ACÓRDÃO Nº
589/07
Processo n.º 473/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do
Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Em acção de
impugnação de paternidade em que se suscitou a questão da intempestividade da
propositura da acção por incumprimento do prazo previsto na alínea a) do n.º 1
do artigo 1842º do Código Civil, o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de
revista, pelo acórdão de fls. 306-316, veio a formular um juízo de
inconstitucionalidade relativamente à referida disposição legal, recusando a
sua aplicação no caso concreto.
A decisão do Supremo
Tribunal de Justiça fundou-se essencialmente na orientação firmada pelo
Tribunal Constitucional no acórdão n.º 486/04, de 7 de Julho (confirmada em
Plenário pelo acórdão n.º 11/05, de 12 de Janeiro), que, relativamente a uma
acção de investigação de paternidade, julgou inconstitucional a norma do artigo
1817º, n.º 1, do Código Civil (aplicável por força da remissão feita pelo
artigo 1873º do mesmo Código), por violação das disposições conjugadas dos
artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição da República, e
cuja argumentação se considerou ser transponível para o prazo de caducidade da
acção de impugnação de paternidade a que se refere o artigo 1842º, n.º 1,
alínea a), e que estava em causa nos autos.
Para assim concluir, o
acórdão entendeu, em suma, que a fixação de um prazo de caducidade para a propositura
da acção de impugnação de paternidade, sacrificando a «verdade biológica»,
representa uma restrição não constitucionalmente justificada do direito de
acção, pondo em causa o direito
fundamental à identidade pessoal e o direito
fundamental à integridade pessoal, bem como o direito ao desenvolvimento da personalidade.
Dessa decisão recorreram
para o Tribunal Constitucional, com invocação do disposto na alínea a) do n.º 1
do artigo 70º da Lei do Tribunal constitucional, o Ministério Público (cujo
recurso era obrigatório) e a ré A. (mãe da menor cuja paternidade era impugnada
na acção).
Nas suas alegações, o
Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
1ª - A norma constante da alínea a) do nº 1 do
artigo 1842º do Código Civil, ao atribuir ao marido da mãe o direito de
impugnar a paternidade presumida no prazo de 2 anos, contados do conhecimento
de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, garante, em
termos efectivos e adequados, o direito ao estabelecimento da verdade
biológica, traduzindo uma adequada ponderação entre o interesse do impugnante
em destruir uma paternidade presumida que considera sem base biológica e os
interesses do filho – afectado por tal acção “negatória” da paternidade, em que
figura como réu – e da estabilidade e protecção da família conjugal.
2ª - Não pode inferir-se
da Constituição que o único modelo, constitucionalmente admissível, em sede de
acções de estabelecimento ou de impugnação da paternidade, seja o da absoluta
imprescritibilidade de todas elas, incluindo as acções “negatórias”, que
extinguem a própria relação jurídica.
Por sua vez, a Ré,
também recorrente, concluiu a sua alegação do seguinte modo:
A)
A questão
fundamental colocada no presente recurso é assim a de saber se caduca ou não o
direito de acção por parte do progenitor constante do registo de nascimento por
decurso do prazo previsto no artigo 1842°, n.° 1, alínea a), do Código Civil,
quando se encontre cientificamente provado que o menor não é descendente do
demandante.
B)
O recurso
ora interposto tem por objecto a apreciação da inconstitucionalidade da norma
da alínea a) do n.° 1 do artigo 1842. ° do Código Civil, quando interpretada no
sentido de que não caduca o direito de acção por parte do progenitor, constante
do registo de nascimento, pelo decurso do prazo previsto no citado preceito
legal, quando se encontre cientificamente comprovado que o menor não é
descendente do impugnante.
C) Nos autos terá de se
reconhecer que o impugnante intentou a acção para além do prazo estabelecido no
artigo 1842°, n.° 1, alínea a), do CC. e de que nenhuma prova efectuou de ter
instaurado a acção dentro daquele prazo.
D) O acórdão recorrido
considerou, no essencial, que quando se está em frente da verdade biológica,
não interessam as limitações temporais que a lei imponha para o exercício do
direito de acção nos termos do citado preceito legal, por tal ofender os
direitos constitucionais à “identidade
pessoal”, à ‘integridade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade”,
e em concreto os artigos 25°, 26.° n.° 1,
e 18°, n.° 2, da Constituição da
República.
E) O acórdão recorrido
assenta a sua motivação, no essencial (mas não em exclusivo) na jurisprudência
do Tribunal Constitucional relativa ao prazo constante do artigo 1817.° do C.
C., para a propositura das acções de investigação da paternidade, e considera
que os respectivos pressupostos têm inteira aplicação ao caso concreto
impugnação da paternidade ), por tal temática ser muito semelhante à ora em
apreciação.
F) A questão colocada no
presente recurso é completamente diversa da apreciada quanto à investigação da
paternidade. Isto porque, o caso sub
iudice refere-se à impugnação da paternidade já estabelecida de uma
menor nascida no casamento, enquanto no Acórdão do TC n.° 486/04, de 7 de Julho, estava em
causa a investigação da paternidade por parte do filho para além dos 20 anos de
idade; e em ambos os casos, quer no caso sub judice, quer no apreciado no Acórdão do TC
n.° 486/04, de 7 de Julho, estão em causa prazos de caducidade das respectivas
acções. Porém, estes prazos têm uma configuração completamente distinta um do
outro: enquanto o prazo para propor a acção de investigação da paternidade se
extinguia com o completar dos 20 anos de idade do filho, e., trata-se de um
prazo puramente objectivo e muito curto; aqui, o prazo para propor a acção de
impugnação da paternidade é de dois anos a contar do momento em que o
impugnante teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não
paternidade, i.e., pode durar, potencialmente, desde o nascimento do pretenso
filho até à morte do impugnante;
G )A jurisprudência dos
Acórdãos n.ºs 486/04, 413/89, 451/89, 311/95
e 506/99 do Tribunal Constitucional, é uniforme no sentido de considerar que,
de principio, não é contrária à Constituição a existência de prazos para o
exercício do direito de acção das acções de estado (investigação da
paternidade, impugnação da paternidade, etc.
H ) A linha central
desta conclusão assenta, segundo o Acórdão do TC n.º 486/04, no essencial, na
consideração de que as normas que estabelecem aqueles prazos, resultam de uma
ponderação de vários direitos e interesses contrapostos, o que conduz, não
propriamente a uma restrição, mas a um condicionalismo aceitável ao exercício
do direito à identidade pessoal ( do investigante);
I) Resulta desta mesma
jurisprudência uniforme que, a existência de inconstitucionalidade desses
prazos prende-se com o princípio da proporcionalidade, ou seja, esses prazos
serão inconstitucionais, quando representem, já não uma mera limitação, mas
antes uma restrição intolerável, aos direitos fundamentais.
J) No caso destes autos,
o impugnante tem até à sua morte e desde o nascimento do pretenso filho, o
direito de impugnar a paternidade, desde que o faça no prazo de 2 anos a contar
da data em que teve conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se a
sua não paternidade.
K) Foi este prazo amplo
que o acórdão recorrido julgou inconstitucional, defendendo que, quando se
encontre cientificamente comprovada a não descendência, não relevam os prazos
que a lei imponha para o exercício do direito de acção constante do mencionado
artigo 1842°, n.° 1, alínea a), do C. C., por tal ofender o direito com
protecção constitucional à identidade pessoal “, o direito à integridade
pessoal “ e o direito ao desenvolvimento da personalidade consagrados nos
artigos 25º, 26.°. n.° 2, e 18.° da CRP.
L) Deste raciocínio
retira-se claramente que, à luz das mesmas considerações, não só será
inconstitucional o prazo do artigo 1842°, n.° 1, alínea a ), do C. C. aqui em
análise, como serão todos os prazos de idêntica natureza desde que demonstrada
se encontre a verdade biológica, v.g.,
os prazos constantes dos artigos 1817°, n.° 3, 1842°, n.° 1, alínea c), 1843°,
n.° 1, do C.C..
M ) O acórdão recorrido
acaba por dar uma importância extraordinária aos exames de ADN e assim ao quase
desaparecimento do argumento do envelhecimento da prova H acabando por esquecer
os outros dois argumentos (a segurança jurídica e a instrumentalização da
acção), ou subalternizando-os de tal forma que os torna absolutamente
irrelevantes.
N) No caso dos autos,
trata-se da impugnação da paternidade já estabelecida. Encontrando-se a
maternidade e a paternidade já estabelecidas, a relevância da prova pericial
(ADN), no cotejo com as outras duas razões, não assume uma importância tão
vital como lhe atribui o acórdão recorrido. Isto porque, o interesse de
estabelecer uma “filiação biológica “ (no caso da investigação da paternidade)
não é tão forte como o de substituir uma filiação social (no caso da impugnação
da paternidade já estabelecida).
O) O princípio da
proporcionalidade não exige, portanto, que se dê assim uma primazia tão
absoluta ao interesse do impugnante, com violação, no entender da recorrente,
dos interesses do filho.
P) No plano da realidade
e no plano jurídico, a filiação social, a família social, é a que, em primeira
linha, é chamada a desempenhar o papel fundamental de espaço de afectos, de
criação, de crescimento, formação e desenvolvimento do individuo, libertando o
Estado daquelas funções, que de outro modo seria chamado a desempenhar. A
filiação biológica, a família biológica, só por si, não é garantia de
desempenho aquele papel fundamental.
Q ) Daí que,
encontrando-se a paternidade já estabelecida, há que atender também aos
interesses do pretenso filho, que podem ser os de manter o status quo que
já detém. Donde, conceder ao impugnante da paternidade o direito de, a todo o
tempo e sem quaisquer limitações aceitáveis, destruir uma relação de
interesses, que pode ter sido também de afectos, e que pode ter durado anos, está-se a invadir a
esfera dos direitos pessoais e individuais absolutos à “identidade pessoal”,
“integridade pessoal” e ao “desenvolvimento da personalidade” do filho,
consagrados nos artigos 25°, 26.°, n.° 2, e l8.° da CRP.
R) É direito do filho
ter uma paternidade legal. Se se atribui o direito imprescritível e ilimitado a
impugnar a paternidade está-se a invadir a esfera da integridade pessoal do
filho, a qual só por este pode ser exercido.
S) A tese do acórdão
recorrido, ao não considerar constitucional a existência de quaisquer prazos
para o exercício da acção de estado quando a verdade biológica se encontra
estabelecida, é geradora da maior incerteza social e potenciador,
especialmente, de situações de instrumentalização da acção.
T) Na verdade, pela
alínea a) do n.° 1 do artigo 1842° do C. C. o direito a impugnar não é
restringido na sua amplitude; apenas é regulado o seu exercício em função de
outros interesses que no caso também concorrem e mantêm plena actualidade, como
principalmente o da certeza e segurança jurídica
U) Pela alínea a) do n.°
1 do artigo 1842.° do C. C. não é imposto ao impugnante qualquer ónus
impossível nem imposta qualquer restrição inaceitável ao seu direito de
impugnar.
V) Os ensinamentos
históricos que se colhem do Acórdão do TC n.º 486/04, permitem concluir também
que, quando o regime da investigação da paternidade (diferente do caso dos
autos) foi completamente aberto, houve necessidade de o limitar, por conduzir,
entre outros, à possibilidade de “instrumentalização
da acção” e ser gerador de enorme insegurança jurídica.
W) A previsão de um
prazo de caducidade anda, aliás, sempre ligada à ideia de segurança jurídica,
por não dever quem pode vir a ser onerado com o exercício de pretensões alheias
estar sujeito indefinidamente a que essa possibilidade de exercício paire
indefinidamente sobre a sua cabeça e o legislador previu-o neste caso por
entender que aquele prazo traduzia uma limitação proporcionada do direito de
impugnar a paternidade, para defesa de interesses importantes como a segurança
jurídica e o impedimento de um mau exercício dos direitos, para finalidades
censuráveis.
X) Dai que,
essencialmente por razões de segurança jurídica e de evitar a
instrumentalização da acção, se deva admitir como constitucional o
estabelecimento de prazo, aliás extremamente alargado para o exercício do
direito de acção.
Y) Estes princípios são
merecedores de tutela constitucional — desde logo o interesse público na
certeza e segurança jurídica, sempre presente em toda a regulamentação jurídica
e intimamente ligado à consagração de qualquer prazo para o exercício de um
direito (cfr. artigo 20.° da Constituição da República).
Z) Impõe-se concluir que
aqueles princípios que justificam o estabelecimento do prazo não foram
devidamente ponderados no acórdão recorrido, nomeadamente o princípio da
segurança jurídica.
AA) Entende a recorrente
que não existe qualquer imposição constitucional de uma ilimitada averiguação
da verdade biológica (vide, por
exemplo, o artigo 1839°, n.° 3, do C.C. ). O que existe, constitucionalmente
imposto é o principio da verdade jurídica corolário intrínseco do Estado de
Direito e portanto, o da segurança jurídica.
BB) Tem aqui portanto
inteira aplicação o brocado latino dormiontibus non succumi, pois, o prazo estabelecido
legalmente a favor do impugnante é, extremamente alargado, potencialmente até à morte deste.
CC) A invocada
inconstitucionalidade da alínea a ) do n.° 1 do artigo 1842.° do C.C., quando
aplicável à acção de impugnação da paternidade, no existe e, à luz das
considerações já expendidas, não se vê como é que tal normativo colide com os
artigos 25°, 26.°, n.° 1, e 18.°
da CRP — tal como defende o Tribunal a quo.
DD) Face ao exposto, o
acórdão recorrido ao considerar inconstitucional o artigo 1842, n.° 1, alínea a
), do C.P.C. violou os artigos 25°, 26.°, n.° 1, 18.°, n.º 1.°, da Constituição
da República Portuguesa.
O autor na acção, ora
recorrido, contra-alegou, concluindo assim.
A – Face à verdade
biológica resultante do resultado obtido nos exames de ADN que concluiu ser impossível o recorrido ser pai da
menor, não se aplica o prazo de caducidade de 2 anos, previsto no n°1 do artigo
1842° do CC, uma vez que face a
essa certeza absoluta, é possível impugnar a todo o tempo a paternidade,
independentemente de prazo.
B – A não ser assim,
viola-se o direito à verdade biológica, o direito fundamental à identidade e
integridade pessoal da recorrido e da própria menor, bem como o direito
sucessório dos que efectivamente são filhos do recorrido, fica afectado,
C – Todos temos direito
de conhecer a paternidade. E todos têm o direito a ver estabelecida a sua filiação
ou paternidade, independentemente de prazos, desde que cientificamente provada,
como é o caso dos presentes autos.
D – De resto, é
incompatível com os valores actuais, que a pretexto de uma pretensa caducidade,
continue a premiar-se a mentira da mãe da menor, já que, comprovadamente
através do teste de ADN, a recorrente violou o dever de confiança perante o
recorrido e de lealdade para com a própria menor
E – A verdade biológica deve prevalecer, independentemente de
prazo, sob pena de se violarem os artigos 25°, 26°, n° 1, 36°, n°1, e 18º, n°
2, da Constituição da República; Donde,
F – Tendo resultado do
teste de ADN que o recorrido é excluído da paternidade da menor, filha da
recorrente,
G – E uma vez que todos
temos o direito de conhecer a paternidade e o direito a ver estabelecida a
nossa filiação ou paternidade, independentemente de prazos, desde que,
cientificamente provada,
H – O prazo de
caducidade estabelecido no n.° 1 do
artigo 1842° do CC é inconstitucional por violar os artigos 25°, 26°, n°
1, 36°, n°1, e 18º, n° 2, da Constituição da República, e, como tal, foi
ultrapassado pela lei principal - a Constituição
I – E, como tal,
declarada a inconstitucionalidade do artigo 1842°, n° 1, alínea c), do CC,
podendo o pretenso pai, nos casos em que a genética comprove que
não é o pai, impugnar a paternidade a todo o tempo.
Colhidos os vistos,
cumpre apreciar e decidir.
II.
Fundamentação
2. O acórdão recorrido
desaplicou a norma do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, que estipula
um prazo de caducidade para a acção de impugnação de paternidade, por
considerar como válidas para esse caso as considerações explanadas na mais
recente jurisprudência constitucional relativamente à norma do artigo 1817º,
n.º 1, do mesmo Código, quando aplicável, por força do artigo 1873º, à acção de
investigação de paternidade.
Para além
de outras especificações que para o caso não interessa considerar, dispõe esse
artigo 1817º, no seu n.º 1, que «[A] acção
de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do
investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou
emancipação». O n.º 2 fixa ainda, para a propositura da mesma acção, o prazo de
um ano a contar da rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do
registo inibitório, contanto que a remoção do obstáculo tenha sido requerida
até ao termo do prazo estabelecido no número anterior.
O Tribunal
Constitucional começou por se pronunciar no sentido da conformidade
constitucional dessas normas, enquanto estabelecem uma limitação temporal ao
exercício do direito a ver judicialmente estabelecida a paternidade (cf.
Acórdãos nºs 99/88 – DR, II Série, de
22 de Agosto de 1988, 413/89 – DR, II
Série, de 15 de Setembro de 1989, 451/89 – DR,
II Série, de21 de Setembro de 1989, 311/95 – inédito, e 506/99 – DR, II Série, de 17 de Março de 2000).
Nesses arestos, a
previsão de um prazo para a instauração da acção de investigação de paternidade
e a fixação do respectivo termo a quo
de acordo com um critério objectivo (por referência à maioridade ou emancipação do investigante) foi considerada como
legítima por razões de certeza e segurança que visavam evitar a manutenção de
uma situação de pendência ou dúvida acerca da filiação por períodos excessivamente
longos.
Posteriormente, porém, o
acórdão n.º 456/03, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade do
n.º 2 do artigo 1817º, teve em atenção a
configuração particular de um caso em que o vínculo de filiação juridicamente
estabelecido acabou por se extinguir por efeito da declaração de procedência de
uma acção de impugnação da paternidade, que foi instaurada, por quem constava
do registo como pai, muito depois de transcorrido o prazo que aquele preceito
fixava para a proposição da acção de investigação de paternidade.
Ponderou-se, nesse caso,
que o filho, no período em que, de acordo com o teor literal da lei, podia
instaurar a acção de investigação de paternidade, encontrava‑se numa
situação em que tinha o vínculo de filiação estabelecido de forma incontestada,
e que não dispunha, por isso, de qualquer fundamento para interpor uma acção de
investigação de paternidade.
Nesse contexto,
entendeu-se que a consagração de limites ao exercício do direito a ver
reconhecida a filiação natural torna-se constitucionalmente inadmissível, no
ponto em que inutiliza, em relação ao autor da acção de investigação da
paternidade, o direito à identidade pessoal, entendido, no seu conteúdo
essencial, do direito de qualquer pessoa tomar conhecimento da sua ascendência,
nomeadamente, da sua filiação natural (artigo 26º da Constituição).
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional
veio a declarar a inconstitucionalidade do regime geral do artigo 1817º, n.º 1,
do Código Civil, através do acórdão n.º 486/04, de 7 de Junho, por violação das
disposições conjugadas dos artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da
Constituição, aresto que, tendo sido passível de recurso com fundamento em
oposição de julgados (tendo em conta a anterior orientação jurisprudencial quanto
a essa matéria), foi confirmado em Plenário pelo acórdão n.º 11/05, de 12 de
Janeiro.
Sucede ainda que a
referida norma, enquanto prevê a extinção, por caducidade, do direito de
investigar a paternidade a partir dos 20 anos de idade do filho, foi declarada
inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 23/06, de 10 de
Janeiro, na sequência de um pedido nesse sentido formulado pelo
Procurador-Geral da República, por entretanto a mesma norma ter sido julgada
inconstitucional, em fiscalização concreta, em mais de três casos concretos
(além dos referidos acórdãos n.ºs 486/04, da 2.ª Secção, e 11/05, do Plenário,
também nas decisões sumárias n.ºs 114/05, de 9 de Março, e 288/05, de 4 de
Agosto).
O entendimento jurisprudencial
que se firmou no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 1817º, n.º
1, do Código Civil, enquanto limita aos dois primeiros anos posteriores à
maioridade ou emancipação a possibilidade de o interessado, sem paternidade
estabelecida, interpor uma acção de investigação de paternidade, parte do parâmetro constitucional que resulta do n.º
1 do artigo 26º da Constituição, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão
do «direito fundamental à identidade pessoal».
Não deixando de pôr em
relevo as razões que justificaram de jure
constituto a previsão de um prazo limitativo da acção de investigação e que
se prendem com a segurança jurídica dos
pretensos pais e seus herdeiros (visando prevenir o prolongamento de uma
situação de indefinição quanto ao estabelecimento dos vínculos de filiação),
com o progressivo “envelhecimento” ou
perecimento das provas (considerando que a passagem do tempo potencia o
perigo de falibilidade da prova testemunhal, aumentando a possibilidade de
fraude), e ainda com o risco de aproveitamento meramente egoístico por parte do
investigante (quando apenas pretenda utilizar a acção para aceder, por
sucessão, aos meios de fortuna que pertençam ao pretenso pai), a citada jurisprudência
chama particularmente à atenção para novos elementos sociológicos e
técnico-científicos que tornam justificável uma evolução nas soluções
legislativas e doutrinais.
A
este propósito, no citado acórdão n.º 486/04, que constitui a matriz da orientação
jurisprudencial que tem sido adoptada em relação ao prazo de caducidade fixado
na referida da norma do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, afirmou-se o
seguinte:
Com
efeito, tem-se verificado uma progressiva, mas segura e significativa,
alteração dos dados
do problema, constitucionalmente relevantes, a favor do filho e da
imprescritibilidade da acção – designadamente, com o impulso científico e
social para o conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética, e a
generalização de testes genéticos de muito elevada fiabilidade. Esta alteração não deixa incólume o equilíbrio de
interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e
sancionado também pela jurisprudência, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a
paternidade.
Grande parte da
responsabilidade vai, aqui, para o peso dos exames científicos nas acções de
paternidade e para a alteração da estrutura social e da riqueza, levando a
encarar a outra luz a dita “caça às fortunas”. Mas nota-se também um movimento
científico e social em direcção ao conhecimento das origens, com
desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, que têm acentuado a
importância dos vínculos biológicos (mesmo se, porventura, com exagero no seu
determinismo). O desejo de conhecer a ascendência biológica tem sido tão
acentuado, que se assiste a movimentações no sentido de afastar o segredo sobre
a identidade dos progenitores biológicos, mesmo para os casos de reprodução
assistida (cuja consideração está, evidentemente, fora do âmbito do presente
recurso), tendo até, entre nós, sido já aprovada uma proposta de lei (a
Proposta n.º 135/VII, in Diário da
Assembleia da República, I série, n.º 95 de 18 de Junho de 1999, págs.
3439-3440 e 3459-3460) que previa a possibilidade de as pessoas nascidas em
resultado da utilização de técnicas de procriação medicamente assistida
obterem, após a maioridade, informações sobre a identidade dos seus
progenitores genéticos (só não tendo entrado em vigor por ter sido objecto de
veto político pelo Presidente da República).
Não deve, igualmente,
ignorar-se a valorização da verdade e da transparência, com a possibilidade de
acesso a informação e dados pessoais e do seu controlo, com a promoção do valor
da pessoa e da sua “auto-definição”, que inclui, inevitavelmente, o
conhecimento das origens genéticas e culturais. A partir de 1997, consagrou-se,
aliás, expressamente um “direito ao desenvolvimento da personalidade” no artigo
26º da Constituição (Paulo Mota Pinto, O
direito ao livre desenvolvimento da personalidade, in Portugal-Brasil, ano 2000, Coimbra, 2000), comportando dimensões
como a liberdade geral de acção e uma cláusula de tutela geral da
personalidade. E, se tanto o pretenso filho como o suposto progenitor podem
invocar este preceito constitucional, não é excessivo dizer-se que ele “pesa”
mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas
origens.
Neste plano de
avaliação, o acórdão que vimos de acompanhar passa a desvalorizar as considerações
de ordem ético-pragmática (já há pouco sintetizadas) que têm servido de
fundamento à conveniência do estabelecimento de um limite temporal para a
propositura de acções de investigação.
Assim, e em relação aos
riscos da prova relativa à matéria da filiação, quando a introdução da acção em
juízo possa ser diferida no tempo, pondera-se agora que essa justificação não é
de todo relevante face aos avanços
científicos que têm permitido o emprego generalizado de testes de ADN com uma
fiabilidade próxima da certeza e que torna possível estabelecer com grande
segurança o vínculo de maternidade ou de paternidade. Também o risco de
instrumentalização da acção de investigação, na perspectiva de que o
investigante poderia ser motivado a agir por razões puramente patrimoniais
(quando pudesse intentar a acção a qualquer tempo) tem hoje de ser avaliado à
luz de uma nova realidade sociológica em que entra em linha de conta a
recomposição do tecido social e de distribuição de riqueza, a ponto de não
poder retirar-se a ilação de que o filho, apenas porque não tem definido o seu
vínculo de filiação, se encontra numa situação de inferioridade económica e
social em relação ao pretenso progenitor, que, por si, possa estimular o
recurso à acção apenas com o intuito de obter um direito à herança paterna. A
que acresce agora, também, uma mais forte consciencialização dos direitos de
personalidade, por parte dos cidadãos, e, em especial, do direito à identidade
pessoal, que poderá ter um peso mais significativo, no impulso processual, do
que a simples expectativa sucessória. Por fim, entende-se também que o
interesse do pretenso progenitor em libertar-se da situação de incerteza quanto
à existência de um vínculo de paternidade, que redunda numa garantia de
segurança jurídica, não tem um valor decisivo quando colocado em confronto com
bens constitutivos da personalidade, e não pode merecer uma protecção superior
àquela que deve ser conferida a um direito eminentemente pessoal, como é o de
conhecimento da identidade dos progenitores.
Foram
estes argumentos que, em tese geral, foram acolhidos no acórdão ora recorrido e
que, com a colocação da tónica no princípio da verdade biológica, vieram a determinar a formulação de um juízo de
inconstitucionalidade também em relação à norma do artigo 1842º, n.º 1, alínea
a), do Código Civil, no ponto em que fixa, em relação ao marido da mãe, um
prazo de dois anos para a propositura da acção de impugnação de paternidade
contado do momento do conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a
sua não paternidade.
A
questão que se coloca no presente processo é, pois, a de saber se as
considerações que conduziram o Tribunal Constitucional a declarar a
inconstitucionalidade da norma do artigo 1817º, n.º 1, do mesmo Código,
aplicável à acção de investigação de paternidade, são plenamente transponíveis
para a apreciação do prazo de caducidade previsto naquela outra disposição
legal, que, diferentemente, se refere à propositura de acção de impugnação de
paternidade.
3. Antes de mais, afigura-se necessário
sublinhar – tal como faz o Exmo magistrado do Ministério Público na sua
alegação – que as acções com incidência
no estabelecimento da paternidade estão subordinadas a um regime jurídico
diferenciado, mormente no tocante aos prazos de caducidade.
Quanto ao reconhecimento judicial da paternidade,
através da falada acção de investigação, o artigo 1869º atribui legitimidade
activa apenas ao filho, que, nos termos do artigo 1817º (por via da remissão
operada pelo artigo 1873º) poderia propor a acção durante a menoridade ou nos
dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. O prazo
limite, que corresponde, em regra, ao momento em que o investigante atinge 20
anos de idade, é estritamente objectivo,
na medida em que se conta a partir de um evento pré-determinado (o momento em
que o investigante atinge a plena capacidade jurídica) e que torna irrelevante,
em princípio, um conhecimento subjectivo
tardio do vínculo biológico em que assenta a filiação que o filho pretende
estabelecer juridicamente. Só nos casos excepcionais, regulados nos nºs
2 a 6 desse preceito legal, é que poderia relevar juridicamente, para efeitos
de caducidade, certo facto produzido ulteriormente ao momento em que se
consumou a maioridade ou a emancipação do investigante, caso em que o prazo
para a propositura da acção (que fica então reduzido a um ano) se conta a
partir desse evento: a remoção de registo inibitório, por efeito da
rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo (n.º 2); o
acesso a escrito em que se declara inequivocamente a paternidade (n.º 3);
alteração da relação fáctica ou social que pressuponha o reconhecimento
informal de tal vínculo, seja por efeito da morte da mãe ou do investigante,
quando este em vida fosse tratado voluntariamente como filho, seja por efeito
da cessação voluntária do tratamento como filho (n.ºs 4 e 5).
No que se refere à acção de impugnação de paternidade
– que visa a impugnação da paternidade presumida do filho nascido ou concebido na
constância do matrimónio da mãe –, o artigo 1842º do Código Civil, não só
amplia o critério de legitimidade, uma vez que permite que a acção possa ser
proposta autonomamente pelos diversos titulares da relação jurídica (o marido,
a mãe e o filho), como também estabelece prazos de diferente duração e modo de
contagem. O marido da mãe beneficia de um prazo de 2 anos, contado da data em
que teve conhecimento de factos ou circunstâncias de que possa concluir-se a
sua não paternidade, e, portanto, sem qualquer limite objectivo. A mãe do menor
dispõe do mesmo prazo de 2 anos, mas contado do facto objectivo do nascimento,
pressupondo o legislador, naturalmente, que a mãe do menor não poderá
razoavelmente ignorar a inexistência do vínculo biológico por parte do marido.
O filho poderá propor a acção no prazo de 1 ano, que se conta a partir do
momento em que atingiu a maioridade ou a emancipação ou, uma vez adquirida essa
situação jurídica, a contar do conhecimento das circunstâncias de que possa
concluir-se não ser o impugnante filho do marido da mãe.
Por sua vez, para a acção de impugnação da perfilhação
– visando a impugnação do acto jurídico de reconhecimento de filho não nascido
na constância do matrimónio -, o artigo
1859º prevê um regime aberto de legitimidade activa e de imprescritibilidade da
acção, em que se destacam os seguintes aspectos: (a) a impugnação tem como
fundamento a falta de correspondência à verdade no acto de perfilhação (e,
portanto, a inexistência de uma filiação biológica); (b) a acção poderá ser
proposta a todo o tempo, e mesmo depois da morte do perfilhado; (c) tem
legitimidade para a propor o perfilhante, o perfilhado, o Ministério Público, e
qualquer pessoa com interesse moral ou patrimonial na procedência da acção,
aqui se incluindo as pessoas que sejam prejudicadas nos seus direitos
sucessórios com o chamamento do perfilhado à herança do perfilhante e quaisquer
parentes do perfilhante que, independentemente da sua posição como seus
herdeiros, tenham interesse em afastar o perfilhado da família comum.
A lei, por outro lado, distingue a impugnação da perfilhação (que tem como
fundamento autónomo a falta de verdade biológica) dos casos de anulação, a que se referem as
disposições subsequentes, e que se baseia na existência de vícios de consentimento
(erro ou coacção) ou na falta de capacidade do perfilhante (artigos 1860º e
1861º).
Assiste-se, por conseguinte, no âmbito da impugnação
da perfilhação, a um alargamento da legitimidade activa ao Ministério Público e
a pessoas que tenham um mero interesse
moral na procedência da pretensão (bem como a própria inexistência de um
prazo de caducidade para a propositura da acção), que é bem demonstrativo do
interesse público de que se reveste, na área da filiação fora do casamento, a
regra da coincidência da filiação com a realidade biológica da procriação
(neste sentido, Pires de Lima/Antunes
Varela, Código Civil Anotado,
vol. V, Coimbra, 1995, pág. 267).
A diversidade de regimes, acabada de expor, e, em
especial, o confronto da solução legal prevista para a impugnação da
perfilhação com os critérios mais restritivos do artigo 1842º (em que se mantém
a regra da caducidade do direito de impugnação da paternidade presuntiva e se
restringe o direito de acção ao núcleo de pessoas mais directamente interessadas),
põe em destaque o relevo que o legislador confere ao interesse geral da
estabilidade das relações sociais e familiares e ao sentimento de confiança em
que deve basear-se a relação paternal, quando se trate de filhos nascidos na
vigência do matrimónio.
Na perspectiva do legislador, nas situações de
paternidade presumida, a necessidade de salvaguardar a harmonia e paz familiar
explicam que a ordem jurídica aceite a relação de filiação como definitivamente
adquirida, a partir de determinado momento, embora sabendo que ela pode não
corresponder à realidade biológica normalmente subjacente ao vínculo de
paternidade (Pires de Lima/Antunes
Varela, ob. cit., pág. 210);
ao contrário, a descoberta da verdade é erigida em interesse público, numa área
de filiação em que se não coloca em perigo a estabilidade da família legalmente
constituída, como ocorre em relação à impugnação da perfilhação.
Por outro lado, como vimos, são, não já exigências
cautelares da família conjugal, mas considerações ligadas à certeza e segurança
jurídica, enquanto valores de organização social - a que se associam outros
aspectos atinentes à eficácia das provas e à possível instrumentalização do
direito de acção - que justificaram, do ponto de vista legislativo, o
estabelecimento de um prazo de caducidade para investigação da paternidade,
surpreendendo-se, por isso, aqui também, uma diferença específica na razão de ser da lei que motivou a fixação
de um limite temporal quer para a acção de investigação de paternidade, tal
como previsto no citado artigo 1817º (aplicável por força do artigo 1873º),
quer para a acção negatória de paternidade, a que se refere o artigo 1842º, n.º
1, alínea a).
E foram aquelas considerações que, no acórdão n.º
486/04, se entendeu não poderem hoje prevalecer relativamente ao conteúdo
essencial do direito fundamental à identidade pessoal, que inclui o direito ao
conhecimento da ascendência paterna, quando está em causa a investigação da
paternidade.
4. O acórdão recorrido delimita o objecto do recurso
de revista como sendo respeitante à questão de saber se o direito de acção de
investigação de paternidade por parte do progenitor presumido se encontra
limitado pelo prazo de caducidade do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código
Civil quando se encontre cientificamente
provado que o menor não é filho do demandante.
Embora a questão surja assim equacionada, o certo é
que a decisão proferida, ao formular um juízo de inconstitucionalidade da
referida norma, não reflecte essa dimensão normativa.
Isto é, o acórdão recorrido desaplicou a norma apenas
para o caso em que tenha ficado demonstrado que o impugnante não é o pai
natural do menor, mas declarou a inconstitucionalidade por entender que o
preceito, fixando um prazo de caducidade, viola o direito fundamental à
identidade pessoal e o direito ao desenvolvimento da personalidade.
Neste contexto, o princípio da verdade biológica, a
que o acórdão faz alusão, funciona apenas como um argumento redutor de
quaisquer considerações de política legislativa que pudessem justificar o
estabelecimento de um prazo de caducidade para a acção de impugnação,
permitindo assim afastar as razões que, na óptica do legislador, poderiam ter
determinado a perempção do direito de acção.
Ainda que a lei consagre, hoje, a possibilidade de realização
extrajudicial de exames científicos que possam conduzir, com um grande índice
de segurança, a uma afirmação pericial de paternidade (artigos 2º, alínea i), e
29º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 11/98, de 24 de Janeiro), o certo é que a
destruição de um vínculo de filiação já estabelecido ficará sempre dependente
da competente acção de impugnação de paternidade, pelo que o esclarecimento da
verdade biológica (quando alcançado extrajudicialmente) poderá ficar sem
consequências práticas se o presumido pai não intentar a acção destinada a
demonstrar judicialmente a falsidade do vínculo (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. II. Tomo I, Coimbra, pág. 40).
A procedência ou improcedência da acção depende, por
sua vez, da utilização que as partes possam fazer de meios de prova que sejam
susceptíveis de dissipar a dúvida do julgador relativamente aos factos
carecidos de demonstração, tendo pleno cabimento, independentemente do grau de
fiabilidade das provas, os princípios do funcionamento do ónus da prova (artigo
516º do Código de Processo Civil) e da livre convicção do juiz (artigo 655º do
Código de Processo Civil).
Nestes termos, embora se possa afirmar, no domínio do
direito da filiação, a existência de um princípio
de verdade biológica, que decorre desde logo da abertura que o legislador
deu, na reforma do Código Civil de 1977, à utilização como meios de prova, nas acções relativas à filiação, de «exames
de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados» (artigo 1801º
do Código Civil), o certo é que esse princípio, ainda que possa entender-se
como um critério estruturante do regime legal, não assume dignidade
constitucional (idem, pág. 52) e não
pode fundamentar, por si só, um juízo de inconstitucionalidade relativamente à
norma que fixa um prazo de propositura da acção de impugnação da paternidade.
O enfoque em que se
poderá colocar a questão de constitucionalidade é, portanto, o da possível
violação, na fixação normativa desse prazo, dos falados direitos fundamentais à
identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade.
5. Como tem sido
entendido, o direito à identidade pessoal,
tal como está consagrado no artigo 26º, n.º 1, da Constituição, abrange, não
apenas o direito ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal,
enquanto conhecimento da identidade dos progenitores, e poderá fundamentar, por
si, um direito à investigação da paternidade e da maternidade (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição
revista, vol. I, Coimbra, pág. 462). Num outro registo, a
identidade pessoal, sendo o que caracteriza cada pessoa enquanto unidade
individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma
determinada vivência pessoal, inclui também o direito à identidade genética
própria e, por isso, ao conhecimento dos vínculos de filiação, no ponto em que
a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo factor genético (Jorge
Miranda/Rui Medeiros, Constituição
Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, págs. 204-205).
Como se afirmou no
acórdão n.º 456/03, já mencionado, «[T]al direito inclui no seu conteúdo
essencial a possibilidade de qualquer pessoa tomar conhecimento da sua
ascendência, nomeadamente, da sua filiação natural. Nessa medida, a lei
consagra os mecanismos judiciais que visam efectivar o exercício de tal
direito, permitindo a investigação da filiação (maternidade, paternidade), de
modo a que todos os indivíduos tenham a possibilidade de identificar os seus
progenitores para, entre outros fins, ser estabelecido o vínculo de filiação
jurídica com base no vínculo biológico».
A revisão
constitucional de 1997 passou também a consagrar constitucionalmente, no mesmo
preceito, o direito ao desenvolvimento da
personalidade. Este assegura uma tutela mais abrangente da personalidade,
que inclui duas diferentes dimensões: (a) um direito à formação livre da
personalidade, que envolve a liberdade de acção de acordo com o projecto de
vida e capacidades pessoais próprias; (b) a protecção da integridade da pessoa
em vista à garantia da esfera jurídico-pessoal no processo de desenvolvimento.
Neste plano, o desenvolvimento da personalidade comporta uma liberdade de
autoconformação da identidade, da integridade e da conduta do indivíduo, e nele
se pode incluir, além de muitos outros elementos, um direito ao conhecimento da
paternidade e da maternidade biológica (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit.,
pág. 463-464).
Como vimos, a lei prevê
a prescritibilidade da acção de investigação de paternidade tal como da acção
de impugnação de paternidade. As razões que terão estado na definição desse
regime jurídico prendem-se, como se anotou, com o inconveniente da manutenção
de uma situação prolongada de insegurança e o perigo de enfraquecimento das
provas com a passagem do tempo, a que acresce, no que toca especialmente à
impugnação da paternidade do marido, um outro motivo relacionado com a
necessidade de proteger a unidade familiar.
Como se concluiu no aresto há pouco citado, como
decorrência do direito fundamental à identidade pessoal, a consagração de
limites ao exercício do direito a ver reconhecida a filiação natural não poderá
inutilizar esse direito. Isto é, independentemente de ser ou não
constitucionalmente criticável a possibilidade de consagração de limites,
nomeadamente temporais, ao exercício do direito de instaurar a acção de
investigação de paternidade, não é já, seguramente, admissível a criação de um
limite que, na prática, vede, em absoluto, a possibilidade de o sujeito
averiguar o vínculo de filiação natural.
Esse princípio foi reafirmado pela jurisprudência
constitucional, de forma mais abrangente, em relação ao prazo-regra do artigo
1817º, n.º 1, do Código Civil (aplicável à acção de investigação de paternidade
por força do artigo 1873º), em termos tais que veio, mais tarde, a ser
declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade dessa referida
norma.
O acórdão n.º 486/04, que inaugurou essa
jurisprudência, não deixou, todavia, de vincar que o que estava então em causa
era o concreto limite temporal previsto no artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil
(pelo qual ao investigante está vedado propor uma acção de investigação de
paternidade para além do prazo de dois anos a contar da maioridade ou
emancipação), e não a questão de saber se a imprescritibilidade da acção
corresponde à única solução constitucionalmente conforme.
Do referido acórdão não se pode, portanto, extrair a
ilação de que qualquer regime de prescritibilidade legalmente consagrado para
as acções relativas ao estabelecimento do vínculo de filiação se encontra
ferido de inconstitucionalidade. E não é possível, sem mais, aceitar o
princípio de que as considerações avançadas para sustentar a
inconstitucionalidade do prazo de caducidade previsto para a acção de
investigação de paternidade são também válidas para o prazo fixado no artigo
1842º, n.º 1, alínea a), para a impugnação de paternidade por parte do pai
presumido.
O próprio acórdão n.º 486/04 reconhece – no excerto há
pouco transcrito - que, embora tanto o pretenso filho como o suposto progenitor
possam invocar um direito à identidade pessoal ou ao desenvolvimento da
personalidade, a tutela da personalidade e da liberdade de acção pesa mais para o lado do filho, para
quem o exercício de investigar é indispensável para determinar as suas origens,
dando assim guarida à ideia de que os prazos de caducidade da acção de
investigação de paternidade e da acção de impugnação de paternidade não têm de
ser analisados necessariamente sob o mesmo prisma .
Este ponto de vista é também realçado pelo magistrado
do Ministério Público na sua alegação de recurso. Sendo a acção de impugnação
de paternidade intentada pelo marido da mãe, não pode invocar-se, como
obstáculo potencial à respectiva caducidade, o direito fundamental do filho ao
apuramento da respectiva filiação biológica, porquanto a eventual caducidade de
direito de acção pelo transcurso do prazo previsto no artigo 1842º, n.º 1,
alínea a), em nada afecta naturalmente a possibilidade de o filho,
ulteriormente, através de quem o represente ou por iniciativa própria, no prazo
de 1 ano a contar da maioridade ou emancipação, intentar a sua própria acção,
não necessitando de suportar na sua esfera jurídica a preclusão derivada do
“atraso” na impugnação por parte do outro sujeito legitimado (o marido da mãe).
O que está, deste modo, em causa é saber se a norma
que constitui objecto do presente recurso viola um direito fundamental à identidade pessoal do marido da mãe, susceptível de
fundar a conclusão de que a respectiva acção poderia e deveria, por imposição
constitucional, ser proposta a todo o tempo, independentemente do momento em
que tal sujeito, legitimado para impugnar, teve conhecimento das circunstâncias
que permitem razoavelmente duvidar da sua paternidade.
Parece, todavia, que não estará aqui em causa um
direito à identidade pessoal, entendida no sentido há pouco explanado de
direito ao conhecimento da identidade dos progenitores (que tem apenas relevo
para a acção de investigação de paternidade), mas o direito ao desenvolvimento
da personalidade na dimensão de um direito de autoconformação da identidade,
que não poderá deixar de ser reconhecido em relação ao presumido pai, quando
este tenha motivos para duvidar da sua paternidade biológica e pretenda
esclarecer a sua posição social e jurídica quer em relação ao filho presumido,
quer em relação ao agregado familiar, quer ainda ao meio social em que se
insere.
Há, no entanto, inevitavelmente, uma diferença de grau
entre a investigação de paternidade,
em que patentemente está em causa o direito à identidade pessoal do
investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode
implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores),
e a impugnação de paternidade, em que
o releva é a definição do estatuto jurídico do investigante em relação a um
vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal.
Assim se compreende que sistemas jurídicos que admitem
a investigação de paternidade sem limite, mostrando dar preferência à tutela do
direito inviolável à identidade pessoal, já imponham a caducidade do direito de
impugnação, aceitando assim que, decorrido o prazo fixado na lei, se consolide
a paternidade presumida ainda que não corresponda à verdade biológica (notícia
desta diferenciação de regimes em Pereira
Coelho/Guilherme de Oliveira, ob.
cit., pág. 139; Guilherme de
Oliveira, O Critério Jurídico da
Paternidade (reimpressão), Coimbra, 1998, pág.372).
Deve notar-se que o princípio da verdade biológica não
tem aqui um valor absoluto. Sabe-se que as razões que justificam a fixação de
um prazo de caducidade para a acção de impugnação de paternidade não são
inteiramente coincidentes com as que tinham determinado a perempção da acção de
investigação de paternidade, pois que para além das considerações de natureza
pragmática que se prendem com a certeza e segurança jurídica e a eficácia das
provas, releva ainda com particular acuidade, naquele primeiro caso, a
protecção da família conjugal. É esse interesse que explica que um terceiro
(pretenso progenitor) não tenha legitimidade ex novo para afastar a presunção de paternidade do marido da mãe e
obter o reconhecimento da sua paternidade, e só possa intervir processualmente
através ao Ministério Público (mediante requerimento que lhe deverá ser
apresentado em prazo muito curto) e depois de previamente reconhecida a
viabilidade do pedido (artigo 1841º do Código Civil). O direito de impugnação
da paternidade está, assim, apenas, na disponibilidade directa dos membros da
família, no sentido de que só o marido, a mãe e o filho é que se encontram
autonomamente legitimados a intentar a acção. E não está, por isso, excluído
que a situação de discrepância entre a paternidade presumida e a realidade
biológica se mantenha sempre que não haja interesse concreto por parte dos
interessados na destruição da paternidade presumida.
Certo é que o legislador poderá, à semelhança de
outros sistemas jurídicos, dar primazia a considerações de política legislativa
fazendo prevalecer o princípio da verdade biológica sobre o eventual prejuízo
para a unidade familiar, permitindo que a acção de impugnação possa ser
proposta a todo o tempo. Há, no entanto, condicionalismos objectivos
que permitem distinguir entre a
investigação de paternidade e a impugnação de paternidade e que podem justificar que as pretensões de
constituição de vínculos novos venham a merecer um tratamento jurídico
diferenciado em relação a pretensões que tenham a vista a destruição de
vínculos pré-existentes (admitindo expressamente esta possibilidade de
conformação legislativa, Pereira
Coelho/Guilherme de Oliveira, ob.
cit., pág. 139).
Sublinhe-se que o prazo para a propositura da acção de
investigação de paternidade, cominado através da inconstitucionalizada norma do
artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, se contava a partir de um facto objectivo (a aquisição da maioridade ou
emancipação do investigante), a ponto de ficar inviabilizado o exercício do
direito de acção quando o interessado apenas tivesse tido conhecimento efectivo
da situação que justifica o impulso processual já depois de transcorrido o
prazo de dois anos a contar desse momento. Poderá facilmente concluir-se, nesse
contexto, que é desproporcionada e
violadora do direito à identidade pessoal a norma que impede a investigação de
paternidade em função de um critério de prazos objectivos, quando os
fundamentos para instaurar a acção surgem pela primeira vez em momento ulterior
ao termos desses prazos. Tal norma consagra, nesses termos, uma efectiva
negação da possibilidade de conhecimento da paternidade.
Ao contrário, o prazo definido no artigo 1842º, n.º 1,
alínea a), para a impugnação da paternidade por parte do pai presumido – que
está agora em causa -, sendo de duração idêntica à daquele, conta-se, todavia,
a partir de um facto subjectivo, que se traduz no «conhecimento de
circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade». Este parece ser
um prazo razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do exercício do
direito de impugnar e que permitirá avaliar todos os factores que podem
condicionar a decisão. E o presumido pai não pode sequer invocar uma situação
de impossibilidade de exercer o direito, já que, a partir do conhecimento
pessoal de factos que indiciem a inexistência de um vínculo real de filiação,
dispõe sempre de tempo útil para afastar a presunção de paternidade.
Neste contexto, não parece que a fixação de um prazo
de caducidade para a impugnação de paternidade pelo pai presumido, nos termos
em que se encontra previsto na referida norma do artigo 1842º, n.º 1,
alínea a), do Código Civil, represente uma intolerável restrição ao
direito de desenvolvimento da personalidade entendido com o alcance de um
direito de conformar livremente a sua vida, quando é certo que a preclusão do
exercício do direito de impugnar pode justamente ter correspondido a uma opção
que o interessado considerou ser em dado momento mais consentâneo com o seu
interesse concreto e o seu condicionalismo de vida.
Por tudo, não pode entender-se – contrariamente ao que
se consignou no acórdão recorrido – que exista uma paridade de situação entre
os prazos de caducidade dos artigos 1817º, n.º 1, e 1842º, n.º 1, alínea a), do
Código Civil em termos de se poder aplicar neste último caso as razões que
conduziram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade daquele
outro preceito.
III –
Decisão
Termos em que se decide:
a) não julgar inconstitucional, por violação do
direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, a norma do
artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil;
b) ordenar a reforma do acórdão recorrido em
conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas
Lisboa, 28 de Novembro
de 2007
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Maria Lúcia Amaral (com
declaração de voto)
Gil Galvão (com
declaração de voto)
DECLARAÇÃO
DE VOTO
Divergi radicalmente de toda a fundamentação adoptada por
entender que, nela, se não identificam correctamente os problemas jurídico‑constitucionais
que o presente caso coloca.
Em primeiro lugar,
entendo que se não identificou correctamente o direito fundamental face ao qual
se deve avaliar a norma sob juízo. Tal direito é, a meu ver, o direito à identidade pessoal que,
enquanto direito a conhecer e a procurar conhecer a verdade sobre si próprio –
e a poder representá‑la livremente perante os outros, no espaço familiar,
privado e público –, envolve tanto o direito a saber de quem se é filho quanto
o direito a saber de quem se é pai. Nessa medida, a estratégia de fundamentação
que é seguida – e na qual ocupa um lugar relevante o argumento segundo o qual o
presente ‘caso’ seria diverso do ‘caso’ decidido pelo Tribunal no Acórdão nº
486/04 – obnubila a questão essencial que haveria desde logo a resolver, e que
seria a de identificar com precisão (antes
e independentemente da comparação de
‘casos’) qual o direito fundamental a
que se reportaria a norma em juízo.
Depois, entendo que a
fundamentação foi deficiente – e inexplicavelmente deficiente – na correcta qualificação
dessa mesma norma, enquanto norma
‘relativa’ ao exercício de um direito fundamental.
Conclui‑se a certa
altura que “não parece que a fixação de um prazo de caducidade (…) nos termos
em que se encontra previsto (…) no art. 1842º, nº 1, alínea a) do Código Civil
representa uma intolerável restrição ao
direito (…)” [itálico meu]. Mas a verdade é que nem se diz por que razão
existe aqui uma restrição nem tão
pouco se explica suficientemente por que razão será ela ‘tolerável’ (ou não
será ‘intolerável’). Nenhuma destas questões é minudência inútil.
A questão de saber por
que motivo deve esta norma ser qualificada como restritiva de um direito – e não como meramente conformadora do seu exercício – é
evidentemente central, porque da resposta que se lhe der depende a aplicação ao
caso dos limites contidos no artigo 18º da Constituição. Inexplicavelmente, a
estratégia argumentativa seguida silencia por completo o problema, o que tem
desde logo a consequência de se deixar por esclarecer – apesar de se concluir
que se não trata de uma restrição
intolerável – se foram ou não cumpridas as exigências do artigo 18º,
nomeadamente a relativa à autorização constitucional para restringir (artigo
18º, nº 2, primeira frase).
A fundamentação parece levar
a cabo uma ponderação de bens que, sem o dizer, poderá corresponder ao
cumprimento do teste de proporcionalidade exigido pela parte final do nº 2 do
artigo 18º. No entanto, também tal ponderação surge – a meu ver – como coisa
por demais vaga e imprecisa.
Antes do mais, porque
nunca chegam a ser precisados com suficiente rigor os termos que balizam o campo operativo do juízo de proporcionalidade.
Quais são, aqui, os ‘bens’ a ‘sopesar’? Fica‑se a final sem saber: é que
não é só o bem protegido pelo direito que se restringe que é ambiguamente
identificado – pois que acaba por não ficar claro se será ele a ‘livre
conformação do eu’, a ‘verdade biológica’ ou a ‘historicidade pessoal’ –; por
precisar ficam também os outros direitos
ou interesses constitucionalmente protegidos que, uma vez verificada a
situação de proporcionalidade, justificariam a restrição. Fica‑se sem
saber ao certo que «direitos» ou «interesses» serão esses, diluídos que eles
aparecem em “considerações de ordem ético‑programática” ou “considerações
de política legislativa”: a preservação da unidade familiar? A defesa contra
acções ditadas por interesses egoísticos? A certeza e a segurança do Direito
face ao [natural] envelhecimento das provas?
A questão de
constitucionalidade que neste caso se punha ao Tribunal era a questão de saber
se, face aos avanços técnico‑científicos (que condicionam, hoje, de um outro modo, o exercício do direito
ao conhecimento e à procura do conhecimento da verdade sobre si próprio),
poderia o legislador [continuar] a fixar o prazo de dois anos contido no artigo
1842º, nº 1, alínea a) do Código
Civil.
Aceitei a decisão tomada
porque respondi afirmativamente à questão. Perante um rigoroso teste de
proporcionalidade, creio, o juízo não poderia ser
outro. (Embora não possa desenvolver aqui, com toda a exaustão, uma
fundamentação alternativa, penso que tal juízo deveria ter sido feito tendo
como campo operativo o bem jurídico protegido pelo direito à identidade pessoal
do [presumido] pai, de um lado, e o bem jurídico protegido pelo direito à
identidade pessoal do próprio filho – bem jurídico este que pesa no sentido da protecção da verdade
estabelecida pelo Direito, como forma de preservação de uma certa representação
do ‘eu’ [perante si mesmo e perante os outros] que não pode ficar
permanentemente sob ‘condição resolutiva’). É‑me no entanto impossível
tomar como minha uma fundamentação que permanece à margem das questões jurídico‑constitucionais
que aqui se colocam.
Maria
Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão,
embora com dúvidas quanto à questão de saber se a norma questionada - na medida
em que fixa para o marido da mãe um prazo de dois anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que
possa concluir-se a sua não
paternidade, independentemente de quaisquer outros elementos porventura
relevantes – passa o teste do princípio da proporcionalidade. Nas
circunstâncias, admitindo, porém, que a situação dos autos é diversa da
decidida no acórdão n.º 486/2004 e que a Constituição não imporá, no caso de
impugnação da paternidade por parte do marido da mãe, a não caducidade do
direito, acabei por entender, sem prejuízo de ulterior reponderação, que
caberia ainda dentro da liberdade de conformação do legislador a fixação de um
tal prazo.
Gil Galvão