ACÓRDÃO N.º 67/2006
Processo n.º 161/05
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
1. O
Ministério Público recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º 3 do
artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do despacho proferido em
19 de Outubro de 2004, pelo juiz do 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal
do Porto, no inquérito n.º 654/04.9TAMTS, em que é arguido A., que recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a
aplicação do artigo 281.º do Código de Processo Penal, por violar a reserva da
função jurisdicional e o princípio da independência dos tribunais, consagrados
nos n.ºs 1 e 2 do artigo 202.º e no artigo 203.º da Constituição e ainda,
quando conjugado com a norma do artigo 64.º do mesmo diploma e interpretado no
sentido de dispensar a assistência de defensor ao arguido no acto em que é
chamado a dar a sua concordância à suspensão provisória do processo, o n.º 3 do
artigo 32.º da Constituição.
Foi
oportunamente determinado que o julgamento se faça com intervenção do Plenário,
ao abrigo do n.º 1 do artigo 79.º-A da LTC.
Nas suas alegações o Ministério Público sustenta, em síntese, que o
regime da suspensão provisória do processo não colide com as normas e
princípios constitucionais referentes à reserva de função jurisdicional e à
independência dos tribunais, mostrando-se adequado e eficazmente plasmado no
artigo 281.º do CPP o entendimento que, em fiscalização preventiva, fez
vencimento no acórdão n.º 7/87 (Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 9.º
Vol., pág. 7) e que a dispensa de nomeação de defensor, para o acto em que o
arguido aceita a suspensão provisória do processo pelo período e mediante as injunções
com a natureza das que estão em causa, não colide com o comando do n.º 3 do
artigo 32.º da Constituição.
Conclui nos seguintes termos:
“1- A suspensão provisória do
processo regulado no artigo 281.º do Código do Processo Penal, configurando um
mecanismo que requer uma co-decisão do Ministério Público e do juiz de
instrução criminal, não podendo em caso algum ser aplicada sem a concordância
expressa deste último, não colide com qualquer norma ou princípio
constitucionais, designadamente, com os que regem a função jurisdicional e a
independência dos tribunais.
2- Não é exigência constitucional
a assistência obrigatória de advogado ao arguido, em acto processual em que
está em causa a sua eventual concordância à suspensão provisória do processo,
por um período de dois meses, mediante o pagamento de duas quantias de 250
euros a favor de uma instituição de solidariedade social e a obrigação de não
delinquir de forma dolosa.
3- Termos em que deverá proceder
o presente recurso.”
O arguido foi notificado na pessoa do
defensor oficioso nomeado no tribunal a
quo aquando da admissão do recurso, mas não alegou.
2. São as
seguintes as ocorrências processuais relevantes para o que importa apreciar no
âmbito do presente recurso:
a)
Em
processo de inquérito instaurado contra A.,
o magistrado do Ministério Público proferiu um despacho de que se extracta o
seguinte:
“Os factos indiciados integram o crime de
falsificação de estado civil, p. e p. no artigo 248°, al. b), do Código Penal,
que é punível com prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Não obstante tal cometimento, entende o Ministério
Público ser oportuno proceder à
suspensão provisória do processo, nos termos prescritos pelos artigos 281 ° e
282°, ambos do C.P.P., atendendo a que se verificam os pressupostos de que a
lei faz depender a sua aplicação, assim se pondo em prática os princípios de
política criminal que defendem que o direito penal deve ser encarado como a ultima ratio e também porque desta forma
melhor se promove a ressocialização do arguido.
A suspensão provisória do processo é admissível
quando, sendo o crime indiciado punível com pena de prisão não superior a 5
anos ou com sanção diferente da prisão, a culpa do agente se apresente
diminuta, este não possua antecedentes criminais e seja de prever fundadamente
que o cumprimento das injunções ou regras de conduta respondem suficientemente
às exigências de prevenção que o caso reclame.
A suspensão provisória do processo, informada
pelos princípios de consenso e oportunidade, funda-se na busca de soluções
consensuais para a protecção dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal e
para a recuperação e ressocialização dos delinquentes, com vista à integração
destes na sociedade. Ou seja, o que se pretende é atingir, por meios benignos e
de consenso, os fins das penas estabelecidos no artigo 40°, do Código Penal, a
protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
No que concerne à prevenção geral como prevenção
positiva de integração e reforço da consciência jurídica comunitária e do seu
sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das
expectativas comunitárias na validade da norma infringida, entendemos que a
suspensão provisória do processo atinge esse fim tão importante do direito
penal. Efectivamente, e não obstante não ser aplicada uma pena, entendemos que
o juízo de reprovação e aplicação de injunção ao arguido, traduz o sentimento
comunitário de que o bem jurídico violado continua válido e vigente.
Atendendo ao circunstancialismo descrito
entendemos que a culpa do arguido assume carácter diminuto. No entanto, ainda
assim se torna necessário aplicar ao arguido uma injunção de molde a reduzir ao
mínimo as possibilidades de voltar a delinquir.
É de prever que o cumprimento pelo arguido de
injunções adequadas, seja suficiente para satisfazer as exigências de prevenção
que o caso exige e que este concordou com a suspensão provisória do processo e
com as injunções que lhe vão ser impostas.
Em conformidade, nos termos dos artigos 281 ° e
282°, ambos do Código de Processo Penal, havendo concordância da Mmo Juiz de
Instrução Criminal, determino a suspensão provisória do processo pelo
período de 2 meses após a notificação deste despacho ao arguido, impondo-lhe as
seguintes injunções:
a)Proceder ao pagamento em duas prestações,
mensais e sucessivas, da quantia pecuniária no montante de € 250 euros, sendo
assim o primeiro pagamento no prazo de 8 dias a contar da notificação da
decisão da suspensão, e o segundo pagamento até 30 dias após a efectuação da
primeira.
b)A referida quantia reverta a favor da
Instituição de Solidariedade Social denominada “Casa do Caminho”, sita na
Senhora da Hora, nesta cidade;
c)Não praticar, durante o período de suspensão do
processo qualquer facto criminalmente punível com dolo.
O arguido deverá logo após cada um dos referidos
pagamentos juntar aos autos, os respectivos recibos comprovativos da sua
satisfação.
*
Conclua os autos ao Mmo Juiz de Instrução
Criminal, para se pronunciar quanto à sua concordância ou não com a suspensão
provisória do processo;
b)
Concluso
o processo, o juiz de instrução criminal proferiu o despacho recorrido, do
seguinte teor:
“Do despacho do Ministério Público a fls. 20 a 32:
Discordamos da decisão de suspensão provisória do
processo pelas seguintes razões:
- primeira
- O Ministério Público não tem competência jurisdicional para decidir e impor
injunções e regras de conduta ao arguido.
O Ministério Público faz uma interpretação literal
do artigo 281.º do Código de Processo Penal, interpretação que deve ser
considerada inconstitucional, conforme nos parece dever resultar do Ac. n.º
7/87, de 9 de Janeiro de 1987, do Tribunal Constitucional, publicado no D.R., I
Série, de 9 de Fevereiro de 1987. Nesse douto acórdão, apreciando a
constitucionalidade do artigo 281.º do Código de Processo Penal, na redacção
que havia sido aprovada em 4 de Dezembro de 1986 pelo Conselho de Ministros, e
que não continha qualquer referência ao juiz de instrução, refere-se o
seguinte:
"Naturalmente
que, praticados os actos necessários, compete também ao MP encerrar o
inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação (artigos 276.º, 277.º e
283.º).
O artigo 281.º
consagra, porém, uma inovação nesta
matéria, estabelecendo o princípio da
oportunidade do exercício da acção penal pelo MP relativamente à pequena
criminalidade, atribuindo-lhe o poder
de suspender o processo, quando se
verifiquem conjuntamente certas condições [as constantes do proémio do n.º 1
e das alíneas a) a e) do mesmo número],
mediante a imposição - pelo próprio MP - de injunções e regras de conduta (as definidas nas alíneas a) a i) do n. ° 2).
É a
inconstitucionalidade de todo este processo que vem suscitada.
A questão
posta, ou seja, a suspensão do processo do MP, findo o inquérito,
pode cindir‑se em duas: uma, a da admissibilidade da suspensão, em si
mesma considerada; a outra, a da competência para ordenar a suspensão e a
imposição das injunções e regras de conduta.
A
admissibilidade da suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo
constitucional.
Já não
se aceita, porém, a atribuição ao MP da competência para a suspensão do
processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei sem a
intervenção de um juiz naturalmente o juiz de instrução e daí a
inconstitucionalidade nessa medida dos n.ºs 1 e 2 do artigo 281.º, por violação
dos artigos 206.º e 32.º, n.º 4, da CRP.” (sublinhado nosso)
Ora, o artigo 206º da CRP na redacção anterior à Revisão
de 1989, tinha o teor que hoje corresponde ao artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, sob a epígrafe “Função
jurisdicional”:
“Na administração da justiça incumbe aos tribunais
assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos,
reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de
interesses públicos e privados”.
Os actos que devam constituir “actos judiciais”
para os efeitos do artigo 202.º da Constituição (artigos 205.º e 206.º antes da
Revisão de 1989) devem ser praticados pelo juiz de instrução, como foi
expressamente afirmado no Acórdão n.º 7/87, de 9 de Janeiro, à semelhança do
entendimento defendido pelo Prof. Figueiredo Dias, e publicado em “Para Uma Nova Justiça Penal”, 1983,
págs. 189 e segs., citado no acórdão (DR n.º 33, de 9/02/1987, pág. 504-( 6).
Como refere José António Barreiros, “o Ministério Público actua no processo penal
como órgão autónomo de administração de justiça, o que se não confunde com a
acção dos órgãos judiciais, nem com a função jurisdicional e lhe garante
independência de actuação face ao Ministro da Justiça.” (...) O Ministério Público não é, assim, órgão
judicial, nem lhe cabe a função jurisdicional, a qual é património exclusivo do
poder judicial (artigo 205.º da Constituição). (“Sistema e Estrutura
do Processo Penal Português”, II, págs. 109 e 110).
No mesmo sentido, pode ler-se Germano Marques da
Silva: "Sujeitos processuais são o
juiz, a quem cabe o exercício da jurisdição, o Ministério Público, o arguido, o
assistente e o defensor, aos quais cabe o exercício de poderes e deveres que
soe conglobar-se na noção de acção, quer na forma de acusação, quer na forma de
defesa. (..) Tomamos aqui a acção num
sentido muito amplo, como o conjunto de poderes e deveres da acusação e da
defesa em ordem ao reconhecimento do direito pela jurisdição.” (Curso de Processo Penal”, 1993, tomo 1, págs. 95 e 96).
Citando Figueiredo Dias, "a específica função judicial há-de caracterizar-se materialmente
pela declaração do direito do caso, através de uma decisão susceptível de
transitar em julgado” (Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, pág. 366).
No entanto, no regime da suspensão provisória do
processo não é isso que se verifica. Nos termos do artigo 281.º do Código de
Processo Penal, o juiz de instrução não decide a suspensão provisória do
processo e não escolhe nem aplica as injunções e regras de conduta. Quem decide
é o Ministério Público, e o juiz encontra-se numa situação idêntica à do
arguido e à do assistente: concorda ou discorda (artigo 281.º, n.º 1, al. a) do
Código de Processo Penal), e similar à que o Ministério Público tem na
instrução, fase em que “é
correspondentemente aplicável o disposto
no artigo 281.º, obtida a
concordância do Ministério Público” (artigo 307.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal),
Ou seja, nos termos do artigo 281.º do Código de
Processo Penal, como se verifica no caso dos autos, o juiz não decide, nem tem
qualquer intervenção na decisão do Ministério Público. Ou seja atribui-se a
função jurisdicional ao Ministério Público, que decide o caso concreto, cabendo
ao juiz de instrução uma intervenção processual acessória e não jurisdicional,
de mera concordância, sem qualquer intervenção na escolha das injunções ou
regras de conduta a aplicar ao arguido. Nesse mesmo sentido se pronunciou o
Tribunal da Relação de Évora, de 8/04/97 - in C.J., XXII, 2, p. 275: "Quem decide pela suspensão provisória
do processo é o Ministério Público.
Quem impõe ao arguido as injunções e regras de conduta é o Ministério Público. (..)
O juiz de instrução não pode
substituir-se ao Ministério Público no sentido de impor por sua iniciativa
injunções e regras de conduta que não sejam as propostas pelo Ministério
Público.”
Ao atribuir-se ao Ministério Público a competência
para a prática daqueles actos jurisdicionais, viola-se o princípio de tutela
jurisdicional dos direitos fundamentais, e a reserva de jurisdição dos
tribunais a quem compete “administrar a justiça em nome do povo”, “assegurar a
defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” bem como
“reprimir a violação da legalidade democrática” (artigo 202,º, n.º 1 e n.º 2,
da Constituição).
- segunda
- O artigo 281.º do Código de Processo Penal viola o princípio da independência
dos tribunais consagrado no artigo 203.º da Constituição, uma vez que não prevê
qualquer intervenção do juiz de instrução para a escolha e determinação da
solução de direito do caso concreto. O Ministério Público decide a suspensão
provisória e determina as injunções ou regras de conduta a aplicar ao arguido,
sem qualquer intervenção do juiz de instrução, que é depois colocado diante do
“facto consumado”, por vezes com a injunção já cumprida pelo arguido.
Nas palavras de Castro Mendes, "a independência dos Juízes é a
situação que se verifica quando, no momento da decisão, não pesam sobre o decidente outros factores que não os
judicialmente adequados a conduzir à legalidade e à justiça da mesma decisão”
(“Estudos sobre a Constituição”, 3.º vol., 1979, pág. 654). O que
manifestamente não sucede na previsão do artigo 281.º do Código de Processo
Penal, condicionando o juiz pela anterior decisão do Ministério Público,
nomeadamente quanto à selecção das injunções e regras de conduta e à
determinação do período de suspensão, de uma forma ofensiva da dignidade da
função de julgar.
- terceira - Acresce que o artigo 281.º do Código
de Processo Penal é também inconstitucional quando interpretado em conjunto com
o disposto no artigo 64.º do Código de Processo Penal, no sentido de ser
dispensada a assistência de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a
concordar com a suspensão provisória do processo e com as injunções e regras de
conduta que lhe são apresentadas pelo Ministério Público.
Na verdade, ainda que se defenda que as injunções
ou regras de conduta não constituem uma pena no sentido do direito penal
material nem uma sanção de natureza para-penal (Lowe/Rosenberg, citados por
Manuel da Costa Andrade, “Consenso e Oportunidade”, in “Jornadas de Direito
Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, pág. 353), as mesmas
representam sempre uma limitação aos direitos e liberdades do arguido.
“Do ponto de vista do direito penal substantivo,
trata-se aqui de uma sanção de índole especial não penal a que não está ligada
a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa. Significativo para o efeito que o arguido não possa ser coagido
nem à aceitação das injunções e regras nem ao respectivo adimplemento: o efeito de sanção que lhe está ligado assenta
na liberdade de decisão (Freiwilligkeit) do arguido” (Riess, citado por Manuel da Costa Andrade, Ob. cit. p. 353).
No entanto, essa liberdade de decisão não existe
se ao arguido não for garantida a assistência de um defensor, nomeadamente para
o efeito de se poder pronunciar sobre a necessidade e adequação das regras de
conduta e injunções apresentadas pelo Ministério Público. Só há verdadeira
liberdade quando esta é esclarecida e informada, nomeadamente quanto à “ponderação das vantagens e desvantagens
ligadas às alternativas em causa”, na expressão utilizada por Costa Andrade
(Ob. cit). E esse esclarecimento deve resultar da obrigatoriedade de
assistência do defensor no acto de audição do arguido sobre a pretendida
suspensão provisória do processo.
No caso dos autos, essa assistência não se
verificou. O arguido foi chamado a prestar o seu consentimento para a suspensão
provisória do processo sem a adequada assistência de defensor.
Salvo melhor opinião, estas razões explicam de
forma suficiente o nosso dissentimento em relação à aliás douta decisão do
Ministério Público.
Notifique o Ministério Público e o arguido.
Devolva.”
3. Cumpre apreciar e decidir as seguintes questões de
constitucionalidade, que constituem o objecto do recurso:
1.ª - Se
a norma do artigo 281.º do Código de Processo Penal, no segmento em que atribui
ao Ministério Público o poder de decidir-se, com a concordância do juiz de
instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de
injunções e regras de conduta, viola o artigo 202.º (reserva de função jurisdicional) ou o artigo 203.º (independência dos tribunais) da
Constituição;
2.ª - Se
a norma do artigo 281.º em conjunto com o disposto no artigo 64.º do mesmo
Código de Processo Penal, interpretados no sentido de ser dispensada a assistência
de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a dar a sua concordância à
suspensão provisória do processo, viola o n.º 3 do artigo 32.º da Constituição.
4. Dispõe o artigo 281.º do Código
de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio:
“Artigo 281.º
(Suspensão
provisória do processo)
1. Se o crime for
punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da
prisão, pode o Ministério Público decidir-se, com a concordância do juiz de
instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de
injunções e regras de conduta, se se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do
arguido e do assistente;
b) Ausência de
antecedentes criminais do arguido;
c) Não haver lugar a
medida de segurança e internamento;
d) Carácter diminuto
da culpa; e
e) Ser de prever que
o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às
exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
2. São oponíveis ao
arguido as seguintes injunções e regras de conduta:
a) Indemnizar o
lesado;
b) Dar ao lesado
satisfação moral adequada;
c) Entregar ao
Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia;
d) Não exercer
determinadas profissões;
e) Não frequentar
certos meios ou lugares;
f) Não residir em
certos lugares ou regiões;
g) Não acompanhar,
alojar ou receber certas pessoas;
h) Não ter em seu poder
determinados objectos capazes de facilitar a prática de outro crime;
i) Qualquer outro
comportamento especialmente exigido pelo caso.
3. Não são oponíveis
injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido.
4. Para apoio e
vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de
instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de
reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades
administrativas.
5. [ … ]
6. [ … ]”
Destacam-se os seguintes traços
marcantes do regime legal da suspensão provisória do processo com particular interesse
para apreciação das questões relativas à violação da reserva de função
jurisdicional e à independência dos tribunais:
-
O
processo suspende-se na fase de inquérito, por decisão do Ministério Público,
mas com o consenso do arguido e do assistente e a concordância do juiz de
instrução, durante um prazo determinado que pode ir até 2 anos (artigo 282.º,
n.º1), mediante a sujeição do arguido a injunções e regras de conduta;
-
Se o
arguido cumprir as injunções ou as regras de conduta a que a suspensão tenha
ficado condicionada, o processo é arquivado (n.º 3 do artigo 282.º), isto é,
não chega a haver acusação e termos posteriores;
-
Se o
processo tiver entrado na fase de instrução, ainda pode optar-se pela suspensão
provisória do processo, obtida a concordância do Ministério Público, sendo
agora a decisão primária do juiz de instrução (n.º 2 do artigo 307.º).
Estamos perante um instituto
introduzido no ordenamento jurídico português pelo Código de Processo Penal de
1987, constituindo uma limitação ao dever de o Ministério Público deduzir
acusação sempre que tenha indícios suficientes de que certa pessoa foi o autor
de um crime (artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), deixando o
princípio da legalidade na promoção do processo penal de ser comandado por uma
ideia de igualdade formal, para ser norteado pelas intenções político-criminais
básicas do sistema penal, assentes na ideia de que, visando toda a intervenção
penal a protecção de bens jurídicos e, sempre que possível, a ressocialização
do delinquente, é adequado que a intervenção formal de controlo tenda para
observar as máximas da mais lata diversão e da menor intervenção socialmente
suportáveis (Discutindo-se se esta realidade melhor se exprime pelo conceito de
oportunidade regulada ou de legalidade atenuada. No sentido de que
as hipóteses de cessação do dever de acusar positivadas no direito português
não significam necessariamente uma mudança de paradigma na perseguição penal,
Pedro Caeiro, “Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da
‘justiça absoluta’ e o fetiche da ‘gestão eficiente’ do sistema”, in Revista do Ministério Público, n.º 84,
Outubro/Dezembro 2000, págs. 31 e segs.). Do ponto de vista substantivo, é um
dos casos de introdução de medidas de diversão
(diversão com intervenção; cf. sobre
a tipologia das formas de diversão, socorrendo-se da lição de Faria Costa em
“Diversão (Desjudiciarização) e Mediação: Que Rumos”, BFD-LXI, p. 91 e sgs, Pinto Torrão, A Relevância Político-Criminal da Suspensão Provisória do Processo,
p. 121) e consenso na solução do
conflito penal relativamente a situações de pequena e média criminalidade, para
cuja consagração concorrem tanto razões de funcionalidade do sistema de justiça
penal (desobstrução da máquina judicial e promoção da economia e celeridade
processuais, com isso se fortalecendo globalmente a crença na efectividade dos
mecanismos de reacção penal, com o que simultaneamente se realiza o objectivo
de prevenção), como de prossecução imediata de objectivos do programa político-criminal
substantivo (evitar a estigmatização e o efeito dissocializador, ligados à
submissão formal a julgamento, relativamente a delinquentes ocasionais com
prognóstico favorável, o que se insere no princípio de redução da aplicação das
sanções criminais ao mínimo indispensável).
Além do consenso dos demais sujeitos
processuais (Ministério Público, arguido e assistente), a lei exige a
concordância do juiz de instrução. Esta intervenção de um juiz na suspensão
provisória do processo em fase de inquérito não estava inicialmente prevista
(também não estava previsto que a suspensão pudesse ser decretada na fase de
instrução, o que veio a ser permitido pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto).
Resultou de o Tribunal Constitucional se ter pronunciado, no acórdão n.º 7/87,
publicado no Diário da República, I
Série, de 9 de Fevereiro de 1987 (cf. também, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9º, págs. 7 e segs.),
pela inconstitucionalidade dos nºs 1 e 2 do artigo 281.º do Código de Processo
Penal, então ainda só aprovado em Conselho de Ministros pelo decreto registado
sob o n.º 754/86, que foi submetido a fiscalização preventiva de
constitucionalidade. De notar que o Tribunal não viu obstáculos de
constitucionalidade ao instituto da suspensão provisória do processo, em si
mesmo. O que não aceitou foi “a atribuição ao MP da competência para a
suspensão do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas
na lei, sem a intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de instrução, e daí a
inconstitucionalidade, nessa medida, dos n.ºs 1 e 2 do artigo 281.º, por
violação dos artigos 206.º e 32.º n.º 4 da CRP”. E, posteriormente à entrada em
vigor do Código, o Tribunal reiterou o mesmo juízo de que a admissibilidade da
suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo constitucional, no acórdão
n.º 244/99, publicado no Diário da
República, II Série, de 12 de Julho de 1999.
5. Não há que recuar na análise da questão de constitucionalidade
ao ponto de reabrir o debate sobre se a intervenção do juiz é (continua a ser)
constitucionalmente exigida para a suspensão provisória do processo, na fase de
inquérito, mediante a imposição ao arguido de injunções ou regras de conduta. O
que cumpre ao Tribunal averiguar, no presente recurso de fiscalização concreta
de constitucionalidade, é se dos termos em que o n.º 1 do artigo 281.º do
Código de Processo Penal consagra a intervenção do juiz de instrução criminal
resulta a violação de normas ou princípios constitucionais, designadamente dos que
se inscrevem nos artigos 202.º (reserva de função
jurisdicional) e 203.º (independência
dos tribunais) da Constituição.
Comecemos por recordar que o artigo 202.º da Constituição preceitua no n.º 1
que os tribunais são os órgãos de
soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo e o
n.º 2 que na administração da justiça
incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir
os conflitos de interesses públicos e privados. É o princípio da reserva da
função jurisdicional aos tribunais [sobre este princípio, cf. os Acórdãos deste
Tribunal n.ºs 72/84, 56/85, 98/88 e 143/88 (Diário
da República, II série, de 10 de Janeiro de 1985, de 28 de Maio de 1985, de
22 de Agosto de 1988 e de 15 de Setembro de 1988, respectivamente)]. E que o
artigo 203.º dispõe que os tribunais são
independentes e apenas estão sujeitos à lei. Correspondem a disposições
constitucionais que se mantêm inalteradas desde a versão inicial da
Constituição, embora com aglutinações e renumerações [O artigo 202.º foi gerado
pela RC/89 que aglutinou no então artigo 205.º, que passou na RC/97 a artigo
202.º, os primitivos artigos 205.º e 206.º (correspondendo aos n.ºs 1 e 2
respectivamente, que são os que para o caso interessam) e 209.º (corresponde
actualmente ao n.º 3) e aditou o n.º 4. O artigo 203.º corresponde à
renumeração do artigo 206.º da RC/89 que renumerara o primitivo artigo 208.º].
Um dos
corolários ou dimensões do princípio da independência dos tribunais é o de que
o juiz, no exercício da sua função jurisdicional, apenas está submetido às
fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas (independência funcional). Por outro
lado, como diz Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, pág. 658, a independência judicial
postula o reconhecimento de uma reserva de jurisdição, entendida como reserva
de um conteúdo material típico da função jurisdicional, o que implica que em
determinadas matérias cabe ao juiz não apenas a última, mas também a primeira
palavra. É o que se passa, desde logo, no domínio tradicional das penas
restritivas da liberdade e das penas de natureza criminal na sua globalidade.
Os tribunais são os “guardiões da liberdade” e daí a consagração do princípio nulla poena sine judicio (artigo 32.º,
n.º 2, da CRP).
A questão que agora é colocada ao Tribunal
Constitucional tem relevantes pontos de contacto com o que foi versado a
propósito do sistema de determinação
concreta de competência permitido pelo n.º 3 do artigo 16.º do Código de
Processo Penal. Melhor dizendo: a crítica de constitucionalidade que é dirigida
à atribuição ao Ministério Público do poder de decidir a suspensão provisória
do processo mediante injunções e regras de conduta filia-se na mesma
compreensão das imposições que decorrem dos princípios constitucionais
invocados na modelação do processo penal quanto à repartição de funções entre o
Ministério Público e o juiz que levou a que se tivesse questionado a
conformidade constitucional daquela outra opção do legislador. Também a
constitucionalidade dessa norma foi posta em causa, além de outras razões, por
violação da reserva constitucional da função jurisdicional e da independência
dos tribunais, em virtude de permitir que a opção do Ministério Público
condicionasse ou limitasse o conteúdo da decisão hipoteticamente possível do
juiz face ao conteúdo abstracto da lei.
O
Tribunal julgou sempre essas críticas improcedentes, em abundante
jurisprudência iniciada com o acórdão n.º 393/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 13, págs. 1057 e segs.),
de que se evidenciam as seguintes passagens:
“A independência dos tribunais conclama a independência dos juízes.
A independência
dos juízes, que é, acima de tudo, um dever ético-social, vem a traduzir-se
no dever de julgar «apenas segundo a Constituição e a lei», sem sujeição,
portanto, a quaisquer ordens ou instruções. Na interpretação e aplicação das
leis, hão-de, pois, os juízes agir sem outra obediência que não seja aos
ditames da sua própria consciência [cf. artigo 4.º da Lei n.º 21/85, de 30 de
Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais)].
Nenhum destes princípios é violado
pelo artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pois quem julga é o juiz,
e não o Ministério Público. É aquele, e não este, quem fixa a medida concreta
da pena, movendo-se para tanto dentro da moldura abstracta fixada na lei.
Sucede é que o juiz, ao fixar a pena
do caso, não pode exceder três anos (cf. citado artigo 16.º, n.º 4). Isso,
porém, significa tão-só que ele não pode utilizar toda a moldura abstracta
constante do tipo.
O Ministério Público condiciona,
assim, a fixação da pena do caso: como porta-voz que é do poder punitivo do
Estado, diz ao juiz que, face às circunstâncias do caso e tendo presentes os
critérios legais de aplicação concreta das penas, a colectividade que ele
representa não pretende que ao réu se aplique por aquele caso pena superior a
três anos. E di-lo no exercício de um poder expressamente definido na lei.
Ora, isto não viola qualquer dos
apontados princípios constitucionais.
Escreve a propósito Figueiredo Dias:
“O problema que então ficava para resolver era outro: era o de saber se,
no caso (decerto, excepcional) em que, no fim do julgamento, o juiz lograsse a
convicção de que deveria aplicar uma sanção em medida superior à
pré-determinada, deveria ter competência para a aplicar (e não há rigorosamente
nada na Constituição que o impedisse), ou seria preferível que limitasse a sua
convicção pelo máximo de medida da sanção que estava na sua competência normal
aplicar. A Comissão decidiu-se, no artigo 16.º, n.º 3, pela última alternativa
e, quanto a mim, com excelentes razões político-criminais, que seria deslocado
explanar aqui.
O que interessa é acentuar que, deste modo – e como agora, porventura,
já se terá tornado claro –, o princípio da reserva
da função jurisdicional permanece intocado: é o juiz singular que julga,
como é ele que determina concretamente a sanção dentro dos limites abstractos
em que a lei lhe permite que mova a sua discricionaridade vinculada. A lei acrescento
e acentuo – e só ela, de sorte que a independência do juiz também não é, no
que quer que seja, afectada. O que sucede é que – e é isto o que há de singular
no método de determinação concreta da
competência – «lei» não é apenas o preceito do Código Penal onde se prevêem os
limites abstractos das sanções aplicáveis; «lei» é também, e a igual título,
o preceito do Código que limite a convicção do juiz pelo máximo das sanções que
ele pode aplicar, quando o Ministério Público – como representante do Estado e
porta-voz, portanto, do seu poder punitivo – entenda que, no caso, aquele
máximo não deve ser ultrapassado. Esse entendimento tem na base um processo de
«aplicação do direito»? Decerto que sim, como o tem qualquer outro que o
Ministério Público assuma no exercício da acção penal e, nomeadamente, na sua
decisão de acusar ou antes de arquivar o processo: «aplicação do direito»,
porém, não «jurisprudência». O Ministério Público co-determina deste modo, em
certa medida, o sentido da decisão final? Decerto que sim, como o codetermina
qualquer acto próprio de um sujeito processual, nomeadamente a sua decisão de
recorrer ou de não recorrer! Os poderes do juiz são assim limitados, para além
do que resulta da lei penal substantiva aplicável? Decerto que sim, como o são
através de inúmeros comportamentos dos sujeitos processuais, nomeadamente
aquele em que se traduz a fixação do
objecto do processo pelo Ministério Público, ou – de uma forma ainda mais
paradigmática para o caso aqui em discussão – aquele outro que põe em
funcionamento a proibição de «reformatio
in peius». De uma forma ainda mais paradigmática, digo, porque a
argumentação dos opositores desta proibição – que, durante tantos anos, impediu
a verdadeira conquista democrática em que uma tal proibição se traduz – não
era no fundo outra senão a de que o regime próprio desta proibição tornaria
parcialmente disponível o objecto do processo e permitiria assim que a actuação
processual dos eventuais recorrentes subtraísse ao juiz funções que deveriam
caber-lhe de forma indisponível!
Toda esta linha de argumentação não colhe face a um processo penal
dotado, nos termos do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, de «estrutura
acusatória», Não quero significar com isto que a estrutura acusatória do
processo penal implique por necessidade
soluções como a da proibição da reformatio
in peius ou a constante do artigo 16.º, n.ºs 2 e 3. Digo, sim, que estas
soluções são compatíveis com aquela
estrutura acusatória e devem ser compreendidas
à sua luz; e, ainda mais, que elas representam «um autêntico reforço da estrutura acusatória do
processo penal», sem por isso porem em causa o princípio da investigação ou o
carácter indisponível do objecto do processo: que elas representam, numa
palavra, a realização da «máxima acusatoriedade do processo penal» compatível
com os restantes princípios gerais que lhe presidem. Pela simples e boa razão
– que o conjunto do presente trabalho, mas nomeadamente a sua parte final,
procura tornar clara – de que levar ao ponto de censura soluções como aquelas
de que aqui se trata não significaria respeito pelos princípios da
indisponibilidade e da investigação: significaria, sim, conceder a um processo de estrutura inquisitória, ou
de estrutura mista
acusatória/inquisitória – esse, na verdade, irremediavelmente inconstitucional
perante o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
Julgo poder agora concluir: face à Constituição, tanto o sistema do
projecto como o do Código, relativos ao artigo 16.º, são perfeitamente
legítimos. Não é, pois, no domínio da arguição de inconstitucionalidade – que,
a este como a outros propósitos, mal encobre o circunstancialismo político e
sociológico em que hic et nunc se
processam as relações institucionais e corporativas entre as magistraturas
judicial e do Ministério Público – que a discussão entre os dois sistemas deve
ser colocada. E, sim, no domínio das vantagens e desvantagens
político-criminais que cada um apresenta para a máxima realização possível das
finalidades antinómicas do processo penal que o problema deve ser posto e –
assim se espera – aprofundado no futuro. [cf. «Sobre os sujeitos processuais
no novo Código de Processo Pena1», Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal – O
Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, pp. 3 e segs., especialmente
pp. 19-22.]”.
Esta
doutrina é perfeitamente transponível para a crítica que a decisão recorrida faz
à violação da reserva de jurisdição e do princípio da independência dos
tribunais pela posição em que o juiz de instrução é colocado face ao
entendimento do Ministério Público de utilizar o mecanismo instituído pelo
artigo 281.º do Código de Processo Penal.
6. O facto de o juiz de instrução estar
condicionado pela decisão do
Ministério Público, nomeadamente quanto à selecção das injunções e regras de
conduta e à determinação do período de suspensão do processo, mais
precisamente, de o seu leque de opções decisórias estar limitado à concordância
ou discordância com a anterior aplicação do direito ao caso feita pelo
Ministério Público e pela aceitação dos demais sujeitos processuais, não
contende com o princípio constitucional da independência dos tribunais. Do mesmo modo que não pode considerar-se que assuma essa
natureza ou tenha esse efeito o poder que o Ministério Público tem de pôr ou
não em funcionamento o órgão judicial através do exercício da acção penal (cf.
Figueiredo Dias, Direito Processual Penal,
I Vol., p. 383) ou os termos em que apresenta a pretensão punitiva do
Estado (ac. n.º 393/89), também não belisca a independência funcional do juiz
de instrução a circunstância de o Ministério Público submeter a concordância
judicial uma decisão sua, que obteve já a aceitação dos restantes sujeitos
processuais e que consiste em renunciar à submissão imediata do caso a
julgamento, sempre que as exigências de prevenção geral e especial não
requeiram a efectiva aplicação e cumprimento de uma pena. Os termos em que o
juiz decidirá se deve ou não dar a sua concordância não dependem senão do que,
em sua consciência, decorra da situação de facto revelada pelo processo e dos
comandos legais. Seja qual for a extensão dos seus poderes – ainda naquela
interpretação mais restritiva de que ao juiz não cabe senão a apreciação dos
pressupostos e condições da suspensão que se analisem (ou na parte em que se
analisem) num mero juízo verificativo de conformidade à lei, estando-lhe vedada
a intervenção nos juízos de prognose ou na margem de apreciação por parte do
titular da acção penal (a previsão da
alínea e) do n.º 1 e a adequação das injunções ou regras de
conduta adoptadas) –, a decisão do juiz não depende de quaisquer ordens ou
instruções mas, directamente e só, das fontes normativas a que
constitucionalmente deve obediência.
A
limitação do campo de pronúncia judicial relativamente às possibilidades
abstractas da lei substantiva em decorrência das opções dos sujeitos
processuais é, aliás, embora sem carácter absoluto, postulada relativamente a
todo o processo judicial pelo princípio da imparcialidade e vai implicada
noutros princípios constitucionais do processo penal, designadamente no
princípio do acusatório e da proibição da reformatio
in pejus. Mas a liberdade do acto de julgar, que é a única vertente ou
perspectiva da independência judicial de que tem sentido falar-se a propósito
da norma em causa, não sofre com o facto de não caberem ao juiz de instrução
quer a opção primária por suspender ou não o processo, quer a escolha das
injunções ou regras de conduta. O juiz de instrução concordará ou não com a
solução que lhe é apresentada, (i) livre
de instruções de qualquer tipo e provenientes de qualquer entidade, (ii) livre de toda a espécie de
pressões, directas ou indirectas, susceptíveis de influenciar a declaração do
direito do caso, (iii) cabendo-lhe
encontrar a solução juridicamente imposta, no âmbito dos poderes que é chamado
a exercer. São estas as condições da independência funcional dos juízes. Neste
sentido, a maior ou menor extensão dos poderes que exerce não torna o juiz mais
ou menos independente.
Acresce dizer, com Figueiredo Dias, «A
“pretensão” a um juiz independente como expressão do relacionamento democrático
entre o cidadão e a justiça”», Sub Judice,
n.º 14 – Janeiro/Março de 1999, p. 27 e segs., que o estrito dever do juiz
de obediência à lei é um “mero limite
externo da independência, que nada tem a ver estruturalmente com ela e em
nada pode, por isso, afectá-la”. É um contrapolo
da independência judicial, sem o que a função jurisdicional poderia resvalar
para o exercício de um poder democraticamente ilegítimo.
Conclui-se,
pois, que a norma em causa não viola o princípio da independência dos tribunais
e dos respectivos juízes, consagrado no artigo 203.º da Constituição.
7. Entende a decisão recorrida que
também é infringido o artigo 202.º da Constituição na medida em que não é um
juiz (o juiz de instrução) quem decide a suspensão do processo e a imposição de
injunções e regras de conduta, mas antes o Ministério Público. Passando a
analisar este fundamento do juízo de inconstitucionalidade efectuado pelo
tribunal a quo, importa averiguar se
a decisão do Ministério Público pela suspensão provisória do processo
consubstancia um acto materialmente jurisdicional.
O
Ministério Público constitui, ao lado do tribunal, um órgão autónomo de
administração da justiça, constitucionalmente incumbido de “exercer a acção
penal orientada pelo princípio da legalidade”, que goza de estatuto próprio e
de autonomia, nos termos da lei, sendo integrado por magistrados
hierarquicamente subordinados que não podem ser transferidos, suspensos,
aposentados ou demitidos senão nos caos previstos na lei (artigo 219.º da
Constituição). Cabe-lhe dirigir o inquérito, o que implica necessariamente
aplicar o direito e formular juízos. Ao decidir-se, nesta fase, pela suspensão
provisória do processo, o Ministério Público opta por não exercer imediatamente
a acção penal. Esse acto, em si mesmo, não colide mais nem menos com o monopólio
da função jurisdicional pelos juízes do que o seu reverso: a dedução imediata
da acusação.
É certo que tal opção pode tornar-se
definitiva se as injunções ou regras de conduta forem cumpridas. Mas não é por
isso, pelo facto de a opção ser potencialmente definitiva ou, mais exactamente,
de coenvolver a expectativa de que o processo virá a ser arquivado, sem a qual
a opção pela suspensão não seria tomada, que pode dizer-se que o Ministério
Público pratica um acto materialmente jurisdicional. Haverá, apenas, se esse
vier a ser o desenvolvimento do processo, um conflito que acabará por ser
dissipado ou suprimido; não a sua resolução e, muito menos a aplicação de
qualquer pena, por entidade diversa do juiz.
Por
outro lado, como o Tribunal reconheceu logo no acórdão n.º 7/87, centrando-se
sobretudo no parâmetro específico do n.º 4 do artigo 32.º da Constituição, não
há obstáculo de ordem constitucional à direcção do inquérito pelo Ministério
Público, como ele vem desenhado no Código, e a que lhe compita encerrá-lo,
arquivando-o ou deduzindo acusação. Não pode também havê-lo quanto a algo que é
um minus relativamente ao
arquivamento, sempre que as exigências de prevenção não justifiquem os custos do prosseguimento formal típico
para os propósitos político-criminais da intervenção
mínima, da não-estigmatização do
agente, do consenso e da economia processual. E também o não há
face ao artigo 202.º, porque a concretização da reserva para administrar justiça mediante a
atribuição de competência aos tribunais para reprimir a violação da legalidade democrática (artigo 202.º, n.º 2
da Constituição) não é incompatível com soluções em que a actuação do tribunal,
mesmo no processo penal, seja condicionada pelo impulso processual inicial ou
sucessivo de outros sujeitos processuais, nem impede que a intervenção do juiz
de instrução se limite, na fase de inquérito, a uma função de garantia, sempre
que se torne necessária a prática de actos que colidam com a esfera dos
direitos, liberdades e garantias (juiz de
garantias ou juiz das liberdades).
Acresce,
por último, que o acto processual em causa – a decisão primária de suspensão e
escolha das injunções e regras de conduta – também não cabe em qualquer das
hipóteses singulares de reserva de acto jurisdicional ou “casos constitucionais
de reserva judicial” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 792) no
domínio do processo penal, designadamente no n.º 2 do artigo 27.º da
Constituição, porque as injunções e regras de conduta não revestem a natureza
jurídica de penas, embora se consubstanciem em medidas que são seus
“equivalentes funcionais” (Cf. neste sentido Pinto Torrão, op. cit., pág. 192, Anabela Miranda Rodrigues, Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, pág. 193, e Germano Marques da
Silva, Curso de Processo Penal, III,
2.ª ed., pág. 112).
E é
assim por três razões fundamentais. Trata-se de uma sanção a que não está
ligada a censura ético-jurídica da pena, nem a correspondente comprovação da
culpa. Ao arguido cabe decidir, na sua estratégia de defesa, se aceita
submeter-se a tais injunções e regras de conduta ou se prefere que o processo
prossiga para julgamento. E a todo o momento pode a elas subtrair-se –
obviamente se não forem de execução instantânea –, bastando-lhe deixar de
cumpri-las (n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal).
Em
conclusão, a norma do artigo 281.º do Código de Processo Penal, na
interpretação de que, na fase de inquérito, cabe ao Ministério Público a competência
para decidir a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de
instrução, também não viola a reserva de função jurisdicional consagrada nos
n.ºs 1 e 2 do artigo 202.º da Constituição.
8. Na razão terceira do despacho
recorrido, o tribunal a quo considerou,
ainda, que o artigo 281.º do Código
de Processo Penal também é inconstitucional quando interpretado em conjunto com
o disposto no artigo 64.º do Código de Processo Penal, no sentido de ser
dispensada a assistência de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a
concordar com a suspensão provisória do processo e com as injunções e regras de
conduta que lhe são apresentadas pelo Ministério Público.
Quanto a esta questão é
conveniente começar por precisar um aspecto: no contexto do despacho recorrido
“ser dispensada a assistência de defensor ao arguido” significa “não ser
imposta a obrigatoriedade de assistência de defensor ao arguido”. Aquilo que o
juiz “a quo” censura ao legislador ordinário não é violar o direito do arguido
“a não estar só”, mas infringir o dever do Estado de “não deixá-lo só” perante
as autoridades judiciárias.
O n.º 3 do artigo 32º da Constituição remete para
a lei a definição dos casos em que é obrigatória a assistência por advogado, o
que significa que cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador a
selecção das situações em que a assistência deve ser obrigatória. E, embora
seja constitucionalmente exigível que essa selecção seja materialmente adequada
à relevância dos diversos actos e fases do processo criminal, desde logo por
ser condição de garantia dos direitos de defesa do arguido (cf. acórdão n.º
413/2004, Diário da República, II
Série, de 23 de Julho de 2004), a verdade é que não se encontra razão para que
essa obrigatoriedade se imponha ao legislador, de modo taxativo, para todos os
casos de suspensão provisória do processo, como subjaz ao entendimento
perfilhado pelo despacho recorrido.
Efectivamente,
o que aqui pode estar em causa, o objectivo específico da assistência de
defensor para o acto de concordância, é assegurar que a aceitação, pelo
arguido, da suspensão do processo e das injunções ou regras de conduta, traduza
um consentimento informado, isto é, que
seja o produto de uma vontade esclarecida quanto à ponderação das vantagens e
desvantagens ligadas às alternativas em presença. Alternativas e consequências
que, na generalidade dos casos, são facilmente inteligíveis e representáveis,
sem necessidade de aconselhamento técnico-jurídico, por um arguido dotado de
normal capacidade intelectual e volitiva e experiência da vida.
Assim, o
legislador não faz um uso materialmente inadequado da margem de conformação que
lhe é outorgada no n.º 3 do artigo 32.º da Constituição ao não incluir o acto
de concordância pelo arguido com a suspensão provisória do processo no elenco
daqueles em que taxativamente e sem excepção tem de ser assegurada a presença
de defensor (n.º 1 do artigo 64.º do Código de Processo Penal). Basta, para que
o comando constitucional se considere cumprido, relativamente às situações
cabíveis no tipo de acto em causa no artigo 281.º, o disposto na cláusula geral
do n.º 2 do artigo 64.º do Código de Processo Penal que prescreve, além dos
casos previstos no número anterior, o poder-dever de o tribunal nomear defensor
ao arguido, oficiosamente ou a pedido deste, sempre que as circunstâncias do
caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido por
defensor.
Cumpre,
aliás, recordar que o presente recurso de constitucionalidade respeita a uma
situação em que está em causa a aceitação da suspensão provisória do processo,
pelo período de dois meses, mediante o pagamento de duas prestações mensais a
favor de uma instituição de solidariedade social e não praticar, durante o
período de suspensão do processo, qualquer facto criminalmente punível a título
de dolo. O que demonstra, pela evidência do exemplo, que a preocupação que
afligiu o despacho recorrido só em concreto pode ser resolvida e tem na
claúsula geral solução normativa idónea.
Tanto
basta para que se conclua que a norma do artigo 281.º em conjunto com o artigo
64.º do mesmo Código, interpretada no sentido de ser dispensada a assistência
de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a dar a sua concordância à
suspensão provisória do processo, não viola o n.º 3 do artigo 32.º da
Constituição.
9. Decisão
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a decisão
recorrida ser reformada em conformidade com o julgamento de não
inconstitucionalidade agora efectuado.
Sem
custas.
Lisboa, 24 de Janeiro de 2006
Vítor Gomes
Mário José de Araújo Torres
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Paulo Mota Pinto
Bravo Serra
Benjamim Rodrigues
Gil Galvão
Maria João Antunes
Maria Fernanda
Palma (Voto o presente Acórdão, em atenção, essencialmente, ao perfil político – criminal (anti –
estigmatizante, reparador da ofensa e alternativo ao ritual processual
condenatório) e humanizador do processo penal,
desempenhado
pelo instituto da suspensão provisória do processo).
Artur Maurício