Acórdão n.º 428/2008
Processo
n.º 520/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam
na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Por
acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14 de Abril de 2008, foi
concedido parcial provimento ao recurso interposto pelos arguidos A.
e B.
contra o despacho do Tribunal Judicial de Guimarães, de 14 de Janeiro de 2008,
que, nos termos do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal (CPP), na
redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, prorrogara a manutenção do
segredo de justiça até ao dia 4 de Outubro de 2008, por ser esse “o prazo objectivamente indispensável à
conclusão da investigação”. Nesse acórdão, o Tribunal da Relação de
Guimarães entendeu que quando o n.º 6 do artigo 89.º do CPP (“Findos os prazos previstos no artigo 276.º
[os prazos de duração máxima do inquérito],
o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos do
processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução
determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja
adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por
uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas
i) a m) do artigo 1.º [terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade
especialmente violenta e criminalidade altamente organizada], e por um prazo objectivamente
indispensável à conclusão da investigação”) permite nova prorrogação do
prazo, por uma só vez, esta prorrogação, tal como a primeira, também tem a
duração máxima de três meses. Embora esta disposição, introduzida pela Lei n.º
48/2007, só se dirija ao futuro, não colocando em causa os actos praticados em
sede da lei antiga (designadamente, o despacho de 10 de Outubro de 2007, que
adiara o acesso pelo período de três meses, que terminou em 10 de Janeiro de
2008), conclui a Relação que a nova prorrogação do prazo tinha a duração
máxima de três meses e terminara já em 10 de Abril de 2008.
Em
23 de Abril de 2008, o arguido A. e outros vieram requerer a
consulta de todos os elementos do processo.
Por
despacho de 2 de Maio de
Os
referidos arguidos, em 12 de Maio de 2008, vieram requerer o acesso a todos os elementos do processo.
Sobre
esse requerimento recaiu o seguinte despacho, de 21 de Maio de 2008, da
magistrada do Ministério Público titular do inquérito:
“Requerimento de fls. 10 113,
do mandatário dos arguidos A. e B.:
Para complemento da certidão já
existente, para consulta nos termos do n.ºs 3 e 6 do artigo 89.º do CPP, extraia cópia certificada de
todos os elementos do processo a partir de fls. 10 014 até ao presente
despacho, com excepção dos documentos bancários de fls.
*
O mandatário dos arguidos A. e B. veio requerer a consulta de todos os elementos do processo, sem
qualquer limitação, designadamente quanto às informações bancárias e fiscais
recusadas pelo Ministério Público, por entender que a lei é clara no sentido de
que «... o arguido ... podem consultar
todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça ...».
Está assim em causa a interpretação
do n.º 6 do artigo 89.º do CPP, ao estabelecer que «Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o
ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em
segredo de justiça ...».
Ora, não obstante o referido teor do
artigo 89.º, n.º 6, do CPP, na parte em que refere que o arguido, o
assistente e o ofendido
podem consultar todos os elementos do processo, este preceito não pode deixar de
ser conjugado com preceitos especiais que, relativamente a específicos
elementos dos autos, impedem que sejam consultados, designadamente antes do
encerramento do inquérito.
Encontram‑se nesta situação os
elementos que caem na previsão do n.º 7 do artigo 86.º, que dispõe que «A publicidade não abrange os dados relativos
à reserva da vida privada que não constituam meios de prova» e acrescenta
que «a autoridade judiciária especifica,
por despacho, oficiosamente ou a requerimento, os elementos relativamente aos
quais se mantém o segredo de justiça, ordenando, se for caso disso, a
sua destruição ou que sejam entregues à pessoa a quem disserem respeito ...».
É ainda o caso dos suportes técnicos
das conversações e comunicações telefónicas interceptadas, cujo acesso, como
estabelece o n.º 8 do artigo 188.º do CPP, só poderá ter lugar a partir do
encerramento do inquérito.
No que aos documentos bancários
respeita, estão abrangidos por segredo profissional, conforme dispõe o artigo
78.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras
(RGISF), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, na
redacção do Decreto‑Lei n.º 1/2008, de 3 de Janeiro, designadamente
quanto aos «nomes dos clientes, as contas
de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias», sendo a
violação do segredo punível nos termos do Código Penal (artigo 84.º do RGISF).
O mesmo se diga quanto aos elementos
sujeitos a sigilo fiscal, conforme o disposto no artigo 64.º, n.ºs 1 e 3, da
Lei Geral Tributária (LGT).
É certo que, nos termos do artigo
2.º da Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro, o segredo bancário e fiscal cede se
houver razões para crer que «as
respectivas informações têm interesse para a descoberta da verdade»,
mediante despacho da autoridade judiciária, o que efectivamente aconteceu nos
autos relativamente aos documentos em causa, acima referidos.
No entanto, dispõe o artigo 3.º da
mesma lei, no seu n.º 4, que, após o fornecimento dos elementos pelas
instituições bancárias, «os documentos
que não interessem ao processo são devolvidos à entidade que os forneceu ou destruídos,
quando não se trate de originais, lavrando‑se o respectivo auto», em
homenagem ao princípio da necessidade e da proporcionalidade no que respeita à
utilização processual de dados sujeitos a sigilo bancário.
Ora, o relevo de tais documentos
para o processo e a respectiva decisão sobre a sua utilização corno prova ou,
pelo contrário, a sua devolução ou destruição, só poderá ter lugar após a
realização da respectiva análise pericial, pelo que a revelação de tais
documentos, nesta fase, poderá implicar a violação daqueles preceitos – artigos
78.º e 84.º do RGISF.
Aliás, uma interpretação normativa
do n.º 6 do artigo 89.º do CPP no sentido de ser permitida e não poder ser
recusada ao arguido, antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o
segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo,
neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas,
abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional nos
termos do RGISF e da LGT, juntos aos autos na sequência de quebra do segredo
nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, mas sem que tenha
sido concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e
utilização como prova ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução nos
termos do n.º 7 do artigo 86.º do CPP e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º
5/2002, de 11 de Janeiro, e sem que se demonstre a sua imprescindibilidade para
a defesa do arguido, é violadora dos princípios ínsitos nos artigos 20.º, n.º
3, 26.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º da Constituição da República Portuguesa.
Em suma, não estando ainda definido
o relevo dos elementos supra referidos para a prova, ou a sua imprescindibilidade
para a defesa do arguido, que aliás não é invocada pelo requerente, entende‑se
que o disposto no n.º 6 do artigo 89.º do CPP (que se reporta por identidade de
razões ao arguido, assistente e ofendido), não é fundamento suficiente para
ser permitido o acesso àqueles elementos bancários e fiscais, neste momento,
pelo que deve ser indeferido, nesta parte, o requerido.
Considerando o disposto no artigo
89.º, n.º 2, do CPP e face à oposição à consulta, deduzida pelo Ministério
Público no que respeita aos elementos bancários e fiscais, apresente os autos à
Senhora Juiz do Tribunal de Guimarães para decisão.”
Conclusos
os autos à Juíza do Tribunal Judicial de Guimarães, esta proferiu, em 26 de
Maio de 2008, o seguinte despacho:
“A fls. 10 113, o Ex.mo Senhor
Mandatário dos arguidos A. e B. veio requerer a consulta da
totalidade dos autos.
A fls. 10 115, o Ministério
Público veio manifestar a sua discordância relativamente ao peticionado,
apresentando as razões de facto e de direito que nos escusamos a reproduzir.
Nos termos do artigo 89.º, n.º 2, do
CPP, cumpre decidir.
Estabelece o disposto no artigo
86.º, n.º 6, alínea c), do CPP que a
publicidade do processo implica a consulta do autos e obtenção de cópias de
quaisquer partes do processo, com as limitações
estabelecidas nos n.ºs 7 e 8 do mesmo normativo.
Assim, inexistindo qualquer
limitação legalmente estabelecida ao peticionado pelos arguidos, nomeadamente
a certos elementos do processo, determina‑se, como já determinou o
Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, que todos os intervenientes
processuais tenham acesso à totalidade
dos autos, caso assim o pretendam.”
Notificada
deste despacho, a magistrada do Ministério Público, uma vez que o mesmo omitia
qualquer menção ao n.º 6 do artigo 89.º do CPP, veio requerer a sua aclaração,
consignando:
“É assim a interpretação do artigo
89.º, n.º 6, do CPP que está em causa, no sentido de saber se a consulta do
processo em segredo de justiça aí prevista (para o arguido, o assistente e
ofendido, mas não para outros intervenientes processuais) é irrestrita,
sobrepondo‑se designadamente às limitações que possam decorrer da
necessidade de preservação da reserva da vida privada que mesmo no caso de
processo público a lei contempla
no artigo 86.º, n.º 7, do CPP e de qualquer forma a Constituição da República
protege.
Aliás, mesmo que se estivesse
perante um processo público, a que fosse aplicável o disposto no n.º 6, alínea c), do artigo 86.º do CPP (referido no
despacho de fls. 10 155), na sequência do disposto no artigo 89.º, n.º 6,
do CPP, uma interpretação normativa deste artigo 86.º, n.º 6, alínea c), do
CPP, no sentido de ser permitida a todos os intervenientes processuais e não
poder ser recusada,
antes do encerramento do inquérito, a consulta irrestrita de todos os elementos
do processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada de
outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo
profissional nos termos do RGISF e da LGT, juntos aos autos na sequência de
quebra do segredo nos termos do artigo 2.º do Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro,
mas sem que tenho sido concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado
o seu relevo e utilização
como prova ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução nos termos do n.º
7 do artigo 86.º do CPP e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, é violadora dos
princípios ínsitos nos artigos 20.º, n.º 3, 26.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º da
Constituição da República Portuguesa.
Perante o exposto e a invocado
omissão, requer‑se a aclaração do despacho de fls. 10 155, no sentido de
esclarecer qual a interpretação dada ao referido preceito do artigo 89.º, n.º
6, do CPP, ao abrigo do qual foi requerida o consulta dos elementos por parte
dos arguidos.”
Este
pedido foi indeferido por despacho judicial de 3 de Junho de 2008, do seguinte
teor:
“A fls. 10 187 foi requerido
pelo Ministério Público a aclaração do despacho por nós proferido a fls.
10 155, nos termos do qual e na esteira do douto acórdão do Tribunal da
Relação de Guimarães, entendemos e declaramos que os presentes autos se
encontram públicos, pelo que todos os intervenientes processuais poderão ter
acesso à totalidade dos mesmos, sem quaisquer restrições.
Alega em suma que os elementos
bancários e fiscais devem permanecer em segredo de justiça e, por isso, não
podem ser consultados, por motivos que assentam no segredo bancário e fiscal
estabelecido em legislação especial.
Entendemos, salvo o devido respeito,
que o despacho proferido é suficientemente claro e, como tal, nada existe a
aclarar, já que o pretendido pela requerente mais não é do que nova decisão
sobre a matéria que foi já decidida.
Acrescenta‑se apenas, por um
lado, que o segredo de justiça, tal como regulado nos artigos 86.º e seguintes
do CPP, se apresenta em duas vertentes, o interno e o externo.
No caso vertente, pese embora o
segredo externo se mantenha, face ao preceituado no artigo 88.º do CPP, deixou
de existir o segredo interno, atento o que foi decidido pelo Tribunal da
Relação.
O que implica, como se decidiu no
despacho ora questionado, o acesso a todos os elementos de prova constantes do
processo por todos os sujeitos processuais, isto, sem embargo do dever de
segredo de justiça a que os mesmos ficam também sujeitos.
Por outro lado, importa vincar que,
a partir do momento em que os elementos bancários e fiscais são juntos ao
processo, a questão do sigilo bancário e fiscal, tal como se perfila na
legislação apontada, não se coloca, já que o acesso a tais elementos e sua
junção aos autos resulta precisamente da circunstância de os mesmos não
estarem abrangidos por tais sigilos, ou então, os mesmos terem sido quebrados,
tendo em conta o preceituado no artigo 135.º e seguintes do CPP.
É certo que o acesso por parte dos
intervenientes processuais à totalidade dos autos poderá contender com o
sucesso da investigação e criar alguns constrangimentos como os referidos.
Todavia, os operadores judiciários
têm que se conformar com estas «vicissitudes» ou, caso entendam, interpor o
competente recurso para as instâncias adequadas.”
Veio então a referida
magistrada do Ministério Público interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo
do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra o despacho de 26 de Maio de 2008, complementado pelo despacho de
3 de Junho de 2008, pretendendo ver apreciada “a inconstitucionalidade do conjunto normativo formado pelos artigos
86.º, n.ºs 6 e 7, e 89.º, n.º
6, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de ser permitida e não
poder ser recusada, a todos os intervenientes processuais, designadamente ao
arguido, antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de
justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles
incluindo dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas,
abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional nos
termos do Regime Geral dos Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras e
da Lei Geral Tributária, juntos aos autos na sequência de quebra do segredo nos
termos do artigo 2.º da Lei n.º
5/2002, de 11 de Janeiro, mas sem que tenha sido concluída a sua
análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como meio de
prova ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução nos termos do n.º 7 do
artigo 86.º do CPP e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de
Janeiro, por violação dos princípios ínsitos nos artigos 2.º, 20.º, n.º 3,
26.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º da Constituição da República Portuguesa”.
O
representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1. O
conjunto normativo formado pelos artigos
86.º, n.ºs 6 e 7, e 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, quando
interpretado no sentido de ser permitido e não poder ser recusado, ao arguido,
antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a
consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados
relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos
bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional, sem que tenha sido
concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e
utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos
termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal, e sem que se
demonstre a sua imprescindibilidade para a defesa do arguido, é
inconstitucional porque violadora dos artigos 2.º, 20.º, n.º 3, 26.º, n.ºs 1 e
2, 32.º, n.º 2, e 202.º da Constituição.
2. Essa inconstitucionalidade sai
reforçada se atendermos às particularidades do caso em que as normas foram
aplicadas, já que, tendo ocorrido a prorrogação do prazo para acesso aos autos
por um determinado prazo, ele é abruptamente encurtado na sequência de decisão
da Relação que concedeu provimento a recurso interposto por alguns arguidos
daquela decisão de prorrogação.
3.
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Os
recorridos não apresentaram contra‑alegações.
Tudo
visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A regulação do segredo de justiça em processo penal –
quer na vertente interna, respeitando
aos participantes processuais directamente envolvidos na concreta relação
processual, quer na vertente externa,
reportado à generalidade das pessoas, estranhas a essa relação processual –
convoca, com particular acuidade, “a
tarefa de concordância prática das finalidades, irremediavelmente
conflituantes, apontadas ao processo penal: a realização da justiça e a
descoberta da verdade material, a protecção perante o Estado dos direitos
fundamentais das pessoas e o restabelecimento, tão rápido quanto possível, da
paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade
da norma violada” (Maria João
Antunes, “O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito
a medida de coacção”, em Liber
Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, pp. 1237‑1268).
Num
processo penal constitucionalmente conformado, como o português, “numa estrutura acusatória integrada pelo
princípio da investigação”, a necessidade de harmonização das apontadas
finalidades justifica soluções diferenciadas consoante as fases por que se
desenrola o processo, tendo em conta o diferente peso relativo que lhes deve
ser atribuído em cada uma delas, compreendendo‑se uma evolução em que o
predomínio do princípio do segredo sobre o princípio da publicidade, típico da
fase preliminar da investigação, vá gradualmente evoluindo para o predomínio do
princípio da publicidade, típico da fase da audiência de julgamento, “sem perder de vista que em cada um destes
momentos processuais vale sempre, mas com intensidade diferente, o princípio da
presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
“Assim – refere a mesma autora (estudo citado, p. 1244), tendo por
referência a redacção do Código de Processo Penal de 1987 emergente da revisão
de 1998 –, o princípio da publicidade tem
a sua expansão máxima, é dizer as limitações mínimas, na fase de julgamento (artigos
206.º da Constituição da República Portuguesa – CRP – e 86.º, n.º 1, do CPP),
podendo concluir‑se pela derrogação deste princípio, embora com limites,
na fase de inquérito (artigos 20.º, n.º 3, da CRP, e 86.º, n.ºs 1 e 4, e 89.º,
n.º 2, do CPP)”, “[d]ependendo a
maior ou menor publicidade da fase de instrução da circunstância de ter sido
(ou não) requerida apenas pelo arguido e de este não declarar (ou declarar) que
se opõe à publicidade (artigo 86.º, n.º 1, parte final, do CPP)”.
Porém,
nem num extremo nem no outro do iter processual, o princípio dominante, seja
ele o do segredo ou o da publicidade, tinha valor absoluto. Se, tendo em conta
as finalidades do julgamento, se
justificava a consagração do princípio da publicidade nessa fase, até porque
nela o princípio da presunção de inocência coexiste com uma acusação e um despacho
de pronúncia, no entanto, mesmo aí, tal princípio “sofre as limitações que sejam necessárias para salvaguardar certos
direitos das pessoas e para garantir a realização da justiça e a descoberta da
verdade material, por via do normal funcionamento dos tribunais”: assim,
por exemplo, a publicidade dos actos processuais que integravam a fase do
julgamento não abrangia os dados relativos à vida privada que não constituíssem
meios de prova (artigo 86.º, n.º 3); o juiz podia restringir a livre
assistência do público aos actos processuais ou determinar que o acto, ou parte
dele, decorresse com exclusão da publicidade, sempre que tal fosse necessário
para evitar a produção de grave dano à dignidade das pessoas, à moral pública
ou ao normal decurso do acto (artigo 87.º, n.ºs 1 e 2), sendo a exclusão da
publicidade a regra nos processos por crime sexual que tivessem por ofendido um
menor de 16 anos (artigo 87.º, n.º 3).
Quanto
à fase da instrução, a opção
originária do CPP de 1987 de a subordinar, em regra, ao princípio do segredo (o
processo só era público a partir da decisão instrutória ou até ao momento em
que a instrução já não podia ser requerida – n.º 1 do artigo 86.º, na versão
inicial), foi atenuada, na revisão de 1998, com a permissão da publicidade do
processo se a instrução tivesse sido requerida apenas pelo arguido e este, no
requerimento, não declarasse que se opunha à publicidade. Tratando‑se de
fase de controlo judicial da decisão final tomada no inquérito, em que, por
isso, a manutenção do segredo já não era exigida por preocupações de eficácia
da investigação, entendeu‑se que, se a instrução tivesse sido requerida
pelo assistente (ou pelo assistente e pelo arguido), o que pressupunha que já
fora proferida uma decisão de não acusação (pelo menos parcial) do Ministério
Público, a preservação do princípio da presunção de inocência do arguido
legitimava a continuação do segredo; diversamente, se a instrução fosse requerida
apenas pelo arguido, o que pressupunha a dedução de uma acusação, compreender‑se‑ia
que lhe fosse facultada a opção entre a publicidade (se entendesse que ela
propiciaria mais eficácia à sua defesa, que compensasse a perda de privacidade)
e a continuação do segredo (se o juízo de ponderação levasse a resultado
oposto).
Quanto
à fase do inquérito, sempre foi
entendimento que nela se impunha a derrogação do princípio da publicidade, “importando salientar que esta derrogação
está até constitucionalmente legitimada, a partir das alterações introduzidas
pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, uma vez que o artigo 20.º,
n.º 3, da CRP passou a prever que «a lei define e assegura a adequada protecção
do segredo de justiça»”, como salienta Maria
João Antunes (estudo citado,
p. 1244), que acrescenta:
“Justifica‑se
aquela derrogação tendo em conta que o inquérito compreende o conjunto de
diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus
agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à
decisão sobre a submissão (ou não) da causa a julgamento, sendo praticados os
actos e assegurados os meios de prova necessários à realização destas
finalidades (artigos 262.º, n.º 1, e 267.º do CPP); que esta é uma fase cuja
abertura depende da mera aquisição da notícia do crime (artigos 241.º e 262.º,
n.º 2, do CPP); e tendo, ainda, em conta que é só no momento do encerramento do
inquérito que é feita uma avaliação no sentido de saber se foram recolhidos indícios
suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, se foi
recolhida prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter
praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento ou
se não foi possível obter indícios suficientes da verificação do crime ou de
quem foram os seus agentes (artigos 276.º, 277.º e 283.º do CPP). Numa palavra,
esta é uma fase em que para a realização da justiça e a descoberta da verdade
material importa assegurar uma investigação da notícia do crime que não corra o
risco de ser perturbada, ou mesmo irremediavelmente prejudicada, por factores
exteriores à administração da justiça penal, ao mesmo tempo que importa tutelar
de forma efectiva a presunção de inocência do arguido, o que é também uma forma
de lhe garantir o direito ao bom nome e reputação (artigos 26.º, n.º 1, da CRP
e 180.º do Código Penal), numa fase processual onde vale, por excelência, o
mandamento constitucional de que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito
em julgado da sentença de condenação (artigo 32.º, n.º 2, da CRP). No
inquérito, o princípio da publicidade é derrogado por ser outra a forma como se
procede à concordância prática das finalidades processuais conflituantes e por
ser também outra a forma como se concretiza a ponderação dos direitos
conflituantes que engrossam o catálogo dos direitos dos cidadãos que cabe ao
processo penal salvaguardar. Uma outra forma que é ditada, num caso, pelo
êxito da investigação da notícia do crime, especialmente no que diz respeito à
aquisição e à conservação da prova e, noutro, por o princípio da presunção de
inocência do arguido valer em termos absolutos.”
Também
Frederico de Lacerda da Costa Pinto
(“Segredo de justiça e acesso ao processo”, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais,
Coimbra, 2004, pp. 67‑98), após demonstrar que a natureza tendencialmente
secreta da fase do inquérito e a natureza tendencialmente pública da fase do
julgamento se compreende em função dos propósitos e das finalidades de cada uma
dessas fases, salienta que “a vigência do
segredo de justiça nas fases preliminares do processo penal é
plurisignificativa no plano axiológico: trata‑se, por um lado, de um
mecanismo destinado a garantir a efectividade social do princípio da presunção
de inocência do arguido, durante fases processuais que ainda estão
cronologicamente distantes do julgamento, julgamento esse que pode, inclusivamente,
nem vir a ter lugar por força dum arquivamento do processo (artigo 277.º) ou duma
não pronúncia (artigo 308.º, n.º
O
carácter predominantemente secreto da fase do inquérito não obstava, porém,
como os citados autores sublinham e a jurisprudência deste Tribunal proclamou,
ao acesso do arguido aos elementos de prova sempre que tal acesso se mostrasse
necessário para a eficácia da defesa dos seus direitos nessa fase,
designadamente para contraditar – e, sendo caso, impugnar – a necessidade da
aplicação de medidas de coacção, nomeadamente a sujeição a prisão preventiva.
No Acórdão n.º 416/2003, retomando doutrina já expressa no Acórdão n.º 121/97,
teve‑se por constitucionalmente intolerável que se considerasse sempre e
em quaisquer circunstâncias interdito o acesso aos elementos probatórios que
foram determinantes para a imputação dos factos, para a ordem de detenção e
para a proposta de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, com
alegação de potencial prejuízo para a investigação, protegida pelo segredo de
justiça, sem que se procedesse, em concreto, a uma análise do conteúdo desses
elementos de prova e à ponderação, também em concreto, entre, por um lado, o
prejuízo que a sua revelação pudesse causar à investigação e, por outro lado, o
prejuízo que a sua ocultação pudesse causar à defesa do arguido.
2.2. Foi neste quadro legal,
jurisprudencial e doutrinal (cf., ainda, Maria
da Assunção A. Esteves, “A jurisprudência do Tribunal Constitucional
relativa ao segredo de justiça”, em O
Processo Penal em Revisão, Lisboa, 1998, pp. 123‑131; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “O
segredo de justiça em processo penal”, em Estudos
Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa‑Hora, Lisboa,
1995, pp. 223‑234; Paulo Dá
Mesquita, “O segredo do inquérito penal – Uma leitura jurídico‑constitucional”,
Direito e Justiça, ano XIV, tomo 2,
2000, pp. 47‑134; Germano Marques
da Silva, “O segredo de justiça – Perspectiva político‑jurídica da
sua relevância no combate à criminalidade, na garantia dos direitos dos
cidadãos e no prestígio das instituições judiciárias”, e Henrique Pavão, “O regime do segredo de
justiça no inquérito na sua vertente interna”, ambos em Conselho Superior da
Magistratura, Balanço da Reforma da Acção
Executiva – Segredo de Justiça e Dever de Reserva, Coimbra, 2005, pp. 75‑113
e 115‑128, respectivamente) que, no âmbito de uma anunciada revisão do
sistema processual penal, em que um dos aspectos a reformular seria o relativo
ao regime do segredo de justiça, se iniciaram os trabalhos que haveriam de
culminar na revisão do CPP operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto (cf. Agostinho Torres, “Segredo de justiça,
sigilo profissional e protecção das fontes de informação – Alguns aspectos de
uma perspectiva jurisdicional”, Polícia e
Justiça – Revista do Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências
Criminais, III Série, n.º 5, Janeiro‑Junho 2005, pp. 215‑242; Jorge Ribeiro de Faria, “Publicidade e
justiça criminal”, Revista da Faculdade
de Direito da Universidade do Porto, ano IV, 2007, pp. 125‑153; Mário Ferreira Monte, “O segredo de
justiça: algumas questões postas a propósito da anunciada alteração do seu
regime”, e André Lamas Leite,
“Segredo de justiça interno, inquérito, arguido e seus direitos de defesa”,
ambos publicados em MaiaJurídica, ano
IV, n.º 1, Janeiro‑Junho 2006, respectivamente a pp. 17‑34 e 35‑52,
e o último publicado também em Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 4, Outubro‑Dezembro 2006,
pp. 539‑573; Maria Clara Oliveira,
“Segredo de justiça – o mal amado!”, e Manuel
Simas Santos, “O segredo de justiça”, ambos publicados em MaiaJurídica, ano IV, n.º 2, Julho‑Dezembro
2006, respectivamente a pp. 77‑94 e 145‑154).
As
referências iniciais ao âmbito da revisão do regime de segredo de justiça e
mesmo o Anteprojecto apresentado pela Unidade de Missão para a Reforma Penal e
a Proposta de Lei n.º 109/X estavam bem longe do alcance que a reforma, neste
ponto, acabou por assumir. Rui Pereira
(“A crise do processo penal”, Revista do
Ministério Público, ano 25.º, n.º 97, Janeiro‑Março 2004, pp. 17‑30,
em especial pp. 25‑26, e “A reforma do processo penal”, em II Congresso de Processo Penal, Coimbra,
2006, pp. 225‑238, em especial pp. 232‑233) justificava a
necessidade de revisão do segredo de justiça “de modo a que se obtenha uma concordância prática entre a necessidade
de preservar a investigação e as garantias de defesa”, já que, face aos
juízos de inconstitucionalidade da completa denegação ao arguido do acesso aos
autos, inviabilizando a impugnação da prisão preventiva, era “desejável que o legislador formule, no
mínimo, um critério do qual se infira em que medida deve ser concedido, caso a
caso, o acesso aos autos em homenagem às garantias de defesa”, acrescentando:
“Sem pôr em causa a investigação, deve‑se
restringir o âmbito do segredo de justiça, tendo em conta que em determinados
processos (por exemplo, relativos a abuso de liberdade de imprensa) ou certos
actos processuais (acórdãos proferidos por tribunais superiores quanto a
matéria de direito) ele não se justifica”, “[e] tão‑pouco se justifica que o segredo se estenda para além da
acusação – na instrução, o processo deve tornar‑se público”.
Eram
basicamente estes os propósitos enunciados, a este respeito, na “Exposição de motivos” do referido
Anteprojecto de Código de Processo Penal apresentado, em Julho de 2006, pela
Unidade de Missão para a Reforma Penal, que estabelecia a regra de que “o processo está sujeito a segredo de justiça
até ao termo do prazo para requerer a abertura da instrução, excepto se o Ministério
Público determinar a sua publicidade” (n.º 2 do artigo 86.º), o que poderia
fazer, “em qualquer momento do inquérito,
com a concordância do arguido, quando entender que a cessação do segredo não
prejudica a investigação e os direitos dos participantes processuais ou das
vítimas” (n.º 3 do artigo 86.º), continuando o processo “sujeito ao segredo de justiça até ao
trânsito em julgado da decisão instrutória, se o arguido declarar que se opõe à
publicidade” (n.º 4 do artigo 86.º). No que concerne ao “segredo interno”,
o n.º 1 do artigo 89.º previa que “durante
o inquérito, o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável
civil podem consultar, mediante requerimento, o processo ou elementos dele
constantes, bem como obter os correspondentes extractos, cópias ou certidões,
salvo quando o Ministério Público a isso se opuser, por considerar, fundamentadamente,
que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais
ou das vítimas”.
A
Proposta de Lei n.º 109/X (Diário da
Assembleia da República (DAR), II
Série‑A, n.º 31, de 23 de Dezembro de 2006, pp. 6‑178) mantinha o
teor dos n.ºs 2, 3 e 4 (este agora sob o n.º 5) do artigo 86.º e do n.º 1 do
artigo 89.º do Anteprojecto, mas passava a prever no novo n.º 4 do artigo 86.º
que “no caso de o arguido requerer a
publicidade mas o Ministério Público não a determinar, os autos são remetidos
ao juiz, que decide, por despacho irrecorrível, depois de ouvir o ofendido, se
o processo continua sujeito a segredo de justiça ou se torna público”, e,
no n.º 2 do artigo 89.º, que “se o
Ministério Público se opuser à consulta ou à obtenção dos elementos previstos
no número anterior, o requerimento é presente ao juiz, que decide por despacho
irrecorrível”.
As
restantes iniciativas legislativas apresentadas no âmbito da revisão do processo
penal propunham soluções diversificadas, mas nenhuma preconizava o
estabelecimento, como regra, da publicidade do processo na fase do inquérito. O
Projecto de Lei n.º 237/X, do PSD (DAR,
II Série‑A, n.º 100, de 6 de Abril de 2006, p. 13), previa que o
processo, no caso de crimes puníveis com pena de prisão superior a oito anos,
era público apenas a partir do encerramento do inquérito, excepto se fosse
requerida a abertura de instrução e o arguido declarasse que se opunha à
publicidade (n.º 2 do artigo 86.º), regime que seria extensível aos processos
por crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos se o juiz, mediante
requerimento da vítima, do arguido ou do Ministério Público, assim o entendesse
em despacho fundamentado (n.º 5 do artigo 86.º); quanto ao segredo interno, o
n.º 2 do artigo 89.º previa que, se o Ministério Público ainda não houvesse
deduzido acusação ou proferido despacho de arquivamento do inquérito, o
arguido, o assistente e as partes civis só podiam ter acesso a auto que se
encontrasse em segredo de justiça na parte respeitante a declarações prestadas
e a requerimentos e memoriais por eles apresentados, bem como a diligências de
prova a que pudessem assistir ou a questões incidentais em que devessem
intervir, podendo, nos termos do subsequente n.º 3, o juiz, com a concordância
do Ministério Público, do arguido e do assistente, permitir que o arguido e o
assistente tivessem acesso a todo o auto. O Projecto de Lei n.º 368/X, do CDS‑PP
(DAR, II Série‑A, n.º 52, de 9
de Março de 2007, p. 17), mantinha a regra de que o processo só era público a
partir da decisão instrutória (ou do momento em que a instrução já não pudesse
ser requerida) ou, se a instrução fosse requerida apenas pelo arguido, se este,
no respectivo requerimento, não declarasse opor‑se à publicidade (artigo
86.º, n.º 1), reproduzindo, nos n.ºs 2 e 3 do artigo 89.º, o teor dos
correspondentes preceitos do Projecto de Lei n.º 237/X. O Projecto de Lei n.º
369/X, do BE (mesmo DAR, p. 34),
fazia depender a publicidade do processo da natureza dos crimes em causa:
tratando‑se de crimes de natureza particular, o processo era sempre
público (artigo 86.º, n.º 1); tratando‑se de crimes de natureza semi‑pública,
o processo era público a partir do momento em que fosse deduzida a acusação,
podendo, no entanto, no decurso do inquérito, o juiz de instrução, através de
despacho fundamentado, ordenar o levantamento do segredo de justiça, quando a
publicidade do inquérito não interferisse com a investigação em curso e desde
que fossem assegurados todos os direitos do arguido e das vítimas (artigo
86.º, n.º 2); tratando‑se de crimes públicos, o processo era público
apenas a partir do momento em que fosse deduzida a acusação. Por último, o
Projecto de Lei n.º 370/X, do PCP (mesmo DAR,
p. 43) não propunha alterações para o n.º 1 do artigo 86.º então vigente, mas
nos n.ºs 2 e 4 do artigo 89.º acolhia preceitos similares aos dos n.ºs 2 e 3 do
artigo 89.º do Projecto de Lei n.º 237/X.
Foi
só no decurso na discussão e votação, na especialidade, dessas iniciativas
legislativas, a cargo de um grupo de trabalho constituído no seio da Comissão
de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, e especificamente
na reunião final da Comissão, realizada em 18 de Julho de 2007, que foram
apresentadas as propostas de alteração aos artigos 86.º e 89.º do CPP que
acabariam por ser aprovadas, e que representaram uma alteração radical – para a
qual o relatório da referida Comissão (DAR,
II Série‑A, n.º 117, de 23 de Julho de 2007, p. 18) não fornece qualquer
indicação que permita compreender a sua justificação (Tendo sido requerida a
avocação pelo Plenário da votação, na especialidade, do artigo 86.º, cf. a
parte correspondente do debate, a pp.
Como
salienta Pedro Maria Godinho Vaz Patto
(“O regime do segredo de justiça no Código de Processo Penal revisto”, Revista do CEJ, n.º 9, 2008, pp. 43‑67,
no prelo), a versão que veio a ser aprovada diferencia‑se das constantes
dos referidos Anteprojecto e Proposta de Lei:
“A
regra passa a ser a publicidade do processo mesmo na fase de inquérito. A
regra do carácter secreto do inquérito, consignada no artigo 86.º, n.º 2, da
Proposta de Lei e do Anteprojecto desapareceu. Esse carácter secreto passa a
ser a excepção. O Ministério Público pode afastar essa regra, mas, para tal,
carece da concordância do juiz de instrução. Estatui o n.º 3 do artigo 86.º: «Sempre que o Ministério Público entender que
os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o
justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de
inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo
juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas». Neste caso, o
Ministério Público poderá determinar, posteriormente e em qualquer momento do
inquérito, o levantamento do segredo de justiça, oficiosamente ou mediante
requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido (n.º 4 do mesmo artigo).
Esse levantamento também pode ser decidido pelo juiz de instrução, mediante
despacho irrecorrível, no caso de o arguido, o assistente ou o ofendido o
requererem mesmo contra a posição do Ministério Público (n.º 5 do mesmo
artigo). Assim, por um lado, passa a ser possível, ao contrário do que
decorreria do regime do Anteprojecto e da Proposta de Lei, determinar a
publicidade do processo na fase de inquérito mesmo contra a vontade do arguido:
se o Ministério Público não requerer a sujeição do mesmo a segredo de justiça
(não é essa a regra e pode entender que os direitos dos sujeitos processuais
não justificam o afastamento dessa regra) e se o juiz não deferir o
requerimento do arguido nesse sentido. Por outro lado, também pode suceder (o
que não sucederia no regime decorrente do Anteprojecto e da Proposta de Lei)
que o processo se mantenha público e não fique sujeito ao regime de segredo de
justiça contra a posição assumida pelo Ministério Público e mesmo que não haja
requerimento do arguido (ou também do assistente ou do ofendido) nesse sentido.
Tal sucederá se o juiz de instrução não validar a decisão do Ministério
Público de afastar a regra da publicidade, nos termos do n.º 3 do referido
artigo 86.º”
Tão
drástica subversão da regra “natural” [na Exposição
de motivos da Proposta de Lei n.º 157/ VII, que esteve na base da revisão
do CPP de 1998, proclamou‑se: “o
inquérito, em cujo âmbito se desenvolve a investigação é, por natureza, inquisitório e secreto”] do carácter
secreto do inquérito, adoptada, sem explicitação das respectivas motivações,
na última reunião da Comissão que procedeu à votação na especialidade dos
projectos legislativos relativos à revisão do Código de Processo Penal, face a
uma proposta de alteração apresentada, pela primeira vez, nessa ocasião, não
pode ter deixado de causar as maiores perplexidades aos intérpretes e
aplicadores do direito (para além do citado artigo de Pedro Vaz Patto, cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal,
Lisboa, 2007, em especial pp. 241‑246 e 253‑262; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II vol., 4.ª
edição, Lisboa, 2008, pp. 21‑42; Frederico
de Lacerda da Costa Pinto, “Publicidade e segredo na última revisão do
Código de Processo Penal”, em Estudos
Comemorativos dos 10 Anos da
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, vol. II, Lisboa, 2008,
pp. 627‑664, a publicar também no referido n.º 9 da Revista do CEJ, no prelo; João
G. A. Simas Santos, “Processo penal – Segredo de justiça – Decisão do
Ministério Público e validação pelo juiz de instrução”, Revista do Ministério Público, ano 29, n.º 113, Janeiro‑Março
2008, pp. 131‑144; Antonieta
Borges, “Publicidade do processo penal e segredo de justiça – Inquérito
– Aplicação do n.º 6 do artigo 89.º do Código de Processo Penal”, Revista do Ministério Público, ano 29,
n.º 114, Abril‑Junho 2008, pp. 151‑177; acórdãos do Tribunal da
Relação do Porto, de 27 de Fevereiro de 2008, P. 0747210, de 23 de Abril de
2008, P. 0841343, de 7 de Maio de 2008, P. 0811925, de 28 de Maio de 2008, P.
0842007, de 4 de Junho de 2008, P. 0813660, de 11 de Junho de 2008, P. 0842068,
e de 25 de Junho de 2008, P. 0812926, em www.dgsi.pt/jtrp, e do Tribunal da
Relação de Évora, de 27 de Dezembro de 2007, P. 3209/07‑1, em
www.dgsi.pt/jtre; e Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra / Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, Monitorização da Reforma Penal – Primeiro
Relatório Semestral, 30 de Maio de 2008, pp. 39‑47).
2.3. A directa constitucionalização do
dever de protecção do segredo de justiça ocorreu na revisão constitucional de
1997, com o aditamento ao artigo 20.º de um n.º 3, do seguinte teor: “A lei define e assegura a adequada protecção
do segredo de justiça” (sem prejuízo de, desde a revisão de 1989, o n.º 1
do artigo 35.º prever como limite ao direito dos cidadãos de tomar conhecimento
dos dados constantes de ficheiros ou registos informáticos a seu respeito o
disposto na lei sobre segredo de Estado e segredo de justiça, e o n.º 2 do
artigo 268.º prever como limite ao direito de acesso dos cidadãos aos arquivos
e registos administrativos o disposto na lei em matéria relativa à
investigação criminal).
Esta
inovação teve origem no Projecto de revisão constitucional n.º 5/VII, apresentado
pelo PSD (DAR, II Série‑A,
Suplemento ao n.º 27, de 7 de Março de 1996, pp. 484‑(44) a 484‑(60)),
que preconizava a inserção de um n.º 2 no artigo 20.º da CRP, do seguinte teor:
“Todos têm direito, nos termos da lei, à
informação e consulta jurídicas, à protecção do segredo de justiça, ao
patrocínio judiciário e a fazer‑se acompanhar de advogado perante
qualquer autoridade”. Como resulta claramente do debate parlamentar, a autonomização
da protecção do segredo de justiça no actual n.º 3, ficando no n.º
A
inserção da imposição de protecção do segredo de justiça no artigo 20.º (e não,
por exemplo, no artigo 32.º) justifica‑se por não ser apenas no âmbito do
processo penal que ele vigora, valendo também noutros processos que reclamem a
tutela da reserva da intimidade da vida privada e familiar (v. g., em acções de investigação de
paternidade), como referem Jorge Miranda
e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, tomo I,
Coimbra, 2005, pp. 204‑205), o que, de qualquer forma, não pode fazer
esquecer a peculiar relevância que ele assume em processo criminal, tendo em
vista “a protecção da eficácia da
investigação e da honra do arguido” (autores e local citados). Trata‑se
“de uma nova garantia institucional e
não de um novo direito fundamental, sem prejuízo da sua dupla justificação,
subjectiva e objectiva” (Marcelo
Rebelo de Sousa e José de Melo
Alexandrino, Constituição da
República Portuguesa Comentada, Lisboa, 2000, p. 102). “Ao constitucionalizar o segredo de justiça,
a Constituição ergue‑o à categoria de bem constitucional, o qual poderá
justificar o balanceamento com outros bens ou direitos ou, até, a restrição dos
mesmos (investigações jornalísticas de crimes, publicidade do processo,
direito ao conhecimento do processo por parte de interessados), mas não deve
servir para contradizer o exercício dos direitos de defesa (cf. Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 121/97)” (J.
J. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 4.ª edição, vol. I, Coimbra, 2007, p. 414).
Como sublinha Nuno Piçarra (O
Inquérito Parlamentar e os seus Modelos Constitucionais, Coimbra, 2004, p. 689), a elevação do segredo de justiça “à categoria de bem constitucionalmente
protegido acarreta, por um lado, uma limitação da margem de livre conformação
do legislador ordinário, que deixa de
poder suprimir tal segredo e fica vinculado a dar‑lhe um mínimo de efectividade/operatividade. Por outro lado, os
potenciais conflitos do segredo de
justiça com outros bens constitucionais dever‑se‑ão resolver, não sacrificando
o primeiro aos últimos, mas obtendo a máxima harmonização prática possível entre eles”.
Apesar
de caber ao legislador concretizar o âmbito e os limites do segredo de justiça,
resulta, porém, do n.º 3 do artigo 20.º da CRP, que o há‑de fazer “através de uma ponderação (…) dos vários
direitos e interesses dignos de tutela e, potencialmente, conflituantes”,
ponderação essa “sujeita ao controlo da
constitucionalidade” (Jorge Miranda
e Rui Medeiros, obra e tomo citados, p. 205).
2.4. É justamente o controlo da
constitucionalidade, sob o ponto de vista da adequação da ponderação
subjacente, do critério normativo seguido pela decisão ora recorrida que este
Tribunal é chamado a efectuar.
No
presente caso, como das precedentes considerações resulta, não está em causa a
apreciação de juízos de inconstitucionalidade com alcance mais vasto, que a
doutrina tem dirigido ao novo regime da publicidade do inquérito.
Tal
como resulta dos termos em que a questão de constitucionalidade foi colocada
perante o tribunal recorrido e por ele decidida e veio a ser definida no
requerimento de interposição de recurso, está em causa a apreciação da
conformidade constitucional de um critério normativo, que radica no artigo
89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, e de acordo com o qual “deve ser permitida e não poder ser
recusada, a todos os intervenientes processuais, designadamente ao arguido,
antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a
consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados
relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos
bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional nos termos do Regime
Geral dos Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras e da Lei Geral
Tributária, juntos aos autos na sequência de quebra do segredo nos termos do
artigo 2.º da Lei n.º 5/2002, de
11 de Janeiro, mas sem que tenha sido concluída a sua análise em termos de
poder ser apreciado o seu relevo e utilização como meio de prova ou, pelo
contrário, a sua destruição ou devolução nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do
CPP e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 5/2002”.
Procedendo
à análise específica da norma do n.º 6 do artigo 89.º do CPP, Frederico de Lacerda da Costa Pinto
(“Publicidade e segredo na última revisão do Código de Processo Penal”, citado,
n.ºs
Encarando a situação criada
com a formulação actual do regime do segredo de justiça no inquérito, e
especificamente da norma do n.º 6 do artigo 89.º, o autor citado ensaia um
esforço de interpretação conforme à Constituição, sendo certo que, no seu
entender, se tal for julgado inviável, se impõe um juízo de inconstitucionalidade.
Aduz, nesse sentido, o seguinte:
“6. Resta saber se
tal é possível por via do sistema hermenêutico, ou seja, ponderando e
articulando as situações carentes de uma solução específica com elementos
diversos do sistema legal, minimizar os inconvenientes do artigo 89.º, n.º
6, do CPP. Estou em crer que a gravidade do problema e a necessidade de
tutelar a investigação criminal, como condição essencial do sistema
constitucional de administração da justiça, exigem uma solução praeter legem. Ou uma
intervenção legislativa específica que acautele devidamente os
interesses em causa, nos termos ou com os contornos atrás referidos, ou,
enquanto tal não existir, uma solução hermenêutica que permita atingir tal
resultado.
Os pontos de apoio para o efeito podem
residir no regime de fundamentação e revelação de elementos na aplicação de
medidas de coacção e no regime geral de quebra do segredo de justiça durante o
inquérito. O dever de enunciar os indícios probatórios no despacho judicial
de aplicação de medidas de coacção, dando‑os a conhecer ao arguido,
tem limites, pois só tem de ser cumprido (artigo 194.º, n.º 4, alínea b), n.º 5 e n.º 6) se não puser gravemente em causa a
investigação, se a sua revelação não impossibilitar a descoberta da
verdade ou se a sua revelação não criar perigo para a vida, integridade física ou
psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do
crime. Nestes casos, limita‑se o dever de fundamentar probatoriamente o
despacho judicial (artigo 194.º, n.º 4, alínea b), segunda parte). Estando perante um limite ao dever de
revelar elementos do processo através da fundamentação do despacho e não
perante uma excepção à possibilidade de aplicar a medida de coacção, isso significa
que o acto pode continuar a ser praticado sem ter, em tais casos, de se
revelar os elementos. Esses elementos podem ser usados para decidir a aplicação
da medida de coacção mas não são comunicados ao arguido, não podem ser
consultados, tais omissões são legítimas e, por isso, não geram nulidade do
despacho. Ora, se tal limite existe mesmo quando está em causa a prática de um
acto profundamente limitador da liberdade do arguido, deveria valer igualmente
quando existe a necessidade de tutelar tais interesses sem que esteja em causa
a aplicação de uma medida de coacção. As próprias quebras de segredo interno
durante a investigação não a podem pôr em causa, como resulta expressamente do
n.º 9 do artigo 86.º do CPP, o que confirma o elevado interesse público em não
pôr em causa a investigação criminal.
Em conclusão, numa leitura articulada
materialmente com o interesse público inerente à investigação criminal, o
artigo 89.º, n.º 6, do CPP não pode permitir o acesso automático aos autos
sempre que tal possa pôr gravemente em causa a investigação, se a sua
revelação impossibilitar a descoberta da verdade ou se a sua revelação criar perigo
para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos
participantes processuais ou vítimas do crime.
Só cumpridas estas
exigências se pode afirmar que se respeita o disposto no artigo 20.º,
n.º 3, da Constituição, de acordo com o qual «a lei define e assegura a adequada
protecção do segredo de justiça». O segredo de justiça não é um valor em
si, tem antes uma vocação funcional: serve para proteger a
investigação e alguns interesses pessoais dignos de tutela nestas fases preliminares (v. g. interesses dos
arguidos, suspeitos, testemunhas, vítimas). Uma norma processual que assegure
os interesses dos arguidos no acesso ao processo, mas desproteja a investigação,
ao ponto de a poder pôr em causa, é uma norma contrária às exigências do
artigo 20.º, n.º 3, da CRP. […]
Por isso, entendo
que os aplicadores do Direito nesta matéria podem e devem fazer uma
interpretação do artigo 89.º, n.º 6, do CPP conforme a Constituição (ao
artigo 20.º, n.º 3, da Constituição), com vista a salvaguardar as condições da
investigação criminal e interesses particulares relevantes, nos termos citados. O
que pode realizar‑se com a aplicação analógica do limite do artigo 194.º,
n.º 4, alínea b), por maioria de
razão, e do artigo 86.º, n.º 9, ambos do CPP, aos casos de quebra do segredo
interno por decurso do prazo, vedando‑se, por via judicial, o acesso dos
particulares a elementos quando o seu conhecimento possa pôr gravemente em causa a
investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou colocar em perigo as
pessoas referidas no artigo 194.º, n.º 4, alínea b), do CPP. Solução que tem ainda o seu apoio no já citado artigo
86.º, n.º 9, do CPP.
Se assim não se
entender, deve concluir‑se, para todos os efeitos legais, que o artigo
89.º, n.º 6, do CPP é inconstitucional porque, ao criar um regime de quebra automática
do segredo interno num contexto em que o acesso ao processo deixou
de estar nas mãos do MP e passou a ser controlado pelo JIC (artigo 89.º, n.ºs 1
e 2), põe em causa de forma grave e desnecessária a investigação criminal, pelo
que não garante uma adequada protecção ao segredo de justiça, como exige o
artigo 20.º, n.º 3, da Lei Fundamental.”
No
presente caso, a decisão recorrida não adoptou a “interpretação conforme à
Constituição” preconizada no estudo acabado de citar, antes adoptou como critério
normativo – que este Tribunal tem de considerar como um dado da questão de constitucionalidade – o de que, findos os prazos
previstos no artigo 276.º e os das prorrogações previstas no n.º 6 do artigo
89.º, o arguido tem acesso irrestrito a todos os elementos constantes do
inquérito, independentemente da sua natureza.
Do
que se trata é, pois, de apreciar se o apontado critério normativo satisfaz o
requisito da adequação, constitucionalmente exigida pelo n.º 3 do artigo 20.º
da CRP, da protecção do segredo de justiça, tendo presente que, no presente
caso, tal como a questão de constitucionalidade foi definida, dos valores
constitucionais de que este instituto é instrumento, apenas está em causa a
protecção de direitos de outras pessoas, diferentes do requerente do acesso
aos autos.
A
resposta – adiante‑se desde já – é negativa.
Não
se nega que subjacente ao regime do n.º 6 do artigo 89.º do CPP está a
preocupação compreensível de proteger os arguidos (e outros intervenientes
processuais) de demoras excessivas na conclusão dos inquéritos, mas também não
se pode ignorar que, muitas vezes, especialmente na criminalidade económica, a
rápida conclusão do inquérito não depende exclusivamente da diligência do seu
titular, o Ministério Público, por tal implicar a actividade de terceiras
entidades (relatórios periciais, cartas rogatórias para outros países, etc.).
Acresce
que, no presente caso, não está em causa o acesso do arguido a elementos
constantes do processo que sejam necessários para a adequada defesa dos seus
direitos, designadamente para contrariar ou impugnar a aplicação de medidas de
coacção, hipótese em que a jurisprudência deste Tribunal tem considerado não
ser oponível o segredo de justiça, mesmo durante o decurso normal do prazo do inquérito
(o que obteve consagração nos n.ºs 1 e 2 do artigo 89.º e no n.º 4, alínea d), do artigo 141.º do CPP). Aliás, como
se documenta na alegação do Ministério Público, os arguidos têm proficuamente
exercitado o seu direito de impugnação de decisões que consideraram ter
afectado os seus direitos, como a decisão que indeferiu arguição de nulidade do
mandado de detenção, das decisões que decretaram e mantiveram a prisão
preventiva e da decisão que indeferiu arguição de nulidade de determinadas
apreensões. O que agora está em causa é a possibilidade de conhecimento do que
consta da globalidade do inquérito, pelo que o mero diferimento desse acesso
para momento subsequente ao encerramento do inquérito se reveste de menor
gravidade do que eventual recusa de acesso especificamente direccionado e
justificado pela necessidade de defesa eficiente contra actos concretos que
afectem a posição processual do arguido.
O
critério normativo adoptado na decisão recorrida mostra‑se, assim,
constitucionalmente inadequado na perspectiva da protecção de outros valores
constitucionais cobertos por outras formas de segredo e, designadamente, da
protecção da privacidade de terceiros, já que o sacrifício (definitivo) deste
valor não é necessário nem proporcionado para a tutela de interesses do
requerente de acesso, que podem ser alcançados, em termos substantivos, em
momento ulterior.
O
Ministério Público limitou a recusa de acesso a documentos constantes do
inquérito contendo “dados relativos à
reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e
fiscais sujeitos a segredo profissional”, salientando não ter sido ainda
concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e
utilização como prova ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos
termos do n.º 7 do artigo 86.º do CPP.
A
decisão recorrida adoptou um critério que não protege adequadamente os
interesses de terceiros, consentindo a lesão da sua privacidade decorrente da
irrestrita concessão de acesso a todos os elementos do inquérito aos arguidos
que o requereram, justamente por ter partido de uma interpretação segundo a
qual, verificada a situação prevista no n.º 6 do artigo 89.º do CPP, o acesso
franco do arguido ao inquérito é irrecusável, sejam quais forem os riscos de
lesão de outros valores que daí resultem. Ora, importa não esquecer que, sendo
certo que a inclusão no inquérito de elementos cobertos por esses tipos de
segredo já pressupôs um juízo de admissibilidade da sua quebra em homenagem
aos interesses da investigação, não menos certo é que estão em jogo outros
valores constitucionalmente protegidos, ligados à reserva das pessoas em causa
a que esses segredos respeitam (sobre a relevância do segredo bancário para a
defesa da intimidade da vida privada, cf., por último, o Acórdão n.º 442/2007),
que nada justificará sejam sujeitos a devassa por parte dos restantes
intervenientes processuais sem que previamente seja emitido o juízo de
relevância para a prova previsto no n.º 7 do artigo 86.º do CPP.
Ora,
é este critério normativo que, pelas razões expostas, se considera não respeitar
a adequação na protecção do segredo de justiça que o artigo 20.º, n.º 3, da CRP
impõe ao legislador.
3. Decisão
Em
face do exposto, decide‑se:
a) Julgar inconstitucional, por violação
do artigo 20.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação
do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei
n.º 48/2007, de 29 de Agosto, segundo a qual é permitida e não pode ser
recusada ao arguido, antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o
segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo,
neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas,
abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional, sem
que tenha sido concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu
relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução,
nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal; e,
consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso,
determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o
precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem
custas.
Lisboa,
12 de Agosto de 2008.
Mário
José de Araújo Torres
João
Cura Mariano
Joaquim
de Sousa Ribeiro
Benjamim
Silva Rodrigues (Vencido de acordo com a
declaração de voto que anexarei)
Rui
Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE
VOTO
1
– Votei vencido, por não poder acompanhar a tese da maioria que subscreveu o
acórdão.
2
– O acórdão chegou à solução de inconstitucionalidade do art.º 89.º, n.º 6, do
Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, por, em termos
resumidos, entender que o preceito “não assegura a adequada protecção do
segredo de justiça”, violando, por este modo, o disposto na segunda parte do
n.º 3 do art.º 20.º da CRP.
Para assim concluir, o acórdão entendeu que,
se era de aceitar a quebra do segredo relativamente a documentos do processo
constantes do inquérito contendo “dados
relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos
bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional”, “em homenagem aos
interesses da investigação”, “já nada justificará que esses elementos sejam
sujeitos a devassa por parte dos restantes intervenientes processuais sem que
previamente seja emitido o juízo de relevância para a prova previsto no n.º 7
do art.º 86.º do CPP”.
3
– O acórdão censurou, deste jeito, o juízo de proporcionalidade levado a cabo
pelo legislador subjacente à opção normativo-constitutiva constante do
preceito, com base num seu diferente juízo de proporcionalidade.
Ao
dispor no n.º 3 do art.º 20.º que “a lei
define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça”, a
Constituição remeteu para o legislador ordinário não só a definição dos
diversos conteúdos do segredo de justiça, como a previsão dos termos em que a
protecção desses conteúdos deve ser assegurada, apenas exigindo, quanto a tais
termos, que eles sejam adequados.
O
diploma fundamental deixa, pois, para o legislador ordinário a tarefa de construir
o regime do segredo de justiça, tarefa esta de que se desembaraçou nos art.ºs
86.º a 89.º do CPP, impondo-lhe apenas que, na regulação das situações de
confronto entre os diversos bens a tutelar (liberdade, honra e bom nome do
arguido, presunção de inocência do arguido, garantia dos direitos de defesa do
arguido, princípio do inquisitório ou da investigação criminal, respeito pelos
direitos de terceiro, verdade material, celeridade processual), seja seguido o
princípio da proporcionalidade.
A
obediência a tal princípio seria, de resto, postulada directamente pela própria
natureza do segredo, enquanto garantia fundamental institucional,
funcionalizada para a salvaguarda de interesses prosseguidos pelo “estatuto”
da investigação criminal e reclamados pelo “estatuto” do arguido.
No
Acórdão n.º 634/93, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal
Constitucional caracterizou o princípio da proporcionalidade nos seguintes
termos:
«[...] o
princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da
adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem
revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com
salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);
princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para
alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos
restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou
proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas
excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»
E,
debruçando-se sobre o sentido do princípio da adequação, afirmou-se no Acórdão
n.º 159/07, disponível no mesmo site:
«O
princípio da adequação ou idoneidade exige, pois, que as medidas restritivas
“sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição ou contribuam para o
alcançar” (Jorge Reis Novais, As
restrições aos direitos fundamentais não expressamente previstas na
Constituição, Coimbra Editora, 2003, p. 731). De acordo com este controlo
de aptidão, devem apenas considerar-se inidóneas as medidas restritivas cujos
efeitos sejam “indiferentes, inócuos ou até negativos, tomando como referência
a aproximação do fim prosseguido com a restrição” (obra citada, p. 738)».
Por
seu lado, escreveu-se no Acórdão n.º 187/01, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt:
«[…] não pode
deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da administração – […] uma
“prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de confiança”, na apreciação,
por vezes difícil e complexa, das relações empíricas entre o estado que é
criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que
considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objectivos
visados com a medida […]. Tal prerrogativa da competência do legislador na
definição dos objectivos e nessa avaliação […] afigura-se importante sobretudo
em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é social ou
economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem fazer (ou
suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.
[…]
em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação
da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das
medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de
dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação – como
é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer
compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a posição do
legislador.
[…]
a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade,
por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma,
depende justamente de se poder detectar um erro manifesto de apreciação da
relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na
competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente
complexa.»
Ora,
foi uma atitude exactamente inversa a esta boa doutrina, constantemente
renovada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que a tese da maioria
seguiu.
E
fê-lo, a nosso ver, esquecendo ou esvaziando de sentido diversos pressupostos
legislativos em torno dos quais a solução constitucionalmente agora censurada
foi construída pelo legislador ordinário.
Antes
de mais, importa dizer que se aceita que a opção legislativa concretizada na
norma possa não corresponder à melhor solução de regulação dos bens que aqui se
defrontam, especialmente quando esteja em causa a investigação de determinados
tipos de criminalidade, como sejam a económica ou a fiscal, ou em que haja a
necessidade de colaboração de entidades estrangeiras.
Mas
esse é um problema que deve apoquentar apenas o legislador ordinário e
motivá-lo a alterar a lei, que não o juiz constitucional, sendo que muita da
doutrina citada no acórdão se situa nesse plano.
Por
outro lado, admite-se, ainda, que o art.º 89.º, n.º 6, do CPP possa eventualmente
ser entendido em termos mais restritos do que aqueles que o acórdão recorrido
sufragou, recorrendo-se, por exemplo, a uma interpretação conjugada com o
disposto no n.º 7 do art.º 86.º do CPP (que não deixa de constituir também leit motiv da maioria), que possibilite
a recusa de acesso a determinados documentos com base em razões concretamente
explicitadas no despacho judicial, para salvaguarda de valores que se insiram
no núcleo essencial dos direitos fundamentais, sem que essa solução seja
constitucionalmente insolvente.
Mas
também não é esse o problema que aqui está colocado. Não cabe ao Tribunal
Constitucional dizer qual é o melhor
direito, mas apenas se o direito dito
como foi dito é não direito válido.
Ora,
a tese da maioria esquece ou irreleva totalmente a circunstância de a quebra
do segredo prevista no art.º 89.º, n.º 6, do CPP, que foi aplicada ao caso, dizer
respeito apenas ao arguido, que não
também a outros intervenientes
processuais, sendo certo que não pode aferir-se pelo mesmo diapasão o
interesse dos diversos intervenientes processuais na quebra do segredo na fase
do inquérito, já que os interesses do assistente e do ofendido são, pelo menos
no seu essencial, prosseguidos pelo Ministério Público. Estes não estão, seguramente,
do mesmo lado da relação jurídico-processual-penal em que se situa o arguido.
A
possibilidade do arguido “poder consultar todos os elementos do processo que se
encontre em segredo de justiça” abre-lhe, desde logo, nesse momento, a
possibilidade de poder contradizer ou esclarecer dados dele constantes e assim
contribuir para o mais rápido esclarecimento da situação penal.
Ora,
a celeridade da justiça é um bem constitucional que deve ser eficazmente
prosseguido.
Por
outro lado, o princípio do contraditório, conquanto emerja com diferentes
intensidades nas diversas fases do processo conformadas pelo mesmo legislador
ordinário, não demanda que não possa ser exercido nas situações em que o
processo se tornou totalmente conhecido pelo arguido, nas condições do art.º
89.º, n.º 6, do CPP, bem diferentes das recortadas nas alíneas anteriores do
mesmo artigo.
Não
é indiferente e irrelevante a possibilidade de o arguido contradizer e esclarecer
hoje ou amanhã os dados mantidos secretos, como é a tese da maioria. Contra
isso vai o princípio da celeridade processual e da justiça e os pressupostos
que o justificam.
É
ao legislador que cabe, em primeira linha, nos termos do n.º 3 do art. 20.º da
Constituição, fazer a ponderação dos bens que estão em tensão no segredo de
justiça direccionado para o arguido,
maxime, o grau de protecção que, no
momento a que se refere o art.º 89.º, n.º 6, do CPP, deve ser conferido ao
interesse público da investigação criminal e a todas as garantias de defesa do
arguido (art.º 32.º, n.º 1, da CRP).
Mas
a tese da maioria esqueceu, ainda, que a quebra do segredo de justiça, em
relação ao arguido, que é a dimensão que está em causa, apenas ocorre depois de esgotados os prazos de duração
máxima do inquérito previstos no art.º 276.º do CPP, bem como a circunstância
de o segredo poder ser “adiado por um período máximo de três meses, o qual pode
ser prorrogado por uma só vez” (art.º 89.º, n.º 6, do CPP).
Ora,
ao eleger os prazos de duração máxima do inquérito, com os quais conectou a
existência do segredo de justiça, bem como ao prever a possibilidade de
extensão temporal desse segredo por tal período suplementar, o legislador
ordinário efectuou, dentro da sua discricionariedade constitutiva, uma
ponderação em abstracto dos bens ou valores conflituantes referidos no
acórdão, que importa ser respeitada, por não se afigurar ser desadequada à
harmonização prática, na medida do possível, daqueles valores, nesse momento do
processo tido por ele como suficiente
para a investigação em segredo.
Com
a solução ditada pelo acórdão, a maioria estendeu o segredo de justiça por tempo indeterminado.
Enquanto
não for concluída a análise dos elementos “bancários e fiscais”, “em termos de
poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a
sua destruição ou devolução, nos termos do art.º 86.º, n.º 7, do CPP”, o
segredo relativo a esses elementos e documentos mantém-se: no mínimo até à
dedução da acusação e, no limite, até à extinção por prescrição do procedimento
criminal.
Ora,
nada na Constituição impõe que o segredo tenha de perdurar por todo o tempo que pode ter na prática a fase do inquérito, até
porque a definição do “tempo legal” foi deixada ao legislador ordinário.
Situando-se,
de resto, a falta de conclusão da análise dos elementos em causa na sede do
titular da investigação criminal, não deixa de ser absurdo que seja ele quem
“tira proveito” da ineficiência ou ineficácia a que o sistema porventura
conduza.
Mas
há mais.
A
tese da maioria esquece que os elementos bancários e fiscais que importa
considerar, ainda que ligados à esfera privada de terceiros, são apenas aqueles
que possam constituir meios de prova (n.º 7 do art.º 86.º do CPP).
Assim
sendo, impõe-se que o titular da investigação criminal nem sequer incorpore no
processo, e os destrua ou devolva à pessoa a que digam respeito, os elementos
que não tenham aptidão para servir de meios de prova.
Mesmo
relativamente àqueles meios, a possível lesão da intimidade da vida privada
decorre, essencialmente, não directa e imediatamente, da actividade processual
do arguido (a sua consulta nos autos) mas da actividade anterior de
investigação.
Não
se vê que interesses constitucionalmente protegidos, realizada que foi determinada
acção de investigação a coberto da prossecução dos interesses da justiça criminal,
imponham que continue a ser constitucionalmente subtraída ao arguido, ainda no momento assinalado pelo art.º 89.º, n.º 6, do CPP, a
possibilidade de logo os conhecer, dado que tal não deixa de corresponder a uma
simples antecipação, em caso de dedução de acusação.
Deste
modo, a lesão justificativa da leitura feita pela maioria limitar-se-ia, apenas,
ao risco de serem conhecidos, além desses, também os outros documentos que a
acusação não revelará.
Mas
estando esgotado o prazo de duração máxima do inquérito e das prorrogações do
segredo de justiça, ponderadas pelo legislador como suficientes para realizar a
investigação em segredo, afigura-se ser bem mais relevante salvaguardar a
opção do legislador que passou por atender prevalentemente aos interesses do
arguido e à possibilidade de logo exercer todos os meios de defesa previstos
na lei.
De
resto, a possibilidade de consulta do arguido dos elementos do processo não
tolhe a investigação criminal de poder
prosseguir.
O
que acontece é, apenas, que essa investigação, quando relativa aos elementos
constantes do processo, passa a ser uma investigação aberta logo à
possibilidade de contraditório.
Por
outro lado, não poderá esquecer-se que os direitos cobertos pela reserva da
vida privada, que estão em causa (elementos bancários e fiscais), nem sequer
integram o conteúdo essencial de qualquer direito fundamental, demandando uma
tutela constitucional mais enfraquecida, entendendo o legislador ser ela
merecedora de menor protecção que o acesso do arguido a esses elementos, em
nome de um direito constitucional de defesa.
Mas
a tese da maioria irrelevou ainda um factor verdadeiramente decisivo.
Referimo-nos
ao facto de a consulta do processo, ao abrigo do disposto no art.º 89.º, n.º 6,
do CPP, não exonerar o arguido do dever de manter o segredo de justiça relativamente
aos elementos a que acedeu. O arguido fica na mesma posição do titular do
Ministério Público que prossegue a investigação.
Ora,
conquanto se possa convocar o facto de o titular do Ministério Público estar
inserido em uma organização institucional e sujeito a uma hierarquia e disso
poder funcionar como elemento dissuasor da quebra do segredo, não vemos que
tal constitua, então, razão suficiente para continuar a fundamentar uma
diferenciação no acesso ao conhecimento dos meios de prova quando estes tenham
implicado a quebra do segredo tutelador de direitos abrangidos pela reserva da
vida privada, dado o facto de, também, o arguido estar abrangido pelo tipo
legal de crime recortado no art.º 371.º do Código Penal (violação de segredo de
justiça).
A
tese que fez vencimento consubstancia uma substituição da ponderação levada a
cabo pelo legislador ordinário, fora do âmbito essencial do regime do segredo,
porquanto relativa ao tempo da sua
duração no que vai para além dos prazos de duração máxima do inquérito e de
um certo alongamento desse prazo em algumas circunstâncias.
Nestes
termos, a pretexto de garantir um conteúdo
mínimo ao segredo de justiça, a maioria acabou por conceder uma protecção máxima (de tipo absoluto) ao princípio
da investigação criminal, durante a fase do inquérito, com detrimento da
eficácia e eficiência da garantia constitucional de que o processo criminal
assegura (no tempo adequado) todas as garantias de defesa ao arguido (art.º
32.º, n.º 1, da CRP), sendo que a solução agora censurada encontra a sua razão
de ser na opção do legislador ordinário pela eficácia desta última garantia,
decorridas que se mostram a duração máxima legal do inquérito, definida na lei
e dentro dos termos que lhe são constitucionalmente permitidos, e ainda a
prorrogação de tempo de segredo prevista no preceito.
Benjamim Silva Rodrigues