ACÓRDÃO N.º 426/2005
Processo
n.º 487/05
2.ª
Secção
Relator:
Conselheiro Mário Torres
Acordam
na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. Relatório
1.1. O Tribunal da Relação de Guimarães,
por acórdão de 23 de Março de 2004 (fls. 2568 a 2621), negando provimento aos
recursos por eles interpostos, manteve as condenações, aplicadas em 1.ª
instância, dos arguidos A., B. e C.,
como co‑autores materiais de um crime de tráfico de estupefacientes
agravado, previsto e punível pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alíneas b) e c),
do Decreto‑Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, nas penas de 8, 9 e 7 anos de
prisão, respectivamente, e, quanto aos dois primeiros, como autores de um
crime de detenção ilegal de arma de defesa, previsto e punível pelo artigo 6.º
da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, nas penas de 9 meses de prisão (em cúmulo
jurídico com a anterior, na pena única de 8 anos e 4 meses de prisão) e de 100
dias de multa à taxa diária de € 4, também respectivamente.
Esse
acórdão foi anulado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 17 de
Junho de 2004 (fls. 2749 a 2778), para ampliação da matéria de facto restrita
ao ponto assim enunciado:
“(...)
a fundamentação de facto do acórdão recorrido, ao remeter em larga medida, por
mera remissão genérica, para os «documentos juntos aos autos», mormente as
transcrições das escutas, acabou por omitir um dado essencial, a saber:
tirando a única transcrição em que se diz que o juiz ouviu [previamente] a
gravação, as demais ordens de transcrição dadas foram ou não precedidas da
imprescindível escolha por aquele magistrado? E se não, foi, ao menos, tal
selecção, objecto das transcrições, deferida [pelo juiz], ainda que por
coadjuvação, solicitada ao órgão de polícia criminal, tal como o previsto no
n.º 4 do artigo 188.º citado?
Da
resposta a estas perguntas vai uma distância grande que pode oscilar –
consoante as teses jurisprudenciais antagónicas em presença – entre a validade
e a nulidade ou, mesmo, inexistência, deste meio de prova em que se baseia a
deliberação recorrida.
Mas
que não tendo sido dada na fundamentação do acórdão recorrido, coloca este sob
a alçada dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, alínea a), do Código de Processo Penal.”
1.2. Na sequência desta anulação e após
realização de audiência de julgamento (cfr. acta de fls. 2815), o Tribunal da
Relação de Guimarães proferiu o acórdão de 18 de Outubro de 2004, no qual,
apesar de julgar improcedentes todos os recursos, reformulou, por força da
entrada em vigor da Lei n.º 11/2004, de 27 de Maio (cujo artigo 54.º alterou,
em sentido mais favorável para os arguidos, a redacção do artigo 24.º do
Decreto‑Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), as penas aplicadas aos arguidos
A.,
B.
e C.,
como co‑autores materiais do aludido crime de tráfico de estupefacientes
agravado, para 7 anos e 6 meses, 8 anos e 6 meses e 6 anos e 7 meses de
prisão, respectivamente, mantendo, quanto aos dois primeiros arguidos, as
condenações, como autores do referido crime de detenção ilegal de arma de
defesa, nas penas de 9 meses de prisão (em cúmulo jurídico com a anterior
pena, 7 anos e 10 meses de prisão) e de 100 dias de multa à taxa diária de € 4,
também respectivamente. Nesse acórdão, a propósito da validade das escutas, o
Tribunal da Relação de Guimarães consignou o seguinte, após transcrever os
artigos 187.º e 188.º do Código de Processo Penal (CPP):
“Não temos como necessário fazer‑se
uma análise exaustiva destes preceitos, bastando-nos algumas notas genéricas e
as pertinentes para o fim em causa, ou seja, demonstrar‑se a bondade dos
procedimentos policiais e judiciais do caso em apreço ou, pelo menos, que os
actos respectivos não estão afectados de qualquer nulidade insanável.
Enquanto
o artigo 187.° consagra a admissibilidade da intercepção e gravação de
conversações ou comunicações telefónicas, para valerem como meio de prova,
desde que ordenadas ou autorizadas por despacho judicial e relativamente aos
crimes taxativamente enunciados, o artigo 188.° estabelece as formalidades a
que estão sujeitos os actos de intercepção e de gravação.
Estes normativos estabelecem um
regime de autorização e de controlo judicial e o «sistema de catálogo», em
consonância com o disposto no artigo 34.°, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa, segundo o qual o domicílio e o sigilo da correspondência e dos
outros meios de comunicação privada são invioláveis, bem como com o disposto no
n.º 4, que consagra que é proibida toda a ingerência das autoridades públicas
na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação
social salvo os casos previstos na lei em matéria de processo penal.
Do
referido preceito constitucional se retira que só em matéria de processo penal
é admissível a limitação do direito fundamental relativo ao sigilo da
correspondência e telecomunicações pelas autoridades judiciais, corporizando
os artigos 187.° a 190.° do CPP precisamente a excepção indicada no segmento
final do comando constitucional.
Como sublinha Costa Andrade (Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, pág.
286), o teor particularmente drástico da ameaça representada pela escuta
telefónica explica que a lei tenha procurado rodear a sua utilização das
maiores cautelas. Daí que a sua admissibilidade esteja dependente do conjunto
de exigentes pressupostos materiais e formais previstos nos artigos 187.° e
seguintes da lei processual portuguesa.
O
legislador procurou, assim, inscrever o regime das escutas telefónicas sobre a
exigente ponderação de bens: por um lado, os sacrifícios ou perigos que a
escuta telefónica traz consigo e, por outro lado, os interesses mais relevantes
da perseguição penal.
Nesta
ordem de ideias, a imediação entre o juiz e a recolha de provas através da
escuta telefónica aparece como o meio que melhor garante que uma medida com tão
específicas características se contenha nas apertadas margens fixadas no texto
constitucional.
Só que, apesar da singeleza dos
textos legais e da clara definição de princípios, a nossa jurisprudência tem
sido em grande parte determinada por interpretações que apenas satisfazem
interesses de recurso e confundida sobre a leitura integral daqueles
princípios.
Nos
termos do artigo 189.°, todos os requisitos e condições referidos nos artigos
187.° e 188.º são estabelecidos sob
pena de nulidade.
As
nulidades insanáveis são as que,
taxativamente, são definidas nas alíneas a)
a f) do artigo 119.º, além das que como tal forem cominadas em outras
disposições legais.
Ora,
ao estabelecer o regime que estabeleceu no artigo 189.°, isto é, sem qualquer
adjectivação, o legislador deixou a possibilidade de, nesta matéria, as
nulidades serem enquadradas como insanáveis
se houver violação das regras materiais de recolha de prova e as outras, as que
derivam de meros aspectos formais, como dependentes de arguição ou meras
irregularidades. Se o legislador – que se deu ao trabalho de, em artigo
próprio, esclarecer que a violação daqueles requisitos e condições eram
estabelecidos sob pena de nulidade – quisesse que toda e qualquer violação
fosse considerada nulidade insanável,
tinha-as qualificado como tal.
O acto solene que põe em causa os
direitos constitucionais tão delicados como aqueles é o da autorização,
compreendendo‑se, pois, que a sua irregularidade afecte
irremediavelmente a sua validade.
Os
demais actos, de audição, selecção e transcrição já nada têm a ver com os
direitos dos visados e apenas se destinam a garantir confidencialidade, através
de mecanismos apertados, nomeadamente a não exposição a outras pessoas que não
sejam o próprio juiz e os agentes do órgão de polícia criminal que efectue a
escuta.
A
operacionalidade desses mecanismos não vem estritamente definida e a prática
aconselha a que, as mais das vezes, seja o órgão de polícia criminal quem
previamente elabora um resumo das escutas, submetendo‑o ao juiz, sem que
com isso se viole qualquer regra.
Por
um lado, alguém daquele órgão tem acesso imediato ao conteúdo das conversas e,
por outro, esse resumo (que também se justifica por evidentes e pesadas razões
de economia processual) é controlado por decisão judicial que chancela a
escolha que foi feita de acordo com os critérios de quem investiga, em especial
os que resultam da conjugação de todos os elementos que interessam e que só o
«instinto policial» deve orientar.
Este
procedimento corrente, além de, como já se frisou, não violar nenhum direito
dos visados, está legalmente autorizado no n.º 2 do artigo 188.°, sendo preciso
compreender‑se a elevada complexidade dos factos a investigar e mal se
aceitando que fosse um juiz, sozinho, a ouvir o conteúdo das escutas e a
seleccionar o que interessava ou não para o caso. E, ao mandar proceder à
transcrição daquilo que lhe foi sugerido como relevante e à destruição do que é
impertinente, o juiz está, afinal, a aceitar a coadjuvação do órgão de polícia
criminal que ele próprio poderia expressamente solicitar.
No
caso dos autos, os mapas de fls. 1 e 2 do Apenso 2, que aqui se dá por
reproduzido para todos os efeitos legais, condensam com perfeição todos os
actos e prazos que garantem, do ponto de vista substancial, a validade plena
das escutas em causa.
Por
seu lado, os autos que documentam os prévios resumos elaborados pela Polícia
Judiciária (cf. a coluna «Auto Fim»
do mapa de fls. 2) e os despachos judiciais que sobre eles recaíram não
mostram qualquer irregularidade, estando plenamente garantido o escopo a
atingir, com a particularidade de todos
os suportes em papel e informáticos serem levados
em mão ao juiz por inspectores da Polícia Judiciária, conforme despachos
expressos do seu director.
Nesta
conformidade, embora se conclua dos teores respectivos que, no caso das ordens
de transcrição contidas nos despachos de fls. 146 v.º, 178 v.º, 200 v.º, 213 e
404, houve prévia audição das escutas pelos JIC's e que o mesmo não se pode
concluir no que concerne aos despachos de fls. 246, 288 e 589, ponto assente é
que em caso algum houve violação de quaisquer direitos, quiçá nestes últimos
casos, uma vez que foi sempre o Juiz quem avaliou do interesse das passagens
relevantes a transcrever, ainda que de encontro às sugestões da Polícia
Judiciária e do Ministério Público.”
1.3. Nos recursos que interpuseram
desse acórdão para o STJ os ora recorrentes suscitaram questões de
inconstitucionalidade relativas à validade das escutas nos termos sintetizados
nas seguintes conclusões das respectivas motivações:
A)
O recorrente A.:
“4. O douto acórdão julgou válidas
as escutas telefónicas a que se procedeu no âmbito do presente processo,
considerando que:
–
o juiz não está obrigado a ouvir as gravações antes de ordenar a respectiva
transcrição;
–
no caso concreto, o Juiz chancelou a
selecção feita pela Policia Judiciária do material gravado a transcrever;
–
o Juiz poderia expressamente solicitar a
coadjuvação da Polícia Judiciária, mas não o fez;
–
no que diz respeito aos despachos de fls. 246, 288 e 589, o JIC não procedeu à
prévia audição das escutas;
–
no que diz respeito aos demais despachos, o JIC procedeu à prévia audição das
escutas;
–
em todos os casos, foi sempre o Juiz quem avaliou do interesse das passagens
relevantes a transcrever.
5.
Tal decisão não pode manter‑se, desde logo devido à falta de «indicação e exame crítico das provas que
serviram para formar a convicção do tribunal» quanto aos factos à audição e
selecção das escutas, provas essas que não podem ser, nem são, os despachos em
si próprios.
6.
O douto acórdão em mérito ofende a regra imposta pelo artigo 374.°, n.° 2, e
está ferido de nulidade – artigo 379.°, n.° 1, alínea a).
7.
A não ser assim, é flagrante que existe contradição entre a decisão e os
respectivos fundamentos, estes a sublinharem que o JIC não está obrigado a ouvir
as gravações, nem a proceder à prévia selecção das escutas a transcrever, nem a
pedir a coadjuvação para este efeito dos órgãos de polícia criminal, apesar de
o poder fazer, e que, no caso vertente, houve apenas «prévios resumos elaborados pela Polícia Judiciária», sem nenhuma
solicitação prévia do Juiz, aquela a considerar que, apesar disso, «houve prévia audição das escutas».
8.
Esta contradição resulta do próprio texto da decisão impugnada e configura o
vício previsto na alínea b) do n.° 2
do artigo 410.°.
9.
No mínimo, está‑se perante um erro notório na apreciação da prova, que
também resulta do texto da decisão e integra o vício da alínea c) do mesmo n.° 2.
10.
Ainda que assim não fosse, o certo é que o douto acórdão reconhece que as
escutas a que se reportam os despachos de fls. 246, 288 e 589 não foram
precedidas de prévia audição e controlo pelo JIC.
11.
Pelo menos quanto a estas deveria o Tribunal ter declarado a respectiva
nulidade.
12.
Com efeito, a transcrição das escutas telefónicas sem a sua prévia audição pelo
JIC e sem despacho que declare a conveniência de coadjuvação do órgão de
polícia criminal para esse efeito, e ainda o facto de, como ocorreu no caso
vertente, o JIC não ter tido imediato
conhecimento do conteúdo das gravações, importam a nulidade insuprível deste
meio de prova, ou mesmo inexistência, por ofensa do disposto no artigo
188.°, n.ºs 1, 3 e 4, e no artigo 126.°, n.ºs 1 e 3 – cfr. artigo 189.°.
13.
A interpretar‑se estes preceitos de modo diverso, julgando válidas as
escutas processadas neste contexto, seriam os mesmos, assim interpretados,
inconstitucionais, por ofensa do disposto no artigo 32.°, n.° 8, da CRP.”
B)
O recorrente B.:
“1. A intercepção e gravação de comunicações
dependem de autorização judicial (artigo 187.º, n.º 1, do CPP), daquelas
devendo ser lavrado auto que, juntamente com o suporte da gravação, serão
levados àquele juiz (artigo 188.º, n.º 1, do CPP) que, após respectiva
audição e análise do seu interesse probatório, ordenará a sua transcrição em
auto ou, inversamente, a respectiva destruição (n.º 3); nesta última função
podendo requerer a coadjuvação por órgão de polícia criminal (n.º 4).
2.
É o controlo judicial na realização da obtenção daquele meio de prova –
intercepções telefónicas – o garante da sua legalidade.
3.
No caso sub judice, a Polícia
Judiciária – órgão de polícia criminal a quem havia sido cometida a
investigação – substituiu‑se ao Magistrado Judicial competente na escolha
das conversas telefónicas que, sozinha, considerou revestidas de
pertinência probatória e, sem prévio despacho judicial, procedeu à
respectiva transcrição em auto, só após o que as submeteu à apreciação do juiz.
4.
Ou seja, o JIC que ordenou as intercepções telefónicas não procedeu à audição dos suportes magnéticos que as continham, não procedeu à selecção dos trechos
considerados com relevância probatória, e não
ordenou a respectiva transcrição em auto.
5.
Na esteira do entendimento defendido no Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 17 de Janeiro de 2001, não resultando documentado que a realização
do meio de prova intercepções telefónicas tenha sido alvo de um rigoroso e
efectivo controlo judicial nos presentes autos, que é o garante da sua
legalidade, impõe‑se concluir que
as intercepções telefónicas são absoluta e inegavelmente nulas, porquanto
na sua realização foi o Tribunal demitido de efectivar o controlo da sua
legalidade; entendimento perfilhado pela M.ma Juíza Desembargadora Adjunta do
Tribunal da Relação de Guimarães, Dra. D.,
com voto de vencido no acórdão recorrido.
6.
As intercepções telefónicas realizadas com inobservância do disposto nos
artigos 187.º e 188.º do CPP, como tal nulas nos termos do disposto no n.º 3 do
artigo 126.º do mesmo diploma legal, directa, radical e inelutavelmente colidem
com o direito à inviolabilidade das comunicações, uma vez que realizadas à
revelia dos pressupostos que permitem a restrição de direitos constitucionais.
7.
Pelo que a ilegalidade decorrente da violação dos artigos 187.º e 188.º do CPP
consubstancia, simultânea e incontornavelmente, a violação directa dos artigos
26.º, n.º 1, e 34.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, cominada
com nulidade, nos termos do seu artigo 32.º, n.º 6.
8.
«As nulidades resultantes da produção de
prova proibida são sempre de conhecimento oficioso até ao trânsito da decisão
final», expressamente se invocando aqui a nulidade de todas as intercepções
telefónicas constantes dos autos cuja validação decorreu sem a necessária
audição prévia por Magistrado Judicial, ou seja, por manifesta ausência de
controlo judicial.
9.
Termos em que deverá o acórdão recorrido ser revogado por valoração de prova
proibida e nula.
10.
Mais devendo ser declarada inconstitucional a interpretação daquele Tribunal da
Relação de Guimarães segundo a qual o incumprimento dos requisitos e violação
das formalidades legais na realização do meio de obtenção de prova «escutas
telefónicas» previstos nos artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal
consubstanciam nulidades sanáveis, por frontalmente violadora do disposto no
artigo 34.º, n.º 4, e 32.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa.”
C)
O recorrente C.:
“16.°
Além dessa falta de fundamentação, a Relação cometeu um erro notório na
apreciação da prova, incorrendo no vício previsto no artigo 410.º, n.º 2,
alínea c), do CPP, pois, com excepção
do despacho de fls. 200 v.º, em nenhum dos restantes (146 v.º, 178 v.º, 213 e
404), tal como nos de fls. 246, 288 e 586, é referido que o JIC ouviu as
escutas, como aliás este Tribunal já constatou no acórdão anterior.
17.º
O teor dos despachos, com excepção do de fls. 200, em que a Relação conclui
que houve audição prévia das escutas e nos que conclui que não houve é o mesmo,
não se percebendo como é que se chega a conclusões diversas a partir de textos
semelhantes ou iguais, incorrendo aqui igualmente a Relação no vício previsto
no artigo 410.º, n.º 2, alínea b).
18.º
O despacho de transcrição de fls. 213 não existe nos autos, pois o que se
encontra a fls. 213 é uma simples comunicação entre departamentos da PJ, que
nada tem a ver com «despacho de transcrição», e o despacho de fls. 404 não é de
transcrição, mas sim ordena a destruição, não resultando, contudo, que mesmo
assim, o JIC o tenha ouvido previamente, incorrendo também aqui a Relação em
erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP).
19.º
Não houve qualquer controlo jurisdicional das escutas. De facto, com excepção
do despacho de fls. 200 v.º, não existe qualquer auto ou escrito demonstrando
terem sido as gravações ouvidas, seleccionadas e mandadas transcrever por um
magistrado judicial; e bem assim não existe evidência da apresentação em juízo
das fitas magnéticas, mas tão-somente das suas alegadas transcrições.
20.º
Quem seleccionou e ouviu previamente as escutas telefónicas foi o órgão de
polícia criminal, limitando‑se o JIC a acreditar nas sugestões da PJ,
ordenando a sua transcrição sem as ouvir e seleccionar previamente.
21.º
Tais procedimentos e omissões violam o preceituado na lei. E designadamente o
disposto no artigo 188.º, n.ºs 3 e 1, do CPP, acarretando nulidade absoluta
e/ou inexistência por constituir método proibido de prova; do mesmo passo se
desrespeita o artigo 32.°, n.ºs 8 e 4, da Constituição; são ofendidas as
regras da competência exclusiva dos tribunais (artigos 269.°, n.º 1, alíneas e) e d),
187.°, 190.° e 188.º, n.ºs 1 e 3, do CPP), invasão que constitui nulidade insanável
(artigo 119.º, alínea e), do CPP);
foi infringido o artigo 188.º, n.º 1, também porque ocorreu excessivo lapso de
tempo entre a escuta e a sua transcrição.
22.º
A nulidade resultante da violação de proibições de prova é insanável, devendo
ser julgada inconstitucional qualquer interpretação dos artigos 187.° e 188.º,
n.ºs 1 e 3, do CPP que conclua ser sanável
tal nulidade, dependente de arguição, por violação dos citados preceitos
da Constituição da República.”
1.4. Por acórdão de 17 de Março de
2005, o STJ reduziu as penas aplicadas aos referidos arguidos, pelo crime de
tráfico de estupefacientes, para, respectivamente, 6 anos e 6 meses, 7 anos e 6
meses e 5 anos e 8 meses de prisão (passando para 6 anos e 9 meses a pena única
aplicada ao primeiro). Sobre a questão da validade das escutas telefónicas, o
STJ expendeu o seguinte:
“Suscitam
os recorrentes a existência de nulidades e de vícios da decisão recorrida.
Aquelas
consistem no não cumprimento das formalidades previstas nos artigos 187.° e
188.° do Código de Processo Penal e da falta de indicação e exame crítico das
provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Por
seu lado, os vícios apontados são a contradição entre a decisão e os
respectivos fundamentos e o erro notório na apreciação da prova.
Embora
os recorrentes tenham alegado a existência da violação do disposto nos artigos
187.° e 188.° do CPP, o certo é que o primeiro desses artigos apenas se refere
à necessidade de autorização judicial para as escutas telefónicas e aos casos
em que estas são admissíveis.
Ora,
não se põe em dúvida que as escutas efectuadas referentes ao presente processo
foram devidamente autorizadas e eram admissíveis (artigo 187.°, n.º 1, alínea a), do CPP).
O que os recorrentes alegam como
constituindo nulidade é a falta do cumprimento das normas previstas no artigo 188.°
do CPP, nomeadamente a escolha e a transcrição das conversas telefónicas pela
Polícia Judiciária e não pelo juiz de instrução.
O acórdão deste Supremo Tribunal, de
17 de Junho de 2004, ordenou a ampliação da matéria de facto referente à
escolha e transcrição das escutas telefónicas, visando apenas se foi dado ou
não cumprimento ao disposto no n.º 3 do citado artigo 188.° do CPP.
O
acórdão recorrido, sobre essa matéria, regista o seguinte:
«No
caso dos autos, os mapas de fls. 1 e 2 do Apenso 2, que aqui se dá por
reproduzido para todos os efeitos legais, condensam com perfeição todos os
actos e prazos que garantem, do ponto de vista substancial, a validade plena
das escutas em causa.
Por
seu lado, os autos que documentam os prévios resumos elaborados pela Polícia
Judiciária (cf. a coluna “Auto Fim”
do mapa de fls. 2) e os despachos judiciais que sobre eles recaíram não mostram
qualquer irregularidade, estando plenamente garantido o escopo a atingir, com
a particularidade de todos os suportes em papel e informáticos
serem levados em mão ao juiz por
inspectores da Polícia Judiciária conforme despachos expressos do seu director.
Nesta
conformidade, embora se conclua dos teores respectivos que, no caso das ordens
de transcrição contidas nos despachos de fls. 146 v.º, 178 v.º, 200 v.º, 213 e
404, houve prévia audição das escutas pelos JIC 's e que o mesmo não se pode
concluir no que concerne aos despachos de fls. 246, 288 e 589, ponto assente é
que em caso algum houve violação de quaisquer direitos, quiçá nestes últimos
casos, uma vez que foi sempre o Juiz quem avaliou do interesse das passagens relevantes
a transcrever, ainda que de encontro às sugestões da Polícia Judiciária e do
Ministério Público.»
O
Tribunal recorrido deu, assim, como provado que todas as transcrições dos
elementos colhidos nas escutas telefónicas foram ordenadas pelo juiz após
prévia escolha sua, umas vezes por audição pessoal e outras vezes (a que se
referem os despachos de fls. 246, 288 e 589) pela leitura dos textos reproduzidos
que lhe foram apresentados pela Polícia Judiciária, ou seja recorrendo à
cooperação desta Polícia como é autorizado pelo n.º 4 do citado artigo 188.°.
O
recorrente A. sustenta que o acórdão
recorrido, ao julgar válidas as escutas telefónicas não procedeu «à indicação e exame crítico das provas que
serviram para formar a convicção do Tribunal (no que toca) à audição e
selecção das escutas, provas essas que não podem ser, nem são, os despachos em
si próprios», o que violaria o disposto no artigo 374.°, n.º 2, e constituiria
a nulidade do artigo 379.°, n.º 1, alínea a),
do CPP.
Porém,
aqueles requisitos exigidos pelo artigo 374.°, n.º 2, do CPP visam a matéria
de facto dada por provada na sentença e não as decisões relativas às nulidades
invocadas.
Ao
decidir a questão da validade das escutas telefónicas o Tribunal recorrido
tinha o dever de fundamentar as suas conclusões, bastando para tanto indicar os
meios de prova em que se baseou.
Deste
modo, não se verifica a existência das invocadas nulidades previstas no artigo
189.° do CPP ou no artigo 379.°, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma.”
O
arguido C. arguiu a nulidade desse acórdão,
por omissão de pronúncia (fls. 3133 a 3136), o que foi indeferido por acórdão
de 5 de Maio de 2005 (fls. 3171 a 3173).
1.5. Os referidos três arguidos
interpuseram recursos para o Tribunal Constitucional:
1.º
– O arguido A. (cfr.
requerimento de fls. 3137), ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra o acórdão do STJ, de 17 de Março de 2005, pretendendo ver
apreciada a inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º
8, da Constituição da República Portuguesa (CRP), da norma contida nos artigos
126.º, n.ºs 1 e 3, e 188.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Código de Processo Penal (CPP), “na interpretação adoptada que considera
desnecessária a prévia audição das escutas telefónicas pelo JIC e a prolação de
despacho que declare a conveniência de coadjuvação do órgão de polícia
criminal para esse efeito e, bem assim, que considera válidas as escutas sem
que o conteúdo das respectivas gravações tenha sido levado de imediato ao conhecimento
do JIC”, questões de inconstitucionalidade estas que teriam sido suscitadas
na motivação do recurso interposto para o STJ;
2.º – O arguido B. (cfr. requerimentos de fls. 3144‑3146
e 3152‑3153‑A, com esclarecimentos a fls. 3201‑3205), ao
abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC:
A)
contra o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18 de Outubro de 2004,
pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos
34.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP, da norma do artigo 188.º, n.ºs 1,
3 e 4, do CPP, interpretada “com o
sentido de que, não obstante não ter sido o juiz a previamente ouvir as escutas
(despachos de fls. 246, 288 e 589), não houve violação de quaisquer direitos,
até porque recorreu‑se à cooperação da polícia”, questão de
inconstitucionalidade que teria sido suscitada na motivação e conclusões do
recurso interposto do acórdão final da 1.ª instância, e interpretação normativa
esta já julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.ºs 407/97, 347/2001 e
379/2004 do Tribunal Constitucional;
B)
contra o já referido acórdão do STJ, de 17 de Março de 2005, pretendendo ver
apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 34.º, n.ºs 1 e 4, e
32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP, da norma do artigo 188.º, n.ºs 1, 3 e 4, do CPP,
interpretada “com o sentido de que a
cooperação policial (neste caso pelo resumo de algumas conversas gravadas
elaborado pela PJ), não obstante não ter sido o juiz a previamente ouvir as
escutas (despachos de fls. 246, 288 e 589), prevista no n.º 4 do artigo 188.º
do CPP, pode substituir a competência exclusiva do JIC (artigo 188.º, n.ºs 1 e
3, do CPP) em tomar conhecimento do conteúdo gravado, antes de ordenar a
prorrogação, transcrição ou o cancelamento de uma intercepção telefónica”,
questão de inconstitucionalidade que teria sido suscitada na motivação e conclusões
do recurso interposto do acórdão da Relação, e interpretação normativa esta já
julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.ºs 407/97, 347/2001 e 379/2004 do
Tribunal Constitucional;
3.º
– O arguido C. (cfr.
requerimento de fls. 3179, com esclarecimentos a fls. 3199‑3200), ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC:
A)
contra o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23 de Março de 2004,
pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade:
(i) da interpretação dos artigos 187.º e
188.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, “que considera
ser sanável a nulidade, dependente de arguição”, por violação do artigo
32.º, n.ºs 4 e 8, da CRP, questão de inconstitucionalidade que teria sido
suscitada “nas conclusões 15.ª e 16.ª das
alegações de recurso, apresentadas em 13 de Abril de 2004”;
(ii) da interpretação do artigo 127.º do
CPP, “no sentido de o julgador poder
livremente dar como provados factos delituosos a que ninguém assistiu ou diz
ter assistido ou que não tenham sido discutidos em audiência”, por violação
do artigo 32.º, n.º 2, da CRP, questão de inconstitucionalidade que teria sido
suscitada “nas conclusões 17.ª a 20.ª das
alegações de recurso, apresentadas em 13 de Abril de 2004”;
B)
contra o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18 de Outubro de 2004,
pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade:
(i) da interpretação dos artigos 187.º e
188.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, “que considera
ser sanável a nulidade, dependente de arguição”, por violação do artigo
32.º, n.ºs 4 e 8, da CRP, questão de inconstitucionalidade que teria sido
suscitada “nas conclusões 21ª, 22.ª e
23.ª das alegações de recurso, apresentadas em 8 de Novembro de 2004”;
(ii) da interpretação do artigo 127.º do
CPP, “no sentido de o julgador poder
livremente dar como provados factos delituosos a que ninguém assistiu ou diz
ter assistido ou que não tenham sido discutidos em audiência”, por violação
do artigo 32.º, n.º 2, da CRP, questão de inconstitucionalidade que teria sido
suscitada “nas conclusões 25.ª e 26.ª das
alegações de recurso, apresentadas em 8 de Novembro de 2004”;
C)
contra o já referido acórdão do STJ, de 17 de Março de 2005, porquanto “faz uma errada interpretação dos artigos
127.º, 187.º e 188.º, todos do Código de Processo Penal, subscrevendo na
prática a mesma interpretação das instâncias, violando, assim, o disposto no
artigo 32.º, n.ºs 2, 4 e 8, da CRP, sendo válid[o] também relativamente a este
acórdão tudo quanto se alegou e concluiu na motivação dos recursos supra
mencionados”.
1.6. Por despacho do relator no
Tribunal Constitucional, de 4 de Julho de 2005 (fls. 3207 a 3224), após
descrição das vicissitudes processuais relevantes, consignou‑se:
“3. Considerando que o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC tem
como requisitos ter a decisão recorrida feito aplicação, como ratio decidendi, de norma ou
interpretação normativa cuja inconstitucionalidade fora suscitada pelo
recorrente, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a conhecer dessa
questão de constitucionalidade, parece sustentável, face às transcrições
feitas, que o objecto do presente recurso, no que concerne às escutas telefónicas,
se cinge à questão da inconstitucionalidade
da norma do artigo 188.º, n.ºs 1, 3 e 4, do CPP, interpretado no sentido de
que são válidas (ou, pelo menos, não são insanavelmente nulas) as provas
obtidas por escutas telefónicas cuja transcrição foi, em parte, determinada
pelo juiz de instrução, não com base em prévia audição pessoal das mesmas, mas
por leitura de textos contendo a sua reprodução, que lhe foram espontaneamente
apresentados pela Polícia Judiciária.
Por
outro lado, surge também como sustentável não ser admissível recurso dos acórdãos
do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23 de Março de 2004 e de 18 de Outubro
de 2004, o primeiro por ter sido anulado pelo acórdão do STJ, de 17 de Junho de
2004, e o segundo por ter sido substituído pelo acórdão do STJ, de 17 de Março
de 2005.
Quanto
à questão de inconstitucionalidade relacionada com o artigo 127.º do CPP,
também se afigura plausível que se venha a entender não ter sido adequadamente
suscitada, a esse propósito, pelo recorrente C., qualquer questão
de inconstitucionalidade normativa (mas antes de inconstitucionalidade de
decisão judicial, em si mesma considerada), nem terem as decisões recorridas
aplicado, como ratio decidendi, a dimensão
normativa identificada no complemento ao requerimento de interposição de recurso,
a saber: “no sentido de o julgador poder
livremente dar como provados factos delituosos a que ninguém assistiu ou diz
ter assistido ou que não tenham sido discutidos em audiência”.
Finalmente,
quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, pode vir a entender‑se
inexistir coincidência entre as dimensões normativas julgadas
inconstitucionais nos Acórdãos n.ºs 407/97, 347/2001 e 379/2004 e a específica
dimensão normativa em causa nestes autos.
4.
Nestes termos, fixa‑se em 10 (dez) dias o prazo para apresentação de alegações
(artigos 79.º, n.º 2, e 43.º, n.º 3, da LTC), devendo nelas recorrentes e
recorrido pronunciarem‑se, querendo, sobre as seguintes questões,
atendendo ao exposto no número precedente:
–
todos, sobre a delimitação do objecto do recurso, na parte relativa às escutas
telefónicas, atrás enunciada;
– o
recorrente B. sobre a eventualidade de não se conhecer do recurso
tendo por objecto o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18 de
Outubro de 2004, nem do recurso interposto com base na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC; e
– o
recorrente C. sobre a eventualidade de não se conhecer dos recursos
tendo por objecto os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23 de
Março de 2004 e de 18 de Outubro de 2004, nem da questão de
inconstitucionalidade reportada ao artigo 127.º do CPP.”
1.7. O recorrente A. apresentou
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1.
A norma do artigo 188.°, n.ºs 1, 3 e 4, do CPP, interpretada no sentido de que
são válidas (ou, pelo menos, não são insanavelmente nulas) as provas obtidas
por escutas telefónicas cuja transcrição foi, em parte, determinada pelo juiz
de instrução, não com base em prévia audição pessoal das mesmas, mas por leitura
de textos contendo a sua reprodução, que lhe foram espontaneamente
apresentados pela Polícia Judiciária, é inconstitucional por violação do
disposto no n.º 8 do artigo 32.° e no n.° 4 do artigo 34.° da CRP,
2.
porquanto a audição das escutas é o único meio de assegurar a imediação entre
o Juiz e a recolha de provas através deste meio, de garantir que a restrição
nele implicada à liberdade e sigilo das telecomunicações se contém dentro do
estritamente indispensável aos fins do processo penal e de assegurar o efectivo
e permanente acompanhamento das escutas pelo Juiz que as ordenou.”
1.8. O recorrente B. alegou, concluindo:
“1
– O douto Supremo Tribunal de Justiça
interpretou a norma contida no artigo 188.°, n.ºs 1, 3 e 4, do CPP com o sentido
de que as intercepções telefónicas são válidas, mesmo quando a sua transcrição
foi, em parte, determinada pelo juiz de instrução, não com base em prévia
audição pessoal das mesmas, mas por leitura de textos contendo a sua
reprodução, que lhe foram espontaneamente apresentados pela Polícia
Judiciária.
2 – Interpretou aquela norma com o
sentido de que são válidas as provas obtidas por via de uma escuta telefónica,
mesmo quando as intercepções não sejam ouvidas pelo juiz, a fim de este avaliar
da necessidade ou não da continuação da intercepção e em consequência ordenar
as transcrições com relevo para os autos e a destruição das que se mostrem sem
interesse.
3
– A escuta telefónica envolve sempre uma intromissão na área dos direitos fundamentais
dos cidadãos, devendo, em consequência, o julgador interpretar restritivamente
as normas relativas a este meio de obtenção de prova.
4 – Foi esta a interpretação que foi
sufragada pelo douto acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional – [Acórdão
n.º] 407/97, de 21 de Maio de 1997, e ainda pelos Acórdãos n.ºs 347/2001, de 10
do Julho de 2001, e 379/2004, de 1 de Junho de 2004.
5
– No mesmo sentido, o recente Acórdão da Relação de Lisboa proferido em 29 de
Junho de 2005 pela sua 3.ª Secção, no processo n.º 5607/05.
6
– Foi também assim que decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no processo n.°
1145/98, da 5.ª Secção.
7
– Pois as intercepções são nulas porquanto o critério de selecção das
transcrições foi da autoria da Polícia Judiciária enquanto que a lei impunha
que fosse o juiz que, depois de ouvir todas as sessões apresentadas, ordenasse
a transcrição das que entendesse relevantes.
8
– Resulta assim claro que a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça
à norma constante no preceituado no disposto no artigo 188.°, n.ºs 1, 3 e 4, do
CPP é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.°, n.ºs 1 e 8, e
34.°, n.ºs 1 e 4, da CRP.
9
– E, sendo assim, como consequência deverá a referida norma, segundo aquela
interpretação, ser declarada inconstitucional e em consequência declararem‑se
inválidos todos os actos que dependeram das intercepções telefónicas
realizadas, conforme artigos 122.° e 189.° do CPP.”
1.9. O recorrente C. apresentou
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“A)
É inconstitucional o artigo 188.º, n.°s 1, 3 e 4, [do CPP] por violação do artigo
32.°, n.°s 4 e 8, da Constituição, se interpretado no sentido de que são válidas
(ou pelo menos, não insanáveis) as provas obtidas por escutas telefónicas cuja
transcrição foi, em parte, determinada pelo juiz de instrução, não com base em
prévia audição pessoal das mesmas, mas por leitura de textos contendo a sua
reprodução, que lhe foram espontaneamente apresentados pela Polícia Judiciária.
B)
Com efeito, verifica‑se, no caso concreto, que grande parte das
transcrições foi ordenada não com base na prévia audição pessoal do JIC, mas
por leitura dos textos contendo a sua reprodução que foram apresentados ao juiz
de instrução pela Policia Judiciária, o que consubstancia uma clara violação
do preceituado legal relativo às escutas telefónicas e prescrito no artigo
188.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Código de Processo Penal.
C)
A coadjuvação a que alude o n.º 4 do artigo 188.° do CPP não pressupõe uma
actividade autónoma por parte do órgão de polícia criminal, ou outra
autoridade judiciária, sem ser o juiz, na valoração do que é relevante para
investigação na recolha dos elementos probatórios das escutas telefónicas.
D)
De outra forma estar‑se‑ia a atribuir a outro órgão, que não o
juiz, cuja intervenção constitui uma garantia de que a compressão dos direitos
fundamentais afectados pela escuta telefónica se situe nos apertados limites
aceitáveis, ou seja, que assegure a menor compressão possível dos direitos
fundamentais afectados, para valorar substancialmente a aquisição probatória
obtida por tal meio de prova.
E)
E a imediação entre o juiz e recolha da prova através da escuta telefónica
aparece como meio que melhor garante que uma medida com tão específicas
características se contenha nas apertadas margens fixadas pela lei.
F)
O actuar desta imediação, garantia de um efectivo controlo judicial, ocorre em
vários planos, não só no que se pressupõe na obrigação de levar imediatamente
ao juiz o auto de intercepção e as fitas gravadas, mas também na efectiva
audição prévia das gravações.
G)
Constitui esta a única forma de, além de proceder à sua valoração directamente
para efeitos de manter ou levantar a escuta, garantir eficazmente o direito ao segredo
das comunicações privadas dos afectados, bem como, pelo conteúdo concreto do
conhecimento adquirido, outros direitos fundamentais, como é o caso,
principalmente, do direito à intimidade.
H)
Se a ratio legis do artigo 188.° do
CPP fosse no sentido de dispensar o juiz da audição prévia das escutas, na
redacção do seu n.º 1 não seria estabelecido que da intercepção e gravação,
juntamente com o auto, teriam que ser levadas imediatamente ao juiz as fitas gravadas.
I) E se têm que ser levadas as fitas
gravadas, naturalmente que é para o juiz proceder à sua audição, de modo a
analisar o seu conteúdo e verificar de forma directa e imediata se as
conversações gravadas têm a importância ou a relevância para a prova que o
órgão de polícia criminal lhes deu.
J)
A não audição prévia pessoal do juiz de instrução constitui nulidade insanável.
K)
As escutas telefónicas constituem derrogação ou compressão do princípio
constitucional da inviolabilidade das comunicações privadas assegurado pelo
artigo 34.º, n.°s 1 e 4, da Constituição.
L)
Daí que a sua admissibilidade esteja dependente do conjunto de exigentes
pressupostos materiais e formais previstos nos artigos 187.° e seguintes do
CPP.
M)
E a violação do formalismo respeitante a escutas telefónicas constitui
nulidade, conforme resulta do artigo 189.º do CPP.
N)
E, nos termos do artigo 126.° do CPP, são insanavelmente nulas, não podendo ser
utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa à
integridade física ou moral das pessoas, sendo ainda nulas, nos termos do n.° 3
do mesmo artigo, as provas mediante intromissão na vida privada, no domicílio,
na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo
titular.
O)
Assim, uma interpretação do artigo 189.° no sentido de que a nulidade das
escutas telefónicas é sanável e, portanto, não conduz à ineficácia das mesmas,
é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32.º, n.°s 1 e 8, da Constituição.”
1.10. O representante do Ministério
Público no Tribunal Constitucional contra‑alegou, concluindo:
“1
– Realizada uma determinada intercepção telefónica da qual resultou a
relevância de elementos probatórios escutados, pode o juiz de instrução ser
coadjuvado por órgão de polícia criminal na respectiva selecção, tendo em vista
a sua transcrição e junção ao processo.
2
– Na presença do auto e na posse dos suportes a que alude o n.° 1 do artigo
188.° do Código de Processo Penal, está no critério do juiz de instrução ouvi‑los
pessoalmente, ou não, a fim de aferir da sua conformidade com o texto contendo
a reprodução do escutado.
3
– Não é inconstitucional uma interpretação do artigo 188.°, n.ºs 1, 3 e 4, do
Código de Processo Penal, segundo a qual são válidas (ou pelo menos, não são
insanavelmente nulas) as provas por escutas telefónicas cuja transcrição foi,
em parte, determinada pelo juiz de instrução, não com base em prévia audição
pessoal das mesmas, mas por leitura de textos contendo a sua reprodução que
lhe foram espontaneamente apresentados pela Polícia Judiciária.
4
– Termos em que não deverá proceder o presente recurso.”
Tudo
visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Do teor das alegações dos
recorrentes resulta que todos eles se conformaram com a delimitação do objecto
dos recursos à questão de inconstitucionalidade definida no despacho do
relator, de 4 de Julho de 2005; e, bem assim, por parte do recorrente B., com o não conhecimento do recurso
tendo por objecto o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18 de
Outubro de 2004, nem do recurso interposto com base na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC; e,
por parte do recorrente C.,
com o não conhecimento dos recursos tendo por objecto os acórdãos do
Tribunal da Relação de Guimarães, de 23 de Março de 2004 e de 18 de Outubro de
2004, nem da questão de inconstitucionalidade reportada ao artigo 127.º do
CPP.
2.2. Nas suas alegações, os recorrentes
invocam, como normas constitucionais violadas, os artigos 32.º, n.º 8, e 34.º,
n.º 4 (o 1.º recorrente), os artigos 32.º, n.ºs 1 e 8, e 34.º, n.ºs 1 e 4 (o
2.º recorrente), e os artigos 32.º, n.ºs 4 e 8, e 34.º, n.ºs 1 e 4 (o 3.º
recorrente), todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A
norma do n.º 1 do artigo 32.º não tem, no presente caso, relevância específica,
pois, neste contexto, assume exclusivamente a sua natureza de “expressão condensada de todas as normas
restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de
defesa” (J. J. Gomes Canotilho
e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 202). Também não é directamente pertinente para o
caso dos autos – respeitante a escutas telefónicas efectuadas durante a fase de
inquérito – a invocação do n.º 4
desse preceito, que respeita exclusivamente à fase da instrução, atribuindo a competência para a mesma a um juiz e
limitando a possibilidade de delegação noutras entidades da prática de actos instrutórios apenas quando estes
actos se não prendam directamente com os direitos fundamentais. Adequada é a
invocação do n.º 8 (segundo a numeração da revisão constitucional de 1997;
anteriormente era o n.º 6) do artigo 32.º da CRP, enquanto considera “nulas todas as provas obtidas mediante (...)
abusiva intromissão (...) nas telecomunicações”. A nulidade das provas com
este específico fundamento é relativa
(em contraposição à nulidade absoluta
das provas obtidas mediante ofensa da integridade pessoal), pois depende de a
intromissão ser efectuada fora dos casos previstos na lei, ser desnecessária ou
desproporcionada, ou ser aniquiladora do próprio direito, de acordo com os
critérios do artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP (autores e obra por último
citados, p. 206).
Por
seu turno, o artigo 34.º da CRP, após proclamar, no n.º 1, a inviolabilidade do
domicílio e do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação
privada, considera, no n.º 4, “proibida
toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações
e nos demais meios de comunicação, salvo os demais casos previstos na lei em
matéria de processo criminal” (o inciso “e nos demais meios de comunicação” foi aditado pela revisão
constitucional de 1997, tendo em vista as modernas formas de comunicação à
distância, que não correspondem aos sentidos tradicionais de correspondência ou
de telecomunicações – cf. José
Magalhães, Dicionário da Revisão
Constitucional, Lisboa, 1999, pp. 102‑103; e Jorge Miranda e Rui
Medeiros, Constituição Portuguesa
Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 373). Da formulação literal do n.º 4 do
artigo 34.º da CRP resulta a limitação directa da admissibilidade da
“ingerência ... nas comunicações” ao âmbito do processo criminal e a sua sujeição a reserva de lei. Mas desse preceito constitucional já não resulta,
ao menos de forma explícita e directa, a sujeição da “ingerência” a reserva de decisão judicial, como,
diversamente, o precedente n.º 2 faz relativamente à entrada no domicílio dos cidadãos
contra a sua vontade, que só pode ser ordenada “pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas
previstas na lei”.
Representando
a intercepção e gravação de conversações telefónicas uma restrição a um
direito fundamental, esta restrição deve limitar‑se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, sem
jamais diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos
constitucionais (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP).
2.3. Assim definidos os parâmetros
constitucionais tidos por relevantes para a apreciação do mérito do presente
recurso, interessará recordar a evolução do quadro legal relativo à efectivação
de escutas telefónicas no âmbito do processo criminal, com menção da
jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria, da qual, apesar de
nunca ter enfrentado directamente a questão de constitucionalidade ora
suscitada, é possível extrair elementos úteis para a decisão.
Na
versão originária do CPP, o artigo 187.º condicionava a intercepção e a
gravação de conversações ou comunicações telefónicas a: (i) ordem ou autorização por despacho judicial; (ii) estarem em causa crimes: 1)
puníveis com pena de prisão de máximo superior a três anos; 2) relativos ao
tráfico de estupefacientes; 3) relativos a armas, engenhos, matérias
explosivas e análogas; 4) de contrabando; ou 5) de injúrias, de ameaças, de
coacção e de intromissão na vida privada, quando cometidos através de telefone
(o Decreto‑Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, substituiu a expressão
“intromissão na vida privada”, usada no artigo 180.º da versão originária do
Código Penal, por “devassa da vida privada e perturbação da paz e sossego”, em
conformidade com as designações dos ilícitos previstos nos artigos 192.º e
190.º, n.º 2, do Código Penal revisto pelo Decreto‑Lei n.º 48/95, de 15
de Março); e (iii) haver razões para
crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da
verdade ou para a prova (n.º 1). Proibia‑se, porém, a intercepção e a
gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor,
salvo se o juiz tivesse fundadas razões para crer que elas constituíam objecto
ou elemento do crime (n.º 3). As formalidades das operações eram estabelecidas
no artigo 188.º, que determinava que: (i)
da intercepção ou gravação fosse lavrado auto, o qual, juntamente com as fitas
gravadas ou elementos análogos, devia ser imediatamente levado ao conhecimento
do juiz que ordenara ou autorizara as operações (n.º 1); (ii) o juiz, se considerasse os elementos recolhidos, ou alguns
deles, relevantes para a prova, fá‑los‑ia juntar ao processo, ou,
caso contrário, ordenava a sua destruição, ficando todos os participantes nas
operações ligados por dever de sigilo relativamente àquilo de que tivessem
tomado conhecimento (n.º 2); (iii) o
arguido e o assistente, bem como as pessoas cujas conversações tiverem sido
escutadas, podiam examinar o auto para se inteirarem da conformidade das
gravações e obterem, à sua custa, cópia dos elementos naquele referidos (n.º
3), excepto se, tratando‑se de operações ordenadas no decurso do
inquérito ou da instrução, o juiz tivesse razões para crer que o conhecimento
do auto ou das gravações pelo arguido ou pelo assistente podia prejudicar as
finalidades do inquérito ou da instrução (n.º 4). Nos termos do artigo 189.º,
todos os requisitos e condições referidos nos artigos 187.º e 188.º eram
estabelecidos sob pena de nulidade, e o artigo 190.º estendia o disposto nos
três artigos anteriores às conversações ou comunicações transmitidas por
qualquer meio técnico diferente do telefone.
As
normas contidas nos referidos artigos 187.º, n.º 1, e 190.º foram apreciadas,
em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade, pelo Tribunal
Constitucional, que, no Acórdão n.º 7/87, não se pronunciou pela sua
inconstitucionalidade, por entender que, “face
à natureza e gravidade dos crimes a que se aplicam (...) se afigura que tais
restrições [ao direito à intimidade da vida privada e familiar”, consagrado
no artigo 26.º, n.º 1, da CRP] não
infringem os limites da necessidade e proporcionalidade exigidos pelos citados
números [n.ºs 2 e 3] do artigo 18.º
da Constituição”.
2.4. A regulamentação legal da matéria em
causa na versão originária do CPP, pelo seu relativo laconismo, suscitou
diversas dúvidas de interpretação e de aplicação: qual o prazo de duração das
escutas; quem tem legitimidade para as requerer ao juiz; qual o relacionamento
entre órgão de polícia criminal, magistrado do Ministério Público e juiz de
instrução; se a proibição do n.º 3 do artigo 187.º é extensível a conversações
com pessoas que, para além do defensor, estejam legitimadas a recusar
depoimento em nome de outros tipos de sigilo profissional (artigo 135.º) ou
que, em geral, possam recusar‑se a depor como testemunhas (artigo 134.º);
qual o conteúdo do auto de intercepção e gravação; qual a oportunidade de
efectivação da transcrição e da destruição; como se efectiva o acesso do
arguido, do assistente e das pessoas escutadas ao auto e às gravações; se a
nulidade referida no artigo 189.º respeita a nulidade da prova ou a nulidade
processual e se, neste caso, é sanável ou insanável, etc.
Foi,
porém, a propósito da questão de saber se a expressão “em matéria de processo criminal”, usada no artigo 34.º, n.º 4, da
CRP, poderia abranger processos de prevenção criminal, designadamente na área
da segurança interna [o artigo 18.º da Lei n.º 20/87, de 12 de Junho – Lei de
Segurança Interna –, no capítulo dedicado às medidas de polícia, previa que o
juiz de instrução criminal, para efeitos e nos termos do n.º 2 do artigo 187.º
do CPP, a requerimento da Polícia Judiciária (por iniciativa própria ou a
solicitação dos órgãos de polícia criminal), podia autorizar o controle das
comunicações, cuja execução era da exclusiva competência da Polícia
Judiciária, e que, se considerasse que os elementos recolhidos eram relevantes
para a prova ou detecção de casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente
organizada, podia ordenar o seu envio à força de segurança a cargo da qual
corriam as investigações], que o Conselho Consultivo da Procuradoria‑Geral
da República emitiu o Parecer n.º 92/91, de 30 de Março de 1992 (por vezes
mencionado como datado de 9 de Abril de 1992), concluindo, em suma, que a
obtenção de prova por meio de escutas telefónicas ou similares só é susceptível
de ser judicialmente autorizada a partir do início da fase processual de
inquérito, que tem de iniciar‑se logo que haja aquisição da notícia da
existência de uma infracção criminal idónea à formulação de um juízo objectivo
de suspeita sobre a sua verificação (cf. Circular n.º 7/92 da Procuradoria‑Geral
da República, em www.pgr.pt/circulares; e Pareceres
da Procuradoria‑Geral da República, vol. VI, Lisboa, 1997, pp. 526‑527).
Como,
porém, nesse parecer incidentalmente se referisse que do auto aludido no artigo
188.º, n.º 1, do CPP não tinha de constar o conteúdo das conversas ou
comunicações telefónicas interceptadas, e como era conhecido o entendimento de
juízes do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa segundo o qual esse auto
devia conter a transcrição do conteúdo da gravação e ser‑lhes apresentado
juntamente com as “cassetes”, sem que tivessem de proceder à audição anterior à
transcrição, foi solicitada a elaboração de parecer complementar, que veio a
ser aprovado em 17 de Setembro de 1992 e cuja doutrina foi sintetizada nas
seguintes conclusões [cf. Circular n.º 14/92 da Procuradoria‑Geral da
República, em www.pgr.pt/circulares;
o texto integral desse parecer complementar (CA00921991) foi inserido, por
lapso, no documento relativo ao primeiro parecer (P000921991) em www.dgsi.pt/pgrp.nsf]:
“1.ª – Da intercepção e gravação das comunicações
telefónicas ou similares é lavrado um auto (artigo 188.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal – CPP);
2.ª – O referido auto deve inserir a menção do despacho
judicial que ordenou ou autorizou a intercepção e da pessoa que a ela
procedeu, a identificação do telefone interceptado, o circunstancialismo de
tempo, modo e lugar da intercepção, bem como o conteúdo da gravação necessária
à decisão judicial sobre o que deverá ou não constar do processo penal
respectivo;
3.ª – A transcrição do conteúdo da gravação a que se
refere a alínea anterior deverá abranger a integralidade dos elementos da
comunicação telefónica ou similar interceptada que a entidade responsável pelas
operações considere de interesse para a descoberta da verdade ou para a prova
dos crimes previstos no artigo 187.º, n.º 1, do CPP;
4.ª – O conteúdo da gravação, que àquela entidade se
revelar destituído de interesse para a descoberta da verdade ou para a prova
dos crimes referidos na conclusão anterior, deverá ser mencionado naquele auto,
tão só de modo genérico com a mera referência à sua natureza ou tema, sob a
égide do respeito do direito à intimidade da vida privada dos cidadãos;
5.ª – Lavrado o referido auto, é imediatamente levado ao
conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado a intercepção telefónica
ou similar (artigo 188.º, n.º 1, do CPP);
6.º – O juiz, por despacho, ordenará a junção ao processo
dos elementos relevantes para a prova e a destruição dos irrelevantes,
incluindo a desmagnetização das «cassetes» ou bandas magnéticas (artigo 188.º,
n.º 2, do CPP);
7.ª – O juiz, se o entender necessário à prolação da
decisão referida na conclusão segunda, poderá ordenar a transcrição mais ampla
ou integral da parte objecto da menção referida na conclusão 4.ª;
8.ª – Os participantes nas operações de intercepção,
gravação, transcrição e eliminação de elementos recolhidos ficam vinculados ao
dever de sigilo quanto àquilo de que em tais diligências tomaram conhecimento
(artigo 188.º, n.º 2, do CPP);
9.ª – As «cassetes» ou as bandas magnéticas cujo conteúdo
seja inserido nos autos devem a estes ser apensos ou, se isso se tornar
impossível, guardadas depois de seladas, numeradas e identificadas com o
processo respectivo (artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, e 101.º, n.º
3, do CPP);
10.ª – O arguido, o assistente e as pessoas escutadas
podem examinar o referido auto a fim de controlarem a conformidade dos
elementos recolhidos e objecto de aquisição processual com os registos de som
respectivos, e desses elementos constantes do auto obterem cópias (artigo
188.º, n.º 3, do CPP);
11.ª
– O arguido e o assistente não podem proceder ao exame referido na conclusão
anterior se a intercepção telefónica ou similar ocorrer no decurso do inquérito
ou da instrução e o juiz decidir que o conhecimento por eles do auto ou das
gravações é susceptível de prejudicar a respectiva finalidade (artigo 188.º,
n.º 4, do CPP).”
Apesar
da sua extensão, interessa – atenta a sua directa ligação ao tema central do
presente recurso – transcrever a fundamentação do citado parecer, na parte
relativa à definição do conteúdo do auto referido no artigo 188.º, n.º 1, do
CPP e especialmente à extensão das menções ao conteúdo das gravações. Lê‑se
nesse parecer:
“2.4. Na
primeira parte do n.º 1 do artigo 188.º do CPP refere‑se que da intercepção
e gravação da conversação ou comunicações telefónicas é lavrado um auto.
A
expressão «intercepção e gravação»
significa, fundamentalmente, a captação das conversações ou comunicações
telefónicas e o seu registo em banda magnética ou cassete.
2.4.1. O
conceito de auto consta do artigo 99.º do CPP.
No n.º 1
estabelece‑se a noção de auto através da sua finalidade e do seu objecto.
Trata‑se,
nos termos da lei, de um instrumento de registo presencial de actos processuais
no respectivo circunstancialismo de tempo, modo e lugar, com vocação para
produzir fé pública.
O oficial
de justiça ou o funcionário de polícia criminal que haja assistido aos actos
processuais a documentar procede ao seu registo no referido instrumento
documental, em termos de perpetua rei
memoria, com vista à realização da prova do objecto material do processo.
No n.º 2
particulariza‑se o auto de registo da actividade processual de audiência
de julgamento e do debate instrutório em termos de o designar por acta.
Dir‑se‑á que os instrumentos de registo dos
actos processuais abrangem o tipo geral designado auto e o especial designado
acta.
No n.º 3 elencam‑se os elementos que devem constar
do auto, incluindo os requisitos previstos para os actos descritos nos artigos
94.º e 95.º deste diploma.
Os artigos 94.º e 95.º do CPP reportam‑se à forma
escrita dos autos e à sua assinatura, respectivamente.
É obrigatória a menção do dia, mês, ano e lugar da
prática do acto, e, tratando‑se de acto que afecte liberdades
fundamentais das pessoas, da hora da sua ocorrência, com referência ao momento
do seu início e conclusão (artigo 94.º, n.º 6, do CPP).
Dos elementos que devem constar do auto, salienta‑se,
pelo seu relevo, a identificação das pessoas que intervieram no acto, a
descrição especificada das operações praticadas e a intervenção de cada um dos
participantes processuais.
O auto é, pois, o instrumento destinado a fazer fé quanto
aos termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a
lei obrigue e a que tiver assistido quem o redige, e a recolher as declarações,
requerimentos, promoções e actos decisórios orais que perante quem assistiu
tiverem ocorrido (artigo 99.º, n.º 1, do CPP).
2.4.2. Na segunda parte do n.º 1 do artigo 188.º do CPP
prescreve‑se, por seu turno, que o auto de intercepção e gravação e os
instrumentos de registo desta são imediatamente levados ao conhecimento do
juiz que haja ordenado ou autorizado a diligência de escuta.
A actividade de intercepção e de gravação das
comunicações telefónicas é obviamente distinta daquela que concerne à
transcrição do conteúdo da gravação.
Do referido auto deve constar, indubitavelmente, a
identidade da pessoa que procedeu à intercepção, a identificação do telefone
interceptado e o circunstancialismo de tempo, modo e lugar da intercepção e da
gravação, e a menção do despacho judicial através do qual a diligência foi
ordenada ou autorizada.
No n.º 2 prescreve‑se, por um lado, que o juiz a
quem os elementos resultantes da intercepção telefónica forem apresentados
decide sobre o seu destino – junção ao processo ou a sua destruição –, e, por
outro, o dever de segredo das pessoas que em razão do procedimento em análise
conheceram os factos.
O critério legalmente estabelecido com vista à junção ao
processo ou à destruição dos elementos resultantes da intercepção das
comunicações telefónicas releva da consideração pelo juiz respectivo da sua
utilidade ou inutilidade para a prova.
A fim de determinar a relevância ou irrelevância do
conteúdo das gravações para a prova dos factos penalmente ilícitos que são
objecto do processo, tem o juiz, naturalmente, de o conhecer.
O conhecimento do conteúdo das gravações pelo juiz
implica necessariamente a prévia realização das operações de audição das
comunicações telefónicas interceptadas.
Do elemento literal das conjugadas disposições dos n.ºs 1
e 2 é admissível o entendimento de que o juiz a quem for levado o auto e as
fitas gravadas ou elementos análogos é que deverá ouvir ou fazer ouvir aos
funcionários competentes o conteúdo das gravações e seleccionar os elementos a
inserir no processo ou a destruir, que este corpo consultivo adoptou no parecer
de que este é complementar. No excurso seguinte testaremos o bem ou mal fundado
desta asserção.
No n.º 3 prescreve‑se a faculdade de o arguido, o
assistente e as pessoas cujas conversações hajam sido escutadas examinarem o
auto a fim de controlarem a conformidade das gravações e de obterem cópia dos
elementos nele referidos.
Esta disposição parece, de algum modo, contrariar o
entendimento possível do disposto nos n.ºs 1 e 2 que se deixou enunciado. É
que a referência ao exame do auto parece reportar-se ao auto previsto no n.º 1,
e se tal exame é susceptível de proporcionar ao arguido, ao assistente e às
pessoas cujas conversações hajam sido escutadas o controlo da conformidade das
gravações, então é porque o auto previsto no n.º 1 deve inserir a transcrição
das gravações.
O n.º 4 contém normação excepcional em relação ao
disposto no n.º 3 quanto à faculdade de exame do auto de registo do conteúdo
das gravações pelo arguido e pelo assistente no caso de a diligência de escuta
haver sido ordenada no decurso do inquérito e haver motivos de índole
objectiva que permitam concluir que o conhecimento do conteúdo das gravações
por aqueles sujeitos processuais é susceptível de prejudicar os fins de
descoberta da verdade dos factos com relevância penal objecto do inquérito ou
da instrução.
2.4.3. Passemos aos elementos lógicos de interpretação –
histórico, sistemático e finalístico.
No plano histórico não se conhecem subsídios úteis de
interpretação. Com efeito, o artigo 210.º do Código de Processo Penal de 1929,
única disposição relativa à intercepção, gravação ou impedimento das
comunicações, limitava‑se a prescrever que o juiz e qualquer oficial de
justiça ou agente de autoridade por sua ordem podiam ter acesso, para aquele
fim, aos correios e estações de telecomunicações.
Dos trabalhos preparatórios do CPP que são conhecidos,
isto é, dos da Lei de autorização legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro, não
consta qualquer referência específica ao conteúdo que actualmente integra o
artigo 188.º do CPP.
No entanto, na exposição de motivos da proposta de lei da
autorização legislativa, a propósito da apreensão de correspondência refere-se,
que «o projecto quis reforçar mais ainda
o seu sistema de garantias, fazendo para tanto constar do seu articulado uma
norma ao abrigo da qual o juiz que tiver ordenado ou autorizado a diligência
de apreensão é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da
correspondência respectiva», e no que concerne às escutas telefónicas
salientou‑se que seriam tomadas, «quanto
às formalidades da operação, especiais cuidados para que fiquem a pertencer aos
autos a transcrição do teor da gravação ou intercepção conjuntamente com as
fitas gravadas ou elementos análogos que lhe serviram de base e também para que
seja assegurado o sigilo quanto aos elementos recolhidos que eventualmente não
venham a ser objecto de utilização processual».
2.4.4. No plano sistemático releva a disposição paralela
do n.º 3 do artigo 179.º do CPP relativa à apreensão de correspondência em que
se prescreve: «o juiz que tiver
autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento
do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a
prova, fá‑la juntar ao processo; caso contrário, restitui‑a a quem
de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado
por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e
não tiver interesse para a prova».
Não se justificava, considerando a natureza do suporte
material da comunicação interceptada, o prévio conhecimento desta por outrem
que não o juiz que ordenou a diligência, e a solução legal de ser este o
primeiro a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência constitui garantia
de violação mínima do direito à inviolabilidade da correspondência previsto no
artigo 34.º, n.º 1, da CRP.
Mas a propósito do conteúdo dos registos das comunicações
telefónicas ou similares, já a lei não impõe que o juiz que ordenou ou
autorizou a intercepção seja o primeiro a dele tomar conhecimento.
Parece que o legislador pretendeu, quanto às autoridades que
devem tomar primeiramente conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida
e das conversações ou comunicações telefónicas ou similares, consagrar soluções
diferentes.
Essa diversidade de solução legal é, aliás, compreensível
se tivermos em conta a complexidade do processo de intercepção conducente ao
conhecimento do conteúdo das comunicações telefónicas ou similares em causa,
seja no plano da tecnologia respectiva seja na área dos meios humanos
necessários para o efeito.
A diversidade de formulação legal quanto ao referido
aspecto de quem deve tomar conhecimento em primeiro lugar do conteúdo da
correspondência apreendida e das comunicações telefónicas ou similares é
susceptível de favorecer a leitura do n.º 1 do artigo 188.º do CPP no sentido de
que o auto a que se reporta aquela disposição deve inserir o conteúdo das
comunicações interceptadas.
2.4.5. O fim da lei é, sobretudo, no sentido de que fique
integrada no processo a transcrição do teor útil da gravação ou intercepção
conjuntamente com as respectivas cassetes
ou bandas magnéticas e haja sigilo quanto aos elementos que não sejam objecto
de aquisição processual.
A actividade de transcrição do conteúdo das cassetes ou
bandas magnéticas é, por seu turno, instrumental em relação à respectiva
aquisição processual, a qual é essencial, além do mais, à consulta e exame do
respectivo instrumento documental.
E tal consulta, com a excepção prevista no n.º 4, é que
permite às pessoas previstas no n.º 3 ajuizarem da conformidade das gravações,
o que naturalmente também pressupõe a audição dos registos de som originais, e
a aquisição daquelas para o processo.
Noutra sede, estabelece a lei, relativamente aos crimes
previstos no artigo 187.º, n.º 2, do CPP, a exclusiva competência da Polícia Judiciária
para proceder à execução do controlo das comunicações telefónicas ou similares
(artigo 18.º da Lei n.º 20/87, de 12 de Junho).
Subjaz a estas normas a constatação da eficiência e da
capacidade técnica para aquele fim da Polícia Judiciária, em razão dos meios
técnicos e humanos de que dispõe.
Por outro lado, na determinação do sentido e alcance da
lei, deve o intérprete presumir que o legislador consagrou as soluções mais
ajustadas.
Os serviços judiciais não dispõem de meios técnicos e
humanos adequados à optimização da actividade de recolha de prova por audição
e transcrição do conteúdo das cassetes
e bandas magnéticas.
A audição pelo juiz do conteúdo dos registos de som, não
raro envolvendo várias cassetes ou
bandas magnéticas, e a subsequente actividade de transcrição, implicaria longo
trabalho daquele magistrado em funções meramente executivas de eventual
recolha de prova, em prejuízo do exercício das outras funções que lhe são
próprias.
O sigilo relativamente ao conteúdo das gravações que não
venha a ser objecto de aquisição processual é legalmente imposto a todos os que
dele conheceram, seja aquando da intercepção-gravação seja aquando da
transcrição.
Da conjugação dos referidos elementos lógico‑interpretativos
parece‑nos resultar que o auto de intercepção e gravação a que alude o
n.º 1 do artigo 188.º do CPP deve conter a transcrição do conteúdo das cassetes ou bandas magnéticas.
Tal sentido encontra, com efeito, na letra da lei, o
mínimo de expressão necessário a que se reporta o artigo 9.º, n.º 2, do Código
Civil.
Na verdade, o termo «gravação»
inserto no n.º 1 do artigo 188.º do CPP é susceptível de ser entendido com o
significado do conteúdo da gravação.
Parece, aliás, ser esse o sentido que resulta do termo «gravações» a que se reporta o n.º 3
daquele artigo, enquanto se prescreve a faculdade de o arguido, o assistente e
as pessoas escutadas examinarem o auto para se inteirarem da conformidade das
gravações.
Ademais, a referência naquela disposição à faculdade de
exame do auto, através da expressão «podem
examinar o auto», o qual contém indubitavelmente o conteúdo das gravações,
parece aludir ao mesmo auto a que alude o n.º 1.
Assim, repensando a solução proposta no parecer de que
este é complementar, inclinamo‑nos agora para entender que o auto a que
alude o n.º 1 do artigo 188.º do CPP deve incluir a transcrição do conteúdo das
comunicações telefónicas ou similares interceptadas.
3.1. A lei não determina o âmbito da transcrição do
conteúdo das gravações e é susceptível de colocar‑se a questão de saber
se ela deverá ou não ser integral.
Trata‑se, sem dúvida, de uma questão de particular
relevância no domínio do processo penal, face aos princípios da economia e
celeridade, se tivermos em conta que as intercepções telefónicas ou similares
são susceptíveis de envolver várias cassetes
e, consequentemente, enorme quantidade de folhas de processos com a respectiva
transcrição, eventualmente em língua estrangeira, nem sempre suficientemente
conhecida pela generalidade dos operadores do registo ou transcrição em apreço,
o que implica a intervenção da perícia de tradução.
Por outro lado, configurada a eventual complexidade do
procedimento global da referida actividade de intercepção telefónica ou
similar, não pode deixar de se considerar a situação em que dela não resulte
qualquer elemento relevante para a descoberta da verdade sobre a prática de
crimes ou para a prova ou em que o interesse de tais elementos se restringe a
determinada parte do conteúdo das cassetes
ou bandas magnéticas.
Inexistindo, como inexiste, normação de processo penal ou
civil que se reporte directamente à estatuição sobre a transcrição integral ou
não integral do conteúdo das conversações telefónicas ou similares
interceptadas, impõe‑se apelar aos princípios que resultam da
Constituição e da lei processual penal (artigo 4.º do CPP).
Deve‑se
começar por considerar que a intercepção e gravação das comunicações
telefónicas ou similares visa a descoberta da verdade sobre a prática de
certos crimes ou a sua prova (artigos 187.º, n.º 1, e 190.º do CPP).
Nesta conformidade, é admissível o entendimento de que o
órgão de polícia criminal judicialmente autorizado a realizar a intercepção
telefónica ou similar, constatando que a mesma não assume qualquer relevo para
a descoberta da verdade sobre a prática de crimes ou para a prova, dispensado
estaria de a transcrever no auto previsto no artigo 188.º, n.º 1, do CPP.
Se fosse de adoptar este entendimento, o órgão de polícia
criminal que realizasse as operações de gravação limitar‑se‑ia a
inscrever no auto o número do telefone interceptado, o circunstancialismo de
tempo, modo e lugar da intercepção e da gravação telefónica ou similar, o
despacho que a ordenou ou autorizou, e que do procedimento nada resultou com
interesse para a investigação em causa, e a propor ao juiz que ordenou ou
autorizou as operações a destruição do próprio auto e das cassetes ou bandas ou a sua desmagnetização, naturalmente sem
prejuízo de aquele magistrado poder controlar aquela informação, ouvindo as cassetes ou bandas magnéticas.
Esta solução respeitaria os princípios da simplicidade,
economia e celeridade processual e assumiria a lógica que resulta do facto de
ser de presumir que os órgãos de polícia criminal encarregados de realizar as
operações de intercepção telefónica ou similar dispõem de informação adequada
a ajuizar do seu relevo probatório, e de se impor solidariedade e confiança que
deve envolver a actuação de todos os operadores judiciários nesta área de
investigação criminal de tanto melindre.
Só que a referida solução de não transcrição, pelos
órgãos de polícia criminal encarregados das operações, de qualquer conteúdo das
gravações, colide, de algum modo, com o disposto no artigo 188.º, n.º 2, do
CPP, em que se prescreve ser o juiz que ordenou ou autorizou as operações quem
ajuíza e decide do relevo, para a descoberta da verdade sobre os crimes ou
para a sua prova, dos elementos de informação que resultaram da intercepção.
Daí que haja de encontrar‑se a solução desta
problemática por apelo a outra ordem de considerações que releva dos princípios
a que já se fez referência.
3.2. A excepcionalidade no âmbito da recolha de prova em
processo penal das escutas telefónicas ou similares, face à garantia dos direitos
fundamentais constitucionalmente consagrados de liberdade de comunicação e de
intimidade da vida privada, aponta no sentido de adopção de uma solução que,
sem afectar o fim daquele meio de obtenção da prova, limite os efeitos nefastos
da violação daqueles direitos.
A transcrição do conteúdo das gravações telefónicas ou
similares, pelos meios materiais e humanos que envolve, aumenta o risco da
devassa da intimidade da vida privada dos cidadãos.
Não é justificável e, consequentemente, admissível, que,
gravadas comunicações telefónicas com informações da vida íntima dos cidadãos,
sem a mínima conexão com o objecto material do processo em causa, devam ser objecto
de transcrição integral no auto em apreço.
Atenta a finalidade da permissão excepcional das escutas
telefónicas ou similares – descoberta da verdade sobre a existência de certos
crimes ou a sua prova –, e a proporcionalidade que deve existir entre aquele
fim e os meios instrumentais conducentes à sua realização, em que prepondera o
princípio da necessidade ou da mínima intervenção possível na esfera jurídica
dos cidadãos, bem como o princípio da utilidade processual, de que são
corolários os princípios da simplicidade e celeridade, impõe‑se a
solução de transcrição, no auto a que alude o n.º 1 do artigo 188.º do CPP, do
conteúdo das gravações que seja estritamente necessário à realização do fim a
que serve de instrumento.
Face à finalidade prevista na lei do meio excepcional de
recolha de prova que são as escutas telefónicas ou similares, não pode deixar
de se considerar a proibição de praticar no processo penal actos inúteis, que
resulta do disposto nos artigos 4.º do CPP e 137.º do CPC.
A propósito da prova documental em processo penal, que
consista em registo fonográfico, insere o artigo 166.º, n.º 3, do CPP, no
tocante à sua transcrição, o princípio da necessidade.
Deverá, assim, ser transcrito, no auto a que se refere o
n.º 1 do artigo 188.º do CPP, o conteúdo da gravação através do qual o juiz
possa ajuizar e decidir sobre o que de tais elementos tem de mandar inserir no
processo por relevarem para a descoberta da verdade ou prova dos crimes
enumerados no artigo 187.º, n.º 1, do CPP, ou destruir por não relevaram para
tal efeito.
E o primeiro juízo de valor, provisório embora, sobre a
questão da relevância ou irrelevância dos aludidos elementos probatórios para
os fins aludidos compete ao órgão de polícia criminal que superintenda nas
operações de intercepção e escuta das comunicações telefónicas ou similares.
Esta entidade, naturalmente qualificada na área da
investigação criminal, fará transcrever na íntegra, no aludido auto, o que
considerar relevante para os fins previstos no artigo 187.º, n.º 1, do CPP.
No que concerne às comunicações telefónicas ou similares,
ou à parte delas, que ao aludido órgão de polícia criminal pareça não relevarem
para os mencionados fins, bastará mencionar no auto o genérico e resumido
conteúdo das comunicações objecto da gravação.
Este resumo possibilitará ao juiz, entidade superiormente
vocacionada para a decisão do que é ou não relevante para os fins consagrados
no artigo 187.º, n.º 1, do CPP, a pertinente decisão.
E se eventualmente o juiz considerar necessário, a fim de
fundamentar a aludida decisão, que a transcrição tenha maior amplitude, naturalmente
que poderá ordená‑la na extensão julgada necessária, ou confrontá‑la
com os registos fonográficos, através da própria audição.
As cassetes ou
as bandas magnéticas cujo conteúdo haja sido transcrito e aproveitado para o
processo deverão ser‑lhe apensas ou, se tal não for possível, guardadas
depois de seladas, numeradas e identificadas com o processo respectivo
(artigos 101.º, n.º 3, do CPP e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
4. Aqui chegados, é altura de responder à questão que nos
é colocada, com base nos elementos fáctico‑jurídicos recenseados.
O auto a que se reporta o artigo 188.º, n.º 1, do CPP
deve incluir não só a menção do despacho judicial que autorizou ou ordenou a
diligência, a identidade da pessoa que procedeu à intercepção, a identificação
do telefone interceptado e o circunstancialismo de tempo, modo e lugar de
intercepção, como também o conteúdo das gravações que seja necessário à decisão
judicial sobre os elementos que deverão ou não constar do processo penal em
causa.
A transcrição da gravação deverá abranger a integralidade
do conteúdo das comunicações telefónicas ou similares interceptadas considerado
de interesse para a descoberta da verdade ou para a prova dos crimes a que
alude o artigo 187.º, n.º 1, do CPP pela entidade responsável pelas respectivas
operações.
No caso de aquela entidade constatar que o conteúdo das
gravações não tem qualquer relevo para os aludidos fins, bastará mencioná‑lo
no auto de forma genérica, com referência à mera natureza ou tema das conversações,
com o respeito devido ao direito à intimidade da vida privada.
O referido auto é imediatamente levado ao conhecimento do
juiz que tiver ordenado ou autorizado a intercepção telefónica ou similar, o
qual, por despacho ordenará a junção ao processo dos elementos transcritos
relevantes para a prova dos factos penalmente ilícitos acima mencionados, e a
destruição dos irrelevantes, designadamente mediante desmagnetização.
Se o juiz entender necessário, com vista à prolação da
decisão de junção ao processo do conteúdo das gravações ou à sua destruição, a
transcrição integral dos elementos resumidos no auto, naturalmente que a
poderá ordenar. E se carecer de controlar a própria gravação pelo confronto com
o conteúdo da transcrição, certo é que pode proceder à respectiva audição.
Os participantes nas operações de intercepção, gravação,
transcrição e eliminação do conteúdo das bandas magnéticas ou «cassetes» ficam
legalmente vinculados ao dever de sigilo sobre tudo quanto no âmbito de tais
operações veio ao seu conhecimento.
O arguido, o assistente e as pessoas eventualmente
escutadas têm a faculdade de examinar o aludido auto a fim de poderem
controlar a conformidade dos elementos recolhidos e adquiridos para o processo
com o que consta do suporte material de registo do som, e deles obter cópia.
O arguido e o assistente, se a intercepção telefónica ou
similar ocorreu no decurso do inquérito ou da instrução, não têm a faculdade de
conhecer do auto nem das gravações, se o juiz de instrução decidir que tal
conhecimento é susceptível de prejudicar o fim das referidas fases
processuais.”
2.5.
Foi ainda na vigência da redacção originária do artigo 188.º do CPP que o
Tribunal Constitucional proferiu o Acórdão
n.º 407/97, que constitui a sua primeira decisão sobre questão de
constitucionalidade suscitada a propósito dessa norma, embora centrada (como os
posteriores Acórdãos n.ºs 347/2001, 528/2003, 379/2004 e 223/2005) na
interpretação do conceito de “imediatamente” reportado à apresentação, ao
juiz que tiver ordenado ou autorizado a operação, do auto de intercepção e
gravação, juntamente com as fitas gravadas ou elementos análogos. Após
referências aos parâmetros constitucionais pertinentes e ao direito comparado,
o Acórdão n.º 407/97 fundou o seu juízo de inconstitucionalidade, por violação do disposto no n.º 6 (actual n.º 8)
do artigo 32.º da CRP, da norma do n.º 1 do artigo 188.º do CPP “quando interpretado em termos de não impor
que o auto da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas
seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento do juiz, de modo a este
poder decidir atempadamente sobre a junção ao processo ou a destruição dos
elementos recolhidos, ou de alguns deles, e bem assim, também atempadamente, a
decidir, antes da junção ao processo de novo auto da mesma espécie, sobre a manutenção
ou alteração da decisão que ordenou as escutas” nas seguintes
considerações:
“Trata‑se aqui de precisar o conteúdo
constitucionalmente viável do trecho do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, onde surge
a expressão «imediatamente». Ora,
partindo do pressuposto consubstanciado na proibição de ingerência nas
telecomunicações, resultante do n.º 4 do artigo 34.º da Lei Fundamental, a possibilidade
de ocorrer diversamente (de existir ingerência nas telecomunicações), no
quadro de uma previsão legal atinente ao processo criminal (a única
constitucionalmente tolerada), carecerá sempre de ser compaginada com uma
exigente leitura à luz do princípio da proporcionalidade, subjacente ao artigo
18.º, n.º 2, da Constituição, garantindo que a restrição do direito fundamental
em causa (de qualquer direito fundamental que a escuta telefónica, na sua potencialidade
danosa, possa afectar) se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do
interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu
agente.
Nesta ordem de ideias, a imediação
entre o juiz e a recolha da prova através da escuta telefónica aparece como o
meio que melhor garante que uma medida com tão específicas características se
contenha nas apertadas margens fixadas pelo texto constitucional.
O actuar desta imediação,
potenciadora de um efectivo controlo judicial das escutas telefónicas, ocorrerá
em diversos planos, sendo um deles o que pressupõe uma busca de sentido prático
para a obrigação de levar «imediatamente»
ao juiz o auto da intercepção e «fitas gravadas ou elementos análogos», de que
fala a lei.
13. Vejamos, a este propósito, o
discurso interpretativo subjacente à decisão recorrida. De sublinhar nesta,
desde logo, a afirmação de que o artigo 188.º, n.º 1, do CPP, ao não fixar um
prazo certo, «acaba por relativizar muito
as coisas». Há que reter esta ideia que torna patente a existência de um
espaço aberto à procura de um sentido, enfim, de um espaço aberto à
interpretação.
Não obstante, mais adiante, a
decisão recorrida parece apontar para uma impossibilidade de alcançar o sentido
da expressão «imediatamente» no contexto
normativo em causa (ao dizer a fls. 102: «Não
sabemos. Não dispomos de qualquer critério para decidir sobre isso. Nem sequer
é possível estabelecer e assentar num critério de razoabilidade a tal propósito»).
Ora, já se indicou que o critério
interpretativo neste campo não pode deixar de ser aquele que assegure a menor
compressão possível dos direitos fundamentais afectados pela escuta telefónica.
Também já se assentou – e importa lembrá‑lo de novo – que a intervenção
do juiz é vista como uma garantia de que essa compressão se situe nos apertados
limites aceitáveis e que tal intervenção, para que de uma intervenção
substancial se trate (e não de um mero tabelionato), pressupõe o
acompanhamento da operação de intercepção telefónica. Com efeito, só
acompanhando a recolha de prova, através desse método em curso, poderá o juiz
ir apercebendo os problemas que possam ir surgindo, resolvendo‑os e,
assim, transformando apenas em aquisição probatória aquilo que efectivamente
pode ser. Por outro lado, só esse acompanhamento coloca a escuta a coberto dos
perigos – que sabemos serem consideráveis – de uso desviado.
Com isto, não se quer significar que
toda a operação de escuta tenha de ser materialmente realizada pelo juiz.
Contrariamente a tal visão maximalista, do que aqui se trata é, tão‑só,
de assegurar um acompanhamento continuo e próximo temporal e materialmente da
fonte (imediato, na terminologia legal), acompanhamento esse que comporte a
possibilidade real de em função do decurso da escuta ser mantida ou alterada a
decisão que a determinou.
14. Refere‑se ainda o Acórdão
a dificuldades práticas que a situação é susceptível de criar («Sabemos, isso sim, que a Polícia Judiciária
como muitos outros departamentos do Estado, nos quais se incluem os tribunais,
seguramente carece, cronicamente, de meios técnicos e humanos que lhe não
permitem cumprir, muitas vezes, as suas tarefas em tempo normal»),
moldando, no que não deixa de ter um certo sentido correctivo, o conceito de «imediatamente» («usado por um legislador excessivamente preocupado com a aceleração
processual, porém esquecido das grandes lacunas e dos grandes estrangulamentos
do sistema») ao que qualifica de entendimento «em termos hábeis». A saber: aquele em que «imediatamente» equivale a «no
tempo mais rápido possível». Ora, o «mais
rápido possível» significou aqui longos períodos de tempo em que as escutas
não foram acompanhadas (igual a controladas) pelo juiz e, mais ainda, espaços
muito significativos de tempo em que as escutas já haviam terminado e o
processo continuava sem ter qualquer conhecimento do seu teor (vejam‑se
as conclusões 2.ª e 4.ª de fls. 4 verso, tendo‑se presente que as datas
aí indicados obtêm confirmação nos autos).
É a teorização interpretativa que
sufraga esta situação que de modo algum se pode ter por conforme ao disposto
no artigo 34.º, n.º 4, da Constituição, lido à luz do princípio da
proporcionalidade. Se é certo que se não podem ignorar, pura e simplesmente,
os aspectos práticos de uma situação, designadamente as dificuldades técnicas
que esta ou aquela opção interpretativa possa ocasionar, não é menos verdade
que o ónus dessas dificuldades técnicas, num processo crime, sempre correrá por
conta do Estado (a quem compete ultrapassá‑las), jamais por conta do
arguido.
Poder‑se‑ia aqui
relembrar o dilema, já relatado, do Juiz Holmes, sobre o «mal maior» e o «mal menor».
Obviamente que no processo criminal de um Estado de direito democrático, face a
«dificuldades técnicas», o «mal menor» sempre será a hipotética
impunidade de eventuais criminosos.
15. Trata‑se, pois, de fixar a
interpretação constitucionalmente conforme do artigo 188.º, n.º 1, do CPP no
segmento em que se insere a expressão «imediatamente»,
sendo certo ser tal expediente possível ainda nos limites da interpretação.
Assim sendo, «imediatamente» não poderá, desde logo, reportar‑se apenas ao
momento em que as transcrições se mostrarem feitas (pois ficaria aberto o
caminho à existência de largos períodos de falta de controlo judicial à escuta
sempre que a transcrição se atrasasse). Em qualquer dos casos, «imediatamente», no contexto normativo
em que se insere, terá de pressupor um efectivo acompanhamento e controlo da
escuta pelo juiz que a tiver ordenado, enquanto as operações em que esta se
materializa decorrerem. De forma alguma «imediatamente»
poderá significar a inexistência, documentada nos autos, desse acompanhamento
e controlo ou a existência de largos períodos de tempo em que essa actividade
do juiz não resulte do processo.
Em qualquer caso, tendo em vista os
interesses acautelados pela exigência de conhecimento imediato pelo juiz, deve
considerar‑se inconstitucional, por violação do n.º 6 do artigo 32.º da
Constituição, uma interpretação do n.º 1 do artigo 188.º do CPP que não imponha
que o auto de intercepção e gravação de conversações ou comunicações
telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento do juiz, de
modo a este poder decidir atempadamente sobre a junção ao processo ou a
destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles, e bem assim, também
atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de novo auto de escutas
posteriormente efectuadas, sobre a manutenção ou alteração da decisão que
ordenou as escutas.
É esta, exposta com a minúcia
possível, a interpretação conforme à Constituição. A ela importa vincular o
intérprete – «juiz incluído» como
este Tribunal tem repetidamente referido em situações onde faz uso deste
recurso interpretativo.
Sublinhar‑se‑á apenas,
como nota final, que as consequências a retirar da interpretação da norma com o
sentido apontado se encontram já fora do âmbito da intervenção do Tribunal
Constitucional, situando‑se claramente no domínio de intervenção do
Tribunal recorrido.”
Cumpre desde já
salientar que a questão de inconstitucionalidade apreciada nesse Acórdão n.º
407/97 se prendia com a demora considerada admissível para a apresentação ao
juiz do auto de intercepção e gravação acompanhado das fitas gravadas ou
elementos análogos, que é questão diversa da que constitui objecto do presente
recurso. No entanto, sublinhe-se que, tendo o Tribunal Constitucional
considerado que a especial danosidade da intromissão traduzida pela intercepção
telefónica impunha uma intervenção
substancial do juiz no decurso da mesma, através de um acompanhamento contínuo e próximo temporal e materialmente da fonte,
acompanhamento esse que comportasse a possibilidade
real de, em função do decurso da escuta, ser mantida ou alterada a decisão
que a determinou, em parte alguma afirmou que o único método constitucionalmente
admissível de realizar esse controlo fosse o da escuta pessoal, pelo juiz, da
integralidade das gravações; pelo contrário, explicitamente enunciou que o
exigente critério assumido não
significava “que toda a operação de escuta tenha de ser materialmente realizada
pelo juiz”, posição que corresponderia a uma “visão maximalista”, que o Tribunal não subscreveu.
2.6. A nível legislativo, a primeira alteração a assinalar foi a
levada a cabo pela Lei n.º 59/98, de 25
de Agosto, que alterou a redacção, entre outros, dos artigos 188.º e 190.º
do CPP.
Estas alterações não
constavam da Proposta de Lei n.º 157/VII, que esteve na génese daquela Lei,
antes resultaram de propostas de alteração apresentadas pelo Grupo Parlamentar
do Partido Socialista (cf. Código de
Processo Penal – Processo Legislativo, vol. II, tomo II, ed. Assembleia da
República, Lisboa, 1999, pp. 114‑115), que viriam a ser aprovadas por
unanimidade (obra citada, p. 107),
tendo as relativas ao artigo 188.º sido justificadas, na Declaração de Voto dos
Deputados do Partido Socialista relativa à votação final global dessa
iniciativa legislativa, nos seguintes termos (obra citada, p. 153):
“As alterações levam em conta o
parecer da Procuradoria‑Geral da República n.º 92/91 (complementar), as
dificuldades práticas da «vida judiciária», o n.º 4 do artigo 18.º da Lei de
Segurança Interna e o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 407/97 (Diário da República, II Série, de 18 de
Julho de 1997), que anulou as escutas porque a transcrição não foi imediata.
Tornava‑se necessário
clarificar: quem selecciona os elementos a transcrever; se o agente de
investigação pode ter contacto com a conversa (uma vez que a operação é feita
por técnico de telecomunicações, mas não pode excluir‑se a presença da
polícia, sob pena de a diligência não ter sentido ou eficácia); o que é que o
juiz ouve (sabendo‑se que, não ouvindo, manda transcrever a totalidade
dos registos, o que é excessivamente moroso, oneroso e inútil); e esclarecer o
procedimento.
O n.º 1 do artigo refere que da
intercepção é lavrado auto (mas não distingue entre auto de intercepção e auto
de transcrição, sendo certo que importa clarificar que são duas coisas
diferentes). Assim, fica claro que uma coisa é o auto de intercepção (n.º 1) e
outra o auto de transcrição (n.º 3).
O n.º 2 permite que a polícia ouça e
possa intervir de imediato, por exemplo, para fazer uma apreensão de droga
combinada telefonicamente e «apanhar o flagrante».
Os n.ºs 3 e 4 tornam claro que é o
juiz quem selecciona, que é o responsável pelo conteúdo da transcrição, mas
que é auxiliado materialmente pela polícia, o que é importante em termos de
execução.”
As modificações operadas
pela Lei n.º 59/98 no artigo 188.º do CPP consistiram:
– no aditamento de um
novo n.º 2, do seguinte teor: “O disposto
no número anterior não impede que o órgão de polícia criminal que proceder à
investigação tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação
interceptada a fim de poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes
para assegurar os meios de prova”;
– na passagem do
primitivo n.º 2 a n.º 3, dispondo agora, na sua primeira parte, que “Se o juiz considerar os elementos
recolhidos, ou alguns deles, relevantes para a prova, ordena a sua
transcrição em auto e fá-lo juntar ao processo ...”, enquanto
anteriormente apenas dizia que o juiz “...
fá‑los juntar ao processo ...”;
– no aditamento de um
novo n.º 4, do seguinte teor: “Para
efeitos do disposto no número anterior, o juiz pode ser coadjuvado, quando entender
conveniente, por órgão de polícia criminal, podendo nomear, se necessário,
intérprete. À transcrição aplica‑se, com as necessárias adaptações, o
disposto no artigo 101.º, n.ºs 2 e 3.”;
– na passagem do
primitivo n.º 3 a n.º 5, com especificação de que o auto cujo exame é facultado
ao arguido, ao assistente e às pessoas escutadas é “o auto de transcrição a que se refere o n.º 3” (a redacção referia‑se
a “examinar o auto”, sem mais); e
– na eliminação do
primitivo n.º 4.
2.7. A segunda alteração legislativa com especial relevância para a
questão que constitui objecto do presente recurso resultou do Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de
15 de Dezembro, que aditou ao n.º 1 do artigo 188.º do CPP (“Da intercepção e gravação a que se refere o artigo
anterior é lavrado auto, o qual, junto com as fitas gravadas ou elementos
análogos, é imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou
autorizado as operações”) a expressão: “com
a indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados
relevantes para a prova”.
Este inciso final
corresponde à utilização da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 27‑A/2000,
de 17 de Novembro, que autorizou o Governo a rever o Código de Processo Penal,
com o sentido e extensão definidos nos artigos seguintes (artigo 1.º), entre os
quais, segundo o artigo 4.º: “Permite‑se
que o juiz possa limitar a audição das gravações às passagens indicadas como
relevantes para a prova, sem prejuízo de as gravações efectuadas lhe serem
integralmente remetidas”. Esta norma não constava da Proposta de Lei n.º
41/VIII (Diário da Assembleia da
República, VIII Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa, II Série‑A, n.º
59, de 15 de Julho de 2000, pp. 1891‑1898), tendo surgido no texto de
substituição elaborado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias, e aí aprovada por unanimidade (Diário da Assembleia da República, VIII Legislatura, 2.ª Sessão
Legislativa, II Série‑A, n.º 10, de 23 de Outubro de 2000, pp. 218‑224),
tal como no Plenário (Diário citado,
I Série, n.º 13, de 20 de Outubro de 2000, p. 498).
2.8. Foi já no domínio dessa redacção – que se manteve intocada até
ao momento actual – que o Tribunal Constitucional proferiu os Acórdãos n.ºs 347/2001, 528/2003, 379/2004
e 223/2005, todos incidindo sobre a questão da “imediatividade” da
apresentação ao juiz do auto de intercepção e gravação prevista no artigo
188.º, n.º 1, do CPP (o primeiro Acórdão reportado à redacção anterior à Lei
n.º 59/98, o segundo à redacção dada por esta Lei, e os dois últimos quer à
redacção anterior quer à posterior ao Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000),
e ainda os Acórdãos n.ºs 411/2002
(que julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a
interpretação normativa que torna inaplicável ao prazo de arguição de nulidade
respeitante a escutas telefónicas ocorrida durante o inquérito o que vem
consagrado no artigo 120.º, n.º 3, alínea c),
do CPP [até ao encerramento do debate instrutório] e aplicável o estabelecido
no artigo 105.º do mesmo Código [dez dias a contar da notificação da acusação,
terminando antes do fim do prazo para requerer a instrução]) e 198/2004 (que não julgou
inconstitucional a norma do artigo 122.º, n.º 1, do CPP, entendida como autorizando,
face à nulidade/invalidade de intercepções telefónicas realizadas, a utilização
de outras provas, distintas das escutas e a elas subsequentes, quando tais
provas se traduzam nas declarações dos próprios arguidos, designadamente quando
tais declarações sejam confessórias).
Nos três primeiros
Acórdãos citados (o quarto – Acórdão n.º 223/2005 – incidiu sobre uma situação
de incumprimento do Acórdão n.º 379/2004), o Tribunal Constitucional reiterou
o critério decisório definido no Acórdão n.º 407/97, que conduziu, nos casos em
cada um desses arestos apreciados, à emissão de similares juízos de
inconstitucionalidade.
No Acórdão n.º 347/2001 – que julgou inconstitucional, por violação das disposições
conjugadas dos artigos 32.º n.º 8, 34.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP, a
norma constante do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na redacção anterior à que foi
dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, quando interpretada no sentido de não
impor que o auto da intercepção e gravação
de conversações e comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado
ao conhecimento do juiz e que, autorizada a intercepção e gravação por
determinado período, seja concedida autorização para a sua continuação sem que
o juiz tome conhecimento do resultado da anterior –, após se sumariarem as ideias‑chave do Acórdão n.º 407/97, consignou‑se:
“Ora, no caso dos autos, a norma do artigo 188.º, n.º
1, do CPP, com a interpretação acolhida no acórdão impugnado, não se isenta do
mesmo vício de inconstitucionalidade.
Na
verdade, fazer equivaler o inciso «imediatamente»
ao «tempo mais rápido possível», em
termos de «cobrir» situações como a de o auto de transcrição ser apresentado
ao juiz meses depois de efectuadas a intercepção e gravação das comunicações
telefónicas, mesmo tendo em conta a gravidade do crime investigado e a
necessidade daquele meio de obtenção da prova, restringe desproporcionadamente
o direito à inviolabilidade de um meio de comunicação privada e faculta uma
ingerência neste meio para além do que se considera ser constitucionalmente
admissível.
Ficar
no desconhecimento do juiz, durante tal lapso de tempo, o teor das comunicações
interceptadas, significa o desacompanhamento próximo e o controlo judiciais do
modo como a escuta se desenvolve, o que se entendeu no citado Acórdão n.º
407/97 – como aqui se entende – colidir com os interesses acautelados pela
exigência de conhecimento imediato
pelo juiz. E impede, ainda, a destruição, em tempo necessariamente breve, dos
elementos recolhidos sem interesse relevante para a prova, a que, só por si,
não obsta a fixação pelo juiz de um prazo para a intercepção, no termo da qual
esta deve findar.
Por
outro lado, autorizar novos períodos de escuta, a mero requerimento do
Ministério Público, sem que a autorização seja precedida do conhecimento
judicial do resultado da intercepção anterior, continua a significar a mesma ausência
de acompanhamento e de controlo por parte do juiz, o que pode até traduzir‑se
em longos períodos (um dos postos telefónicos foi interceptado desde 3 de Novembro
de 1995 a 15 de Novembro de 1996 e o outro desde 3 de Abril de 1996 a 12 de
Novembro de 1996 e de novo entre 31 de Março de 1997 a 5 de Setembro de 1997)
de utilização deste meio de obtenção de prova na disponibilidade total dos
órgãos de investigação.
É
certo que, tal como a decisão recorrida no Acórdão n.º 407/97, o acórdão
impugnado faz apelo às dificuldades práticas – a reconhecida carência de meios
técnicos e humanos – para justificar o entendimento dado ao referido inciso «imediatamente», num quadro de exigências
de repressão da criminalidade grave, praticada por redes altamente
organizadas.
A
esse argumento se respondeu, ainda no Acórdão n.º 407/97, em termos que também
aqui se acolhem, que tais dificuldades constituem, num processo crime, ónus do
Estado de Direito democrático, ónus que não pode estar a cargo do arguido,
ainda que, no limite, isso signifique deixar impunes alguns criminosos. Não é
de todo admissível num Estado de Direito democrático, caracterizado pela
publicização do ius puniendi, fazer
reverter contra o arguido o ónus da escassez de meios e dificuldades na
obtenção de prova para o condenar.
Note‑se
que na nova redacção dada ao artigo 188.º (em especial, no n.º 3) pela Lei n.º
59/98 (actualmente pelo Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de 15 de
Dezembro) se procurou obviar às alegadas dificuldades de transcrição imediata
dos elementos recolhidos, pois esta só será judicialmente ordenada depois de o
juiz considerar tais elementos relevantes para a prova.
Resta
acrescentar que o Tribunal Constitucional tem apenas poderes para verificar a
constitucionalidade de normas, pelo que lhe está vedado «declarar inválidos todos os actos que dependerem das intercepções
telefónicas realizadas, conforme os artigos 122.º e 189.º do CPP», como o recorrente
pretende.
Isto significa que é ao tribunal recorrido que compete
reformar a sua decisão em conformidade com o presente juízo de
constitucionalidade, extraindo dele as consequências pertinentes ao nível do
direito infraconstitucional e do concreto processo crime em causa.”
A validade da
jurisprudência assim definida foi reafirmada no Acórdão n.º 528/2003 – que julgou inconstitucional, por violação das
disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 34.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º
2, da CRP, a norma constante do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na redacção
anterior à que foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de 15 de
Dezembro, quando interpretada no sentido de não impor que o auto da
intercepção e gravação de conversações e comunicações telefónicas seja, de
imediato, lavrado e levado ao conhecimento do juiz –, o qual, após transcrição da fundamentação relevante dos
Acórdãos n.ºs 407/97 e 347/2001, acrescentou:
“Agora apenas se referirá que, mais recentemente, o
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem voltou a ter oportunidade para reiterar
a sua jurisprudência em matéria de escutas telefónicas. Tal aconteceu,
nomeadamente, nos casos PG e JH v. Reino
Unido (acórdão de 25 de Setembro de 2001) e Prado Bugallo v. Espanha (acórdão de 18 de Fevereiro de 2003).
Neste último acórdão, aquele Tribunal voltou a sublinhar a necessidade de
preenchimento, pelas legislações nacionais, das condições exigidas pela sua
jurisprudência, designadamente nos acórdãos Kruslin v. França e Huvig v.
França, para evitar os abusos a que podem conduzir as escutas telefónicas.
Referiu‑se, então, nomeadamente, à necessidade de definição das
infracções que podem dar origem às escutas, à fixação de um limite à duração
de execução da medida, às condições de estabelecimento dos autos das
conversações interceptadas, bem como às precauções a tomar para comunicar
intactas e completas as gravações efectuadas, de modo a permitir um possível
controlo pelo juiz e pela defesa.
Assim
sendo, verifica‑se que a jurisprudência do Tribunal Constitucional atrás
referida, que, como se salientou já, mantém inteira validade e a que aqui
integralmente se adere, conduz a que, também no caso dos autos, tenha de
considerar‑se inconstitucional a interpretação do n.º 1 do artigo 188.º
do Código de Processo Penal, na redacção anterior à que lhe foi dada pelo Decreto‑Lei
n.º 320‑C/2000, de 15 de Dezembro, que foi acolhida pela decisão recorrida.
Com efeito, entender que situações como as que ocorreram no presente processo –
em que os autos de intercepção e gravação
de conversações telefónicas que tinham sido entretanto autorizadas só foram
levados ao conhecimento do juiz que as ordenou 38 dias depois de elas
terem tido início – são ainda abrangidas pela expressão imediatamente, colide frontalmente com os interesses que se
pretendem acautelar com aquela exigência, na medida em que impede o seu
acompanhamento próximo pelo juiz.
Resta apenas acrescentar, de modo semelhante ao que se fez nos acórdãos
deste Tribunal citados supra, que o
Tribunal Constitucional somente tem poderes para verificar a
constitucionalidade de normas, situando‑se já fora do âmbito da sua intervenção retirar as consequências da
interpretação da norma com o sentido apontado. Isto significa que é ao
tribunal recorrido que compete reformar a sua decisão em conformidade com o
presente juízo de constitucionalidade, extraindo dele as consequências
pertinentes ao nível do direito infraconstitucional e do concreto processo
crime em causa.”
Por seu turno, o Acórdão n.º 379/2004 – que julgou inconstitucional,
por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1
e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP, a norma constante do artigo 188.º, n.º 1, do CPP,
quer na redacção anterior quer na posterior à que foi dada pelo Decreto‑Lei
n.º 320‑C/2000, de 15 de Dezembro, quer quando interpretada no sentido de
uma intercepção telefónica, inicialmente autorizada por 60 dias, poder
continuar a processar‑se, sendo prorrogada por novos períodos, ainda que
de menor duração, sem que previamente o juiz de instrução tome conhecimento do
conteúdo das conversações, quer na interpretação segundo a qual a primeira
audição, pelo juiz de instrução criminal, das gravações efectuadas pode
ocorrer mais de três meses após o início da intercepção e gravação das
comunicações telefónicas –, após sumariar as três decisões anteriormente
referidas, acrescentou:
“Ora, verifica‑se que esta jurisprudência do
Tribunal Constitucional, para cuja fundamentação se remete e se dá aqui por
reproduzida, mantém inteira validade para o caso em apreço, o que leva a que
se considere inconstitucional a norma constante do artigo 188.º, n.º 1, do
Código de Processo Penal, interpretada no sentido de a intercepção telefónica,
inicialmente autorizada por 60 dias, poder continuar a processar‑se,
sendo prorrogada por dois novos períodos (de 30 dias cada um), sem que
previamente o juiz de instrução controle e tome conhecimento do conteúdo das
conversações, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, 34.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º,
n.º 2, da Constituição, bem como a mesma norma, na interpretação segundo a qual
a primeira audição da gravação das escutas telefónicas pelo juiz de instrução
pode ocorrer durante o aludido segundo período de prorrogação.”
Da explanação da jurisprudência do Tribunal
Constitucional (o texto integral dos Acórdãos anteriormente citados está
disponível em www.tribunalconstitucional.pt), cujos traços essenciais foram
logo desenhados pelo Acórdão n.º 407/97, resulta que se entendeu constitucionalmente
justificado que a admissibilidade da intromissão nas comunicações telefónicas
fosse não só alvo de prévia autorização judicial, mas também objecto de acompanhamento
judicial ao longo da sua execução. Porém, em caso algum o Tribunal Constitucional
teve de enfrentar a questão de saber se o único método constitucionalmente
admissível era o da audição, feita pessoalmente pelo juiz, da totalidade das
gravações. Nesse sentido, e para além do já enunciado no final do anterior n.º
2.5, a propósito daquele Acórdão, o que se exige é um “acompanhamento próximo” e um “controlo
do conteúdo” das conversações, com uma dupla finalidade: (i) fazer cessar, tão depressa quanto
possível, escutas que se venham a revelar injustificadas ou desnecessárias; e (ii) submeter a um “crivo” judicial
prévio a aquisição processual das provas obtidas por esse meio (cf. José Manuel Damião da Cunha, “A jurisprudência
do Tribunal Constitucional em matéria de escutas telefónicas”, Jurisprudência Constitucional, n.º 1,
Janeiro‑Março 2004, pp. 50‑56). Mas em parte alguma se afirmou que
o único método possível de efectuar esses acompanhamento e controlo fosse o da
audição pessoal, pelo juiz, da totalidade das escutas, com postergação, por
exemplo, da possibilidade de o órgão de polícia criminal coadjuvar o juiz,
facultando‑lhe a reprodução, na íntegra ou por súmula, das conversações
tidas por processualmente relevantes e juntando sempre as fitas gravadas ou
elementos análogos (ou mesmo o acesso on
line às escutas), em ordem a assegurar a efectividade do controlo e a
possibilitar uma decisão autónoma do juiz. Só no Acórdão n.º 379/2004 se refere
a “audição” das gravações pelo juiz,
mas essa menção respeita à caracterização da situação de facto ocorrida nesse
processo (em que o juiz optou por ouvir pessoalmente as gravações mas só o
fez, pela primeira vez, mais de três meses após o início da intercepção e
gravação das comunicações telefónicas), não envolvendo, nem explícita nem implicitamente,
a erecção desse método como único constitucionalmente admissível.
2.9. Da
exposição precedente já resultam claramente evidenciadas as dúvidas e
perplexidades que o regime legal das escutas telefónicas tem suscitado. Mas se,
ao nível da jurisprudência constitucional, elas incidiram quase exclusivamente
sobre o tempo (que não sobre o modo) de acompanhamento judicial da execução da operação, já a nível da
doutrina e da prática judiciária elas têm também incidido sobre os requisitos da autorização da operação,
reportados ao artigo 187.º do CPP, quer na perspectiva da adequação do
“catálogo” de crimes enunciado no seu n.º 2, quer no que concerne a uma clara
definição das pessoas cujas conversações podem ser colocadas sob escuta, quer
quanto à ausência de uma definição legal da duração das escutas. Designadamente
no que respeita à execução da operação, é indefinida a forma de articulação
entre órgão de polícia criminal, Ministério Público e juiz, registam‑se
oscilações quanto à definição do conteúdo do auto (ou dos autos) a elaborar e
tem sido salientado o inconveniente da imediata destruição das gravações que o
juiz reputou irrelevantes, por assim se eliminar irreversivelmente o
aproveitamento de passagens que eventualmente seriam consideradas importantes
quer pela acusação, quer pela defesa. [Sobre esta temática, cfr. Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo
Penal, Coimbra, 1992, pp. 272‑318, “Sobre o regime processual penal
das escutas telefónicas”, Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, fasc. 3, Julho‑Setembro 1991,
pp. 369‑408, e “As escutas telefónicas como meio de obtenção de prova no
novo Código de Processo Penal de Macau”, Revista
Jurídica de Macau, vol. IV, n.º 1, Janeiro‑Abril 1997, pp. 75‑92;
José António Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal – Do
Juiz e da Instrução, Coimbra, 2000, pp. 40‑44, e A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português,
Coimbra, 2005, pp. 141‑151; Maria
de Fátima Mata‑Mouros, Sob
Escuta – Reflexões sobre o Problema das Escutas Telefónicas e as Funções do
Juiz de Instrução Criminal, Cascais, 2003; Manuel Monteiro Guedes Valente, Escutas Telefónicas – Da Excepcionalidade à Vulgaridade, Coimbra,
2004; Pedro do Carmo, “Acesso ao
auto de transcrição das conversas telefónicas interceptadas e segredo de
justiça – Sentido e alcance do disposto pelo artigo 188.º, n.º 5, do Código de
Processo Penal”, Revista do Ministério
Público, ano 24.º, n.º 94, Abril‑Junho 2003, pp. 141‑148; Cristina Ribeiro, “Escutas telefónicas:
pontos de discussão e perspectivas de reforma”, Revista do Ministério Público, ano 24.º, n.º 96, Outubro‑Dezembro
2003, pp. 67‑89; e André Lamas
Leite, “As escutas telefónicas – algumas reflexões em redor do seu
regime e das consequências processuais derivadas da respectiva violação”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade
do Porto, ano I, 2004, pp. 9-58. Embora tendo por objecto imediato a Lei
n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, contêm elementos pertinentes ao regime geral das
escutas telefónicas os textos de Mário
Ferreira Monte, “O registo de voz e de imagem no âmbito do combate à
criminalidade organizada e económico‑financeira” e “A intercepção e
gravação de conversações e comunicações. O registo de voz e de imagem. Alguns
aspectos relevantes do actual sistema processual penal”; de Carlos Rodrigues de Almeida, “O registo
de voz e de imagem – notas ao artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro”;
e de Rui do Carmo, “Registo de
voz e imagem”, todos em Centro de
Estudos Judiciários, Medidas de
Combate à Criminalidade Organizada e Económico‑Financeira, Coimbra,
2004, pp. 79‑90, 91‑106, 107‑117 e 169‑172,
respectivamente.]
Em resultado dessas perplexidades e
reflexões, as iniciativas legislativas relativas à revisão do Código de
Processo Penal apresentadas na última Legislatura – Projecto de Lei n.º 424/IX,
apresentado pelo Bloco de Esquerda, Proposta de Lei n.º 149/IX e Projecto de
Lei n.º 519/IX, apresentado pelo Partido Socialista (Diário da Assembleia da República, II Série‑A, IX
Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa, n.º 50, de 3 de Abril de 2004, pp. 2214‑2219,
e 3.ª Sessão Legislativa, n.º 17, de 20 de Novembro de 2004, pp. 21‑40, e
n.º 20, de 3 de Dezembro de 2004, pp. 6‑118, respectivamente) –
propugnam, designadamente: (i) a
elevação de 3 para 5 anos do máximo da pena de prisão aplicável aos crimes que
consentem a autorização de escutas; (ii)
a restrição da admissibilidade destas apenas quando não existir outro meio
lícito para atingir a descoberta da verdade ou se revelar de superior
interesse, face aos demais meios de prova, para esse objectivo; (iii) a definição das pessoas cujas
conversações podem ser interceptadas; (iv)
a instauração de regimes especiais atenta a qualidade dos escutados; (v) a exigência de especial
fundamentação do despacho autorizador das escutas; (vi) o estabelecimento de limites temporais para a execução das
escutas e respectivas prorrogações; (vii)
o alargamento dos casos de proibição de transcrições.
No que especificamente respeita ao
acompanhamento judicial da operação, o Projecto de Lei n.º 424/IX propõe: (i) a fixação do prazo máximo de 24
horas para ser levado ao conhecimento do juiz o auto de intercepção e gravação,
com as fitas gravadas e a indicação das passagens consideradas relevantes para
a prova; (ii) a supervisão de todo o
processo, especialmente a transcrição em auto, pelo Ministério Público; (iii) a conservação das gravações não
transcritas até ao trânsito em julgado da decisão final, podendo o arguido
requerer a sua audição em sede de julgamento ou de recurso para contextualizar
as conversações transcritas. A Proposta de Lei n.º 150/IX estabelece,
designadamente, que: (i) os autos de
intercepção e gravação, com as fitas, são levados ao conhecimento do juiz, de
15 em 15 dias, com indicação por parte do Ministério Público das passagens
consideradas relevantes para a prova; (ii)
o Ministério Público é ouvido pelo juiz antes de este seleccionar os elementos
a consignar em suporte autónomo e a transcrever em auto; (iii) as fitas e elementos análogos são conservados até ao trânsito
em julgado da decisão final, tendo a eles acesso o arguido para efeitos de
selecção de mais excertos que entenda relevantes. Por último, o Projecto de
Lei n.º 519/IX prevê que seja o juiz o fixar o período findo o qual o auto com
as fitas é levado ao seu conhecimento, acompanhado ou da indicação das
passagens e dos dados considerados relevantes para a prova ou mesmo da
respectiva transcrição provisória, cabendo ao juiz determinar a transformação
desta transcrição provisória em definitiva ou, se não considerar os elementos
nela contidos como relevantes, determinar a sua eliminação.
2.10. Grande
parte das questões referenciadas no precedente número têm por suporte a
apreciação da adequação do sistema legal actualmente vigente entre nós com as
exigências que nesta matéria têm sido estabelecidas pela jurisprudência do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, face ao disposto no artigo 8.º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que proclama o direito de qualquer
pessoa ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua
correspondência (n.º 1) e proíbe ingerências da autoridade pública no exercício
desse direito, excepto se essa exigência estiver prevista na lei e constituir
uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a
segurança nacional, para a segurança pública, para o bem‑estar económico
do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da
saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades dos outros (n.º
2).
Na síntese apresentada por Ireneu Cabral Barreto (“A Investigação
criminal e os direitos humanos”, Polícia
e Justiça – Revista do Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais, III Série, n.º 1, Janeiro‑Junho
de 2003, pp. 43‑85, em especial pp. 57‑63; e “A jurisprudência do
novo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, Sub Judice – Justiça e Sociedade, n.º 28, Abril‑Setembro
2004, pp. 9‑32, em especial pp. 20‑21; cf. ainda, do mesmo autor, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem
Anotada, 2.ª edição, Coimbra, 1999, anotações I-5.2 e II‑4. e 6.4.
ao artigo 8.º, a pp. 184, 193‑194 e 196; e João Ramos de Sousa, “Escutas telefónicas em Estrasburgo: O
activismo jurisprudencial do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, Sub Judice, citada, pp. 47‑55 ):
“A
jurisprudência de Estrasburgo, tendo em conta a gravidade da ingerência na
vida das pessoas que representa a escuta telefónica, precisou que não basta uma
lei a prever essa possibilidade.
Para
prevenir o risco de arbítrio que o uso desta medida poderia acarretar, entende‑se
que uma tal lei deve conter uma série de garantias mínimas:
– definir
as categorias de pessoas susceptíveis de serem colocadas em escutas
telefónicas;
– a
natureza das infracções que podem permitir essa escuta;
– a
fixação de um limite de duração dessa medida;
– as
condições do estabelecimento de processos verbais de síntese consignando as
conversas interceptadas;
– as
precauções a tomar para comunicar, intactos e completos, os registos realizados,
para o controlo do juiz e da defesa;
– as
circunstâncias nas quais pode e deve proceder‑se ao apagamento ou
destruição das fitas magnéticas, nomeadamente após uma absolvição ou o arquivamento
do processo.”
Como refere Gérard
Cohen‑Jonathan (“La Cour européenne des droits de l’homme et les
écoutes téléphoniques”, Revue Universelle
des Droits de l’Homme, vol. 2, n.º 5, 31 de Maio de 1990, pp. 185–191),
impõe‑se a existência de uma lei
que preveja a possibilidade de autorização de escutas, lei que deve ser acessível e precisa, e que se estabeleçam garantias
adequadas, desde logo definindo com precisão quais as autoridades competentes para ordenar ou autorizar as escutas, quais
os crimes cuja gravidade justifica o
uso deste meio de produção de prova e o grau
de suspeita exigível, não podendo a ingerência ser meramente exploratória.
Depois, o acompanhamento da operação há‑de ocorrer em três estádios: no
momento da ordem ou da autorização, no decurso da operação e após o seu termo,
possibilitando às pessoas colocadas sob escuta o direito de acesso às gravações
e respectivas transcrições, o direito à eliminação das passagens irrelevantes
ou interditas e o direito à destruição ou restituição dos respectivos
suportes.
Mas para além das “escutas judiciárias”, são
ainda admissíveis “escutas administrativas”, determinadas pelo poder executivo
visando objectivos de segurança interna e externa, as quais devem oferecer
igualmente garantias adequadas que afastem o risco de utilização abusiva,
garantias que serão naturalmente diferentes das previstas para as “escutas judiciárias”,
mas que sempre exigirão a possibilidade de recurso aos tribunais, embora apenas
a posteriori. Essas garantias passam,
nalguns países, pela intervenção de entidades independentes, por vezes de
origem parlamentar, que acompanham a actuação do executivo (cf. o Acórdão Klass, de 1978, em que o Tribunal
Europeu considerou suficientes os recursos judiciais a posteriori previstos no direito alemão em caso de intercepção de
conversações determinada pelo Governo alemão, para defesa da ordem e segurança
numa sociedade democrática e para evitar infracções, sem controlo judicial
prévio, e a decisão da Comissão Europeia dos Direitos do Homem, de 10 de Maio
de 1985, relativa ao Luxemburgo, ambos citados no artigo de Gérard Cohen‑Jonathan).
2.11.
A análise de ordenamentos jurídicos de países cujas normas constitucionais
relevantes na matéria são similares às portuguesas revela que o legislador
ordinário tem moldado de modo diversificado o regime das escutas telefónicas,
designadamente no que respeita à intervenção do juiz, quer na fase de
autorização, quer na fase de acompanhamento da operação (cf. Mario Chiavario e outros, Procedure Penali d’Europa, 2.ª edição,
Milão, 2001).
Na Bélgica,
de acordo com as Leis de 10 de Junho de 1998 e de 10 de Janeiro de 1999, a
regra é a da autorização pelo juiz de instrução, mas, em casos de urgência, a
escuta pode ser determinada pelo Ministério Público, embora sujeita a validação
judicial. Só se procede à transcrição das passagens consideradas relevantes,
mas mantêm‑se intactas as gravações, podendo as partes consultá‑las
e requerer a transcrição de passagens inicialmente tidas por irrelevantes (ob. cit., pp. 75‑76).
Na França,
segundo os artigos 100.º e seguintes do Código de Processo Penal, alterados
pela Lei de 10 de Julho de 1991, a ordem de intercepção é dada pelo juiz de
instrução, o qual, porém, pode delegar num oficial de polícia judiciária o
acompanhamento da operação. As gravações só são destruídas no termo de
prescrição do procedimento criminal (ob.
cit., pp. 139‑140).
Na Alemanha
também é de regra a autorização pelo juiz, mas, em caso de urgência, a
intercepção pode ser determinada pelo Ministério Público, sujeita a validação
judicial. A ordem de intercepção implica o poder de registo. No julgamento, o
juiz pode optar entre a audição das gravações ou a leitura das transcrições (ob. cit., p. 204).
Diversamente, na Inglaterra, as escutas são determinadas pelo Ministro do Interior ou
pelas autoridades policiais, com mandado ministerial, não tendo o juiz qualquer
poder de controlo sobre as intercepções, existindo possibilidade de recurso
para uma comissão integrada por advogados nomeados pelo Governo, que verifica
o cumprimento das condições legais da intercepção (ob. cit., pp. 258‑259).
Na Itália,
também a regra é a de que compete ao juiz de instrução autorizar as
intercepções, mas em caso de urgência elas podem ser ordenadas pelo Ministério
Público, com subsequente validação judicial (ob. cit., pp. 321‑322). As comunicações interceptadas são
registadas em acta, aí sendo transcrito, ainda que sumariamente, o conteúdo da
comunicação interceptada (artigo 268.º do Código de Processo Penal italiano).
O registo da intercepção e a acta são transmitidos imediatamente ao Ministério
Público, que os deposita na secretaria, sendo de seguida dado conhecimento ao
defensor, que pode escutar os registos e examinar os actos, e só então, face às
posições assumidas pelas partes interessadas quanto à admissibilidade e
relevância das comunicações interceptadas, é que o juiz de instrução manda
suprimir os registos cuja utilização é legalmente vedada e admite os que não
são manifestamente irrelevantes (artigo 266.º, n.º 6, do mesmo Código) – cf. José António Mouraz Lopes, “A tutela
da imparcialidade ...”, citado, pp.
145‑146, nota 388.
2.12.
Recortado o parâmetro constitucional atendível (2.2.), historiada a evolução
legislativa do regime das escutas e perplexidades que suscitou e suscita (2.3.,
2.4., 2.6., 2.7. e 2.9.), recordada a pertinente jurisprudência do Tribunal
Constitucional (2.5. e 2.8.) e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
(2.10.) e feita sumária referência a sistemas jurídicos próximos (2.11.),
cumpre, finalmente, enfrentar o problema de constitucionalidade que vem
suscitado no presente recurso.
Importa, desde já, salientar que não está em
causa a correcção, ao nível da interpretação e aplicação do direito ordinário,
da interpretação normativa acolhida pelo acórdão recorrido, mas tão‑só
apurar se essa interpretação, assumida como um dado da questão, é constitucionalmente conforme.
Do relato da evolução legislativa resulta uma
oscilação quanto ao número e conteúdo do “auto
de intercepção e gravação”. A circunstância de a versão originária do artigo
188.º do CPP aludir a um único auto e de ser o exame desse auto pelo arguido,
pelo assistente e pelas pessoas escutadas que lhes possibilitaria inteirarem‑se
da conformidade das gravações e obterem cópia dos elementos referidos no auto,
levou a que se entendesse (supra,
2.3.), designadamente no parecer n.º 92/91 (complementar), de 17 de Setembro de
1992, do Conselho Consultivo da Procuradoria‑Geral da República, que esse
auto não devia conter apenas o registo do acto de intercepção, mas
inclusivamente o conteúdo das conversações interceptadas, por transcrição das
tidas por relevantes e menção genérica das consideradas destituídas de
interesse (cf. supra, 2.4.).
A intervenção legislativa consumada pela Lei
n.º 59/98 (cf. supra, 2.6.) visou
afastar esse entendimento, tornando clara a existência de dois autos – um
relativo ao acto de intercepção e gravação e outro de transcrições –, sendo ao
auto de transcrição que é facultado o acesso por parte do arguido, do
assistente e das pessoas escutadas, para efeitos de controlo da fidelidade das
mesmas. Simultaneamente veio prever‑se, de forma expressa, a possibilidade
de conhecimento, a título excepcional, do conteúdo das comunicações por parte
do órgão de polícia criminal antes do seu conhecimento pelo juiz, e a
possibilidade de o juiz, na sua tarefa de selecção dos elementos que, por
considerados relevantes para a prova, deviam ser transcritos, ser coadjuvado
por órgão de polícia criminal.
Finalmente, a alteração operada pelo Decreto‑Lei
n.º 320‑C/2000 veio de novo alterar o conteúdo do auto de intercepção e
de gravação. Ele deixou de ser mero auto de registo da efectivação da
operação, para dever sempre conter, não a transcrição
das passagens que o órgão de polícia criminal reputasse relevantes (como
entendera o parecer n.º 92/91 da Procuradoria‑Geral da República), mas a indicação dessas passagens, com o
objectivo, que resulta do artigo 4.º da Lei n.º 27‑A/2000, de limitar o
dever de o juiz ouvir as gravações às passagens indicadas (cf. supra. 2.7.). A
atribuir‑se importância decisiva a esta menção da lei de autorização
legislativa, não será eventualmente o mais correcto o entendimento de que o
juiz também se pode dispensar de ouvir as gravações relativas às passagens
indicadas como relevantes. No entanto – repete‑se – não está em causa a
correcção, ao nível da interpretação do direito ordinário, do critério
normativo acolhido no acórdão recorrido, mas antes saber se este critério
viola, ou não, normas ou princípios constitucionais.
Ora, nesta perspectiva, e atendendo a que,
como inicialmente se salientou (cf. supra,
2.2), o n.º 4 do artigo 34.º da CRP permite, embora com carácter de
excepcionalidade, a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações,
impondo directamente como limitação tratar‑se de matéria de processo criminal e submetendo‑a a reserva de lei (mas não a sujeitando
explicitamente a reserva de decisão
judicial, como fizera no precedente n.º 2 quanto à entrada no domicílio dos
cidadãos), requisitos estes que se mostram no caso preenchidos, a eventual
inconstitucionalidade da interpretação normativa impugnada apenas pode assentar
em violação do princípio da proporcionalidade aplicável às restrições dos
direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP).
No citado Acórdão n.º 407/97 e posterior
jurisprudência deste Tribunal que reiterou a doutrina nele definida, sustentou‑se
que a especial danosidade social desta intromissão nas comunicações implicava,
não apenas um controlo judicial do desencadear da operação (não estando ora em
causa saber se esse controlo tem de ser sempre prévio ou pode ser de validação
de determinação do Ministério Público ou de órgãos de polícia criminal, como é
admitido noutros ordenamentos jurídicos (cf. supra, 2.11)), mas um acompanhamento
judicial da própria execução da operação. Acompanhamento este que deve ser contínuo e próximo temporal e materialmente
da fonte, mas que não implica necessariamente “que toda a operação de escuta tenha de ser materialmente executada
pelo juiz”, como uma “visão maximalista”
exigiria.
Há que fazer uma interpretação desse
requisito jurisprudencial funcionalmente adequada à sua razão de ser. E os
propósitos visados consistem, como se assinalou, em propiciar que seja
determinada a interrupção da intercepção logo que a mesma se revele desnecessária,
desadequada ou inútil, e, por outro lado, fazer depender a aquisição processual
da prova assim obtida a um “crivo” judicial quanto ao seu carácter não proibido
e à sua relevância.
Ora, o critério normativo adoptado satisfaz
minimamente esses objectivos. Com base nas referências, por transcrição ou por
resumo, das passagens das conversações que o órgão de polícia criminal (que
está sujeito a especiais obrigações de objectividade) considera relevantes –
indicações essas que, porque necessariamente acompanhadas do envio ao juiz das
fitas gravadas ou elementos análogos, merecem, à partida, um juízo de
fidedignidade, atenta a possibilidade efectiva de controlo da sua correspondência
ao material gravado – pode o juiz quer determinar de imediato a interrupção da
intercepção revelada desnecessária, quer formular juízo próprio sobre a
admissibilidade e a relevância dos elementos a transcrever.
Acresce que, em rigor, essa selecção dos
elementos a transcrever é necessariamente uma primeira selecção, dotada de provisoriedade, podendo vir a ser
reduzida ou ampliada. Assiste, na verdade, ao arguido, ao assistente e às
pessoas escutadas o direito de examinarem o auto de transcrição, exame que se
deve entender não ser apenas destinado a conferir a conformidade da
transcrição com a gravação e exigir a rectificação dos erros de transcrição
detectados ou de identificação das vozes gravadas, mas também para reagir
contra transcrições proibidas (por exemplo, de conversações do arguido com o
defensor) ou irrelevantes. Inversamente, deve ser facultado à defesa (e também
à acusação) a possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que
as inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas
assumem relevância própria, quer por se revelarem úteis para esclarecer ou
contextualizar o sentido de passagens anteriormente seleccionadas.
No presente caso, os recorrentes não
questionam a admissibilidade e a relevância das transcrições seleccionadas
pelo juiz com base nas indicações fornecidas pelo órgão de polícia criminal,
indicações com as quais o Ministério Público manifestou plena concordância. O
que, no fundo, os recorrentes acabam por considerar inconstitucional é a
circunstância de essa forma de coadjuvação dos órgãos de polícia criminal ter
sido prestada sem ter sido previamente solicitada, por forma expressa, pelo
juiz de instrução. No entanto, a inequívoca aceitação, por parte deste, dessa
coadjuvação, torna puramente formal a pretensa irregularidade, que, de modo
algum, pode ser considerada como pondo em risco os valores prosseguidos pela
exigência, feita pela jurisprudência constitucional, de acompanhamento judicial
contínuo e próximo, temporal e materialmente, da fonte.
Conclui‑se, assim, que,
independentemente de ser essa, ou não, a melhor interpretação do regime legal
vigente, não é constitucionalmente imposto que o único modo pelo qual o juiz
pode exercitar a sua função de acompanhamento da operação de intercepção de
telecomunicações seja o da audição, pelo próprio, da integralidade das
gravações efectuadas ou sequer das passagens indicadas como relevantes pelo
órgão de polícia criminal, bastando que, com base nas menções ao conteúdo das
gravações, com possibilidade real de acesso directo às gravações, o juiz emita
juízo autónomo sobre essa relevância, juízo que sempre será susceptível de
contradição pelas pessoas escutadas quando lhes for facultado o exame do auto
de transcrição.
3.
Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a)
Não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Código
de Processo Penal, interpretado no sentido de que são válidas as provas obtidas
por escutas telefónicas cuja transcrição foi, em parte, determinada pelo juiz
de instrução, não com base em prévia audição pessoal das mesmas, mas por
leitura de textos contendo a sua reprodução, que lhe foram espontaneamente
apresentados pela Polícia Judiciária, acompanhados das fitas gravadas ou
elementos análogos; e, consequentemente,
b)
Negar provimento aos recursos, confirmando a decisão recorrida na parte
impugnada.
Custas pelos recorrentes, fixando‑se a
taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 25 de Agosto de
2005.
Mário José de Araújo
Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos