais
ostensivamente orientadores que, sem a participação dialógica da grávida (nunca
garantida e, porventura, prejudicada por uma opção desse tipo), facilmente se
transmutam em formalidades ritualisticamente processadas.
Não
se pode, pois, ver na falta de indicação expressa de uma finalidade dissuasora
da interrupção da gravidez o preciso défice de regulação que faz com que o
regime questionado não atinja o grau de comprometimento com o valor da vida
exigível para a satisfação do mínimo de tutela. Tal exigência – só constante,
aliás, no quadro europeu, da legislação germânica, com base num entendimento,
divergente daquele que é perfilhado por este Tribunal, de que o bem da vida
intra-uterina tem um referente pessoal, e porventura explicável por
circunstâncias específicas desse ordenamento, ligadas ao processo de
reunificação – tal exigência, dizíamos, não representa um penhor seguro de uma
maior intensidade de tutela, capaz de traçar, com nitidez, uma linha divisória
entre o campo das soluções constitucionalmente conformes e o das que não o são.
Está por demonstrar que ela trouxesse um acréscimo de eficiência, não sendo até
de excluir o resultado contrário, por uma retracção defensiva da grávida.
E só
perante um índice manifesto, incontroversamente significante da necessidade,
para cumprimento do imperativo de protecção, de uma enunciação expressa da
finalidade dissuasora haveria fundamento para um juízo de
inconstitucionalidade.
Pois,
na verdade, cumpre reconhecer que o julgador não dispõe de um instrumento de
mensuração exacta do grau de protecção exigível para o cumprimento, pelo
Estado, do correspondente dever. Nem se lhe pode exigir a identificação de um
preciso e fixo ponto arquimédico, abaixo do qual o veredicto do incumprimento
tenha que cair, inexorável. Quando é a observância do imperativo de tutela que
está em questão, mais ainda do que em qualquer outra dimensão da
constitucionalidade, e em correlação com uma maior liberdade de conformação
legislativa (dada a estrutura dos deveres activos de intervenção), a instância
de controlo tem que lidar com critérios de evidência,
só se justificando uma pronúncia de inconstitucionalidade em caso de manifesto
erro de avaliação do legislador.
Esse
erro, no entender do Tribunal, não foi cometido, quanto às soluções
contestadas, não podendo afirmar-se que as opções legislativas ficaram aquém do
que seria exigível para justificar a exclusão da punibilidade.
11.4.18.
A emissão de um tal juízo apoia-se também na consciência de que o cumprimento
dos deveres de protecção está sujeito a limites fácticos e jurídicos (cfr.
ROBERT ALEXY, ob. cit., 422), sendo ilusório
acreditar num ilimitado poder do legislador de intervenção modificativa da
realidade. Daí que ao juízo de não inconstitucionalidade se não oponha uma
posição de cepticismo quanto à eficácia tuteladora, em termos
absolutos, da solução encontrada.
Não
dispomos de dados seguros, a nível nacional, quanto os resultados aplicativos
da Lei n.º 16/2007, especificamente quanto à taxa de desistência, no período de
reflexão – o índice de maior relevo, a este respeito – uma vez que os registos
obrigatórios não contemplam esse elemento. Na maternidade Alfredo da Costa,
verificou-se, aparentemente, uma curva descendente, pois, enquanto que o Diário de Notícias de 1 de Novembro de 2007 relatava que,
das 261 mulheres a participar, desde a entrada em vigor da lei (15 de Julho do
mesmo ano), na consulta prévia de interrupção de gravidez, 22 mudaram de ideias
durante o período de reflexão – uma percentagem muito superior à verificada
noutras unidades de saúde –, na Tribuna Médica Press,
de 11 de Fevereiro de 2008, o director daquela maternidade assinalava 4% de
desistências – número próximo da estimativa, para fins de planeamento, da
Direcção-Geral de Saúde, que apontava para 5% (Relatório
dos registos das interrupções da gravidez ao abrigo da Lei n.º 16/2007 de 17 de
Abril. Dados referentes ao período de Julho de 2007 a Julho de 2008,
Lisboa, Setembro de 2008, 6).
Provando,
em todo o caso, que não é nula a eficiência tuteladora do regime legal, estes
valores podem ser qualificados como baixos, o que parece justificar a
mencionada posição de cepticismo. Mas o juízo de eficiência não pode deixar de
ser um juízo relativo, de gradação comparativa
das soluções alternativas de disciplina legal. Ora, não se afigura que um
aconselhamento segundo o modelo alemão se possa louvar de melhores resultados,
a dar crédito a um inquérito realizado pelo Max-Planck Institut,
que apresentou uma projecção de 5% de desistências (cfr. JOÃO LOUREIRO, “Aborto:
algumas questões jurídico-constitucionais A propósito de uma reforma
legislativa”, Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, LXXIV (1998), 327 s., 372).
E,
se bem virmos, estes números não surpreendem, pois a procura dos serviços
médicos, com vista à interrupção da gravidez, traduz, em regra, um grau de
determinação volitiva da gestante dificilmente contrariável pela ordem
jurídica. “A esmagadora maioria das mulheres que se decide a abortar está
disposta a fazê-lo mesmo que tal não seja admitido pelo sistema jurídico”,
reconhece até um Autor que se pronuncia pela inconstitucionalidade de qualquer
solução de prazos (JOÃO LOUREIRO, ob. loc. cit.).
Se
tivermos também presente a ineficiência da punição penal, a conclusão a tirar é
a de que será sempre reduzida a eficácia preventiva de qualquer
das formas de reacção jurídica à
interrupção voluntária da gravidez, no quadro da específica
disciplina legal desse acto. Mais do que com os limites do direito
penal, somos aqui confrontados com os limites do Direito (nesse sentido, GEORG
HERMES/SUSANNE WALTHER, “Schwangerschaftsabbruch zwischen Recht und Unrecht. Das zweite
Abtreibungsurteil des BVerfG und seine Folgen”, NJW
1993, 2337 s., 2341). O
mínimo de protecção exigível será sempre, nessa medida, o mínimo possível, dentro desses limites.
Quanto
aos limites jurídicos, eles resultam da necessária conciliação do princípio de
proibição do défice de tutela com outros princípios eventualmente colidentes,
pois o imperativo de protecção não goza de primado absoluto dentro da ordem
constitucional. Pelo contrário, tem sido sustentada “a eficácia mais ténue da
função de imperativo de tutela, (…) substancialmente mais fraca do que a da
função dos direitos fundamentais como proibições de intervenção” (CANARIS, ob. cit., 65). É seguro, pelo menos, que a observância desse
imperativo não legitima a invasão incondicionada da esfera protegida dos
direitos fundamentais de outros sujeitos (GEORG HERMES/SUSANNE WALTER, ob. loc. cit.).
Voltando
a acentuar uma ideia-chave, nesta matéria, há que lembrar que o espaço de livre
conformação do legislador não está apenas limitado pela proibição de
insuficiência, mas também pelo princípio da proporcionalidade, nas suas várias
componentes. Sendo assim, as sérias dificuldades (se não, mesmo,
impossibilidade) de satisfação cabal do primeiro princípio, quando o seu âmbito
de aplicação é (indevidamente) restringido ao processo de decisão do acto de
abortar, não deve reverter na lesão do segundo, sob pena de nenhum dos dois ser
adequadamente observado…
Mas
o reconhecimento dos limites fácticos e jurídicos da tutela através da
disciplina legal do acto abortivo e dos trâmites que o antecedem deve ser
acompanhado da consciência de que o cumprimento do dever de protecção da vida
pré-natal não se realiza apenas nessa sede. Ao Estado cabe combater, na sua
génese, as “situações de risco” para esse bem, causadas por factores de
educação e por condições de vida e de trabalho, através de medidas educativas e
de política social favorecedoras de uma concepção responsável e da
disponibilidade para a prossecução da gravidez. Quando se trata de valorar
globalmente a efectivação, pelo Estado, do mínimo de protecção da vida
intra-uterina a que está obrigado, essas medidas devem ser contabilizadas, pois
também elas (melhor, sobretudo elas) contribuem para uma redução do número de
abortos – o objectivo da imposição daquele dever. E a realista avaliação de que
não é de esperar um resultado expressivo, nesse sentido, do regime legal da
interrupção voluntária da gravidez só deve conduzir a uma apreciação
redobradamente positiva, também nesta perspectiva, de instrumentos preventivos,
actuantes no domínio da educação sexual e planeamento familiar e de apoio à maternidade
e à família, mais distantes, mas mais eficazes.
E
medidas desta natureza, recomendadas pelas instâncias europeias, como
instrumentos de diminuição do recurso ao aborto – cfr., em particular, a
“Resolução do Parlamento Europeu sobre Direitos em Matéria de Saúde Sexual e
Reprodutiva”, de 2003, já referenciada no Acórdão n.º 617/2006 – têm sido
introduzidas, no nosso ordenamento jurídico, por numerosos diplomas.
Para
além dos já mencionados nesse aresto, têm uma actuação particularmente
significativa, neste campo, o Decreto-Lei n.º 105/2008, de 25 de Junho, que
institui medidas sociais de reforço da protecção social na maternidade,
paternidade e adopção integradas no subsistema de solidariedade; o Decreto-Lei
n.º 245/2008, de 18 de Dezembro (procede à alteração do Decreto-Lei n.º
176/2003, de 2 de Agosto, o qual passou a prever o abono de família pré-natal
como forma de protecção nos encargos familiares); o Código do Trabalho, revisto
pela Lei n.º 7/2007, de 12 de Fevereiro, o qual contém toda uma subsecção
(Subsecção IV da Secção II do Capítulo II – artigos 33.º a 65.º) dedicada à
“parentalidade”, com disposições tuteladoras dessa situação familiar; o
Decreto-Lei n.º 91/2009, de 29 de Abril, que estabelece o regime jurídico de
protecção social na parentalidade, no âmbito do sistema previdencial e no
subsistema de solidariedade (revoga o Decreto-Lei n.º 105/2008, de 25 de
Junho); a Lei n.º 60/2009, de 6 de Agosto, que estabelece o regime de aplicação
de educação sexual em meio escolar e o Decreto-Lei n.º 201/2009, de 28 de
Agosto, que procede à alteração do Decreto-Lei n.º 176/2003, de 2 de Agosto, o
qual passou a prever a bolsa de estudo como forma de protecção nos encargos
familiares.
É de concluir que vigora, no nosso sistema, um
conjunto diversificado de medidas, em número e com um alcance bastante para
que, tendo-as também em conta, se possa sustentar que o Estado português não
cruza os braços perante o fenómeno do aborto, antes está activamente empenhado
em combatê-lo.
De
resto, na nossa história legislativa, a regulação da prática da interrupção
voluntária da gravidez, foi associada, desde o início, aquando da implantação
do “modelo das indicações”, a intervenções com vista à “protecção activa da
maternidade”. De facto, em 1984, a Assembleia da República não aprovou apenas
uma lei sobre interrupção voluntária da gravidez: definiu um complexo de
instrumentos legais tendentes a assegurar apoio à maternidade. Visou-se,
intencionalmente, a criação de um edifício legislativo composto por várias
peças, actuantes articuladamente no mesmo sentido, de forma a potenciar a
eficácia interventiva do conjunto – cfr. o Relatório de
José de Magalhães, cit., 3-4.
Poderá,
porventura, alegar-se que, entre nós, as prestações públicas de educação sexual
e de apoio à maternidade estão ainda longe de atingir o grau de eficiência já
alcançado pelos países mais avançados, neste domínio. Mas não pode esquecer-se
que o que está em causa é um mínimo de protecção, não a protecção ideal.
11.4.19.
Por todo o exposto, pode concluir-se que as normas dos artigos 1.º – na parte
em introduz a alínea e) do n.º 1 e a
alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código
Penal –, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, não
estão feridas de inconstitucionalidade, por violação do artigo 24.º, n.º 1, da
Constituição.
11.5. O período mínimo de reflexão (alínea b)
do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal)
Ainda dentro do quadrante valorativo respeitante ao
alegado incumprimento do dever de protecção da vida humana, os requerentes pretendem a declaração de
inconstitucionalidade da opção normativa que, no âmbito do regime jurídico
instituído pela Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, limita a três dias o prazo mínimo de reflexão que medeia entre a realização da
primeira consulta médica e a prestação do consentimento para a realização da
interrupção da gravidez, considerando-a conflituante com o artigo 24.º da CRP.
A
solução contestada pelos requerentes encontra-se expressa na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção
dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007.
Dispõe-se
aí o seguinte:
«4 -
O consentimento é prestado:
a)
[…]
b)
No caso referido na alínea e) do n.º 1, em documento assinado pela mulher grávida
ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao
momento da intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da
primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação
relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável.»
Para
além de questionarem a solução de base constante da alínea e)
do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal e o regime da consulta obrigatória
para dar satisfação ao mandamento constitucional de protecção da vida
intra-uterina, os requerentes impugnaram também especificamente o segmento
normativo do preceito acima transcrito que fixa em três dias o período mínimo
de reflexão entre a consulta e a prestação do consentimento.
Em
seu entender, esse prazo é excessivamente curto, estando em causa uma decisão
que se quer livre, consciente e responsável, e de que pode resultar a lesão
irreversível da vida humana. Mesmo a admitir-se que a restante modelação da
disciplina legal satisfaz o imperativo de protecção inferível do artigo 24.º da
Constituição – o que os requerentes não concedem – a brevidade daquele prazo é
de molde a comprometer o cumprimento desse dever de protecção.
Mas
também não merece este juízo a extensão temporal do período de reflexão.
Consagram-se, em direito comparado, é certo, períodos mais alongados. Tendo em
conta, todavia, a premência do tempo, para a não ultrapassagem do limite das 10
semanas, e o facto de a procura dos serviços ser já o resultado de uma reflexão
anterior da grávida, o prazo de três dias é adequado, mostrando-se suficiente
para lhe proporcionar uma ponderação consciente daquilo que ouviu na consulta.
E é
puramente especulativo pensar que um período de maior duração contribuiria para
o aumento da taxa de desistências. Com efeito, não é possível estabelecer uma
qualquer relação de inferência directa entre o sentido da decisão final da
gestante e a duração do prazo destinado à sua reflexão após a realização da
consulta a que se refere o artigo 2.º da Lei n.º 16/2007. Inexiste, assim,
fundamento racionalmente sustentável para concluir que uma duração do período
de reflexão superior àquela que se encontra prevista fosse susceptível de
assegurar em maior medida o favorecimento de comportamentos espontâneos compatíveis com a
prossecução da gravidez.
De
resto, trata-se de um prazo mínimo
(contrariamente aos prazos, de direito do consumo, argumentativamente invocados
no pedido), nada obstando (antes tudo aconselhando) a que, em caso de persistência
de dúvidas da gestante, no termo desse período, a intervenção, no limite das 10
semanas, seja retardada, de modo a não impossibilitar uma definitiva decisão em
contrário.
A duração do período de reflexão legalmente
prevista, em si mesma e no contexto da normação em que se insere, não
constitui, pois, um elemento susceptível de fazer fracassar o sistema, no
confronto com as injunções de sentido procedentes do artigo 24.º da CRP, pelo
que não está ferida de inconstitucionalidade.
11.6. Violação do
direito à saúde física e psíquica da mulher
Vem também alegado que o regime da Lei n.º 16/2007, na
medida em que não protege a saúde física e mental da mulher, atenta contra o
disposto nos artigos 64.º, n.ºs 1 e 2, alínea b),
e no artigo 66.º, n.º 1, da CRP.
A alegação consta do ponto Z) das conclusões, formulado
nos seguintes termos:
«Sendo hoje reconhecido o aborto como um acto de risco
para a saúde física e mental da mulher, e dando por assente o aborto por
carências económicas, o regime fixado na Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril,
liberta o Estado da sua função de solidariedade e protecção da saúde física e
psíquica, violando, assim, o disposto nos arts. 64.º, n.º 1 e 2, al. b), e
66.º, n.º 1, da C.R.P.»
O pedido não referencia a norma ou complexo de normas a
que concretamente seja de imputar o alegado vício, apontando apenas, em termos
vagos, “o regime fixado na Lei n.º 16/2007”. A motivação também não ajuda a
concretizar. Nela pode ler-se, quanto a este ponto:
«Sabe-se hoje que o aborto constitui, para a mulher, uma
chaga e uma fonte de doença gravíssima: o trauma pós-aborto.
Permitir que as mulheres corram este risco de doença
para o resto da vida por um aborto, às vezes feito por falta de condições
económicas ou sociais ou, meramente, por motivos fúteis ou ainda porque as
mulheres são vítimas de maus-tratos familiares, é deixar totalmente
desprotegido o direito à saúde que ao Estado cabe fazer cumprir e implementar.
Recorde-se, a título de exemplo, as políticas que hoje,
por via deste dever constitucional atribuído ao Estado, estão em vigor com
vista a eliminar os riscos de vida ou para a saúde das pessoas, de que são
casos bem exemplificativos a circulação automóvel, o tabagismo, etc…
Trata-se de políticas que restringem a liberdade
individual, atento o bem maior que é saúde ou a vida».
Não obstante a falta de indicação precisa da norma ou
normas questionadas, parece poder deduzir-se desta argumentação que em causa
estão as normas do diploma de que mais directamente resulta, na óptica do
pedido, um favorecimento das práticas abortivas. Ou seja, as mesmas normas já
anteriormente apreciadas, pelo prisma do artigo 24.º da Constituição, e muito
em especial a alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal, na redacção ao artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, a
alínea b) do n.º 4 do referido artigo 142.º, e
o n.º 2 do artigo 2.º daquela Lei.
A ideia fundante será a de que, ao não reprimir a
interrupção voluntária da gravidez, por meios de direito penal, ou, pelo menos,
ao não dissuadir a sua prática, por meios substitutivos adequados, o Estado não
está a cumprir o seu dever de protecção da saúde física ou psíquica da grávida,
posta em risco por aquelas intervenções interruptivas.
Assim sinteticamente formulada, que dizer desta invocada
questão de constitucionalidade?
Quanto aos parâmetros constitucionais invocados, é de
afastar liminarmente o consagrado no artigo 66.º, n.º 1, cujo âmbito de
protecção – o ambiente e a qualidade de vida – nada tem a ver, como é
manifesto, com o bem em causa. Ainda que o preceito releve de uma “teleologia
antropocêntrica” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob.cit.,
845), encarando a defesa e promoção de um ambiente sadio como um factor da
qualidade de vida, nele nada se estatui que possa ter repercussão, directa ou
indirecta, na criação de condições de vivência social dissuasoras das
interrupções voluntárias da gravidez.
Sob o ponto de
vista do direito à saúde, é evidente que, mesmo quando realizada nas condições
médico-sanitárias adequadas, a interrupção voluntária da gravidez comporta
algum risco (risco, em todo o caso, tanto menor quanto mais precoce for a
intervenção). Não se nega que possa haver sequelas nefastas, mesmo de carácter
não transitório, sobretudo para a saúde psíquica da mulher, dados os
sentimentos de perda e de culpa frequentemente associados à realização daquele
acto.
Mas o legislador mostrou-se perfeitamente consciente
disso mesmo, ao impor que a grávida seja informada, no decurso da consulta obrigatória,
das consequências para a sua saúde (tanto física como psíquica, evidentemente)
da efectivação do seu desígnio. E essa informação, mesmo num quadro decisório
de auto-responsabilidade, pode ter, nalguns casos, alguma eficácia
desincentivadora, por instigação dos mecanismos de autotutela.
E ainda que a
grávida decida levar o seu propósito avante (o que, já se admitiu, acontecerá
na grande maioria dos casos, mas isso qualquer que seja o sistema
disciplinador), a preocupação de tutela da sua saúde está presente ao impor-se
que a interrupção seja efectuada por médico, ou sob sua direcção, em
estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, e ao impor-se a
estes estabelecimentos a adopção de medidas capazes de garantirem uma boa
prestação deste serviço, também em termos médicos (cfr. a Portaria n.º
741-A/2007, de 21 de Junho).
O erro da arguição é o de pressupor que o impedimento ou
dificultação de realizar a interrupção voluntária da gravidez em condições de
impunibilidade se traduz automaticamente no decréscimo do número desses actos
e, logo, numa menor possibilidade de concretização do risco a eles associado.
Ora, já vimos que não é assim. Certo é antes que esse regime teria o efeito,
como teve no passado, de potenciar o número de abortos praticados em condições
completamente inadequadas e, esses, de risco muito mais grave para a saúde da
mulher – risco frequentemente concretizado, como a prática hospitalar
documenta. E os primeiros dados disponíveis parecem confirmar o efeito salutar,
a este nível, da Lei n.º 16/2007, pois, no seu primeiro ano de vigência, terão
diminuído significativamente as infecções e a perfuração de órgãos associadas
ao aborto clandestino.
Quanto às medidas instrumentais de uma plena realização
do direito à protecção da saúde, enunciadas na alínea b)
do n.º 2 do artigo 64.º da CRP, é evidente que políticas sociais dirigidas à
criação de condições de vida e de trabalho dignas e de apoio solidário aos que
delas estão carentes fornecem uma envolvente favorável à disponibilidade para
aceitação responsável da maternidade, sendo também elas um relevante factor,
ainda que genérico e mais longínquo, de contenção das práticas abortivas. Como
já alguém disse, “a melhor protecção da vida pré-natal é a da vida existente”.
Mas, o que nem o mais denodado esforço interpretativo
consegue alcançar é o porquê de os agravos sobre a condição da mulher
ocasionados pela falta dessas medidas, tão pictoricamente descritos no pedido,
deverem ter por corolário…a inflicção de um novo mal – a punição penal por uma
interrupção voluntária da gravidez explicável, em muitos casos, por aquelas
circunstâncias.
É de concluir, pois, que a admissão da realização da
interrupção voluntária da gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10
semanas de gravidez, nas condições fixadas na Lei n.º 16/2007, não desprotege a
saúde física e psíquica da mulher.
11.7. Violação do
direito à liberdade e do princípio da proporcionalidade
O regime consagrado no mesmo artigo 2.º e no artigo
142.º, n.º 4, alínea b), do Código
Penal é também apontado, na motivação, como conflituando com os “direitos
constitucionais à liberdade e proporcionalidade”, tornando-se, deste ponto de
vista, sindicável perante o disposto nos artigos 25.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, da
CRP”.
A relacionação destas normas com aqueles valores
constitucionais alegadamente violados desperta alguma perplexidade, pois não se
descortina que “os direitos constitucionais à liberdade e proporcionalidade”
possam caber nos respectivos âmbitos de protecção.
Em relação à norma do artigo 27.º, n.º 1, a sua
invocação parece assentar num equívoco, pois o bem protegido em tal preceito,
como se reconhece consensualmente e os n.ºs 2 e 3 deixam claro, é o da
liberdade física.
Ora, o que aqui pode estar em causa é apenas a liberdade real de decisão, quanto à realização ou não do
acto abortivo, por défice de informação quanto a todos os elementos relevantes
para uma escolha consciente. É essa insuficiência que os requerentes parece
terem em vista, quando, na conclusão w), referem que o modo como a Lei n.º
16/2007 regula a prestação da informação “tange com os Princípios
Constitucionais da igualdade e proporcionalidade (…)”.
Se o princípio da igualdade pode ser, de imediato, posto
de lado, por estar aqui deslocadamente invocado, também não é clara a
inferência de sentido que os requerentes retiram do princípio da
proporcionalidade, quando o invocam, a este propósito. Pois, estando este
princípio colimado à proibição de um excesso, não se afigura que se encontre
disponível, qua tale, para atalhar um défice (de
protecção), em concretização da proibição de insuficiência – cfr., nesse
sentido, CANARIS, ob. cit., 67.
Sempre se dirá, todavia, que a informação, tal como vem
regulada, em termos de conteúdos e processos comunicativos, é proporcionada ao
objectivo de obter a colaboração da grávida para ouvir, seriamente reflectir e,
eventualmente, se deixar influenciar pelos dados que lhe são transmitidos.
Quanto ao momento e ao modo de informar, vem também
alegada “a natureza triplamente indirecta da informação a prestar”, partindo-se
do princípio que “não é obrigatório fornecê-la mas apenas informar a grávida
acerca dos meios de a obter” e de que, se essa opção for feita, é a um técnico
social, durante o acompanhamento no período de reflexão, ao qual se refere a
alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º
16/2007, que cabe informar.
Esta interpretação contradiz frontalmente os enunciados
legais. Das normas dos artigos 142.º, n.º 4, alínea b),
do Código Penal, e 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, (e também do artigo 16.º da
Portaria n.º 741-A/2007, não objecto de recurso, neste processo) resulta que a
informação, toda a informação prevista como de prestação obrigatória e não
apenas a de natureza médica, deve ser directamente
fornecida, no acto da consulta, e não após a sua efectivação.
É de rejeitar, pois, a invocada inconstitucionalidade
dos artigos 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 e 142.º, n.º 4, alínea b) do Código Penal, com fundamento em violação dos “direitos
constitucionais à liberdade e proporcionalidade”.
11.8. Não participação do progenitor masculino
no processo de decisão sobre a interrupção voluntária da gravidez
11.8.1. Os requerentes suscitam ainda a
questão da inconstitucionalidade da solução normativa consistente na omissão da
exigência de participação do progenitor masculino no processo de
formação da decisão sobre o aborto no âmbito do regime jurídico
instituído pela Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril.
Para
condenar a viabilidade constitucional de tal solução, invocam as normas
paramétricas constantes dos artigos 1.º, 2.º, 24.º, 13.º, 36.º, n.ºs 3 e 5,
67.º, alínea d), 68.º, n.º 2, da CRP, e os
fundamentos seguintes:
- através do seu artigo
67.º, alínea d), a Constituição garante o
exercício da maternidade e paternidade conscientes, estabelecendo, por sua vez,
o respectivo artigo 68.º que a maternidade e a paternidade constituem valores
sociais eminentes;
- o princípio da
igualdade fixado para o exercício da parentalidade trespassa todo o direito
constitucional (artigos 13.º, 36.º, n.ºs 3 e 5, 67.º e 68.º da CRP).
- ao deixar o
progenitor masculino totalmente arredado da responsabilidade e processo de
formação da decisão no aborto, a Lei n.º16/2007, de 17 de Abril, viola estas
normas e as restantes acima mencionadas da Lei Fundamental.
11.8.2. Nos termos dos n.ºs 4, 5 e 6 do
artigo 142.º do Código Penal, a formação da decisão sobre a interrupção
voluntária da gravidez cabe apenas à mulher grávida, cujo consentimento, ou do
seu representante nos termos da lei, inserido na tramitação que antecede a
realização daquele acto, é exigível como condição de exclusão da punibilidade.
O regime do consentimento para a realização da
interrupção da gravidez no âmbito do funcionamento da fattispecie
contemplada na alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal dispensa, assim, o do progenitor, em tal exclusão
residindo o vício de inconstitucionalidade apontado pelos requerentes.
A
apreciação da viabilidade constitucional deste regime pressupõe a prévia
caracterização da configuração em que, neste quadro, o problema pode
juridicamente suscitar-se.
De
facto, só nos casos em que a identidade do progenitor for susceptível de ser
estabelecida pela ordem jurídica, de forma legítima, é que a questão poderá
verdadeiramente colocar-se.
Se
o não puder ser, não chega a suscitar-se um qualquer problema jurídico porque,
em termos puramente jurídicos, um pai desconhecido é o mesmo que um pai
inexistente, pelo que a sua vontade será neste caso irrelevante (PEDRO PAIS DE
VASCONCELOS, “A posição jurídica do pai na interrupção voluntária da gravidez”, Estudos em honra do
Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, I, Coimbra, 2008, 139
s., 152-153).
Ora,
podendo partir-se com segurança do postulado segundo o qual não constituiria
forma legítima de estabelecimento da identidade do progenitor qualquer uma que
assentasse na previsão de uma investigação das circunstâncias da concepção ou
numa indagação a desenvolver junto da própria grávida – tratar-se-ia sempre de
uma intolerável violação do direito à reserva da intimidade que lhe é
assegurado pelo artigo 26.º da Constituição –, o problema da dispensa do
consentimento do progenitor para a realização da interrupção voluntária da
gravidez fica juridicamente limitado ao âmbito do funcionamento operativo da
presunção de paternidade decorrente do casamento, consagrada no artigo 1826.º
do Código Civil.
Apenas
nestes casos, a ordem jurídica estará em condições para, sem o recurso à
colaboração da gestante, estabelecer a identidade do progenitor do nascituro
comum e, em tal contexto, equacionar a possibilidade de, em oposição ao
critério legal impugnado, fazer depender também do assentimento daquele a
realização da interrupção da gravidez por opção da grávida.
Nos
termos preceituados no artigo 1826.º do Código Civil, presume-se que o filho
nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido
da mãe.
Tal
presunção, não sendo inderrogável, cessa nos casos previstos nos artigos 1829.º
e 1832.º do mesmo Código.
Trata-se
aqui dos casos em que a lei não impõe a presunção de paternidade ao marido da
mãe, embora a concepção do filho se tenha verificado durante a constância
formal do matrimónio.
Segundo
o artigo 1829.º, a presunção de paternidade cessa se o nascimento do filho
ocorrer passados trezentos dias depois de finda a coabitação dos cônjuges,
considerando-se esta para um tal efeito terminada na data da primeira
conferência, tratando-se de divórcio ou de separação por mútuo consentimento;
na data da citação do réu para a acção de divórcio ou separação litigiosa, ou
na data que a sentença fixar como a da cessação da coabitação; na data em que
deixou de haver notícias do marido, conforme decisão proferida em acção de
nomeação de curador provisório, justificação de ausência ou declaração de morte
presumida.
A
presunção de paternidade cessa ainda, nos termos do artigo 1832.º, nos casos em
que a mulher casada fizer a declaração do nascimento com a indicação de que o
filho não é do marido e se for averbada ao registo declaração de que, na
ocasião do nascimento, o filho não beneficiou de posse de estado, nos termos do
n.º 2 do artigo 1831.º, relativamente a ambos os cônjuges.
Como
se vê, qualquer uma das causas legalmente habilitadas a fazer cessar a
presunção de paternidade decorrente do casamento supõe precisamente o
nascimento, razão pela qual nenhuma delas será passível de verificar-se no
momento temporal a que se reporta a prestação do consentimento para a
realização da interrupção da gravidez.
Deste
ponto de vista, pode dizer-se que a presunção de paternidade será, para um tal
efeito, inderrogável.
Apesar
de ser assim, não está, todavia, excluída a possibilidade de a grávida declarar
espontaneamente que o progenitor biológico não é o seu cônjuge.
Embora
não possa fazer cessar a presunção da paternidade nos termos previstos no
artigo 1832.º, do Código Civil, tal declaração, a ocorrer, não deixará de
afectar o sentido, também jurídico, do problema da dispensa do consentimento do
progenitor para a realização da interrupção voluntária da gravidez.
Este
problema, pela própria natureza dos fundamentos em que assenta, tem o seu
sentido dependente da circunstância de se tratar do progenitor biológico do
nascituro comum, não sendo configurável, pelo menos com idêntico significado,
em relação ao progenitor presumido de acordo com o critério nupcialista, sempre
que esteja posta em causa a sua coincidência com o progenitor biológico.
Isto
significa, de um ponto de vista operativo, que o problema da dispensa do consentimento
do progenitor para a realização da interrupção voluntária da gravidez prevista
na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código
Penal acaba por ficar juridicamente confinado aos casos de funcionamento não
controvertido da presunção de paternidade derivada do casamento: àqueles em que
a mulher grávida é casada, a concepção ocorreu na constância do matrimónio e
não é produzida pela gestante qualquer declaração contrária à presunção legal
de paternidade.
11.8.3.
De entre as normas paramétricas convocadas pelos requerentes, aquelas que mais
directamente se cruzam com a fundamentação do pedido e se encontram
tematicamente mais próximas da matriz conflitual do problema são as constantes
dos artigos 13.º, 36.º, n.ºs 3 e 5, 67.º, alínea d),
e 68.º, todos da Constituição.
Previamente
à determinação do grau de conflitualidade possível da solução normativa
questionada com cada uma dessas normas, importa clarificar os termos em que
estas se relacionam entre si e deste modo estabelecer a pertinência relativa de
cada uma delas, para a valoração que o problema suscita.
Conforme
referem GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (ob. cit., 561), no artigo 36.º da Constituição
reconhecem-se e garantem-se os direitos relativos à família, ao casamento e à
filiação, direitos esses de quatro ordens: «a) direito das pessoas
a constituírem família e a casarem-se (n.ºs 1 e 2); b) direitos dos cônjuges no âmbito familiar e extrafamiliar (n.º 3); c)
direitos dos pais em relação aos filhos (n.ºs
5 e 6); d) direitos dos filhos (n.ºs 4,
5, 2.ª parte, e 6)».
Confrontando
este artigo com os artigos 67.º e 68.º da CRP – «que reconhecem “direitos
sociais” cujos titulares são aparentemente comuns» –, regista-se, todavia, que
«no artigo 67.º é a própria família, enquanto tal (e não as pessoas), que
aparece como sujeito do direito à protecção da sociedade e do Estado; no artigo
68º, já os titulares do direito são também os pais e as mães mas o destinatário
desse direito é a sociedade e o Estado (…)».
Tal
perspectiva é também a de JORGE MIRANDA/RUI
MEDEIROS. Segundo os referidos Autores, «enquanto no artigo 36.º avulta
sobretudo a dimensão individual-subjectiva dos direitos dos membros da família,
incluindo desde logo o próprio direito a constituir família, quer ainda, no que
toca à família como um todo, a dimensão de liberdade, o artigo 67.º, se bem que
sem perder de vista o objectivo da realização pessoal dos
seus membros, tutela fundamentalmente a própria família como
instituição e impõe em particular ao Estado o dever de a proteger positivamente»
(Constituição Portuguesa
Anotada, ob. cit., I, 689).
No
artigo 67.º – prosseguem ainda – a Constituição «impõe ao Estado um conjunto de
incumbências destinadas a proteger, pela positiva, a família e a vida
familiar», enumerando o respectivo n.º 2, «a título exemplificativo (…) algumas
das acções que o Estado deverá promover em ordem à protecção da família» (ob. cit., 693).
Enquanto
que no artigo 36.º, n.º 5, a Constituição garante aos pais o direito e lhes
impõe o dever de educação e manutenção dos filhos, o artigo 68.º confere-lhes o
«direito à protecção (i. é, ao auxílio) da sociedade e do Estado no desempenho
dessa tarefa», conferindo-lhes, deste ponto de vista, «um “direito social” em
sentido próprio, traduzido essencialmente em um direito a prestações públicas,
a concretizar por lei», valendo igualmente «face à sociedade, ou seja, face os
particulares (…), nos termos das leis concretizadoras deste direito».
11.8.4.
Fixado o alcance essencial das normas constitucionais de tutela da família e
dos seus membros (no quadro das relações familiares), em si e na sua
articulação recíproca, torna-se patente que, no contexto do controlo da
constitucionalidade do critério normativo que vem questionado, só faz sentido
considerar a convocação dos parâmetros constantes do artigo 36.º
Com
efeito, consistindo esse critério na suficiência do consentimento da mulher
grávida para a realização da interrupção da gravidez efectuada por opção
daquela, dispensando o do progenitor, o campo normativo para que o discurso
sobre a respectiva viabilidade constitucional é directamente remetido não é o
dos direitos sociais relativos às incumbências do Estado na protecção da
família e da vida familiar (artigo 67.º), ou à protecção dos pais e mães pela
sociedade e pelo Estado, nem mesmo o dos valores constitucionais objectivos da
maternidade e paternidade (artigo 68.º), mas sim o do estatuto constitucional
dos progenitores, no contexto da relação de família.
As
referências de sentido susceptíveis de conflituar com a solução normativa impugnada
são, pois, em primeira linha, as procedentes da dimensão individual-subjectiva
dos direitos dos membros da família. E essa é matéria que aponta para o âmbito
normativo do artigo 36.º da Constituição.
Das
normas enunciadas neste artigo, e uma vez que a “plena igualdade” assegurada no
n.º 1 se refere ao “direito de constituir
família e de contrair casamento”, a constante
do n.º 3 assume, prima facie, centralidade, para o
problema em apreço.
Reza
essa norma que «os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade
civil e política e à manutenção e educação dos filhos.» No segmento que para
aqui importa (2.ª parte), interdita-se qualquer discriminação jurídica entre os
cônjuges, no exercício do poder-dever, consagrado no n.º 5 do mesmo artigo, de
educação e manutenção dos filhos – regra extensível, por identidade de razão, a
todas as outras situações de progenitura de um filho comum (se bem que,
conforme já se viu, o problema relativo à delimitação dos titulares do poder de
consentir na realização da interrupção voluntária da gravidez não possa, nestas
situações, colocar-se nos mesmos termos em que se coloca quanto a pais
casados).
Mas,
ainda que muito expressiva do valor constitucional do princípio da igualdade,
de que constitui um corolário e uma manifestação particular, é meridianamente
claro que a norma tem em vista os filhos já nascidos, uma vez que o referente
objectivo é “a manutenção e educação” dos mesmos. Ora, o que aqui se questiona
é a exigibilidade do consentimento do progenitor, no mesmo plano e com a mesma
eficácia do da gestante, para a interrupção voluntária da gravidez. O mesmo é
dizer, em causa está a participação volitiva do interveniente masculino na
concepção numa decisão de que dependerá o nascimento futuro, ou não, de um filho.
Questão que, não só incide sobre um (eventual) conflito de distinta
configuração, como também se rege por coordenadas valorativas não coincidentes
com as especificamente actuantes no n.º 3 do artigo 36.º
Tal
como as restantes normas convocadas, atinentes à esfera da família, da
paternidade e da maternidade, também o n.º 3 do artigo 36.º se revela, pois,
imprestável para servir de critério constitucional de apreciação do regime em
apreço. Temos, assim, que, remontar ao princípio da igualdade, na sua
enunciação mais genérica (artigo 13.º da CRP), no quadro do qual deve ser
proferida a palavra final sobre a questão.
11.8.5.
De um modo geral, pode dizer-se que o princípio da igualdade, entendido como
limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de todas e
quaisquer distinções, mas apenas daquelas que se revelem materialmente
infundadas e careçam, por isso, de justificação objectiva e racional (neste sentido, entre muitos outros, o
Acórdão n.º 250/2000).
Se
assim é, a questão que se coloca poderá enunciar-se da seguinte forma:
A
inexigibilidade do consentimento do progenitor para a realização da interrupção
da gravidez contemplada na alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal exprime, em confronto com a suficiência do
consentimento da grávida, uma distinção materialmente infundada,
carecida de justificação objectiva e racional e, por isso,
violadora do princípio da igualdade dos progenitores?
No
Acórdão n.º 25/84, o Tribunal Constitucional concluiu que o princípio da
igualdade de ambos os cônjuges à manutenção dos
filhos (artigo 36.º, n.º 3) não era infringido por uma norma legal que apenas
exigia o consentimento da mulher grávida para efeitos de interrupção da
gravidez.
Estava
então em causa a apreciação, em processo de
fiscalização preventiva da constitucionalidade, das normas constantes dos
artigos 140.º e 141.º do Código Penal, na redacção que lhes viria a ser
conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, ou seja, das
alterações ao regime penal do aborto que introduziram no ordenamento jurídico‑penal
português as chamadas “causas de exclusão da ilicitude”, correspondentes ao
modelo de indicações.
Tal
orientação é de manter no âmbito da fattispecie
prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo
142.º do Código Penal, na redacção introduzida pelo artigo 1.º da Lei n.º
16/2007, de 17 de Abril.
Na
verdade, a colocação da possibilidade de realização da interrupção voluntária
da gravidez, com sujeição ao regime previsto nessa norma, na dependência do
assentimento de ambos os progenitores não poderia deixar de equivaler à
atribuição ao progenitor masculino de um direito de veto.
Não
sendo concebível a previsão da possibilidade de recurso aos tribunais para dirimir
uma eventual divergência entre a grávida e o progenitor acerca da realização,
nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal, de uma interrupção da gravidez desejada pela
primeira e indesejada pelo segundo, um princípio de direcção conjunta do
destino do embrião ou do feto redundaria aqui na atribuição ao progenitor da
prerrogativa de, por acto unilateral e discricionário, impedir a aplicação
daquela alínea e, com isso, reconvocar a
protecção do direito penal, submetendo, com isso, a grávida à ameaça da pena –
apesar de esta ter sido considerada, pelo legislador de 2007, instrumento não
necessário de tutela da vida intra-uterina até às 10 semanas de gravidez.
Deste
ponto de vista, pode dizer-se que a solução normativa consistente na
inexigibilidade do consentimento do progenitor para a realização da interrupção
da gravidez prevista na alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal não envolve qualquer desqualificação arbitrária da
paternidade enquanto valor social eminente, nem se apresenta carecida de
justificação objectiva e racional, em termos de poder ser considerada violadora
do princípio da igualdade. A solução está, por assim dizer, na “natureza das
coisas”, por condicionada pela realidade biológica da gestação humana.
Sendo
assim, é de concluir que a norma extraída dos n.ºs 1, alínea e), e 4, alínea b), do artigo
142.º do Código Penal, na redacção do artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de
Abril, consistente na suficiência do consentimento da mulher grávida para a
exclusão da punibilidade da interrupção da gravidez efectuada por opção
daquela, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e por
médico ou sob a sua direcção, dentro das 10 primeiras semanas de gravidez,
dispensando o do progenitor, não deve ser considerada inconstitucional.
11.9. Não participação na consulta obrigatória
dos médicos que invoquem a objecção de consciência relativamente a qualquer dos
actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez (artigo 6.º, n.º 2, da
Lei n.º 16/2007)
11.9.1. Os requerentes suscitam ainda a
inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º
16/2007, de 17 de Abril, na medida em que exclui das consultas previstas na
alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal
e no artigo 2.º daquele diploma os médicos objectores de consciência.
Segundo
os requerentes, tal solução normativa encontra-se em desconformidade com o
artigo 24.º da CRP, violando ainda os artigos 13.º (princípio da igualdade),
25.º, n.º 1 (integridade pessoal dos médicos), e 26.º (bom nome e reputação dos
médicos), para além de desconforme à Declaração Universal dos Direitos do Homem
e Convenções Internacionais, aplicáveis por força do artigo 8.º da CRP.
De
acordo com a argumentação para o efeito desenvolvida, a disciplina constante da
norma em questão, ao excluir das consultas os médicos objectores de consciência
– e, por isso, mais próximos da principiologia do artigo 24.º da Constituição
–, contém, relativamente a estes, um tratamento discriminatório, designadamente
no que toca ao acesso a cargos em estabelecimentos públicos.
O
artigo em causa, sob a epígrafe “objecção de consciência”, dispõe, no seu n.º
2, o seguinte:
«2
- Os médicos ou demais profissionais de saúde
que invoquem a
objecção de consciência relativamente a qualquer dos
actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez
não podem participar na consulta prevista na alínea b)
do n.º 4 do artigo 142º do Código Penal ou
no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja
lugar durante o período de reflexão.
A
consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do
artigo 142.º do Código Penal, destina-se a facultar à mulher grávida “o acesso
à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e
responsável”. O conteúdo dessa informação vem explicitado, como já vimos, no
artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007.
A
apreciação da constitucionalidade da regra legal impugnada pressupõe a prévia
compreensão do fundamento material que, do ponto de vista da unidade do sistema
em que se insere, lhe pode ser racionalmente associado.
Já
acima tratámos desenvolvidamente das razões, tidas por justificativas, da opção
primária de exclusão da punibilidade, dentro de certo prazo, da interrupção
voluntária da gravidez. Quanto ao modo operativo desta opção, o nosso direito,
tendo-se decidido pela obrigatoriedade de uma consulta prévia à prestação do
consentimento, não explicitou nominalmente a finalidade dessa consulta, como
sendo a de encorajar a grávida a levar a termo o processo de gestação – nisso,
aliás, se colocando a par da generalidade dos que seguiram idêntica directriz
de base, com a excepção única do direito alemão.
E
também esta opção de segundo grau foi tida por defensável, no quadro da unidade
de conjunto das ponderações valorativas do legislador, não censuradas, em que
se integra.
É
dentro deste sistema regulador, e em perfeita coerência com as soluções
previamente encontradas para os pontos centrais da disciplina legal, que se
perfila o regime do n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 16/2007. Também ele é
expressão da mesma ideia de que a grávida deve ser institucionalmente
preservada de qualquer forma de ingerência no desenvolvimento “interno” do seu
processo decisório, mesmo daquelas que se traduzem apenas em comunicações de
cunho declaradamente orientativo.
É a
esse terreno, na verdade, que nos conduz a captação da finalidade da exclusão
da possibilidade de participação na consulta que precede a concretização da
interrupção da gravidez dos médicos objectores de consciência relativamente a
qualquer dos actos respeitantes a esse acto. Ela reporta-se funcionalmente à
intencionalidade global do sistema instituído pela Lei n.º 16/2007, visando o
conjunto das disposições do artigo 6.º estabelecer uma disciplina respeitadora
dos ditames de consciência dos médicos, mas que dê também satisfação às
exigências de funcionamento dos serviços que operacionalizam esse sistema em
moldes sintonizados com as coordenadas que o informam.
E fá-lo em termos que não suscitam reparos
constitucionais.
11.9.2. Tenha-se em conta, em primeiro
lugar, que a garantia do direito à objecção de consciência está submetida a uma
reserva de lei, pois é concedida “nos termos da lei” (artigo 41.º, n.º 6, da
CRP). Não parece desrazoável ou desproporcionado, em face desta remissão para a
lei, que seja esta, e não o objector, a delimitar o âmbito sobre que a objecção
incide (desde que, evidentemente, não ponha em causa a satisfação da razão de
consciência que dá “conteúdo essencial” ao direito à objecção).
A
interrupção voluntária da gravidez é um processo unitário, composto por um
encadeamento de actos, preparatórios e executivos. Não é arbitrário que, uma
vez manifestado pelo médico um impedimento de consciência em participar nos
últimos, a lei o estenda à consulta prévia.
É certo que,
com essa extensão, o legislador vai para além do que seria estritamente
necessário à protecção do objector. Mas o que não é menos certo é que, com essa
decisão, resultante da livre avaliação que o legislador faz da incidência da
objecção de consciência no cumprimento do programa de ordenação que
estabeleceu, com a sua racionalidade própria, ele não compromete o mínimo de
protecção da vida-uterina, não viola o princípio da igualdade, assim como não
viola a integridade moral nem o direito ao bom nome dos médicos objectores.
Quanto à primeira arguição, que, mais uma vez, convoca
o disposto no artigo 24.º da CRP, deixa-se subentendido que a solução gera
unilateralidade do conteúdo informativo, pois silencia as vozes de quantos estariam
mais activamente disponíveis para apresentar à grávida razões favorecedoras da
prossecução da gravidez. Não sendo controlada “a opinião dos médicos que vão à
consulta”, a “desigualdade daí derivada” seria “mais um argumento para mostrar
o inadmissível da assimetria informativa“.
Ora, quando se fala, neste contexto, em “assimetria
informativa”, parece assumir-se como ideal da estrutura de informação o
estabelecimento de uma espécie de contraditório perante a grávida, em que aos
partidários e adversários do aborto fosse concedida igual oportunidade de
expenderem as suas razões. Estará em mente um desenrolar de uma dialéctica
argumentativa, em que teriam ocasião de se manifestar concepções antagónicas.
Esta representação falha rotundamente, pois parte de
um grave equívoco quanto à posição dos médicos que não se negam a participar na
interrupção voluntária da gravidez. Eles não podem ser considerados a favor do
aborto, mas apenas médicos que, valorando-o seguramente como um mal, estão,
todavia, dispostos a colaborar no cumprimento da lei.
Nem, na lógica do sistema, o resultado da consulta e
subsequente reflexão é feito depender do empenho que os operadores
profissionais mostrem num determinado sentido da decisão. Pelo contrário. O que
se visa é a exposição objectiva, num clima de serenidade e de absoluto respeito
pela autonomia decisória da grávida, de uma série de apoios susceptíveis de a
levar a considerar, de moto próprio, viável a solução alternativa à interrupção
da gravidez.
Pode atribuir-se a este regime uma eficiência reduzida
e menor do que a que gozam outros sistemas – ideia, esta última, já
suficientemente contrariada. Mas o que não tem razão de ser, por inteiramente
desfasado dos critérios que informam a disciplina legal e deturpador do papel que
é atribuído à prestação profissional dos médicos, na fase da consulta, é o
entendimento de que a exclusão dos médicos objectores de consciência diminui o
nível da protecção que seja de imputar a uma tal disciplina.
11.9.3. A
alegação de que o princípio da igualdade é ofendido aponta para a dimensão do
princípio que se traduz na proibição de
discriminações (n.º 2 do artigo 13.º da CRP). Estaríamos em face de
uma diferenciação de tratamento baseada num certo conteúdo de consciência, na
manifestação de uma convicção de ordem moral, ou seja, em razão de uma das
categorias “suspeitas”, exemplificativamente mencionada naquele preceito.
A afirmação peca, todavia, por uma invocação
mecanicista do princípio da igualdade, sem a atenção devida ao seu fundamento
axiológico. O que decorre do princípio, em veste da proibição de
discriminações, não é a exigência de igual tratamento, mas a de “tratamento
como igual”, um tratamento que dê mostras da “igual consideração e respeito” de
que todas as pessoas são credoras – para utilizarmos conhecidas expressões de
DWORKIN.
Ora, a solução questionada, ainda que isentando os
médicos objectores de consciência do cumprimento de um dever, não corporiza uma
diferenciação “negativa”, no sentido de revelar uma desqualificação da aptidão
funcional desses médicos ou uma suspeição quanto à sua idoneidade profissional.
Não os desvaloriza ou desrespeita; apenas retira de um impedimento de
participação, livremente manifestado pelos próprios, consequências
sistemicamente adequadas, em face do modelo legalmente definido.
O legislador aceitou a recusa de participação, por
objecção de consciência, na execução do acto de interrupção de gravidez – de
forma, aliás, generosa, pois a eficácia da objecção está aqui dependente apenas
de declaração do interessado (n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 16/2007), o que
não é comum. Com isso, suporta os efeitos desfavoráveis que uma tal recusa,
quando em número considerável, pode acarretar para a eficácia da resposta
global dos serviços às solicitações a que fiquem sujeitos. Dir-se-á, com razão,
que não poderia ser de outro modo, tendo em conta a força jurídica da garantia
constitucional de liberdade de consciência. Mas, o que não se vê é porque é que
essa aceitação de uma recusa de participação compromete o legislador em termos
de este ficar obrigado a reconhecer um direito de participação selectiva, de
acordo com a variável disposição individual de cada objector, com as
dificuldades de organização daí advenientes, sob pena de poder ser acusado de
violação do princípio da igualdade.
O regime questionado não é, pois, susceptível de
ofender o princípio da igualdade.
11.9.4. O
que fica dito sobre o princípio da igualdade quase que dispensa acrescentar
algo mais quanto às alegadas violações do direito à integridade pessoal e ao
bom nome e reputação dos médicos objectores.
Diga-se apenas que não há qualquer afectação desses
bens, pois a exclusão não pode ser entendida como dimanando de um juízo de
menor valia ou de menores garantias de carácter ou de escrúpulo profissionais,
nem como causadora de descrédito, como se se tratasse de um labéu ou um de
rótulo depreciativo “colado” à imagem dos objectores de consciência. O
interessado não é, pois, colocado perante o dilema, constitucionalmente
invalidável, de ter que renunciar ao exercício da sua liberdade de consciência
ou de ter que suportar ofensas ao seu bom nome e reputação.
11.9.5. Por todo o exposto, e tendo em conta
que a norma do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril não atenta
contra nenhum dos parâmetros constitucionais invocados, nem outros se divisam
que possam por ela ser atingidos, o Tribunal não se pronuncia pela não
inconstitucionalidade.
11.10. Regulamentação por portaria da
informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do
artigo 142.º do Código Penal
11.10.1. Os requerentes suscitaram ainda
a inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de
17 de Abril, na medida em que admite a regulamentação por portaria da
informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do
artigo 142.º do Código Penal, não obstante estar em causa matéria de direitos
fundamentais.
De
acordo com os requerentes, tal norma fere o disposto nos artigos 67.º, n.º 1,
112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
A
norma do artigo 67.º, n.º 1, da CRP pode, desde já, para este efeito, ser posta
de lado, pois dela não se extrai qualquer parâmetro de controlo pertinente para
a verificação da validade constitucional da norma impugnada.
Essa
norma consta do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, tendo o seguinte teor:
«2
- A informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142º do Código
Penal é definida por portaria, em termos a definir pelo Governo, devendo
proporcionar o conhecimento sobre:
a) As
condições de efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária
da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher;
b)
As condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à
maternidade;
c)
A disponibilidade de acompanhamento psicológico durante o período de reflexão;
d)
A disponibilidade de acompanhamento por técnico de serviço social, durante o
período de reflexão».
A
portaria a que se refere o n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 16/2007 é a Portaria
n.º 741-A/2007, de 21 de Junho, publicada no DR,
1.ª série, de 21 de Junho de 2007, e entrada em vigor, de acordo com o
respectivo artigo 24.º, no dia 15 de Julho de 2007.
Enquanto
acto normativo autónomo, a Portaria não é directamente visada pelo juízo de
inconstitucionalidade pedido pelos requerentes, já que estes não questionam a
conformidade entre as suas normas e os preceitos constitucionais.
A
norma impugnada é, assim, simplesmente, a do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º
16/2007, não obstante um eventual julgamento de inconstitucionalidade desta
implicar necessariamente, em termos consequenciais, a inconstitucionalidade dos
preceitos da Portaria n.º 741-A/2007 que desempenhem uma função regulamentar
daquela, contendendo, em tais termos, com a respectiva subsistência.
11.10.2. A norma do artigo 2.º, nº 2, da Lei
n.º 16/2007 suscita duas questões de constitucionalidade: a da violação do
artigo 112.º, n.º 5, 2.ª parte, da Constituição, por alegada inobservância da
proibição de integração autêntica da lei através de acto normativo não
legislativo – aqui de natureza regulamentar – e a da violação do princípio da
legalidade, na dimensão de reserva de lei material, esta consagrada, quanto aos
direitos, liberdades e garantias, na alínea b) do n.º 1 do
artigo 165.º da CRP e, quanto à definição dos crimes e respectivos
pressupostos, na alínea c) do n.º 1 do
artigo 165.º da CRP.
Relativamente
à segunda das questões enunciadas, os requerentes convocam apenas o parâmetro
de controle constituído pela alínea b) do n.º 1 do
artigo 165.º da CRP, preceito segundo o qual, salvo autorização ao Governo, é
da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as matérias
de direitos, liberdades e garantias.
A
propósito da delimitação do âmbito material dessa norma, regista-se na doutrina
o entendimento de que «a reserva abrange as matérias versadas nos títulos I e
II da parte I, por referência a todos os seus preceitos, independentemente da
análise estrutural das situações aí contempladas, mesmo que, em rigor, algumas
não possam ser qualificadas como direitos fundamentais, mas apenas como
garantias institucionais» (cfr. JORGE
MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob. cit., II, 534).
Nesta
perspectiva, a posição do Tribunal segundo a qual a norma do artigo 24.º, n.º 1, da CRP, protege
a vida humana intra-uterina como valor ou bem objectivo, sem concomitante
atribuição de um verdadeiro direito subjectivo fundamental, não retira ao
regime jurídico sobre a interrupção voluntária da gravidez o carácter de
disciplina normativa em matéria de direitos, liberdades e garantias, para
efeitos de delimitação do âmbito de reserva de lei.
Mas, para além do parâmetro da
alínea b) do artigo 165.º, também o da alínea c) do mesmo preceito pode ser chamado à colação, para
apreciar a questão posta.
É
certo que o aspecto do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez
consistente na modelação da consulta informativa que precede a prestação do
consentimento pela gestante não procede directamente à delimitação negativa do bem
jurídico-constitucional “vida intra-uterina”, consistindo antes numa condição
positiva dessa delimitação.
Todavia, ainda que de tal
circunstância fosse de retirar fundamento idóneo para contestar a possibilidade
de qualificar esse aspecto – e, portanto, a própria norma do artigo 2.º, n.º 2,
da Lei n.º 16/2007 – como elemento ele próprio integrante do sistema de delimitação negativa do valor
da vida intra-uterina justificativo da aplicação do regime de direitos
liberdades e garantias, parece que a relação de dependência normativa entre a
realização da consulta informativa contemplada no n.º 2 do artigo 2.º e a
validade e/ou eficácia do consentimento da gestante para a realização da
interrupção da gravidez a coberto da causa de exclusão da punibilidade
constante da alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal, sempre permitiria a colocação do problema da
eventual violação da reserva de lei através da convocação do parâmetro
constituído pela alínea c) do artigo
165.º da CRP.
A
análise que se segue assentará neste pressuposto.
11.10.3. Segundo a pretensão formulada
pelos requerentes, a violação do artigo 112.º, n.º 5, da Constituição
resultaria de o artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 conferir a uma portaria o
poder de integrar uma norma ínsita num acto legislativo, não sendo tal
portaria, por sua vez, um acto legislativo previsto pelo artigo 112.º, n.º 1.
O
n.º 5 do artigo 112.º da CRP corresponde ao n.º 5 do artigo 115.º, na versão
anterior à revisão de 1997, tendo este, por sua vez, sido aditado pela revisão constitucional de 1982.
No segmento que importa aqui considerar, tal preceito
veio inconstitucionalizar os preceitos legais que habilitem a Administração a
realizar uma integração regulamentar de normas legais: a integração (tal como a
interpretação autêntica) de uma lei só por outra lei pode ser feita, e não por
um regulamento (cfr. o Acórdão n.º 451/2001).
Conforme
este Tribunal, por diversas vezes, afirmou, o artigo 112.º, n.º 5, da Constituição é uma norma dirigida ao legislador
e não ao poder regulamentar, o que significa
que o parâmetro de controlo que dele se extrai tem por objecto a norma legal
que, contra o ali preceituado e infringindo a proibição de delegação, cometa a
"actos de outra natureza" (v.g. regulamentos, despachos normativos) a
sua interpretação ou integração autêntica com eficácia externa – a norma legal
que seja a lei habilitante daquela norma regulamentar. Isto sem prejuízo
de a invalidação por inconstitucionalidade
da norma legal habilitante gerar consequencialmente a invalidação da norma
regulamentar, por falta de suporte ou base legal, no momento em que foi emitida
(neste sentido, por todos, o Acórdão n.º 451/2001).
De
acordo com entendimento doutrinal estabilizado, o n.º 5 do artigo 112.º da CRP
«não proíbe os chamados reenvios normativos
(ou remissões normativas), designadamente nos casos em que a lei remete para a
administração a edição de normas regulamentares executivas» (referidas a
preceitos específicos) «ou complementares (referidas genericamente a toda uma
lei) “da disciplina por ela estabelecida”.
De
acordo com “a natureza e os limites constitucionais dos poderes de normação
regulamentar executiva ou complementar da administração”, a norma regulamentar
visará, neste caso, «regular aquilo que a lei se absteve de regular e não
“integrar” a regulamentação legislativa (…), pelo que o regulamento nunca pode
intervir sub specie legis» (cfr. GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., 3.ª
ed., Coimbra, 1993, 512).
Nesta
linha, o juízo de inconstitucionalidade reivindicado pressuporá a qualificação
do reenvio normativo efectuado pelo artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 como
uma remissão habilitante da edição, através de portaria, de normas
regulamentares integrativas, contendo disciplina praeter legem, em contraposição a uma sua
qualificação como mero regulamento de execução complementar daquele preceito
legal.
A
integração do reenvio normativo a que procede a norma legal do artigo 2.º, n.º
2, da Lei n.º 16/2007, numa destas duas categorias implica a caracterização do objecto
possível da portaria, segundo os termos preconizados pela própria remissão,
constantes da norma legal habilitante.
11.10.4. Segundo o regime instituído pela
Lei n.º 16/2007, a
não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da
mulher, nas primeiras dez semanas de gestação, depende, além do mais, de uma
consulta prévia. Tal consulta encontra-se regulada no artigo 2.º daquela
Lei, em cujo n.º 2 se inscreve a norma aqui impugnada.
Do
ponto de vista da relação que intercede entre a efectiva realização da consulta
prévia, nos termos do regime definido no artigo 2.º, e a operatividade da fattispecie consagrada na actual alínea e)
do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, a Lei n.º 16/2007 é escassamente
propiciadora das respostas que serviriam a uma mais detalhada e segura
caracterização da disciplina jurídica globalmente instituída.
Não
obstante a atribuição de carácter obrigatório à consulta que haverá de preceder
a prestação do consentimento pela mulher grávida e a fixação do conteúdo
informativo que, por tal meio, a esta haverá de ser previamente proporcionado,
a lei não dispõe expressamente sobre as consequências que, para a gestante, por
um lado, e para o médico interveniente, por outro, poderão advir da realização
de uma interrupção voluntária da gravidez dentro das 10 primeiras semanas de
gestação que não haja sido antecedida daquela consulta ou que, sendo-o embora,
nela não tenha sido cumprido integralmente o disposto no n.º
2 do artigo 2.º da Lei n.º 16/2007.
Nesta
conformidade, a questão de saber se, nestes casos, a relevância criminal da
actuação de um e de outro se encontrará ainda excluída por efeito da
verificação dos elementos integrativos da previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, ou se, pelo
menos no que concerne ao médico que realiza a interrupção, a tal exclusão se
oporá a ausência ou incompletude do procedimento que deverá preceder a
prestação de um consentimento válido e eficaz, poderá depender da solução do
problema da determinação do estatuto que cabe à consulta prévia e respectivo
regime no quadro da causa de impunibilidade prevista naquela alínea.
Não
deixará de registar-se, contudo, que, no âmbito da vigência do artigo 142.º do
Código Penal, na versão subsistente até 2007, a doutrina propendia para
considerar que, tal como os procedimentos referentes à comprovação da situação
de indicação, também os referentes à prestação do consentimento constituíam,
não apenas «meras formalidades», mas “verdadeiras condições de funcionalidade
do sistema”, pelo que a sua preterição implicaria a “ilicitude do acto
abortivo” (cfr. DAMIÃO DA CUNHA, Comentário
Conimbricense do Código Penal,
Coimbra, 1999, I, 156).
Tal
ponto de vista, inteiramente transponível para o domínio da aplicação da alínea
e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código
Penal, tenderá a levar à conclusão de que só um consentimento válido e eficaz
permitirá concluir pela licitude da prática abortiva realizada no âmbito de tal
previsão e que a validade e eficácia do consentimento a prestar pela gestante
dependem da realização de uma consulta prévia nos exactos termos previstos no
artigo 2.º da Lei n.º 16/2007.
Nesta
perspectiva, os pressupostos materiais da consulta prévia regulada no artigo
2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 contendem com a definição do crime.
Assim
sendo, caberá perguntar: encontrar-se-ão tais pressupostos definidos na Lei n.º
16/2007 ou terá esta, através do respectivo artigo 2.º, n.º 2, encarregue uma
portaria de os definir?
11.10.5. A resposta apontaria necessariamente
neste último sentido se a disciplina jurídica contida na Lei n.º 16/2007 se
tivesse quedado pela previsão constante da alínea b)
do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, ou seja, se se tivesse limitado a
definir a informação cujo acesso deve ser facultado à grávida no âmbito da
primeira consulta como a “relevante para a formação da sua decisão livre,
consciente e responsável”, remetendo para portaria o preenchimento dessa
cláusula geral.
Assim
não sucede, contudo.
No
n.º 2 do artigo 2.º, estabelece-se qual é a informação a prestar para que ela
propicie a formação de uma decisão da gestante que mereça aqueles
qualificativos, descrevendo-se, em termos que deverão considerar-se taxativos e
fechados – a enunciação contida nas quatro alíneas que integram a norma não é
precedida da utilização do advérbio «designadamente» ou de outro de sentido
equivalente –, os conteúdos e as temáticas do conhecimento que àquela deve ser
proporcionado.
A
modelação primária da consulta prévia encontra-se, assim, exaurientemente
traçada no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º16/2007, pelo que a remissão não
contempla a possibilidade de extensão ou redução do âmbito ou da densidade
informativos através de portaria. Os termos preconizados pelo reenvio
circunscrevem o objecto possível do acto regulamentar à execução técnica dos
dados normativos contidos na modelação legal definida previamente. Neste
sentido, à portaria apenas caberá executar tal conteúdo normativo, não sendo,
por isso, a mesma susceptível de o integrar praeter legem ou de enunciar, ela mesma,
critérios informativos adicionais e autónomos.
A
correcta interpretação do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 16/2007 não o coloca, pois, em conflito com o artigo
112.º, n.º 5, da Constituição, já que conduz a que o mesmo seja entendido como
contendo um reenvio normativo não proibido para um acto com as características
de um regulamento estritamente executivo da disciplina normativa primária
estabelecida integralmente em prévia norma legal habilitante.
11.10.6. Mas, apesar da natureza
meramente executiva da portaria, haverá, ainda assim, violação do princípio da legalidade, na dimensão de reserva de
lei material, pela norma remissiva do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º
16/2007, ante o disposto na alínea b), ou, mesmo,
na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição?
De outro modo, ainda: a
circunstância de o regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez
incidir sobre matéria sob reserva de lei material nos termos do artigo 165.º da
CRP excluirá em absoluto a possibilidade de colocação, através de norma legal
remissiva, de certos dos seus aspectos sob intervenção de normas
regulamentares?
A
Constituição não estabelece qualquer delimitação material entre o domínio
legislativo e o domínio regulamentar, nem fornece qualquer critério directo
susceptível de ser utilizado para o efeito (neste sentido, GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. ult. cit.,
501 e 671).
Deste ponto de vista,
pode dizer-se que não existe um elenco de conteúdos temáticos
constitucionalmente subtraídos à possibilidade de virem a ser objecto de normas
regulamentares.
Tal subtracção ocorrerá
na medida em que for determinada pelo funcionamento dos limites constitucionais
do poder regulamentar.
O primeiro desses limites
é de ordem geral e diz respeito à inadmissibilidade constitucional dos chamados
regulamentos autónomos, ou seja,
daqueles que não carecem de fundamentar-se juridicamente numa específica lei
anterior.
O princípio da
primariedade ou da precedência de lei
limita a admissibilidade constitucional dos regulamentos aos chamados
regulamentos pós-legislativos, ou seja, àqueles que, contrariamente ao que
sucede com os autónomos, supõem uma lei prévia habilitante, ainda que, como
sucede no caso dos regulamentos independentes, esta seja uma pura norma de
reenvio para o regulamento em termos de neste vir a conter-se a disciplina
inicial e primária.
O segundo desses limites
diz respeito à reserva de lei material.
A matriz constitucional
do relacionamento entre a lei e o regulamento cruza o plano dos limites
constitucionais da reserva de lei, permitindo identificar distintos níveis de
subordinação da actividade regulamentar à lei em que se fundamenta.
Nesta
perspectiva, o grau mínimo da escala é atingido na dimensão de reserva de lei meramente formal – aqui a necessidade de lei
prévia habilitante serve apenas o objectivo de dar cumprimento ao princípio da
precedência da lei, tornando assim possíveis os regulamentos independentes – e
o grau máximo nas matérias sob reserva legal material:
nos casos em que a Constituição prevê que só através de lei pode regular-se
determinada matéria, a lei não pode delegar tal competência à actividade
regulamentar, pelo que os únicos regulamentos admitidos são os regulamentos
estritamente executivos e instrumentais (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., 515). «O Executivo, neste domínio, só pode editar
normas inovatórias sob a forma de decretos-leis, mediante autorização da
Assembleia da República» (AFONSO QUEIRÓ, “Teoria dos Regulamentos”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXVII (1980), 1
s., 17).
11.10.7. Do enquadramento geral acabado de
sintetizar resulta que, se a reserva de lei constitui um limite ao poder
regulamentar, esse limite não se traduz na absoluta exclusão da possibilidade
de edição, com fundamento em lei prévia, de normas regulamentares. Traduz-se,
sim, na proibição de regulação por via regulamentar de quaisquer aspectos
pertencentes à disciplina normativa inicial ou primária e, correlativamente, na circunscrição do conteúdo
possível da incidência regulamentar aos aspectos técnicos ou secundários de um
regime normativo previamente estabelecido na lei.
A
norma remissiva constante do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 significa um
reenvio para a portaria do estabelecimento de algum aspecto do regime jurídico
da interrupção voluntária da gravidez que possa considerar-se pertencente ao
âmbito da disciplina normativa primária?
Do
princípio da legalidade na dimensão de reserva de lei material não pode
inferir-se que todos os aspectos atinentes à modelação do âmbito informativo da
consulta prévia, mesmo os de índole estritamente técnica,
"secundária" ou executiva, tenham necessariamente de constar de lei.
Se
com o princípio da legalidade na dimensão de reserva de lei seria incompatível
uma remissão cujos termos habilitassem uma normação secundária a formular,
quanto aos conteúdos e à dinâmica da consulta informativa, critérios
valorativos independentes e autónomos, não o será já um reenvio que habilite um
diploma de índole regulamentar a executar o conteúdo normativo preestabelecido
na própria norma de remissão – entendimento já expresso, por este Tribunal, a
propósito da relação entre a lei e o regulamento no âmbito das matérias sob
reserva de lei constantes das alíneas c) (Acórdão n.º
427/95) e i) (Acórdão n.º 451/2001) do artigo
165.º da Constituição.
Ora,
conforme já se evidenciou, a norma remissiva do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º
16/2007 não se limita a remeter para portaria a definição do que seja a
“informação relevante para a formação da (…)
decisão livre, consciente e responsável” da gestante. Ao
invés, estabelece, em termos esgotantes, os conteúdos dessa informação, apenas
delegando na portaria a respectiva concretização técnica, não sendo, por isso,
qualificável como norma em branco.
Quer
isto significar que o conteúdo informativo da consulta não resulta da portaria:
os seus critérios encontram-se integralmente definidos na própria norma
remissiva constante de lei parlamentar, pelo que a remissão para a portaria tem
apenas o significado de delegação em normação regulamentar da competência para
o estabelecimento de aspectos técnicos e secundários dos conteúdos informativos
integradores da consulta prévia.
O
regulamento tido em vista pela remissão é um regulamento estritamente
executivo, não independente, pelo que a reserva de lei consagrada no artigo
165.º, alíneas b) e c)
da Constituição não é violada pelo segmento remissivo constante do artigo 2.º, n.º
2, da Lei n.º 16/2007, norma que, em conformidade, não deverá ser considerada
inconstitucional.
B) - Pedido formulado no âmbito do processo n.º 1186/07 e respectivos
fundamentos.
12. Violação da autonomia regional
12.1. A apreciação da questão da
inconstitucionalidade e ilegalidade das normas impugnadas, por violação
da autonomia legislativa, administrativa e financeira regional, constitucional,
estatutária e legalmente configurada, inscreve-se no vasto contexto
do relacionamento e articulação entre a legislação nacional e a legislação
regional.
Para
além das normas do artigo 225.º, onde se cristaliza a indicação dos fundamentos
e do sentido e alcance da autonomia regional, a matriz constitucional da
regulação dessa matéria encontra-se nos artigos 112.º, n.º 4, e 227.º, n.º 1,
da CRP.
Dispõe
o primeiro:
«Os decretos-legislativos
têm âmbito regional e versam sobre matérias enunciadas no estatuto
político-administrativo da respectiva região autónoma que não estejam reservadas
aos órgãos de soberania, sem prejuízo do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1
do art. 227.º».
Quanto
ao artigo 227.º, n.º1, enuncia, entre os poderes das regiões autónomas, a
definir nos respectivos estatutos, os seguintes:
«a) Legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo
estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de
soberania; b) Legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da
República, mediante autorização desta, com excepção, entre outras, das
previstas nas alíneas a) a c) do n.º1 do art.165º; c) […]; d) Regulamentar a
legislação regional e as leis emanadas dos órgãos de soberania que não reservem
para estes o respectivo poder regulamentar».
O
artigo 228.º, n.º 1, por seu turno, explicita o alcance da autonomia
legislativa das regiões autónomas, dispondo que ela «incide sobre
as matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo que não
estejam reservadas aos órgãos de soberania». O n.º 2 do mesmo
preceito estabelece a subsidiariedade da legislação nacional, na zona de
concorrência com a regional, nos seguintes termos:
«Na falta de legislação regional
própria sobre matéria não reservada à competência dos órgãos de soberania,
aplicam-se nas regiões autónomas as normas legais em vigor.».
Estes
parâmetros de delimitação de competências legislativas entre os órgãos de
soberania e as regiões são directamente convocados pela forma como o requerente
estrutura o seu pedido. Segundo ele, na verdade, estaríamos em face de uma
violação da autonomia regional na medida em que a normação impugnada, em
consequência do respectivo âmbito de aplicação territorial, obriga o sistema regional de saúde à prática da interrupção
voluntária da gravidez nos termos previstos na alínea e)
do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, não obstante corresponder aquela a
uma tarefa situada, do ponto de vista da sua regulação jurídica, no âmbito da
competência regional, uma vez que a «saúde» está enunciada como matéria de
interesse regional na alínea m) do artigo 40.º do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
12.2. A Lei n.º 16/2007 dispõe sobre a
“Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez”,
estabelecendo o correspondente regime jurídico.
Esse
regime jurídico tem como elemento nuclear, como já sabemos, a revisão do artigo
142.º do Código Penal e o aditamento ao elenco constante do respectivo n.º 1 de
uma nova previsão, através da qual é tornada não punível a interrupção da
gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de
saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher
grávida, quando realizada, por opção desta, nas primeiras 10 semanas de
gravidez.
Na
modelação da disciplina jurídica desta nova previsão de interrupção voluntária
da gravidez, a Lei n.º 16/2007 fixou pressupostos da não punibilidade desse
acto.
Parte
significativa desses pressupostos prende-se com as condições de eficácia do
consentimento. A elas se refere o regime especial constante dos n.ºs 4, alínea b), 5 e 6 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção do
artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, segundo o qual o consentimento é prestado
pessoalmente “em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo” ou, no
caso de esta ser “menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz”, pelo
“representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por
quaisquer parentes da linha colateral”, podendo ser dispensado se não for
possível obtê-lo em tais termos e “a efectivação da interrupção da gravidez se
revestir de urgência”, o que será decidido pelo médico “em consciência face à
situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros
médicos”. Nesse âmbito se situa também a regra de subordinação da prestação do
consentimento ao prévio decurso de um período de reflexão não inferior a três
dias a contar da data da realização da primeira consulta (n.º 4, alínea b), do artigo 142.º do Código Penal), bem como a conformação
normativa da consulta no artigo 2.º, n.º 2.
Da
modelação do sistema instituído pela Lei n.º16/2007 fazem ainda parte outros
componentes normativos abrangidos pelo objecto do pedido, designadamente os
relativos ao “dever de sigilo profissional”, compreendendo estes a sua
imposição aos médicos, demais profissionais de saúde e restante pessoal dos
estabelecimentos de saúde, oficiais ou oficialmente reconhecidos, em que se
pratique a interrupção voluntária da gravidez, relativamente a todos os actos,
factos ou informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções,
bem como incriminação da respectiva violação nos termos previstos nos artigos
195.º e 196.º do Código Penal (artigo 5.º).
Através
da mobilização do conjunto dos elementos normativos acabados de enunciar, o
legislador ordinário procedeu à redefinição da protecção jurídico-penal do bem
vida intra-uterina.
Tal
redefinição consistiu na ampliação integrada dos pressupostos negativos do
crime de aborto, incluindo, por isso, a par da tipificação dos elementos
normativos de contracção do âmbito de protecção da norma incriminadora, a
caracterização, nos seus múltiplos aspectos, das condições dessa contracção.
Nos
termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo
autorização ao governo, legislar sobre a “definição dos crimes, penas, medidas
de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal”.
Segundo
consensualmente estabelecido na doutrina, “na competência para a definição dos crimes
está, necessariamente implícita, a competência para estabelecer causas de
justificação e a competência para descriminalizar” (JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob. cit., 535),
pertencendo à “reserva da Assembleia da República tanto a criminalização (ou a penalização),
como a descriminalização (ou despenalização)” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., 3.ª ed., 672).
O
regime jurídico instituído pela Lei n.º 16/2007 situa-se no plano da
remodelação do âmbito de protecção de determinada norma incriminadora,
incidindo, por isso, sobre matéria reservada à competência da Assembleia da
República.
Tratando-se
de matéria reservada à competência da Assembleia da República, verifica-se o
requisito de delimitação negativa da competência legislativa das regiões fixado
nos artigos 112.º, n.º 4 e 227.º, n.º 1, alíneas a)
e b), da CRP – o requisito consistente em
se tratar de matéria não abrangida na reserva de competência legislativa dos
órgãos de soberania, quer na reserva absoluta da Assembleia da República
(artigos 161.º, 164.º e 293.º), quer na reserva relativa da Assembleia da
República (artigo 165.º), embora ressalvadas aqui as hipóteses de concessão de
autorização legislativa à Assembleia Legislativa da Região (artigo 227.º, n.º
1, alínea b), 2.ª parte, da CRP).
12.3. A sediação do regime jurídico de
“exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez”
instituído pela Lei n.º 16/2007 no âmbito material da «definição dos crimes,
penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo
criminal» não é posta em causa pela circunstância de a contracção do sistema de
protecção penal procedente do aditamento da fattispecie
constante da alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal supor, como seu elemento de conformação, a intervenção
dos “estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos” e, na
perspectiva dessa intervenção, inscrever no sistema conteúdos que o arrastam
para uma zona de intercepção com o domínio normativo da “saúde”, esta
considerada matéria de “interesse específico”
pela alínea m) do artigo 40.º do Estatuto
Político-administrativo da Região Autónoma da Madeira, na versão aprovada pela
Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto.
De
um ponto de vista material, a disciplina jurídica instituída pela Lei n.º 16/2007
pertence à categoria normativa dos pressupostos da incriminação e esta relação
de pertinência não é desqualificada pela circunstância de a fattispecie com que é restringido o âmbito de protecção da
norma incriminadora implicar, de acordo com a respectiva configuração
normativa, a mobilização de elementos procedentes de um plano pertencente ao
domínio orgânico e funcional da “saúde”.
No
contexto do regime jurídico instituído pela Lei n.º 16/2007, a reconfiguração
do tipo penal pela via do aditamento de uma nova previsão de impunibilidade
assume o estatuto de elemento absorvente, ou seja, de elemento que, para
efeitos de classificação normativa dos conteúdos vinculativos editados, confere
a sua própria natureza a cada um dos demais elementos do conjunto a que
pertence.
Tal
conclusão é tanto mais evidente quanto certo é que os elementos contidos na
disciplina jurídica instituída pela Lei n.º 16/2007 susceptíveis de incidir
sobre a conformação da actividade dos agentes e organismos da saúde são
privativos do seu relacionamento com a previsão da alínea e)
do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, não ultrapassando a medida suposta
por essa relação de referência – a normação que para eles se contém é, deste
ponto de vista, absolutamente funcionalizada à “exclusão da ilicitude nos casos
de interrupção voluntária da gravidez”.
O
efeito polarizador que, no plano material, é exercido pela sua natureza de
definição dos pressupostos negativos do crime de interrupção voluntária da
gravidez e respectivas condições projecta-se, ainda, quanto à disciplina
jurídica instituída pela Lei n.º 16/2007, no plano da delimitação de
competências entre os órgãos de soberania e as regiões.
Decorre
da jurisprudência deste Tribunal que o exercício do poder legislativo das regiões autónomas, mesmo após 2004,
se continua a enquadrar pelos fundamentos da autonomia das regiões consagrados
no artigo 225.º da CRP, cumprindo-lhe, em face do disposto no n.º 4 do artigo
112.º, na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º e no artigo
228.º, nº 1, da Constituição, respeitar cumulativamente três requisitos: i) restringir-se ao âmbito regional;
ii) estarem em causa as matérias
enunciadas no respectivo estatuto político‑administrativo; iii) não incidir sobre matérias
reservadas à competência dos órgãos de soberania (cfr., entre outros, o Acórdão
n.º 423/2008).
Assim,
nos casos em que a matéria sobre que incida determinada disciplina jurídica
deva considerar-se simultaneamente incluída em alguma das categorias elencadas
nos artigos 164.º ou 165.º da Constituição e no catálogo enunciado no estatuto
da região, nunca existirá competência legislativa primária da região para a
edição de um regime normativo alternativo, uma vez que os requisitos a que esta
se encontra constitucionalmente sujeita são cumulativos. Neste caso, o ser
matéria reservada à competência dos órgãos de soberania sobrepõe-se à sua
enunciação no estatuto político‑administrativo
da região (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 402/2008).
Quer
isto significar que, ainda que a disciplina jurídica instituída pela Lei n.º
16/2007 se situasse numa zona de verdadeira sobreposição – e não mera
intercepção – entre os domínios normativos respeitantes à “definição dos
crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como
processo criminal” e à “saúde”, sempre obstaria à competência legislativa
primária da região a verificação do requisito que, de acordo com a matriz
constitucional de relacionamento entre os órgãos de soberania e as regiões,
delimita negativamente essa competência.
Devendo
concluir-se pela ausência de competência da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira para legislar sobre a matéria constante das normas
inseridas na Lei n.º 16/2007 que definem e conformam os pressupostos da
“exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez”,
aquelas aplicar-se-ão, nos seus precisos e integrais termos, a todo o
território nacional, incluindo as regiões.
Deste
ponto de vista, tal aplicação apresenta-se, não apenas constitucionalmente viável,
mas constitucionalmente imperativa.
12.4. A vigência da Lei
n.º 16/2007 em todo o território nacional, incluindo o da Região Autónoma da
Madeira, como resultado do exercício da competência legislativa exclusiva da
Assembleia da República, projecta-se em duas dimensões aplicativas, com
significado vinculante para os poderes regionais.
Corolário imediato de tal
vigência é a manifesta falta de competência legislativa regional para
introduzir quaisquer variações no regime jurídico estabelecido pela Lei n.º
16/2007. O que implica que a interrupção voluntária da gravidez, quando ocorrer
por acto praticado pelos serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde da
Região Autónoma da Madeira, só poderá verificar-se nos termos estabelecidos
naquela Lei da Assembleia da República, encontrando-se constitucionalmente
vedada a possibilidade do estabelecimento, a coberto da autonomia legislativa
regional, de quaisquer outros ali não previstos. As práticas médicas, clínicas
e procedimentais, supostas pela realização da interrupção voluntária da
gravidez segundo o modelo definido naquela lei serão também, vinculativamente,
as seguidas nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos
situados na região.
Em
consequência da publicação da Lei n.º 16/2007 e do seu legítimo âmbito
territorial de aplicação, o princípio da não punibilidade da interrupção
voluntária da gravidez efectuada nos termos prescritos naquele diploma legal é
também aplicável no território regional. Nem o se
da consagração de tal princípio, nem o como da sua
concreta conformação podem ser postos em causa por acto legislativo da região.
Isto porque, tratando-se de matéria reservada à competência da Assembleia da
República, relativamente à qual não pode sequer ser conferida autorização legislativa
às Assembleias Legislativas das regiões autónomas (cfr. o artigo 227.º, n.º 1,
alínea b), da CRP, a
contrario), não existe, nem poderá
existir, competência legislativa regional concorrente, o que retira o regime
jurídico instituído pela Lei n.º 16/2007 do âmbito de aplicação do princípio da
subsidiariedade consagrado no artigo 228.º, n.º 2, da CRP.
Daqui
se segue que se encontra excluída da autonomia legislativa regional a
competência para editar normas que estabeleçam um regime jurídico alternativo
ou diferenciado em matéria de “exclusão da ilicitude nos casos de interrupção
voluntária da gravidez”, ou mesmo que, relativamente a todos ou a certos dos
seus aspectos, introduzam especificações ou variações nos comandos normativos
que integram e conformam o modelo definido em lei da Assembleia da República.
Quando
ocorrer nas regiões, a interrupção voluntária da gravidez não punível só poderá
ocorrer sob verificação dos fundamentos, condições e pressupostos definidos na
Lei n.º 16/2007, não podendo o poder regional, no uso da respectiva competência
legislativa, alterá-los, ampliá-los ou restringi-los.
12.5. Mas essa conclusão deixa de pé uma
questão mais funda, situada não apenas no plano normativo do tratamento
jurídico-penal da interrupção voluntária da gravidez, mas também no do
preenchimento, por parte dos poderes regionais, das condições materiais de
efectiva realização da interrupção voluntária da gravidez, de acordo com o
regime de impunibilidade posto em vigor pela Lei n.º 16/2007.
Pergunta-se:
decorrerá do âmbito territorial de aplicação da Lei n.º 16/2007 a imposição aos estabelecimentos de saúde regionais, enquanto
estabelecimentos oficiais, da prática do conjunto dos actos integrativos ou
conformadores da interrupção voluntária da gravidez, em termos penalmente não
sancionáveis, de acordo com o previsto na alínea e)
do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, introduzida pelo artigo 1.º daquele
diploma?
Vimos
já que a aplicação às regiões do regime jurídico de “exclusão da ilicitude nos casos
de interrupção voluntária da gravidez” instituído pela Lei n.º16/2007
significa, desde logo, que esse regime vigorará também aí, sendo, por
consequência, também aí juridicamente possível
a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, e com
respeito das demais condições fixadas naquele diploma, sem punição penal.
Mas
a questão agora é outra. Já não se trata de ponderar a possibilidade jurídica
de levar à prática, nas regiões, a interrupção voluntária da gravidez, nas
exactas condições e com a mesma ausência de efeitos penalizantes que decorrem
da Lei n.º 16/2007. Assente esta possibilidade, o que agora se equaciona
interrogativamente é se a vigência, nas regiões, da Lei n.º 16/2007 importa a
obrigatoriedade, para os serviços integrados no sistema regional de saúde, da
prática dos actos preparatórios e executivos da interrupção voluntária da
gravidez correspondente à previsão da alínea e)
do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal.
Para
uma resposta a esta questão, há que atentar, em primeiro lugar, no que se
encontra expresso no artigo 3.º da Lei n.º 16/2007.
Sob
a epígrafe “Organização dos serviços”,
dispõe-se aí o seguinte:
«1 - O Serviço Nacional
de Saúde deve organizar-se de modo a garantir a possibilidade de realização da
interrupção voluntária da gravidez nas condições e nos prazos legalmente
previstos.
2 - Os estabelecimentos
de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos em que seja praticada a
interrupção voluntária da gravidez organizar-se-ão de forma adequada para que a
mesma se verifique nas condições e nos prazos legalmente previstos.»
O Serviço Nacional de
Saúde é, nesta norma, apontado como o destinatário do dever de «organizar-se de
modo a garantir a possibilidade de realização da interrupção voluntária da
gravidez nas condições e nos prazos legalmente previstos».
A questão que então se
levanta é a de saber se os serviços regionais de saúde se integram ou não
institucionalmente no Serviço Nacional de Saúde.
Os serviços regionais de
saúde fazem parte do “sistema de saúde” definido no n.º 1 da Base XII da Lei de
Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, com as alterações
introduzidas pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro, como sendo constituído
pelo «Serviço Nacional de Saúde e por todas as
entidades públicas que desenvolvam actividades de promoção, prevenção e
tratamento na área da saúde, bem como por todas as entidades privadas e por
todos os profissionais livres que acordem com a primeira a prestação de todas
ou de algumas daquelas actividades».
Na medida em que
pertencem à categoria das “entidades públicas que desenvolv[em] actividades de
promoção, prevenção e tratamento na área da saúde”, os serviços regionais de
saúde fazem parte do “sistema de saúde”.
Os serviços regionais de
saúde não integram, porém, o Serviço Nacional de Saúde, como se pode concluir
do n.º 2 da Base acima citada. Aí se estabelece que o Serviço Nacional de Saúde
abrange as “instituições e serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde
dependentes do Ministério da Saúde”, sendo que essa relação de dependência não
se verifica relativamente aos serviços regionais de saúde.
Conforme estabelecido na
Base VIII da Lei de Bases da Saúde, nas Regiões Autónomas dos Açores e da
Madeira, a política de saúde, não obstante subordinada aos princípios
estabelecidos pela Constituição da República e pela própria Lei de Bases da
Saúde, é “definida e executada pelos órgãos do governo próprio” das regiões.
Em consonância com tal
previsão, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, através do
Decreto Legislativo Regional n.º 4/2003/M (DR, I Série-A,
de 7 de Abril de 2003), aprovou o Estatuto do Sistema Regional de Saúde.
De acordo com o disposto
no respectivo artigo 6.º, constituem elementos do Sistema Regional de Saúde,
nomeadamente, os seguintes: a) O Serviço Regional de Saúde; b)
Outros serviços e organismos dependentes da secretaria regional responsável
pela área da saúde; c) As
autoridades de saúde; d) Os
subsistemas de saúde; e) As
instituições particulares de solidariedade social; f)
As pessoas colectivas, com ou sem fim lucrativo, desde que intervenham no
domínio da saúde; g) Os
profissionais de saúde em exercício individual.
O Serviço Regional de
Saúde da Região Autónoma da Madeira foi criado pelo Decreto Legislativo
Regional n.º 9/2003/M, (DR, I Série-A,
de 7 de Abril de 2003), que aprovou o respectivo Regime e Orgânica. (DR, I Série-A, de 27 de Maio de 2003).
De acordo com o disposto
no n.º 1 do artigo 1.º do Regime e Orgânica do Serviço Regional de Saúde da
Região Autónoma da Madeira, este «é dotado de autonomia administrativa,
financeira e patrimonial e de natureza de entidade pública empresarial e
integra o Hospital da Cruz de Carvalho, o Hospital dos Marmeleiros, o Hospital
Dr. João de Almada, os centros de saúde já instalados e em funcionamento, o
Laboratório de Saúde Pública e os estabelecimentos públicos de saúde que vierem
a ser criados após a entrada em vigor deste diploma».
Segundo o estabelecido no
n.º 1 do artigo 5.º do mesmo Regime, o Serviço Regional de Saúde da Região
Autónoma da Madeira “está sujeito à tutela do membro do Governo Regional
responsável pela área da saúde”.
Do enquadramento exposto,
retira-se, assim, que as instituições e serviços oficiais prestadores de
cuidados de saúde existentes na Região Autónoma da Madeira integram o Serviço
Regional de Saúde, o Sistema Regional de Saúde e o Sistema de Saúde, mas
encontram-se excluídos do Sistema Nacional de Saúde.
Na medida em que assim é,
pode concluir-se que o comando directo
constante do artigo 3.º, n.º 1, da Lei n. 16/2007, não interfere com os
serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde existentes na Região
Autónoma da Madeira. No âmbito deste preceito, esses serviços apenas se
encontram abrangidos pelo dever estabelecido pelo respectivo n.º 2, ou seja,
pelo dever de, quando aí for praticada a interrupção voluntária da gravidez, se
organizarem «de forma adequada para que a mesma se verifique nas condições e
nos prazos legalmente previstos». Dever que, aliás, é perfeitamente consonante
com a inviabilidade constitucional de uma modificação ou eliminação desse
regime, por parte dos órgãos legislativos regionais.
12.6. Mas a conclusão a que chegámos, quanto
ao universo dos destinatários do n.º 1 do artigo 3.º, não significa que os
estabelecimentos de saúde integrados nos serviços regionais de saúde fiquem
libertos de qualquer injunção legal, no que tange à garantia da efectivação por
médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou
oficialmente reconhecido, da interrupção voluntária da gravidez, e de
efectivação em termos que assegurem a sua impunibilidade.
De facto, não pode ficar
na esfera da liberdade decisória desses serviços a realização ou não das
prestações adequadas à interrupção voluntária da gravidez, por opção da mulher,
justamente porque a utilização dessas prestações integra as condições legais de
despenalização desse acto – despenalização que, como vimos, está subtraída à
competência legislativa regional. Se essas prestações não são alheias ao bem da
“saúde”, a verdade é que elas apresentam a especificidade singularizante de se
constituírem como elementos de um Tatbestand de
afastamento da punição penal, não se confundindo com os cuidados de saúde
preventivos ou curativos de doença.
Os “serviços de saúde”
regionais não são aqui mobilizados com qualquer dessas duas finalidades, que,
em regra, são as suas, mas para prestações constitutivas da situação
prático-funcional de que depende a não sujeição a sanção penal das mulheres que
voluntariamente interrompam a gravidez – regime que, uma vez editado, deve ter
aplicação universal, em condições de igualdade, a todas as mulheres que
pretendam realizar aquele acto, independentemente da zona do território do
Estado onde residam. As prestações dos estabelecimentos de saúde são aqui
indissociáveis da praticabilidade do regime de despenalização, não podendo, por
isso, ser encaradas e tratadas autonomamente, sem ter em conta o modo como
interferem, quanto à sua efectivação e conformação, na possibilidade de
transposição desse regime para a realidade social.
A disponibilização dessas
prestações requer medidas organizatórias, medidas de preparação logística, de
coordenação e emprego de recursos humanos e técnicos e de fixação de regras e
procedimentos funcionalmente disciplinadores.
Também quanto a elas não
gozam os estabelecimentos que se integram nos serviços regionais de saúde de
inteira liberdade, pois devem organizar-se por forma a que a interrupção
voluntária da gravidez “se verifique nas condições e nos prazos legalmente
previstos” (n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 16/2007).
O que eles não estão é
sujeitos às directrizes emanadas, a este propósito, pelos órgãos dirigentes do
Serviço Nacional de Saúde, pois a este não pertencem. Estando finalisticamente
vinculados a um resultado – o de garantir os procedimentos e condições
apropriados à realização, sem punição, da interrupção voluntária da gravidez,
no quadro da hipótese aberta por uma norma de direito penal, a alínea e) do n.º 1 da artigo 142.º do respectivo código – dispõem,
todavia, da autonomia organizativa compatível com a sua consecução.
E uma certa margem de
autonomia subsiste, não obstante aquela vinculação, a nível dos concretos modos
organizativos e operativos, de carácter mais “regulamentar”. No exercício dessa
autonomia, poderão os serviços regionais fazer reflectir as características
específicas da região, no que diz respeito, v. g., à realidade social, extensão
do território, unidades e pessoal disponíveis, ou ao nível estimado da procura.
A lei da República deixou à
autonomia regional aquilo que constitucionalmente podia (e devia) deixar, a saber, a autonomia organizativa
quanto aos aspectos não predeterminados pela observância das condições legais.
Exactamente os aspectos regulamentares atinentes à fixação concreta das formas
modais de cumprir o programa normativo de
despenalização (necessariamente de âmbito nacional), coenvolvendo
opções em que nenhum dos termos contenda com a efectividade de uma oferta
prestativa que permita o preenchimento dos pressupostos legais da aplicação
daquele regime. Só esses aspectos, dentro de uma área de normação bifrontal, em
que determinada organização dos serviços de saúde serve especificamente à
possibilitação da interrupção voluntária da gravidez sem punição, não caem na órbita
do direito penal.
Outra interpretação
roubaria aplicabilidade, no território das regiões, à alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, com ofensa da
unidade do Estado, que o artigo 165.º, n.º 1, alínea c),
da CRP também quis, neste domínio, assegurar, na medida em que afastou a
competência legislativa regional.
12.7. A leitura que acabámos de fazer
depara, prima facie, com um obstáculo de monta:
o disposto no artigo 8.º da Lei n.º 16/2007.
Esta norma remete para o
Governo a regulamentação da lei, fixando, para o efeito, o prazo máximo de 60
dias. E, efectivamente, essa regulamentação foi editada, dando corpo à Portaria
n.º 741-A/2007, de 21 de Junho.
Esta portaria, para além
de reproduzir pontos do regime legal, complementa-o com a disciplina das
medidas organizatórias e procedimentais tidas por apropriadas à implementação
do disposto naquele diploma.
Da norma do artigo 8.º e
da falta de idêntico comando endereçado à entidade regional de saúde competente
poder-se-ia concluir que a Lei n.º 16/2007 reserva para o Governo, em
exclusivo, o poder regulamentar, nesta matéria. Ora, como é no âmbito do
exercício desse poder – ainda que com os limites de ele ter por objecto um
regulamento de execução –, que podem ser normativamente moldados os aspectos
organizativos, ficaria irremediavelmente prejudicada, a ser assim, uma
intervenção conformadora, neste plano, dos poderes regionais. O que
consubstanciaria uma lesão da autonomia legislativa e administrativa das
regiões autónomas.
Mas a norma do artigo 8.º
não deve ser lida como importando uma reserva de poder regulamentar
governamental. Ela contém uma imposição de
regulamentação ao Governo, necessária para assegurar a aplicabilidade da Lei
n.º 16/2007. Mas nada permite concluir, numa inferência a contrario,
que ela visa também eliminar a faculdade de intervenção da Assembleia
Legislativa das regiões, ao abrigo da sua competência própria. A previsão
específica de uma faculdade de regulamentação,
neste domínio, não era necessária, garantida que ela está pela competência
genérica de que, à partida, em matéria de organização dos serviços de saúde, os
órgãos regionais dispõem (em tudo o que não contender com o regime primário de
despenalização, fixado na Lei n.º 16/2007).
Não estando abrangida
pelo dever de regulamentação fixado no artigo 8.º da Lei n.º 16/2007, mas
conservando, dentro desse limites, os seus poderes próprios de intervenção
regulamentadora, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não
fica obrigada a aplicar as normas de carácter organizatório e procedimental da
portaria, uma vez que, quanto a estas dimensões, pode exercer a sua competência
de regulamentação.
Sendo assim, a disciplina
dos aspectos organizativos contida na portaria só se aplicará na Região
Autónoma da Madeira subsidiariamente, em consequência da inércia reguladora das
instâncias regionais, que, a todo o tempo, podem tomar iniciativas de
conformação dessas matérias em sentido não coincidente com aquela disciplina,
ainda que, necessariamente, compatível com o disposto na Lei n.º 16/2007.
E, nesse pressuposto, não
há qualquer violação da autonomia regional, pelo que não tem fundamento o juízo
de inconstitucionalidade que, a propósito do regime em apreço, se pretendia ver
emitido nos presentes autos.
12.8. As normas que integram o bloco
constituído pelos artigos 1.º – este na parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, e dá origem às
restantes normas da nova versão do mesmo –, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, e 8.º,
todos da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º,
4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º,
19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º, estes da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de
Junho, não violam qualquer parâmetro normativo recondutível à autonomia
legislativa, administrativa e financeira regional, constitucional, estatutária
e legalmente configurada.
Nessa medida, não deverão
ser declaradas inconstitucionais e/ou ilegais.
13. Violação do direito de audição prévia das regiões
autónomas
13.1. A questão de inconstitucionalidade que
é suscitada pressupõe a confrontação das normas da Lei n.º 16/2007 contestadas
e do correspondente processo legislativo com o disposto no artigo 229.º, n.º 2,
da Constituição, segundo o qual "os órgãos de soberania ouvirão sempre,
relativamente a questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas,
os órgãos de governo regional".
Este preceito não sofreu alteração de redacção
ao longo das diversas revisões constitucionais – apenas transitou do n.º 2 do
artigo 231.º originário para a numeração actual, no âmbito da quarta revisão
(Lei Constitucional n.º 1/97 de 20 de Setembro) –, do mesmo decorrendo o dever de os órgãos de soberania ouvirem os órgãos de
governo próprio das Regiões relativamente a questões da sua competência respeitantes às regiões
autónomas.
Correlativamente,
o artigo 227.º, n.º 1, alínea v), da
Constituição, confere aos órgãos de governo próprio das regiões o direito a pronunciarem-se, por sua iniciativa ou sob consulta
dos órgãos de soberania, sobre as questões da competência destes que lhes digam
respeito.
O problema concernente à
determinação da extensão do direito constitucionalmente
reconhecido às Regiões pelos artigos 227º n.º 1 alínea v)
e 229º nº 2 da Constituição de serem ouvidas pelos órgãos de soberania
relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas
encontra-se já abundantemente tratado na jurisprudência deste Tribunal.
Numa alusão à constância da doutrina a tal propósito seguida,
escreveu-se no Acórdão n.º 670/99 (DR, II Série,
de 28 de Março de 2000) o seguinte:
«[...]
Trata-se de uma questão que já foi analisada
por diversas vezes, quer pela Comissão Constitucional, quer por este Tribunal,
não se encontrando razão para afastar a orientação adoptada de forma constante.
Com efeito, desde o Parecer nº 20/77 da
Comissão Constitucional (Pareceres da Comissão Constitucional, 2.º vol., pág.
159 e segs.) que se entendeu que "são questões da competência dos órgãos
de soberania, mas respeitantes às regiões autónomas, aquelas que, excedendo a
competência dos órgãos de governo regional:
– respeitem a interesses predominantemente
regionais;
– ou pelo menos mereçam, no plano nacional, um
tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das
particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para
esses territórios".
[…] Esta orientação – a de que só pode
considerar-se "questão respeitante às Regiões Autónomas" para o
efeito previsto no (actual) nº 2 do artigo 229.º da Constituição, a que, embora
englobada na competência dos órgãos de soberania, revele alguma
"especificidade ou pecularidade relevante no que concerne a essas regiões"
(Parecer n.º 2/82, Pareceres cit.., 18.º vol., pág. 103 e segs.) – foi seguida
posteriormente pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente, nos seus acórdãos
nºs 42/85, 284/86 e 403/89 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 5º vol., pág. 181 e segs., 8º vol., pág. 169 e segs.
e 13º vol., I, pág. 465 e segs., respectivamente).»
Conforme se escreveu no Acórdão n.º 174/2009,
«esta doutrina continuou a ser acolhida em Acórdãos posteriores (por exemplo,
n.ºs 684/99, 529/2001 e 243/2002). Já depois da sexta revisão constitucional
(Lei Constitucional n.º 1/2004 de 24 de Julho), o Tribunal decidiu, no Acórdão n.º 551/2007, que "a
expressão respeitantes às regiões autónomas constante do n.º 2, do artigo
229.º, da Constituição deve (continuar a) ser interpretada no sentido de se tratar
de matérias que, apesar de serem da competência dos órgãos de soberania, nelas
os interesses regionais apresentam particularidades por comparação com os
interesses nacionais, quer devido às características geográficas, económicas,
sociais e culturais das regiões, quer devido às históricas aspirações
autonomistas das populações insulares, que justificam a audição dos órgãos de
governo regional.»
Explicitando
o critério uniformemente seguido quanto à determinação do critério para a
audição dos órgãos regionais, prosseguiu o Tribunal no referido Acórdão:
«A
obrigação que, neste domínio, a Constituição faz impender sobre os órgãos de
soberania decorre do dever de cooperação
a que o actual artigo 229.º da Constituição submete conjuntamente a actividade
dos órgãos de soberania e de governo regional para concretização do
"desenvolvimento económico e social" das regiões e para
"correcção das desigualdades derivadas da insularidade". O Tribunal
sempre avaliou caso a caso a existência do
falado dever, relacionando-o com as circunstâncias que, em concreto, podem
revelar um especial interesse das Regiões na
disciplina da matéria em causa. Este critério continua a extrair-se do citado
n.º 2 do artigo 229º da Constituição, norma que, como já se fez notar, se
manteve inalterada desde a versão inicial da Constituição (artigo 231.º, n.º
2). E é de continuar a admitir, como fez o aludido Acórdão 670/99, e o já
citado Acórdão n.º 551/2007, que "o direito de audição constitucionalmente
garantido às Regiões Autónomas pelo n.º 2 do artigo 229.º da Constituição se
refere a actos que, sendo da competência dos órgãos de soberania, incidam de
forma particular – diferente daquela em que afectam o resto do País – sobre uma
ou ambas as Regiões, ou versem sobre interesses predominantemente regionais.»
13.2.
Tendo-se já concluído no sentido de que a matéria relativa à aprovação do regime
jurídico da “exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da
gravidez” se inclui
na competência dos órgãos de soberania, resta apurar se a Lei n.º 16/2007, na
medida em que institui o referido regime, incide de forma particular sobre a Região Autónoma da Madeira.
Continuando
a seguir de perto a fundamentação constante do Acórdão n.º174/09, pode dizer-se
que, também aqui – à semelhança do caso ali tratado – a Assembleia requerente
solicita a apreciação, na sua (quase) globalidade, de um determinado regime
jurídico – o regime jurídico da “exclusão da ilicitude nos casos de interrupção
voluntária da gravidez”, instituído pela Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, e
regulamentado pela Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho.
É, porém, seguro que o regime jurídico da
“exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez” não
respeita à Região Autónoma da Madeira de forma
particular, tratando-se antes de uma disciplina jurídica que, pela sua natureza
e pelo seu objecto, respeita, por igual, a todo o País, sem diferenciação de
parcelas ou regiões.
Justificar-se-ia, portanto, que o Presidente da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, ao invocar a omissão do
dever de audição, identificasse o motivo ou as circunstâncias de onde em concreto sobressai um interesse especial
da Região quanto ao tratamento legislativo desta matéria. Todavia, o pedido não apresenta qualquer
razão que demonstre que o regime jurídico de “exclusão
da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez”, "respeite a interesses
predominantemente regionais ou, pelo menos, mereça, no plano nacional, um
tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das
particularidades destas".
Porque
a existência de tal interesse, para além de não invocada pelo Requerente, não é
manifestamente configurável em relação a qualquer uma das questionadas normas
da Lei n.º 16/2007, deve concluir-se no sentido de que não houve qualquer
violação do dever de audição dos órgãos de governo regional, consagrado no
artigo 229.º, n.º 2, da Constituição.
13.5.
Também com fundamento na violação do direito, constitucional e legal, de
audição prévia das Regiões Autónomas, não deverá ser
declarada a inconstitucionalidade do bloco normativo
constituído pelos artigos
1.º – este na parte em que acrescenta a nova alínea e)
ao n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, e dá origem às restantes normas da
nova versão do mesmo –, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei n.º
16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º,
7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º,
22.º, 23.º e 24.º, estes da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho.
III – Decisão
Pelo
exposto, o Tribunal decide:
a)-
Não declarar a inconstitucionalidade formal da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril;
b)-
Não declarar a inconstitucionalidade material das normas constantes dos artigos
1.º, na parte em que introduz a alínea e) do n.º 1 e a
alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código
Penal, 2.º, n.º 2, 6.º, n.º 2, todos da Lei n.º 16/2007:
c)-
Não declarar a inconstitucionalidade, à luz do princípio da autonomia regional
e do direito de audição prévia das regiões autónomas, do bloco normativo constituído pelos artigos 1.º – este na parte
em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal, e dá origem às restantes normas da nova versão do
mesmo –, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei n.º 16/2007, de 17 de
Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º,
11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º, estes
da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho.
Lisboa, 23 de
Fevereiro de 2010
Joaquim de Sousa
Ribeiro
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra
Martins
Gil Galvão
Carlos Fernandes
Cadilha
Maria João Antunes
João Cura Mariano
José Borges Soeiro
(Vencido, de harmonia com a declaração de voto que junto).
Benjamim Rodrigues
(Vencido quanto à pronúncia constante da alínea b) da decisão)
Carlos Pamplona de
Oliveira – Vencido, conforme declaração
Rui Manuel Moura
Ramos. Vencido, nos termos da declaração de voto junta.
Tem voto de
vencida a Conselheira Maria Lúcia Amaral, que não assina por não estar
presente, tendo junto a respectiva declaração de voto
O Relator
Joaquim de Sousa
Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti, relativamente
ao decidido sob a alínea B) do
acórdão que fez vencimento, pela seguinte ordem de razões:
a) Considero que o direito ao
desenvolvimento da personalidade da mulher e a protecção da vida intra-uterina
não podem conduzir a que, num balanceamento entre os dois valores
constitucionais, numa síntese que procure a desejável “concordância prática”, se possa permitir
uma desprotecção da vida intra-uterina nas primeiras dez semanas.
Embora se considere que a
protecção dessa vida intra-uterina não corresponde a um direito subjectivo do
feto e, como tal, a um direito fundamental, porquanto este só se encabeça com o
nascimento, o certo é que esse bem é, também, objecto de protecção
constitucional, objectivamente considerada. Com efeito, a vida intra-uterina
conduz, num projecto de vida, ao início de um novo ser que, naturalmente,
comporta a afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana.
O reconhecimento da
dignidade constitucional da vida intra-uterina não impede, no entanto, que se
considere que a sua tutela seja menos forte do que a vida das pessoas já
nascidas e que possa conhecer diversas gradações, consoante a fase de
desenvolvimento do feto.
Nesta perspectiva, o
artigo 24.º da CRP, para além de garantir a todas as pessoas um direito
fundamental à vida, subjectivado em cada indivíduo, integra, igualmente uma
dimensão objectiva, em que se enquadra a protecção da vida humana intra–uterina, o qual
constitui uma verdadeira imposição constitucional.
Assim, não será
consentido, por contraditório com o dever do Estado em tutelar a referida vida
intra-uterina, admitir que na fase inicial do desenvolvimento do feto, ou seja
nas primeiras dez semanas, se adopte uma solução legal de menor protecção,
dando prevalência à “liberdade de opção” da
mulher grávida, podendo interromper a gravidez sem o recorte relevante de
qualquer razão justificativa, quedando-se o Estado numa posição neutral, sem
uma “intervenção mínima”, em
manifesta postura de “défice” de
tutela.
Com efeito, o cumprimento
desse dever por parte do Estado está sujeito a uma medida “mínima”, sendo violada a “proibição de insuficiência”, quando as
normas de protecção fiquem aquém do constitucionalmente exigível.
b) Com a Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril,
tentou-se, num diverso paradigma, encontrar o ponto de equilíbrio entre o
sistema das “indicações”, em
vigor no nosso ordenamento jurídico até à entrada em vigor da referida lei, com
o sistema dos “prazos”.
Contudo, não se logrou
alcançar esse objectivo, porquanto no sistema dos prazos, para que não se
pudesse considerar o Estado como neutral, e sem se revelar minimamente interventor, em reposta à
dignidade constitucional que merece a vida intra-uterina e ao inerente dever
constitucional de protecção que decorre da Lei Fundamental, teria de assumir
que o aconselhamento prévio à mulher grávida fosse não apenas meramente informativo, mas igualmente dissuasor, orientado para a defesa da
vida, não se desconsiderando, naturalmente a liberdade de opção e decisão da
mulher, encorajando-a a prosseguir com a gravidez, sem que, e aceita-se sem
reservas, tal aconselhamento fosse “vinculante”, isto é,
impositivo de uma solução contrária à desejada pela grávida,
como se afirma no acórdão que fez vencimento.
Afigura-se-me, pelo
exposto, que foi violada a norma constante do artigo 24.º, n.º 1 da CRP.
c) Votei vencido, também, no que se reporta
à norma constante do artigo 6.º, n.º 2, da Lei nº 16/2007, de 17 de Abril, na
medida em que exclui das consultas previstas no artigo 142.º, n.º 4, alínea b) do Código Penal, os médicos objectores de consciência.
A consulta na qual se
encontram impedidos de participar os médicos que invoquem o estatuto de
objector de consciência visa facultar à mulher grávida o acesso à informação
para a “formação da sua decisão livre, consciente e responsável”.
Conforme já se salientou supra, ao anterior sistema de indicações sucedeu um sistema de prazos de aconselhamento obrigatório de tipo meramente
informativo, assim designado por oposição ao sistema de prazos de aconselhamento obrigatório de
tipo dissuasor orientado para encorajar o prosseguimento da gravidez.
Essa consulta, como também
já se salientou, é manifestamente neutral, optando-se pela ideia de que a
grávida deve ser institucionalmente preservada de qualquer forma de ingerência
no desenvolvimento do seu processo decisório, nomeadamente que essa mesma
ingerência não possa vir a ser exercida do interior do sistema e através dele,
por iniciativa daqueles que o legislador presume que em tal sentido operariam –
o da preservação da vida intra-uterina – se bem que tal intenção se encontre
arredada pelo desenho legal da aludida consulta.
Nesta perspectiva, o
impedimento lançado sobre os médicos objectores de consciência da possibilidade
da prática de actos para os quais se encontram profissionalmente habilitados,
traduz-se numa discriminação negativa, capaz de conflituar com o princípio da
igualdade.
É sabido que quando
ocorre um tratamento desigual impõe-se uma justificação material da
desigualdade, sob pena de poder considerar-se como desnecessária, inadequada e
desproporcional à satisfação do respectivo objectivo.
Na situação em apreço,
ainda que implicitamente, o legislador parte como que de uma presunção segundo
a qual os médicos objectores de consciência que optassem por intervir em tal
consulta tenderiam a realizá-la em termos desconformes com os legalmente
previstos, introduzindo desvios susceptíveis de comprometer a sustentação das
opções do aludido legislador.
Essa discriminação
negativa, que incide sobre os médicos objectores revela-se excessiva, e, por
isso, desproporcionada, em relação à finalidade prosseguida, mesmo consistindo
esta na intenção de preservar as características meramente informativas do
modelo da consulta, legalmente preconizado.
Exprime, ainda, no
contexto do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez, uma
desqualificação desproporcionada e susceptível de afrontar o princípio da
igualdade, na vertente que proíbe a realização de discriminações.
Esta opção legislativa,
constante do artigo 6.º, n.º 2 da Lei nº 16/2007, viola, em meu entendimento, o
princípio da igualdade consagrado na artigo 13.º da CRP, na dimensão
respeitante à proporcionalidade contida na vertente da proibição de
discriminações.
José M.
Borges Soeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Votei vencido quanto à pronúncia constante da alínea
b) do acórdão.
Na verdade, estou firmemente convencido de que a solução
reclamada pela Constituição é a da inconstitucionalidade das normas constantes
dos artigos 1.º, na parte em que introduz a alínea e)
do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 do
artigo 142.º do Código Penal, artigos 2.º, n.º 2 e 6.º, n.º 2, todos da Lei n.º
16/2007, de 17 de Abril.
2 – Antes de mais, não posso deixar de passar em branco a
insensibilidade demonstrada no acórdão pelos votos de vencido apostos aos
acórdãos que até hoje foram proferidos no âmbito da matéria da “despenalização
do aborto”, expressivos, quer no seu número, quer no seu valor científico,
omitindo-se a menção de que os fundamentos das decisões anteriores proferidas
pelo Tribunal Constitucional foram sempre fruto de maiorias tangenciais.
O discurso argumentativo do acórdão cria a aparência de que o estado actual da questão corresponde a um
simples desenvolvimento da axiologia jusfundamental, tal como ela foi sendo
exprimida logo desde o Acórdão n.º 25/84, e de que não houve sobre ela um largo
e profundo debate constitucional.
3 – Sobre o sentido do artigo 24.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa continuo a pensar nos termos constantes da
declaração de voto aposta no Acórdão n.º 617/06, que se pronunciou sobre a
constitucionalidade e legalidade da realização do Referendo efectuado no dia 11
de Fevereiro de 2007.
Escrevi, então, nessa sede:
“5.1 – […]
Não
irei expor longamente os fundamentos jurídico-constitucionais com base nos
quais se considera que a vida humana uterina tem consagração e protecção
constitucionais nos termos do art.º 24.º, n.º 1, da nossa Lei fundamental. E
não o farei, exactamente, porque, quer o Acórdão n.º 288/98, ao qual
constantemente se arrimou, aí de modo inequívoco, quer o presente Acórdão, não
deixam de pressupor, ainda que, neste, de forma não tão impressiva, que a vida
uterina tem protecção constitucional, correspondendo a um direito ou garantia
fundamentais. Depois, porque acompanho, no essencial, os votos apostos àquele
Acórdão n.º 288/98 pelos senhores conselheiros que votaram vencido e que aqui
se recuperam.
Nesse
ponto – e com naturais reflexos, como não poderá deixar de ser quanto à solução
desta questão – a nossa discordância com o acórdão reside, essencialmente, na
intensidade de protecção jurídico-constitucional que se entende derivar de tal
preceito, quer no que importa à dúvida, nele concitada, sobre a
titularização/subjectivação do direito à vida humana no art.º 24.º, n.º 1 da
CRP, quer na resposta a dar quando esse direito ou garantia fundamentais entrem
em conflito com outros direitos da mulher, mormente, a agora designada
“liberdade de manter um projecto de vida” “como expressão do livre
desenvolvimento da personalidade”.
Não
obstante isso – e com referência à metodologia seguida – não é de passar em
branco que o acórdão, ansiando, porventura, acentuar os argumentos que, na sua
óptica, abonarão a favor da não inconstitucionalidade de uma solução jurídica
perspectivada na senda de uma resposta afirmativa ao referendo, discorre,
essencialmente, sobre um diálogo de ponderação entre os direitos fundamentais,
susceptíveis de entrarem em conflito, a partir de uma “configuração mais
radical” do âmbito da protecção da vida humana, como se a solução passasse, no
caso concreto, por essa linha de protecção, esbatendo a existência, no direito
vigente, de causas de desculpabilização e de justificação que dão expressão,
num plano autónomo e exterior, às exigências demandadas, no caso, por um juízo
ponderativo de concordância prática entre os direitos tidos como estando em
conflito.
Ao
contrário do suposto como elemento de argumentação, não se afirma, nem se viu
alguma vez defendido na ciência jurídica, que, tendo por referência a vida
pré-natal e pós-natal, “tenha de existir uma protecção penal idêntica em todas
as fases da vida”, como postulado ou decorrência da inviolabilidade da vida
humana ou que haja “uma argumentação a favor da inconstitucionalidade [da
resposta afirmativa ao referendo] que nivele a vida em todos os seus estádios”.
Tal
princípio constitucional não demanda que a protecção penal da vida humana tenha
de ser idêntica, em intensidade, em todo o continuum da
vida e em todas as circunstâncias de facto.
O
que o princípio da inviolabilidade da vida humana reclama é que a violação do
direito à vida (uterina e pós-uterina) tenha, sempre, protecção penal, valendo,
dentro dos diferentes níveis dessa protecção, os princípios gerais de direito
criminal, de matriz, igualmente, constitucional, da justificação do facto, da
culpa e do estado de necessidade.
Assim,
não está o legislador ordinário impedido, em geral, de conformar diferentes
níveis de protecção criminal, expressos, maxime, no
recorte do facto ilícito típico e da pena, para os diferentes momentos e
circunstâncias do continuum em que se desenvolve a
vida humana, diferenciando, dentro dele, a vida intra-uterina da pós-uterina. O
que a Constituição reclama é que, salvo a existência de causas de
desculpabilização ou de justificação, a vida seja penalmente protegida.
Em
segundo lugar, o argumento de que não existe “uma linha de inflexível
necessidade lógica”, como afirma o acórdão, entre a definição da
inviolabilidade da vida humana e a intervenção penal, “nomeadamente pela
interferência de perspectivas de justificação, de desculpa ou ainda de
afastamento da responsabilidade devido “à necessidade da pena”, assenta sobre
uma patente incongruência lógica, dado que as dimensões alegadas para afastar a
intervenção penal são já institutos que pressupõem, necessariamente, a
existência dessa protecção penal.
Em
terceiro lugar, a convocação do entendimento seguido no referido Parecer do
Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, segundo o qual na mente
dos constituintes do art.º 24.º, n.º 1, da CRP não caberia a protecção da vida
uterina só teria sentido para quem – posição que parece não ser, de modo
assumido, a do acórdão e não é, seguramente, a do Ac. 288/98, em que
constantemente se abona, nem dos votos de vencido a eles apostos – seguisse uma
tese radical de exclusão do âmbito de protecção conferida por tal artigo da
vida intra-uterina.
5.2
– Sendo, assim, admitido como está, pelo acórdão e por todos os vencidos, que a
vida humana intra-uterina goza de protecção constitucional, o que importa
saber, é se, a operação de concordância prática dos direitos e valores
constitucionalmente relevantes, presentes no caso, que o acórdão levou a cabo
se apresenta efectuada com respeito pelo princípio constitucional que emerge do
art.º 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP.
Por nós,
temos por seguro que não. E firmamos esse juízo, essencialmente, nas seguintes
considerações.
Desde
logo, porque não deixa de impressionar-nos que o acórdão perspective a tutela
de inviolabilidade da vida humana, estabelecida no art.º 24.º, n.º 1, da CRP,
desligada do ser que constitua o seu titular, acabando por reduzir, subliminarmente, segundo uma óptica radical que tanto
critica, o seu âmbito de protecção apenas aos fetos com mais de 10 semanas de
gestação e às pessoas nascidas.
Ora,
não vemos, como melhor se verá adiante, que tenha sentido falar-se de
inviolabilidade da vida humana sem ser por referência ao ser que dela seja
titular, seja este ser já uma pessoa ou apenas um ser a caminho de ser pessoa
(cf. Laura Palazzani, Il concetto di persona tra
bioetica e diritto, Torino, 1996; A. M. Almeida Costa, “Abortamento
provocado”, in Bioética, AA. VV. Coordenada por
Luís Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald, Lisboa, 1996, pp. 201 e segs., e
João Carlos Loureiro, “Estatuto do Embrião”, in Novos Desafios
à Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia,
Walter Osswald e Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs).
Do
mesmo passo, não se compreende que se erija a essencial fundamento da tutela
constitucional devida ao embrião/feto o princípio constitucional da dignidade
humana, quando este princípio supõe, precisamente, a existência de um ser
dotado de vida humana e o preceito do art.º 24.º, n.º 1, da CRP não só não
aponta em qualquer sentido restritivo, como corresponderia a uma solução contrária
ao princípio da “máxima efectividade e expansividade” dos direitos e garantias
fundamentais, constantemente, invocado para justificar a inclusão nos direitos
fundamentais de realidades que suscitam alguma dúvida.
Por
outro lado, o acórdão não realizou qualquer juízo de concordância prática entre
os dois valores ou direitos constitucionais, tidos como estando em conflito: o
direito do ser, “embrião/feto humanos”, a nascer e a “liberdade da mulher a
manter um projecto de vida, como expressão do livre desenvolvimento da sua
personalidade”. E não efectuou, porque, pura e simplesmente, para fazer
prevalecer este último, rejeita a titularização, no âmbito do art.º 24.º, n.º
1, da CRP (subjectivação constitucional), do direito à vida humana e,
decorrentemente, do conteúdo essencial do direito do feto a nascer, admitindo a
possibilidade de, sem censura penal, lhe tirar a vida humana.
De
qualquer modo, pressuposta, como se defende na doutrina e jurisprudência
constitucionais, a inexistência de hierarquia entre direitos constitucionais,
precisamente com base na identidade da sua fonte, nunca a colisão de direitos
constitucionais poderá ser resolvida, pelo legislador ordinário, com base num
critério normativo de prevalência da liberdade da mulher a manter um projecto
de vida à custa da morte do feto, titular constitucional de vida humana e da
respectiva dignidade.
A
operação de concordância prática entre direitos constitucionais, posicionados
como estando em conflito, demanda a realização de um juízo de ponderação (legislativa
ou judicial) que dê satisfação ao princípio constitucional da máxima
efectividade de protecção dos direitos e garantias fundamentais.
Tal
equivale por dizer que esse juízo deve efectuar-se de modo a tentar obter uma
optimização do âmbito de eficácia da protecção constitucional conferida a tais
direitos e que nunca poderá chegar a um resultado de eliminação de um deles em
favor do outro, pois, neste caso, está-se, radicalmente, a eliminar o conteúdo
essencial do preceito constitucional que reconhece a inviolabilidade da vida
humana, na sua expressão de direito do titular da vida humana uterina a nascer
e a violar-se frontalmente o disposto na parte final do art.º 18.º, n.º 3, da
CRP.
[E a
solução não varia se se fizer radicar, segundo a lógica dubitativa que o
acórdão admite, a tutela constitucional do titular embrião/feto no princípio da
dignidade de vida humana – lógica essa, diga-se, incongruente, se referida à
dignidade do embrião/feto, por essa dignidade da vida humana supor a existência
da vida humana e de um seu titular, ou, então, contraditória, se a alegada
dignidade disser respeito à mulher grávida, por, nesse caso, inexistir a
perspectivada situação de colisão de direitos].
Por
outro lado, o juízo de concordância prática não pode deixar de ter presente a
estrutura e natureza dos concretos direitos ou garantias constitucionais, que
se apresentam como estando em conflito, mormente para avaliação dos resultados
sob a óptica do princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de justa medida,
ao qual deve obediência.
Ora,
nesta sede, não deve desconhecer-se que estão em causa direitos ou garantias
constitucionais em concreto, radicados em diferentes titulares constitucionais:
de um lado, a liberdade da mulher grávida a manter um projecto de vida e do
outro o direito do concreto embrião/feto a nascer, em cada situação de
gravidez. Cada situação de gravidez gera uma situação de existência de um
concreto titular do direito à vida humana a nascer.
Nesta
perspectiva, cabe acentuar que a Constituição, sempre que quer conferir uma
especial intencionalidade protectora ou eficácia do âmbito de protecção
constitucional a certos direitos ou garantias constitucionais, usa expressões
reveladoras desse significado, como o adjectivo “inviolável” ou expressões de
exclusão como “ninguém”, “quaisquer”, etc. (cf., por exemplo, quanto ao
primeiro caso, os art.ºs 24.º, n.º 1, 25.º n.º 1 e 34.º, n.º 1, e, quanto ao
segundo caso, os art.ºs 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, e, a ambas as
situações, o art.º 13.º, n.º 2).
O
direito à vida humana é protegido pela Constituição (art.º 24.º, n.º 1) como
direito inviolável. O vocábulo “inviolável” só poderá significar que se trata
de um direito que não poderá ser violado em caso algum, mesmo pelo Estado
legislador. Nesta óptica, apenas, se conceberão causas de exclusão que
consubstanciem, perante a Constituição, situações de não violação, como sejam
as causas constitucionais de desculpabilização ou de justificação.
Trata-se,
deste modo, de um direito ou garantia constitucional que se encontra dotado de
uma especial força de tutela constitucional. E bem se compreende que o seja,
porquanto se trata de um direito fundante de todos os outros, de um direito que
é pressuposto necessário de todos os outros, pois sem titulares de vida humana
não poderá falar-se em dignidade humana ou sequer constituir-se comunidade
organizada em Estado de direito democrático.
Ao contrário, o direito ou garantia
fundamental que se apresenta em colisão com ele – a liberdade da mulher a
manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua
personalidade – não se apresenta dotado constitucionalmente de uma tal força
excludente de lesão.
Na
verdade, essa liberdade é não a liberdade a que se refere o art.º 27.º, n.º 2,
da CRP, a liberdade física ou liberdade de “ir e vir” – essa sim dotada de tal
força excludente – mas sim uma específica dimensão do princípio do
desenvolvimento da personalidade, consagrado no art.º 26.º, n.º 1.
Assim
sendo. Existente um direito à vida humana titularizado no ser resultante da
partogénese celular, ser esse diferente, não só biológica e geneticamente (cf.
Fernando J. Regateiro, Manual de Genética Médica,
Coimbra, 2003, pp. 310 a 312 e Fernando Regateiro, “Doenças Genéticas”, in Comissão de Ética – Das Bases Teóricas à Actividade Quotidiana,
AA. VV. Coordenada por Maria do Céu Patrão Neves, 2.ª edição, Coimbra, 2002,
pp. 351 e 352), como também constitucionalmente (cf., entre outros, João Carlos
Loureiro, “Estatuto do Embrião”, in Novos Desafios à Bioética,
AA. VV., coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e Michel
Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs., e A. M. Almeida Costa, op. cit., pp. 210 e
segs.), do ser da sua mãe ou mulher grávida – seja ele já uma pessoa ou não,
mesmo numa acepção constitucional – e podendo ele estar em colisão com o
direito a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da
sua personalidade, titularizado na mulher grávida, não pode deixar, numa
ponderação de concordância prática dos valores constitucionais, de adoptar-se,
do ponto de vista da sua estrutura e natureza constitucional, uma solução que
não acarrete o sacrifício do titular da vida humana.
Anote-se,
de resto, que só o (implícito) reconhecimento de uma alteridade
de titularidade constitucional do ser embrião/feto em relação à sua mãe é que
justifica que o próprio acórdão, na esteira, aliás, do de 1998, procure
intentar uma demonstração de existência de concordância prática entre o direito
titularizado da mulher grávida e o direito respeitante ao embrião/feto.
O
aborto importa a morte do concreto titular da vida humana, do concreto
embrião/feto. Com ele extingue-se o direito de se desenvolver no seio materno
(e de mais tarde nascer), de acordo com a informação codificada no DNA, a vida
humana do concreto feto advindo do específico ovo ou zigoto, este, por sua vez,
resultante da fecundação do concreto ovócito pelo concreto espermatozóide. O
ser irrepetível advindo da partogénese celular deixa de existir, saindo
violado, por completo, o seu direito à vida humana.
Pelo
contrário, o prosseguimento da vida uterina não extingue a liberdade da mulher
a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua
personalidade, mas tão só, quando muito, a obriga a que adapte, para o futuro,
o seu projecto de vida às novas circunstâncias, tal qual pode acontecer por
força de muitas outras circunstâncias possíveis naturalisticamente, como, por
exemplo, a doença, o desemprego, acidentes, etc.
Ela
continua a ser titular de um direito pessoal ao livre desenvolvimento, de o
poder exercer e manifestar, repetidamente, em todas as outras condições da sua
vida. Seguindo a lógica do acórdão, a mulher grávida manterá a sua liberdade de
desenvolver o seu projecto de vida quantas as vezes que optar pela interrupção
da gravidez. Porém, em todas essas vezes, ocorrerá a extinção do direito à vida
humana de um concreto titular – o concreto feto em gestação.
Nesta
linha de pensamento, há-de convir-se que a interrupção voluntária de gravidez,
por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez, assume tão só a
natureza de um simples meio de contracepção ou mesmo de planeamento familiar
cuja determinação do concreto conteúdo corresponde a um direito absoluto da
mulher grávida, fazendo irrelevar, para o concreto embrião/feto, qualquer
protecção constitucional do seu direito à vida humana, consagrado no art.º
24.º, n.º 1, da CRP.
Ou
seja, a concepção do acórdão assenta numa ideia de completa liberalização do
aborto, condicionando-o a condições que visam apenas acautelar o aspecto de
saúde da mulher abortanda e não em qualquer ideia de que deve ser efectuada uma
ponderação de direitos ou valores: contra a vontade, de livre opção, da mulher
de abortar, nas primeiras 10 semanas de gravidez, em estabelecimento de saúde
legalmente autorizado, nada (absoluto) se pode opor.
Trata-se,
por outro lado, de uma solução cuja admissibilidade não vemos como possa ser
acolhida pelo princípio constitucional da proporcionalidade, na sua acepção de
justa medida. Essa desproporcionalidade torna-se patente não só quando
abandona, por inteiro, a natureza do direito que está em colisão com o direito
da mulher grávida, permitindo o seu sacrifício, de plano,
nas primeiras 10 semanas, como quando a valoração acaba por ficar dependente
apenas da decorrência de simples prazos de gestação, e da aleatoriedade
decisória que, durante eles, poderá ser feita, livremente, pela mulher grávida,
podendo ser levada a cabo, sem censura penal, num limite em que o feto tem até
já forma humana (desde as 8 semanas) (cf. Fernando J. Regateiro, Manual de
Genética Médica, Coimbra, 2003, pp. 310 a 312).
Como se verifica dos seus termos, o acórdão
invoca a realização de uma concordância prática dos direitos em questão no
plano abstracto, indicando até, nesse sentido, a existência de vários regimes
de protecção da maternidade, que identifica.
Todavia,
a primeira objecção que poderá fazer-se a propósito de tal atitude é que, posta
a questão em termos abstractos (plano do conteúdo/extensão do direito objectivo
à vida humana), no plano de constitucionalidade, caberia ao próprio legislador
constitucional resolvê-la e não ao legislador ordinário, mormente no que toca
ao conteúdo essencial do direito, que é aquele que é tocado pelo aborto.
E
não se esgrima, contra esta posição, como está pressuposto pelo acórdão, para
justificar a existência de um juízo ponderativo de concordância prática, que só
tal operação permite enquadrar constitucionalmente as causas de
desculpabilização e de justificação da interrupção voluntária de gravidez
existentes na lei em vigor, pois estas, apenas, correspondem a concretizações,
relativamente aos concretos direitos constitucionais que estão em causa, de
princípios constitucionais autónomos, que valem para todo o direito criminal –
as causas de justificação e de desculpabilização.
Depois
a tese do acórdão sofre de um verdadeiro ilogismo: é que os direitos cuja
existência alega, apenas, constituirão direitos para quem tiver a sorte de não
ser abortado. A sua eficácia depende da existência de titulares de direito à
vida humana que tenham nascido.
A
vida humana não existe sem um titular e não é possível falar-se de violação,
que o preceito constitucional proíbe, sem ser relativamente à posição jurídica de
quem se encontre investido na titularidade de um direito.
De
contrário, o que está em causa é, ainda, a definição do conteúdo constitucional
desse direito, dos seus contornos, do seu conteúdo essencial, no mínimo. E, a
ser assim, tal domínio não cabe nos poderes do legislador ordinário, mas nos do
constitucional.
Essa
é, também, a razão pela qual repudiamos a tese, admitida no acórdão (pontos 7 a
10), sobre a admissibilidade de uma dúvida interpretativa sobre a solução, em
abstracto, no plano da constitucionalidade, de um conflito de valores ou
direitos constitucionais, como a que está, em causa, na proposta de referendo,
poder ser devolvida ao eleitorado, através de mecanismos como o referendo e não
de eleições em que possam ser assumidos poderes constituintes por parte da
Assembleia da República.
É que o voto expresso neste caso, desde que
afirmativo, apenas pode traduzir uma posição de poder político legislativo
ordinário, no sentido transportado pela pergunta, ou seja, corporiza, apenas,
uma posição de poder legislativo ordinário, não incorporando quaisquer poderes
de definição do conteúdo dos direitos e garantias constitucionais, só possível
através da concessão/assumpção de poderes constituintes.
Resta,
por último, apreciar a posição em que se abona o acórdão, segundo a qual não se
esgota, no domínio penal, o âmbito de protecção do direito constitucional à
vida humana e de que não existe uma imposição constitucional à criminalização.
Estamos
de acordo quanto à primeira consideração, mas já não podemos acompanhar, de
forma alguma, a segunda proposição.
E
não podemos, porque entendemos que existem direitos constitucionais cuja
existência e exercício hão-de, necessariamente, impor a criminalização das
atitudes que os violarem, por, na sua defesa, o legislador ordinário dever usar
todos os meios constitucionalmente possíveis e entre estes, evidentemente, a
sua última ratio – o direito criminal.
É o
caso do direito à vida humana uterina e pós-uterina. Trata-se de um direito que
é pressuposto necessário da existência de todos os demais (direito com
pretensão de absoluto), de um direito sem cuja existência, em seres concretos,
não é concebível qualquer princípio de dignidade da pessoa humana e existência
de uma comunidade politicamente organizada em Estado.
O
direito à vida humana de qualquer titular constitucional que ele seja, nascido
ou não nascido, porque a Constituição os não distingue, é um direito fundante
do Homem e da sociedade organizada.
Na
mesma situação se encontra, por exemplo, a protecção do princípio democrático
do Estado de direito. Sem protecção do princípio democrático do Estado de
direito, por todos os meios constitucionalmente permitidos, este não poderá
existir e subsistir. Sendo assim, não poderá o legislador ordinário deixar de
utilizar na sua protecção a última ratio – o direito criminal”.
4 – Para nós, pois, sintetizando na perspectiva do caso
concreto, o n.º 1 do artigo 24.º da Constituição protege a vida humana no grau
de inviolabilidade por todos os sujeitos, começando pelo Estado. E estando a
dispor, embora em abstracto, sobre a vida humana só pode referir-se à vida
humana enquanto valor concretamente existente e verificável e não enquanto
simples valor constitucional objectivamente afirmado, como discorre o Acórdão:
onde concretamente existir uma vida humana
ela é inviolável. Donde a afirmação da existência de uma vida humana pressupor
sempre uma alteridade, seja ela em relação à
gestante ou às pessoas já nascidas.
A construção do Acórdão no sentido de ver, para efeitos
do âmbito de protecção da norma constitucional, o ente existente no seio
materno como uma unidade com a gestante durante o
período em que é lícito o aborto – o que lhe permite a afirmação de
preponderância dos direitos fundamentais da gestante, e não já uma dualidade ontológica e axiológica, é puramente formal,
representando uma intelecção formal construída ao arrepio da Natureza. A dualidade da vida humana do feto, até ao nascimento com
vida, e da gestante, na lógica do acórdão, corresponderá a uma atribuição do legislador
ordinário que só poderá ser travada nos casos de manifesta evidência de
violação do princípio da proporcionalidade, a qual seria apenas reconhecível
nos adiantados estados de gravidez. Tal compreensão da realidade humana
corresponde a colocar, nas mãos do legislador ordinário, o recorte do âmbito
material da garantia constitucional da inviolabilidade da vida humana, a poder
lesar a vida humana radicada em um concreto ser, permitindo a sua morte.
A nosso ver, a Constituição actual não o permite. Assim,
enquanto o preceito constitucional não for alterado, entendemos que nunca o
“modelo de prazos” da interrupção voluntária da gravidez se pode ter por
legitimado.
5 – Consequencialmente, o artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º
16/2007 é também inconstitucional.
Mas, independentemente da relação de dependência desta
questão de constitucionalidade relativamente à anterior, verifica-se ainda que
este artigo 2.º, n.º 2, é inconstitucional a título autónomo.
Na verdade, ele viola directamente a garantia constitucional
da inviolabilidade da vida humana (artigo 24.º, n.º 1, da CRP) e – mesmo para
quem entenda não se estar perante um caso em que sai ofendido o conteúdo
essencial do artigo 24.º, n.º 1, da CRP – o princípio da necessidade e da
proporcionalidade das restrições a direitos fundamentais (artigo 18, n.º 2, da
CRP), na medida em que, na presença de bens constitucionais não hierarquisados
entre si (os direitos fundamentais da gestante e o direito constitucional do
feto), o preceito adopta uma estrutura de informação de total alheamento da
vida humana, em nada assumindo uma atitude de defesa da vida humana do feto.
6 – Finalmente, a
proibição, pelo legislador ordinário – e é disso que se trata! – de os médicos
objectores de consciência poderem participar na consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no
acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar durante o período de
reflexão, prevista no artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, é também inconstitucional,
por violação desproporcionada do direito fundamental da liberdade de trabalho e
de profissão, consagrada no artigo 47.º, e da garantia de liberdade de
consciência, reconhecida no artigo 41.º, ambos os preceitos da Constituição,
bem como do princípio da igualdade, estabelecido no artigo 13.º da mesma Lei
fundamental.
Antes de mais importa notar que não está aqui em causa
uma restrição destes direitos fundamentais em relação aos médicos que invoquem
a objecção de consciência a que se refere o artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º
16/2007, ou seja, aos médicos que declarem o “direito de objecção de
consciência relativamente a quaisquer actos respeitantes à interrupção
voluntária de gravidez”.
A questão põe-se relativamente aos médicos que não declarem
o direito de objecção de consciência relativamente à consulta médica de
informação.
Trata-se de uma consulta médica para a qual têm a mesma
habilitação legal tanto os médicos que declarem ser objectores de consciência
para o acto abortivo, como aqueles que não façam essa objecção de consciência.
A consulta de informação não é uma consulta para a
realização do aborto. Daí que a descriminação feita pelo legislador apenas
possa fundar-se numa suspeita de que os médicos objectores de consciência para
o acto de realização do aborto, para a morte do feto, não tenham capacidade ou
competência para cumprir o programa legalmente
estabelecido para a consulta de informação.
Ora, os termos em que pode fundar-se a objecção de
consciência para um e outro dos referidos actos são completamente diferentes,
não se vendo que exista razão, para além da suspeição legal discriminatória,
para cercear, relativamente a esse acto médico, o exercício do direito
fundamental de trabalho e de profissão e a garantia de objecção de consciência.
O dizer-se que uma tal opção do legislador corresponde como que a uma
consequência da sua posição de admitir a declaração de objecção de consciência
significa que o legislador é livre para optar entre o tudo e o nada, em matéria
de liberdade de consciência, quando o certo é que não está dispensado de um
juízo de ponderação que não conduza à diminuição do alcance do conteúdo do
direito constitucional estabelecido no artigo 41.º da Lei fundamental.
A proibição legal de intervenção do médico não objector
de consciência à consulta de informação é manifestamente desnecessária e
desproporcionada em função do programa vinculativamente estabelecido para essa
consulta e aos direitos fundamentais do médico que estão em causa.
Por outro lado, estamos perante uma discriminação
atentatória do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da
Constituição, na medida em que, estando legislativamente definido o conteúdo da
consulta de informação (donde se não possa também previsionar que o médico não
objector de consciência tome uma atitude de favorecimento ao aborto!), coloca
um e outro desses profissionais em situação diferente, efectuando por via
reflexa ou lateral – o que em si evidencia a arbitrariedade da opção, face ao
disposto no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição! – uma discriminação em
razão das convicções ideológicas proibida pelo n.º 2 daquele artigo 13.º.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Em
meu entendimento, a norma do artigo 1º da Lei n.º 16/2007 de 17 de Abril, na parte
em que altera o artigo 142º do Código Penal, impondo a não punibilidade da
interrupção da gravidez se realizada "por opção da mulher, nas primeiras
10 semanas de gravidez", ofende o disposto no n.º 1 do artigo 24º da
Constituição por desproteger totalmente a vida do nascituro.
Por
outro lado, o relevo que assim é concedido, para efeito da não punibilidade, à
vontade da mulher grávida, repercute-se necessariamente na afirmação de
reprovação ínsita no próprio tipo penal genericamente previsto no artigo 140º
do Código Penal. A desvalorização desse juízo do legislador ordinário, assim
desacompanhada de quaisquer motivos a que pudessem ser concedidos efeitos
justificadores, constitui, também ela, uma ofensa directa à vinculação
constitucional de protecção do direito à vida.
Os
artigos 3º e 4º da mesma Lei n.º 16/2007 de 17 de Abril obrigam o Governo a
adoptar as providências administrativas necessárias "à boa execução da
legislação atinente à interrupção voluntária da gravidez"; na ausência que
qualquer referência às Regiões Autónomas, designadamente quanto a qualquer
procedimento prévio de concertação e
cooperação político-administrativa que a Constituição claramente exige nestas
áreas, depreende-se que o legislador ordinário admitiu que a vinculação do Governo
seria suficiente para estender a "boa execução da legislação atinente à
interrupção voluntária da gravidez" às Regiões, o que ofende claramente o
princípio autonómico decorrente do n.º 2 do artigo 6º e n.º 1 do artigo 227º da
Constituição.
Consequentemente,
votei no sentido da inconstitucionalidade das referidas normas.
Carlos Pamplona de
Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei
vencida quanto à alínea b) da Decisão, por entender que lesam o disposto no
artigo 24.ºda Constituição as normas constantes dos artigos 1º, na parte em que
introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do nº 4 do artigo 142.º do Código Penal, 2.º, nº 2, 6.º,
nº 2, todos da Lei nº 16/2007.
Foram
os seguintes, os meus motivos.
1. O Tribunal chegou, quanto a este ponto, a
um juízo maioritário de não inconstitucionalidade a partir de algumas premissas
metodológicas que subscrevo inteiramente. A primeira é a da total novidade da questão que agora lhe foi colocada. Também eu
entendo que o Tribunal teve aqui que resolver um problema novo, face
ao já decidido na jurisprudência anterior sobre o tema (Acórdãos n.ºs 25/84,
85/85, 288/98 e 617/06). Antes do mais, novo em razão
do objecto do juízo, por estar agora em
julgamento, e pela primeira vez, o sistema legal
finalizado do chamado “modelo de prazos”, em que se definem as condições
substantivas e procedimentais que determinam a não punibilidade da interrupção
voluntária da gravidez, quando realizada por opção da mulher durante as dez
primeiras semanas. Depois, problema novo em razão
do fundamento do juízo, porque a questão nuclear que houve que resolver foi a
de saber se esse “modelo de prazos”, assim finalizado em sistema legal, continha ou não elementos suficientes de protecção do bem
jurídico que é tutelado pelo artigo 24.º da Constituição (vida pré-natal). Nada
disto esteve em discussão na anterior jurisprudência do Tribunal; tudo isto foi
o que, de essencial, agora se teve que resolver. O Acórdão de que dissenti
esclarece bem o alcance da novidade do
problema desta feita colocado ao Tribunal, pelo que subscrevo inteiramente a
premissa inicial que sustentou o seu juízo.
Como
subscrevo a premissa seguinte, relativa às dificuldades específicas com que se
defronta o Tribunal sempre que é chamado a julgar da suficiência ou insuficiência
do cumprimento, por parte do legislador ordinário, de deveres objectivos de
protecção de bens jusfundamentais. Também eu concordo que tal juízo é
estruturalmente diverso daquele outro que se faz sempre que estão em causa, não
deveres estaduais positivos de proteger e de
promover certos bens, mas deveres estaduais negativos de
não perturbar ou de não afectar posições jurídicas subjectivas. Quanto a estes
últimos, é certo que ficam proibidas todas as acções que
afectem ou perturbem; em contrapartida, e quanto aos primeiros, a
Constituição não ordena que se adoptem todas as medidas de protecção ou
promoção para o caso pensáveis ou possíveis. Ampla é, portanto, a liberdade de
conformação do legislador quando escolhe o meio adequado para proteger ou
promover: como se diz no Acórdão (nº 11.4.3.), “[q]uando são adequadas
diferentes acções de protecção ou promoção, nenhuma delas é, de per si,
necessária para o cumprimento desse mandato: a única exigência é que se realize
uma delas, pertencendo a escolha ao Estado.”
O
problema está, porém – e é a partir daqui que divirjo da orientação maioritária
–, no facto de o Tribunal se não poder demitir da
tarefa que especificamente lhe cabe, e que é a de julgar quais são as acções de
protecção ou de promoção que são adequadas e quais as que o não são. Para tal, é necessário que se tenha algum critério a partir
do qual se possa aferir a “adequação” das acções
às finalidades de protecção; é necessário
que se tenha algum tópico orientador, algum instrumento conceitual que permita
detectar as insuficiências de protecção, caso
elas existam. Se assim não for, o Untermassverbot, a
proibição do deficit, torna-se coisa
vazia, como coisa vazia e destituída de conteúdo se tornarão os deveres de protecção. Deveres que não sejam justiciáveis, ou
sindicáveis pelo Tribunal, não são deveres.
Ora,
em meu entender, o Acórdão acabou por não revelar um critério a partir do qual
se pudesse medir a existência, ou inexistência, de um deficit
legislativo de protecção. É certo que, como aí se
diz (n.º 11.4.17), “cumpre reconhecer que o julgador não dispõe de um
instrumento de mensuração exacta do grau de protecção exigível para o
cumprimento, pelo Estado, do correspondente dever”. No entanto, tal não implica
que se só se justifique uma pronúncia de inconstitucionalidade em caso de manifesto erro de avaliação do legislador, detectado a
partir de critérios de evidência. Enquanto
critério de identificação da existência, ou inexistência, de deficit de protecção legislativa esta formulação parece-me
claramente insuficiente. E parece-me antes que, sempre que o legislador estiver
constitucionalmente obrigado a proteger certo bem, tal
significa que as medidas a adoptar deverão propiciar a mais ampla protecção que
seja fáctica e juridicamente possível, i.e., que não seja incompatível com
outros princípios ou valores constitucionais que se devam também prosseguir.
Uma medida que fique aquém do
fáctica e juridicamente possível – isto é, que não confira a mais ampla
protecção que seja ainda compatível com outros princípios e valores
constitucionais – não é, em princípio, “adequada”, pois não concretiza o
mandato de concordância prática entre diferentes bens jusfundamentais a que
está adstrito o legislador – tanto aquele que restringe, quanto aquele que protege
ou promove.
2. É
para mim claro que, no caso, o legislador estava obrigado a proteger o bem
jurídico vida (vida pré-natal), tutelado pelo artigo 24.º da CRP. É para mim
também claro que, no sistema finalizado do “modelo de prazos” que a Lei nº
16/2007 instituiu, o lugar “sistémico” da protecção seria aquele conferido pelo
aconselhamento dispensado antes da
prática, no quadro do serviço nacional de saúde, do acto de interrupção
voluntária da gravidez. Aparentemente, terá sido também essa a ideia que norteou
o legislador, pois só ela pode explicar que se tenha elevado a realização da consulta obrigatória a que se refere a alínea b) do nº 4 do
artigo 142.º do Código Penal, na redacção dada pelo artigo 1º da Lei, a
condição de impunibilidade do acto de interrupção da gravidez. Paradoxalmente,
porém, a consulta obrigatória, que deveria ser o
lugar sistémico para o cumprimento do dever estadual de protecção da vida –
tornando-se por isso aberta em relação ao
resultado, por dela não dever resultar nenhuma imposição da conduta
futura da grávida, mas comprometida quanto aos
seus próprios fins, por implicar um reconhecido empenhamento do
Estado quanto à desincentivação do aborto –, vem a ser regulada pelo legislador
como se, afinal, de um estrito procedimento formal se tratasse (para além de
nela não poderem estar presentes, por proibição decorrente do nº 2 do artigo 6º
da Lei, os médicos objectores de consciência).
Para
a posição maioritária, que fez vencimento no Tribunal, este mero procedimento, a que fica reduzida a consulta
obrigatória, constitui só por si protecção suficiente e eficiente do bem
jurídico protegido pelo artigo 24.º da CRP, pelo que com ela se cumprem os
deveres que, por força da norma constitucional, impendem sobre o legislador
ordinário. O Tribunal entendeu maioritariamente assim por duas razões
fundamentais. Primeira, porque considerando, como já se viu, que os deveres de
protecção só são sindicáveis se, à evidência, houver manifesto erro de
avaliação do legislador, acaba por concluir que o nível de protecção exigida é
o mínimo, e sempre o mínimo possível,
nível esse naturalmente satisfeito por um mero procedimento formal. Segunda,
porque conclui também que seria incompatível com o outro princípio ou valor
constitucional que coexiste, no caso, com a necessidade da tutela da vida – a
dignidade e a autodeterminação da mulher grávida, e a formação da sua decisão
livre, consciente e responsável – qualquer modelo
institucional que pudesse ser vivido ou sentido pela mesma grávida como
juízo externo pressionante da sua conduta, ou
como uma intrusão no seu processo interno de
decisão.
Com
nenhuma destas razões posso eu estar de acordo. Não estou de acordo com a
primeira porque penso, como já deixei descrito, que o critério de identificação
da existência de um deficit de
protecção legislativa se não confunde com o mínimo de protecção a
que se refere o Acórdão. Não estou de acordo com a segunda porque penso que,
levada às últimas consequências, a ideia da necessidade de defesa da
grávida perante quaisquer juízos [institucionais] externos pressionantes da sua conduta corresponde a um
outro tratamento paradigmático da questão, que nem sequer chega a equacionar a
existência de deveres estaduais objectivos de protecção do bem vida. De acordo
com este modelo paradigmático – que é o do Roe vs. Wade –
a não punibilidade do acto de interrupção da gravidez (num certo período de
tempo) depende apenas de uma e só de uma condição: a vontade da gestante. Por
isso mesmo, na sua privacy, tal vontade é e deve ser preservada de quaisquer juízos
externos “pressionantes” de condutas. Não é, porém, esse o paradigma de que
parto; nem é tão pouco esse o paradigma de que parte o próprio Tribunal na
formulação do seu juízo, já que tal implicaria, quer uma ruptura – que expressamente
se recusou – com todo o lastro jurisprudencial anterior, quer uma diversa
equação inicial do problema que havia a resolver.
Por
estes motivos, concluo, diversamente da maioria, que, ao desenhar, como
desenhou, o sistema decorrente dos artigos 1º, 2º e 6º da Lei nº 16/2007, o
legislador ordinário não cumpriu o deveres a que está vinculado nos termos do
artigo 24.º da Constituição.
Maria
Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO
DE VOTO
1. Não acompanhei a pronúncia do Tribunal, quanto à
alínea b) da decisão, tendo-me antes pronunciado pela inconstitucionalidade
material, por violação do artigo 24º da Constituição, das normas constantes do
artigo 1º, na parte em que introduz a alínea e) do nº 1 e a alínea b) do nº 4
do artigo 142º do Código Penal, 2º, nº 2,
e 6º, nº 2, da Lei nº 16/2007.
Cumpre agora explicitar, ainda que em termos
necessariamente breves, as razões da minha divergência com a posição que fez
vencimento, que se manifestam quer na interpretação e implicações do parâmetro
constitucional quer na apreciação do complexo normativo sujeito à apreciação do
Tribunal.
2. Em sede de interpretação do parâmetro constitucional
considero, com o acórdão, que a protecção que o artigo 24º da Constituição dá
ao direito à vida (ao referir, no seu nº1, que “a vida humana é inviolável”)
abrange não só a vida humana já nascida mas também aquela que se desenvolve
intra-uterinamente. Nestes termos, entendo que se impõe ao Estado a tomada em
consideração do embrião e do feto, pelo que se lhe encontra vedada a possibilidade
de se alhear juridicamente do seu destino, conformando a ordem jurídica sob um
princípio de atribuição ou de reconhecimento de carácter exclusivamente pessoal
ou privado à decisão de abortar, subtraindo-a a toda a forma de influência de
orientação que o Direito é susceptível de proporcionar. O que implica o
reconhecimento de que, como qualquer outro dever de protecção
constitucionalmente estabelecido, também o que é imposto pelo artigo 24º, nº1,
da Constituição é tanto negativo como positivo, gerando para o Estado não
apenas o dever de omitir todas as acções susceptíveis de destruir ou afectar
negativamente a vida intra-uterina, como também o de participar e intervir,
promovendo-a e protegendo-a contra intervenções arbitrárias de terceiros, sem exclusão
das que possam proceder da própria gestante. Revestindo tais deveres natureza
indeterminada, e sendo por isso a forma como os órgãos do Estado os exercem por
eles decidida sob a sua própria responsabilidade, o problema do controlo da
constitucionalidade do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez
até às dez semanas de gestação condensado no bloco normativo formado pelos
preceitos ora sob apreciação apresenta-se como um problema de verificação e
sindicância do cumprimento do dever, jurídico-constitucionalmente imposto, de
tutela da vida intra-uterina, através de normas de protecção procedentes dos
instrumentos disponibilizáveis pelo direito ordinário.
No seguimento das posições afirmadas pela jurisprudência
deste Tribunal, reitera agora o acórdão que a vida intra-uterina
constitucionalmente tutelada o é como bem constitucionalmente protegido, sem
que tal envolva a aplicação do regime constitucional especial do direito à
vida, que não valeria assim directamente para a vida intra-uterina e para os
nascituros. Cremos, no entanto, e neste ponto não acompanhamos já o acórdão,
que a distinção assim feita não importa verdadeiramente consequências
relevantes para a análise a que importa proceder, uma vez que o reconhecimento
da existência de um imperativo jurídico-constitucional de protecção dispensa a
verificação do título a que tal protecção é assegurada, pois que, quer envolva
a atribuição de um verdadeiro direito
subjectivo quer se trate da (simples) protecção como valor ou bem,
sempre o Estado se encontra vinculado à edição de normas de promoção e
protecção através da mobilização dos instrumentos de direito ordinário (assim
também Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e crime – Uma
perspectiva da criminalização e da
descriminalização, Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 366).
E se
não cremos ser relevante uma tal distinção quanto à afirmação da existência do
mandado jurídico-constitucional de protecção da vida intra-uterina, também dela
não retiramos quaisquer consequências agora quanto à questão da idoneidade de
um particular meio de protecção para o cumprimento daquele mandado. Na verdade,
esse juízo de idoneidade sempre pressupõe a compreensão prévia da natureza e
conteúdo do bem a tutelar, e este nunca poderá ser visto como simples
idealidade, mera representação do espírito ou produto do pensamento, havendo
antes de lhe ser reconhecida uma preponderante dimensão ou espessura ôntica,
integrado por uma determinada realidade cognoscível objectivamente, esta por
sua vez constituída, segundo os dados da ciência, por todos e cada um dos seres
humanos intra-uterinamente viventes, qualquer deles já portador de uma
identidade genética definida, e, nessa sua unicidade, singularmente referenciável
e diferenciável dos demais.
O sistema de protecção a organizar para a vida
intra-uterina, como quer que aquela se conceptualize, sempre exigirá por isso
uma estrutura diferenciável da que porventura possa servir à tutela de bens
jurídico-constitucionais de natureza transindividual, metaindividual ou até
mesmo difusa – por, ao invés daquele, se caracterizarem quer pela circunstância
de se reportarem a uma pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos
ou portadores em termos tais que não possibilitam a identificação de todos
individualmente, quer pelo elemento de indivisibilidade, no sentido de que o
objecto da realidade que os constitui não comporta a partilha entre os seus
titulares, pertencendo como um todo a todos eles em igual medida, sem admitir a
atribuição exclusiva a qualquer deles. Diferentemente, no caso da vida
intra-uterina, o bem jurídico a tutelar retira a sua validade e razão de ser
constitucionais da circunstância de se reportar a vidas humanas tão
diferenciáveis e independentes entre si que apenas lhe sobra em comum a
circunstância de se encontrarem em estado embrionário ou fetal de
desenvolvimento.
O
que implica a conclusão de que sempre será constitucionalmente inviável a
construção de um sistema de tutela em que, para as primeiras dez semanas de
gravidez, esta resulte de mera projecção retrospectiva da protecção garantida
ao(s) período(s) de gestação considerado(s) subsequentemente. Ao contrário,
há-de entender-se que a posição jusfundamental irradiante que, como
consequência da protecção constitucional da vida intra-uterina, há que
reconhecer a cada ser intra-uterinamente vivo gera para o Estado o dever de
organizar e conformar a ordem jurídica de uma tal maneira que a toda a
expressão de vida embrionária ou fetal, independentemente da fase ou momento do
processo de gestação em que se situe, seja facultado, e portanto também durante
as dez primeiras semanas, através da mobilização do direito ordinário, um nível
mínimo de protecção efectiva. O que exige que, a fim de não desconsiderar a
densidade ou espessura ônticas do bem jurídico-constitucional a tutelar, os
instrumentos de tutela disponibilizados, podendo embora exprimir uma forma de
protecção diferenciada e até progressiva ao longo da gestação, disponham sempre
e em qualquer caso de referencial minimamente antropocêntrico. Reconhece-se
assim que o desenvolvimento do processo de gestação constitui um ponto de
partida constitucionalmente viável para a instituição de um modelo de tutela
progressiva, exprimindo-se aqui uma gradualidade, não na qualidade ou valor do
objecto a tutelar, mas sim, e decisivamente, na relação de adequação entre o
meio de protecção a mobilizar e a realidade existencial a que se dirige a
tutela.
Em
face do que se pode dizer que o Estado, dentro da margem de conformação que lhe
é reconhecida, se encontra assim obrigado a lançar mão de um instrumento de
direito ordinário que assegure ao bem em causa uma protecção eficiente, sem o
que estará ferido o princípio da proibição de insuficiência ou do défice de
protecção.
3. A análise do carácter eficiente dessa protecção só
poderá fazer-se de forma consistente em presença dos dados fornecidos pela
ciência e tendo em atenção o critério da legitimidade da intervenção punitiva
tal como é hoje de resto consensualmente entendido pela ciência do direito
penal.
3.1 Os dados da ciência dão, actualmente como certa a ideia de que a fusão
dos dois gâmetas dá lugar a um «novo organismo cujo programa de vida e
desenvolvimento se não identifica com o dos seus progenitores». Inversamente,
«cada novo ser concebido recebe uma combinação completamente original que não
se havia produzido antes e que nunca mais voltará a produzir-se»,
encontrando-se gravado na primeira célula do novo ser vivo «o programa que
organiza depois todas as células desse organigrama e que formarão parte da sua
unidade».
«Com a união das duas células sexuais estabelece-se um
novo programa, um genotipo distinto do de cada um dos progenitores, que se
mostra activo desde o primeiro momento, não obstante esta actividade se vá
desdobrando gradualmente».
Será
«sob a influência directiva e perfeitamente ordenada desta espécie de “centro
de controlo” que constitui o genotipo» que se formará o novo organismo, numa
espécie de “auto-governo biológico”».
«Neste desdobramento – a ontogenése - vão-se formando uma série de fases em que a
seguinte não elimina a anterior, antes a pressupõe: situa-se sobre ela,
assimilando-a. Todo ele segundo a particular forma de autopossessão constituída
pelo genotipo do zigoto» (A. Sarmiento, G. Ruiz-Perez e J.C. Martin, Ética y genética, p.41-43).
Conforme se pode, pois, verificar, sem exceder o âmbito
da sua competência a ciência atesta hoje que um embrião derivado da união dos
dois gâmetas é, desde o primeiro momento, um ser da espécie humana distinto da
mãe – e não uma parte dela –, com um programa genético próprio e
originariamente diferenciado.
No contexto da resolução do vasto problema aqui
recolocado, à ciência não competirá certamente dizer mais do que isto.
Não lhe competirá, designadamente, definir o alcance
ético ou jurídico dos dados que proporciona, esclarecer o seu significado ou
fornecer as valorações que são próprias do Direito (neste sentido, cfr. Acórdão
n.º 617/2006).
Mas o que está ainda no âmbito da sua competência afirmar
serve para comprometer, aos olhos de quem tenha de se ocupar de tais questões,
a possibilidade de uma
visão integralmente despersonalizante do fenómeno ou, pelo menos,
despersonalizante ao ponto de implicar a desconsideração da existência de uma
situação de alteridade, excluindo a compreensão do feto como outro.
Assim,
se certo é que à ciência não caberá fornecer, ainda que por mera dedução
lógica, o conceito de pessoa (cfr. Acórdão n.º617/2006), a informação que dela
se recolhe não deixará de condicionar a aceitabilidade, mesmo num plano
pré-constitucional, de teses que, tal como a defendida por Luigi Ferrajoli,
procuram responder ao problema do estatuto do embrião e do feto na linha da
defesa da ideia segundo a qual «o embrião é merecedor de tutela se e só quando pensado
e desejado como pessoa pela mãe».
Quando se trata de estabelecer a relevância normativa
atribuível aos dados biológico-cientificos no âmbito da problemática
desenvolvida em torno da tutela da vida pré-natal, duas afirmações parecem consensuais:
a de que, por um lado, o ordenamento não pode prescindir nem ignorar as
indicações da ciência, mas deve orientar-se, no mínimo, de forma compatível com
elas; e a de que, pelo outro, tais dados não têm carácter
prescritivo-vinculante, não substituindo, conforme acima se disse já, os juízos
e as valorações que são próprios do Direito (cfr. Kolis Summerer, Le nuove frontiere della tutela penale della vita prenatale,
Rivista italiana di diritto e procedura
penale, 2003, Fasc. 4 p.1258).
Partindo de tais postulados, se tenderá a recusar-se a
possibilidade de uma fundamentação exclusivamente biológica para o
solucionamento das questões relativas, quer ao merecimento e à necessidade de
tutela da vida pré-natal, quer, em especial, à natureza do meio ou instrumento
a mobilizar para o efeito, do mesmo modo tenderá a aceitar-se que o
reconhecimento, cientificamente atestado, de que o embrião é um ser da espécie
humana distinto da mãe que o suporta, ao conferir, também pelo lado daquele,
uma dimensão definitivamente ontológica ao problema, debilita a viabilidade
normativa de construções que subordinem o reconhecimento do eventual grau de
“pessoalidade” atribuível ao embrião à coincidente representação que dele faça
a mãe, apenas admitindo a primeira onde a segunda esteja presente.
Por idêntico risco de quebra da cadeia de sentido de que
participam os dados biológico-científicos, os mesmos postulados tenderão a
comprometer ainda a possibilidade, colocada agora no plano de uma abordagem
penal do fenómeno, de inscrição do problema da tutela da vida pré-natal no
capítulo recorrentemente dedicado à discussão da legitimidade da intervenção
penal no domínio das puras violações morais ou de proposições meramente
ideológicas, aqui consensualmente contestada com fundamento,
entre outros, nos
princípios da neutralidade moral, ideológica
e cultural do Estado, do
pluralismo da sociedade tolerante ou da laicidade do ordenamento
jurídico-constitucional (cfr. Figueiredo Dias, Direito
Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, ps.124-125).
3.2.
Se, no plano das ciências da natureza, as modernas possibilidades de observação
e estudo do feto desde a primeira fase da gravidez vêm favorecendo o
reconhecimento de uma “terceira vida” e de um novo sujeito, já no plano da
ciência jurídica, mais propriamente no âmbito da reflexão desenvolvida em torno
da função do direito penal, não se registam sinais de retrocedimento na defesa
da chamada concepção teleológico-funcional e racional, prevalecendo consequentemente a ideia de que tal função só
poderá consistir na tutela subsidiária ou de ultima ratio
de bens jurídicos dotados de dignidade penal em consonância com o modelo
valorativo jurídico-constitucional e cuja lesão se revele digna e necessária de
pena (neste sentido, Figueiredo Dias, ob. cit., p.113 e ss.)
No actual estado do discurso sobre a legitimidade da
intervenção penal e sua justificação, a asserção segundo a qual não pode haver
criminalização onde se não divise o propósito de tutela de um bem
jurídico-constitucional subsiste como elemento de um binómio completado pela
negação da validade da proposição inversa: a de que sempre que exista um bem
jurídico digno de tutela penal aí deve ter lugar a intervenção correspondente
(ob. cit. p.127).
No plano da explicitação dos juízos rectores da
legitimidade das opções de incriminação, assiste-se, pois, na generalidade da
doutrina, à estabilização de uma já consolidada tendência para, em associação e
complemento ao critério do bem jurídico, atribuir ao direito penal a natureza
de ultima ratio da política social,
reafirmando-se a natureza definitivamente subsidiária da respectiva intervenção
e relegando-se esta para o plano das situações em que os outros meios de
política social, em particular de política jurídica não penal, se revelem insuficientes
ou inadequados. Justamente no que diz respeito a esta última categoria,
regista-se ainda a propensão para a ela reconduzir as hipóteses em que a
criminalização de certos comportamentos se revele, na prática, factor de muitas
mais violações do que aquelas que é susceptível de evitar (ob. cit. p.128).
Em
consonância com tais postulados, assiste-se, no âmbito do pensamento
desenvolvido em torno do sentido e limites da pena estatal, à subsistência da
afirmação dos princípios da subsidiariedade e da efectividade, definidos, na
senda das propostas de Liszt, a partir das características da necessidade e da
idoneidade da sanção penal: deverá recusar-se a possibilidade do castigo, por
falta de necessidade, quando outras medidas de política social ou as próprias
prestações voluntárias do delinquente garantam uma suficiente protecção dos
bens jurídicos e, por falta de idoneidade, quando, mesmo que se não disponha de
possibilidades mais suaves, a pena se revele político-criminalmente inoperante
ou mesmo nociva (apud Claus Roxin, Problemas básicos del derecho penal, Biblioteca Juridica de
Autores Españoles y Extranjeros,1976,
p.44).
No âmbito das mais recentes aproximações sociológicas à questão
criminal, a (in)eficácia da sanção aparece, por outro lado, ligada à ideia de
consenso social.
As teorias desenvolvidas em torno da relação entre
consenso social e sistema de direito penal apontam para a atribuição ao
primeiro de uma posição central no conjunto das razões que determinam a
observância da lei (cfr. Enzo Musco, Consenso e legislazione
penale, Rivista
Italiana di Diritto e Procedura Penale,
Fasc.1, 1993, pg.81 e ss.) e, no desenvolvimento desta perspectiva, para a
conclusão segundo a qual da taxa de consenso conseguido pelo Estado em torno
das suas ofertas de pena (ou opções de incriminação) dependem as chances de
garantir a validade sociológica do modelo comportamental encorajado com o
instrumento penalísitco (cfr. Carlo Enrico Paliero, Consenso
sociale e diritto penale, Rivista Italiana di Diritto e Procedura
Penale, Anno XXXV, fasc. 3, p. 849 e ss.).
No domínio das teorias sociológicas da criminalização
primária, desenvolvem-se compreensões da dicotomia necessidade de tutela/
exigência de pena que rejeitam a existência de uma qualquer relação de
suposição necessária, apontando-se inversamente para a ideia de que o consenso
social, se se condensa essencialmente numa necessidade de tutela, pode ou não
converter-se numa exigência de pena.
De acordo com tais teorizações, a necessidade de tutela
em que o consenso se exprime refranger-se-á quando o instrumento de tutela a
mobilizar seja previsivelmente de natureza penalística, projectando-se em duas
possíveis e diversas direcções: tutela com a pena e através do direito penal,
por um lado; e tutela perante a pena e o direito penal, por outro.
No desenvolvimento de tal ponto de vista, assiste-se à
formulação de conclusões segundo as quais, nos casos em que, relativamente a um
determinando modelo comportamental, a colectividade se tenda a identificar
prevalecentemente com a figura da vítima, o pedal do consenso social
premir-se-á essencialmente em direcção à efectividade, favorecendo a conversão
da necessidade de tutela numa demanda de criminalização. Inversamente, quando a
comunidade tenda a identificar-se prevalecentemente com o autor de um possível
conflito formalizado ou a formalizar segundo o modelo penalístico, o consenso
convergirá sobre o pedal da garantia (e do garantismo), exigindo maior tutela
diante do direito penal e dos seus meios lesivos para a liberdade individual –
propender-se-á, neste caso, para exigir maior limitação e maior controlo do
poder punitivo estadual (cfr. ob. cit., ps. 872-874).
3.3. O ambiente
em que as sociedades contemporâneas são chamadas a (re)pensar os problemas
concernentes à tutela da vida pré-natal, é, pois, complexo e plurisignificante:
nele confluem e coexistem dados, postulados e proposições colocados pelas
teorias produzidas no âmbito das diversas áreas do conhecimento, os quais,
favorecendo múltiplos pontos de vista sobre o problema, abrem espaço ao
desenvolvimento, agora no plano de uma abordagem mais próxima, quer das
perspectivas que retiram da informação científica e genética o essencial do
apoio para a reivindicação, em matéria de política legislativa, de um discurso
em torno dos fetal rights – compreendendo este
teorizações acerca do direito do feto a nascer, a nascer são, a não sofrer
danos e a ser curado (cfr. Kolis Summerer, ob. cit, p.1247) -, quer daquelas
que, emergindo da ciência do direito penal, mais propriamente do capítulo
integrado pela discussão em torno da qualidade dos instrumentos de tutela,
reafirmam um paradigma da intervenção penal radicado na função de tutela
subsidiária dos bens jurídico-penais, aprofundando a distinção entre
necessidade de tutela e exigência de pena.
Todas estas referências de sentido, contribuindo para
aumentar o grau de complexidade das
relações entre os sujeitos envolvidos e entre cada um deles e o Estado – aqui entendido
como centro de imputação de actividade jurídica e, nesta acepção, como titular
oficial do poder punitivo –, projectam,
no plano normativo, novas linhas de tensão, as quais, se para o legislador
ordinário implicam a (re)definição de equilíbrios no interior do espaço de
discricionariedade e conformação que lhe é próprio, já no plano constitucional
não poderão deixar de inscrever-se, conforme se verá, no âmbito da chamada
teoria dos deveres de protecção.
4.
Assim perspectivado o problema, temos para nós que o sistema de direito
ordinário delineado pela Lei nº 16/2007 não fornece uma protecção suficiente da
vida intra-uterina nas primeiras dez semanas de gestação, situando-se por isso
aquém do limite colocado pela proibição do défice de protecção, o que acarreta
a sua desconformidade constitucional.
A
demonstração deste ponto implica que nos detenhamos um pouco na caracterização
do regime que, em substituição da punibilidade de tal comportamento, o
legislador estabeleceu para a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou
sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente
reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando realizada, por
opção desta, nas primeiras dez semanas de gravidez.
Assentando
na não intervenção do direito penal como mecanismo de protecção até às dez
semanas de gestação, o modelo legal sub judicio procede da ideia de que, não obstante o efeito
de indiciação produzido pela especial relevância axiológica do bem
jusfundamental a proteger, a indagação a que obriga o critério da necessidade e
as representações a que a mesma conduz retiram evidência à necessidade de
intervenção do direito penal, abrindo espaço à afirmação de meios alternativos
de tutela. O que resultaria da circunstância de, no caso de interrupção
voluntária da gravidez medicamente realizada, estar em causa proteger a
existência embrionária não de arbitrárias intervenções de qualquer terceiro,
mas do específico e particular perigo de lesão que, surgindo no contexto de uma
gravidez indesejada, procede da iniciativa da própria gestante. Neste contexto,
justificar-se-ia o recurso a eventuais soluções de tutela preventiva, assentes
numa estrutura comunicacional de maior proximidade, designadamente as que se
baseiam num princípio de auto-contenção do direito penal através de um
procedimento orientado jusfundamentalmente, abalando-se a apriorística
consideração de que, tratando-se do favorecimento espontâneo de comportamentos
compatíveis com a prossecução da gravidez, só a punição penal poderia assegurar
o mínimo de tutela constitucionalmente imposto.
4.1.
Em concreto, avança-se um regime legal em que a exclusão da punibilidade da
interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua orientação, em
estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, quando realizada
por opção e mediante o conhecimento da mulher grávida, nas primeiras dez
semanas de gravidez, depende de a sua realização ter tido lugar, no mínimo,
três dias depois da realização de uma primeira consulta destinada a facultar à
mulher grávida o acesso a informação relevante para a formação da sua decisão
livre, consciente e responsável. Informação que abrange as condições de
efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e
suas consequências para a saúde da mulher, as condições de apoio que o Estado
pode dar à prossecução da gravidez e da maternidade, e a disponibilidade,
durante o período de reflexão, quer de acompanhamento psicológico, quer de
acompanhamento por serviço social.
Situada
assim no interior de um sistema de prazos com aconselhamento obrigatório de
tipo meramente informativo, a protecção da vida intra-uterina tida em vista
pelo dispositivo legal resultante da admissão da possibilidade de algumas das
informações prestadas à gestante e a comunicação dos eventuais apoios por parte
do Estado virem a concorrer para a manutenção da gravidez e consequente
preservação do embrião ou do feto radica no estatuto da consulta que
obrigatoriamente precede a eventual concretização da interrupção, em especial
no procedimento que a informa. Assume-se que o procedimento desta forma
instituído conduzirá ao aumento da probabilidade de um resultado
jusfundamentalmente conforme, sendo susceptível de provocar um incremento das
possibilidades de obtenção de um resultado favorável à prossecução da gravidez.
Só
que o sistema instituído pelo diploma, na sua concreta modelação, não consente
que se presuma a ampliação da probabilidade de um resultado compatível com a
preservação da vida intra-uterina, pelo menos na medida necessária para ter por
cumprido em suficiente medida o imperativo constitucional de tutela. Tal
resulta desde logo do elenco de informações a prestar à gestante no âmbito da
consulta. Na verdade, as primeiras – relativas às condições de efectuação, no
caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas
consequências para a saúde da grávida – traduzem-se em mera reprodução, em sede
de interrupção voluntária da gravidez, do regime do consentimento esclarecido
para acto médico que vigora no direito da medicina em geral, sendo aplicável a
toda e qualquer intervenção e tratamento médico-cirúrgico. O que se reforça com
a compreensão densificada do conteúdo do dever de esclarecimento hoje
perfilhada na doutrina, em especial pela ideia, consensual aí, de que só é
eficaz o consentimento assente em esclarecimento bastante e este pressupõe a
representação correcta de todas as circunstâncias relevantes para a motivação
da decisão de aceitação ou recusa de uma intervenção do género da indicada
(cfr. Costa Andrade, Comentário Conimbricense
do Código Penal, t. I, p. 396). Pelo que se impõe a conclusão de
que, mesmo considerando as explicitações relativas à indicação do tempo da
gravidez e das consequências para a saúde física e psíquica da mulher
(constantes, respectivamente das alíneas a) e c) da Portaria nº 741-A/2007, de
21 de Junho), continua a não ser detectável no regime jurídico sob avaliação
qualquer elemento superlativamente diferenciador da disciplina que vigora no
âmbito das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos em geral,
designadamente um elemento que, procedendo da consideração da presença do
embrião ou do feto, se apresente funcionalmente apto ao cumprimento do mandado
jurídico-constitucional de tutela.
E o
mesmo se diga das restantes indicações que segundo o regime legal vigente,
deverão ser proporcionadas à grávida, e que vão desde o conhecimento das
condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e da
maternidade, à disponibilidade, durante o período de reflexão, quer de
acompanhamento psicológico quer de acompanhamento por técnico de serviço
social.
Embora se não possa excluir, num juízo de
prognose, a eventualidade de certas destas informações, ou mesmo todas no seu
conjunto, poderem contribuir, designadamente em associação com outras
circunstâncias particularizáveis em cada caso, para o enfraquecimento – ou até
mesmo para a anulação – de uma predisposição originária favorável à interrupção
da gravidez, o certo é que, de um ponto de vista teleológico e dogmático, do
que se trata aqui é de elementos ou factores externos à modelação da decisão
que se coloca perante as alternativas representadas pela prossecução da
gravidez e a concretização da interrupção e, portanto, cuja possível influência
naquele primeiro sentido é de tal modo longínqua, contingente e difusa que não
chega para exprimir um qualquer consistente nível de comprometimento do sistema
de direito ordinário na realização do mandamento jurídico-constitucional de
protecção da vida intra-uterina.
4.
2. Adiante-se que se o padrão seguido na modelação do conteúdo da consulta
traduz uma opção normativa insuficiente para poder reportar o procedimento
instituído pela Lei nº 16/2007 ao cumprimento do dever constitucional de
protecção da vida intra-uterina, o critério em que assentam as regras definidas
para a determinação de quem nela pode participar compromete positivamente tal
possibilidade.
Da
norma do artigo
6º, n.º2, da Lei n.º16/2007 – cuja constitucionalidade, de resto, vem
autonomamente impugnada – resulta que os médicos ou demais profissionais
de saúde que invoquem a objecção de
consciência relativamente a qualquer dos
actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez
não podem participar na consulta prevista na alínea b) do
n.º 4 do artigo 142º do Código Penal ou no
acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar
durante o período de reflexão.
Qualquer
tentativa de captação da finalidade prosseguida pelo legislador através deste
preceito jurídico, singularmente ou no contexto da unidade do conjunto em que
se insere, conduzirá sem particular esforço interpretativo à conclusão de que a
exclusão da possibilidade de participação de médicos objectores de consciência,
quer na consulta que precede a concretização da interrupção da gravidez, quer
no acompanhamento que a gestante possa entretanto solicitar – o que tenderá, de
resto, a suceder em casos de angústia, dúvida ou hesitação - é reveladora da
intenção, não apenas de isentar o procedimento previsto de qualquer propósito
de influenciar a grávida no sentido da prossecução da gravidez, como de
assegurar que essa influência não possa vir a ser exercida no interior do
sistema e através dele, designadamente por iniciativa daqueles que o legislador
presume que em tal sentido operariam, não obstante as limitações que de tal
ponto de vista não deixariam de colocar-se, pelo menos no que diz respeito à
consulta, em face da previsão do art.2º, n.º2, da Lei n.º16/2007.
Perante
o conjunto das soluções possíveis em matéria de determinação dos profissionais
habilitados para participar nos momentos de interacção do sistema com a grávida
– que vão desde a exclusão dos médicos disponíveis para a realização de
interrupções voluntárias da gravidez até ao afastamento dos médicos objectores
de consciência, passando pela admissão da possibilidade de participação de uns
e outros, isolada ou conjuntamente, – a opção normativa expressa no artigo 6º,
n.º2, da Lei n.º16/2007 traduz um critério valorativo assente na ideia de que a
grávida deve ser institucionalmente preservada de qualquer forma de ingerência
no desenvolvimento do seu processo decisório, em especial daquela que serviria
ao favorecimento de uma decisão compatível com a preservação da vida
embrionária ou fetal.
Conforme referido foi já, em
se tratando da verificação da viabilidade constitucional de uma determinado
sistema de direito ordinário na perspectiva da proibição de insuficiência, ao
juízo de constitucionalidade interessará sobretudo o índice de protecção que o
mesmo é susceptível de gerar no seu funcionamento global e conjunto.
Ora, esta norma, ao excluir a
intervenção dos médicos objectores de consciência em todos os momentos em que a
mesma poderia ter formalmente lugar, permite verificar que o procedimento a que
a anterior proibição penal cedeu lugar, não só não contem qualquer elemento
suficientemente orientado para o favorecimento de decisões espontâneas
favoráveis à prossecução da gravidez, como apresenta opções que, por serem
apenas racionalmente compreensíveis numa lógica assente na ideia de que o
Estado deverá abster-se de fornecer à gestante qualquer indicação de valor e actuar como se o
resultado da respectiva decisão final lhe fosse naquele momento indiferente, se
apresentam positivamente
disfuncionais na perspectiva do cumprimento do
mandado jurídico-constitucional de protecção da vida intra-uterina.
5. No segundo caso por excesso, no primeiro
por defeito, as opções normativas expressas nos artigos 2º, n.º2, e 6º, n.º2,
da Lei n.º16/2007, exercem uma influência decisiva na modelação do regime
jurídico da interrupção voluntária da gravidez, convertendo-o num sistema de
regras e princípios onde, não apenas se não inclui, como parece não ter lugar,
qualquer mecanismo de conformação de condutas orientado e apto ao favorecimento
de um modelo comportamental compatível com a preservação da vida intra-uterina.
O
ponto de referência em que, por efeito de tais normas, o sistema é colocado é,
por isso, não apenas o de um espaço livre do direito penal (Rechsfrei
Raum) mas o de um espaço vazio de direito (Rechstleer
Raum) – um espaço em que não existe qualquer indicação normativa e o
acto de interromper a gravidez fica subtraído a toda a forma de influência e
orientação pelo Direito.
Num sistema normativo em que a
auto-contenção do direito penal se faça pela via da imposição de um
procedimento orientado jusfundamentalmente, o direito penal, embora não
disciplinando, na realidade orienta porque a exclusão da ameaça da pena tem
como indispensável condição o acatamento e a observância de um iter procedimental apto a fomentar a conformidade material
do resultado com um padrão de validade retirado do bem jurídico tutelado
constitucionalmente.
Quando assim suceda, o direito
penal continuará a exercer, embora à distância, um efeito de protecção, ainda
que por uma via alternativa à sancionatória. O seu desaparecimento de cena não
é por isso total.
Em casos como este, os
instrumentos de direito ordinário, no seu conjunto e combinada actuação,
continuarão a influenciar regulativamente a realidade no sentido da intenção
implícita no mandado jurídico-constitucional de tutela.
O sistema instituído pela Lei
n.º 16/2007, ao exprimir uma renúncia pura e simples ao direito penal como
instrumento de tutela da vida intra-uterina até às dez semanas de gestação fora do âmbito das fattispecies justificativas, quando a interrupção
resulte da opção livre da mulher e tenha
lugar em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, sem colocar como condição para essa retirada
qualquer via funcionalmente orientada e apta à realização daquele fim, suprimiu
integralmente o anterior meio de protecção sem o substituir por uma verdadeira
alternativa de tutela.
Uma vez que o mecanismo
procedimental que comprime o direito penal e o faz recuar se apresenta destituído,
quer na racionalidade das opções que encerra, quer na intencionalidade que
globalmente exprime, de qualquer aptidão para tornar sociologicamente válido um
modelo comportamental compatível com a salvaguarda da vida intra-uterina, a
disciplina jurídica instituída pela Lei n.º16/2007 vem situar a interrupção
voluntária da gravidez até às dez semanas de gestação numa zona onde o Direito
se abstém de fornecer critérios valorativos de acção e se coíbe de conformar
normativamente as escolhas.
Pela vacuidade que deste ponto
de vista encerra, a solução normativa procedente das normas dos artigos.1º, 2º,
n.º2 e 6º, n.º2, da Lei n.º16/2007 acaba por consentir aproximações à chamada
zona de normalidade social, o que coloca o regime num ponto manifestamente aquém
do limite de suportabilidade em que se traduz o princípio da proibição do
défice de protecção ou da insuficiência.
Vistas as coisas pelo lado da
gestante, tal conclusão, ao invés de se enfraquecer, ganha acrescida evidência.
Se se partir do pressuposto de
que a solução que toda a norma exprime traduz a ponderação e a valoração dos
diversos interesses que através dela se regulam, ver-se-á que ao da preservação
da vida intra-uterina só poderá contrapor-se, numa leitura conflitual do
problema, o da defesa da autodeterminação da mulher grávida e do livre
desenvolvimento da sua personalidade.
Ora, um dos indicadores da
possível violação da proibição da insuficiência no cumprimento dos imperativos
jurídico-constitucionais de tutela consiste na sobre-avaliação, no âmbito da
solução normativa dispensada, dos interesses e bens jurídicos contrapostos
(neste sentido, Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Almedina, 2003,
ps.123 e 138-139).
Ao isentar o procedimento que substituiu o anterior tipo
incriminador do propósito de influenciar a grávida no sentido da preservação da
vida intra-uterina e cuidando expressamente da exclusão da possibilidade de
nesse sentido poder vir a ser exercida qualquer forma de ingerência no
respectivo processo decisório, a solução normativa enunciada nos artigos 1º,
2º, n.º2, e 6º, n.º2, da Lei n.º16/2007 conduz à conclusão de que, mesmo que se
tratasse aí de dar expressão à tutela da autodeterminação da gestante e do seu
direito ao livre desenvolvimento da personalidade, estes estariam em qualquer
caso sobre-avaliados.
E isto porque a tutela da autodeterminação e do direito
da mulher grávida ao livre desenvolvimento da sua personalidade não carece que
se vá ao ponto de preservar a gestante do confronto institucional com orientações
de desincentivo à concretização da predisposição por si originariamente
manifestada, nem de excluir a vinculação do respectivo processo decisório a
indicações valorativas de correcção da acção.
A tutela da autodeterminação e
do direito da mulher grávida ao livre desenvolvimento da sua personalidade não
implica, em síntese, a sua radicalizada compreensão no sentido de algo próximo
do right to be left alone proclamado pela Supreme Court norte-americana que, tal como este, conduza o
Estado a deixar a grávida sozinha, isolada na privacidade da sua escolha,
quando aquela, na realidade, o não está mais.
Também deste ponto de vista –
que é o da alteridade – a modelação do sistema instituído pela Lei n.º16/2007,
revela-se manifestamente lacunosa.
Com efeito, se tal modelação
se inscreve, como à partida se viu já que pode, no espaço de liberdade de
conformação cometido ao legislador ordinário, ela acaba por dar expressão
somente a parte dos factores que convergem no contexto de reflexão que àquele
se coloca – os que provêm da ciência do direito penal –, desconsiderando
aqueles que, procedendo dos dados fornecidos pela biologia e pela genética,
apontam para uma compreensão relacional do fenómeno na base da consideração do
feto como o outro (cfr. supra nº 3.1).
6. Diga-se ainda que se a intenção de realizar o
imperativo jurídico constitucional de protecção da vida intra-uterina não é percepcionável a partir do conjunto
normativo em que o legislador consubstanciou o modelo, alternativo ao da
punibilidade da interrupção, que daquele complexo legal se depreende, o mesmo
se diga, por maioria de razão, dos outros lugares do sistema convocados pelo
acórdão como podendo ainda contribuir para o cumprimento daquele imperativo
constitucional de tutela. Diga-se desde logo que tal mobilização só teria
cabimento se, contra o que acima se sustentou, o bem jurídico-constitucional
aqui em análise fosse de natureza difusa, transindividual ou metaindividual,
reportando-se a uma pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos ou
portadores.
Simplesmente,
na presença da vida intra-uterina não é mais possível representar dessa forma o
bem jurídico a proteger de forma efectiva nem aceitar o carácter efectivamente
protector de qualquer instrumento de direito ordinário que não tenha no seu horizonte cada uma das
vidas iniciadas já. Nestes termos não é possível acompanhar o acórdão quando
reconhece eficácia protectora a instrumentos do direito ordinário pensados para
evitar gravidezes indesejadas ou para desenvolver o apoio social à maternidade.
Uma vez que nenhum destes instrumentos jurídicos é dotado de eficiente aptidão
protectiva da vida humana intra-uterina no momento em que o problema do aborto
se coloca não é o facto de serem múltiplos nem
o resultado da sua soma que permitirá atingir o nível de protecção
susceptível de cumprir o mandamento constitucional.
7. Em face do que concluímos
que, consistindo qualquer sistema numa combinação de elementos organizada de modo a que o
complexo daí resultante exprima, no seu conjunto, um conteúdo significante
unitário, proporcionado este pela ideia de um fim, aquele que procede à
definição do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez de acordo
com uma fórmula assente na exclusão da proibição penal até às dez semanas de
gestação mediante a realização prévia de uma consulta de tipo meramente
informativo na qual se encontram impedidos de participar os médicos objectores
de consciência é, com clareza, um sistema em cuja unidade se não inscreve
qualquer mecanismo orientado e apto a incrementar um modelo comportamental
favorável à prossecução da gravidez em termos suficientemente compatíveis com a
realização do mandado jurídico-constitucional de tutela da vida intra-uterina.
O
conteúdo significante que essa unidade exprime dá inversamente conta de um
pensamento que atribuí ao Estado uma posição de neutralidade valorativa nos
momentos de interacção formal com a grávida e, no limite, abstém o Direito,
enquanto instrumento de conformação normativa da vida em sociedade, de definir
um padrão de dever-ser no âmbito das “interacções humanamente significativas”
em que se inscreve o problema da interrupção voluntária da gravidez.
Tanto
basta, pois, para, entendendo desrespeitada a proibição da insuficiência no cumprimento
dos deveres de protecção da vida
intra-uterina, ter votado a inconstitucionalidade, por violação do artigo 24º,
n.º1, da Constituição, da solução normativa, contida nos artigos 142º, n.º1,
al.e), e n.º4, al.b), do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1º da
Lei n.º16/2007, 2º, n.º2, e 6º, n.º2, ambos da Lei 16/2007, consistente na
exclusão da punibilidade da realização, por opção da mulher, da interrupção da
gravidez durante as primeiras dez semanas de gestação, mediante a realização prévia
de uma consulta informativa na qual se encontram impedidos de participar, assim
como no acompanhamento a que haja lugar durante o período de reflexão, os
médicos que invoquem objecção de consciência.
Rui Manuel Moura Ramos