ACÓRDÃO N.º 686/04
Processo
n.º 843/2004
2.ª
Secção
Relatora:
Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2.ª Secção do
Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos
presentes autos, o Relator no Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o seguinte
despacho, relativo ao processo criminal no qual figura como recorrente o
arguido A.:
O arguido está
acusado e condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado.
Assim sendo e
tomando em atenção a complexidade das questões postas no decurso dos autos e no
recurso, declaro a excepcional complexidade do processo, nos termos e para os
efeitos do artigo 215º, nº 1‑d) e 3/3 do CPP.
O arguido requereu que sobre
o despacho recaísse acórdão. O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 14
de Abril de 2004, confirmou o despacho (cf. fls. 22 e ss.).
2. A. interpôs recurso do acórdão de 14 de
Abril de 2004 para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando o seguinte:
1- A matéria de facto provada em julgamento em 1ª instância e a perícia
realizada não revestiram especial complexidade no douto tribunal círculo Torres
Vedras.
2 - Perícias ou questões técnicas apreciadas por entidades alheias ao
tribunal de julgamento não revestem especial complexidade para o próprio órgão
de soberania, pois são conhecimentos cujo juízo técnico se presume subtraído à livre apreciação do Juiz
julgador - art. 163 CPP.
3 - Prevendo o art. 216 C.P.P. a suspensão do prazo de prisão preventiva
por três (3) meses em função da perícia, não é fundamentada nem proferida ao
abrigo de qualquer disposição legal a decisão que prorroga a prisão preventiva
por especial complexidade em função da perícia.
4 – Só o elevado número de arguidos ou o carácter altamente organizado do
crime pode revestir especial complexidade cfr. art. 215- 3 – C.P.P., tanto
mais que, "a especial complexidade do processo não pode ter por fundamento
a complexidade das questões de direito suscitadas...:" - cfr. acórdão
deste Alto Tribunal de 1-7-1993 - Proc. 045475 - Doc sj 1993071045453 - Relator
Sr Juiz Conselheiro Cardoso Bastos in www.dgsi - ou perícias subtraídas à
livre apreciação do juiz julgador
5 - O acórdão recorrido violou os arts. 215 - 1- D) e 3, 151, 163 e 216
C.P.P. e art. 32- 1, 2 e 3 da Lei Fundamental.
6 - A ampliação do prazo de prisão preventiva - art. 215- 3 CPP - por
especial complexidade, com base em perícias
- subtraídas à livre apreciação do juiz julgador, com prazo consignado
no art. 216 CPP - sem que à defesa seja previamente comunicada a promoção do
Ministério Público - viola o princípio do contraditório e é inconstitucional
por violação dos arts. 32- 1, 2 e 3 da C.R.P. e arts. 5° e 6° da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem.
O Supremo Tribunal de
Justiça, por acórdão de 22 de Julho de 2004, considerou o seguinte:
Colhidos os
vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
Dispõe o artigo
432º do CPP que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça entre outras,
“das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso,
nos termos do artigo 400º”. Esta disposição, por seu lado, entre as decisões
que não admitem recurso, inclui os acórdãos proferidos, em recurso, pelas
Relações que não ponham termo à causa – artigo 400º, nº 1, alínea c).
No sistema de
recursos em processo penal. a competência do Supremo Tribunal de Justiça está,
pois, limitada à reapreciação de decisões finais, salvo no que respeite a
decisões proferidas pelas Relações em 1ª instância (artigo 432º, alínea a) do CPP), isto é, em que a competência
em razão da matéria e hierárquica caiba, em primeira instância, aos tribunais
de Relação.
É, pois, neste
equilíbrio sistémico do regime dos recursos que tem de ser interpretada a
conjugação das normas do artigo 432º, alínea b) com o artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP: quando esta se refere a decisões proferidas, em recurso,
pelas relações, que não tenham posto termo à causa, quer significar, salvo
contradição interna de sistema, que a competência em razão da hierarquia para
proferir decisões que não ponham termo à causa cabe às relações, que decidem,
nestas matérias interlocutórias, em última instância – quer seja decisão
proferida em recurso, quer seja proferida por ocasião de um recurso. Não faria,
neste aspecto, qualquer sentido que as relações decidissem definitivamente uma
questão instrumental que não põe termo à causa em recurso, e não já quando a
mesma questão se suscite no âmbito e por ocasião do desenvolvimento processual
de um recurso.
O artigo 400º,
nº 1, alínea c) do CPP abrange,
assim, todas as decisões interlocutórias, que não põem termo à causa,
subtraindo‑as à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça – cf., a
propósito de questão paralela, entre outros, o acórdão do Tribunal
Constitucional, de 2 de Junho de 2004, proc. 651/03.
Em consequência, foi
rejeitado o recurso.
Foi requerida a aclaração do
acórdão de 22 de Julho de 2004, aclaração que foi indeferida por acórdão de 12
de Agosto de 2004.
3. A. interpôs recurso de
constitucionalidade nos seguintes termos:
A.,
arguido preso nos autos supra identificado, tendo sido notificado do teor da
Douta Decisão de fls., datada de 22 Julho 2004 e notificada a 26-7-2004, e da
Decisão que recaiu sobre o pedido de aclaração e não se conformando com a
mesma, dela vem interpor RECURSO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL.
O recurso é interposto ao abrigo do art. 70 - 1 - b) da Lei do Tribunal Constitucional.
O recurso tem em vista apreciar a inconstitucionalidade do art 400- 1 -
C) do CPP quando entendido, como no caso sub
judice, de que declarada pela Veneranda Relação de Lisboa a especial
complexidade não é permitido à defesa interpôr recurso para o Tribunal
Superior.
Tal hermenêutica suprime o exercício do Direito à defesa e ao Recurso -
consagrado nos arts 20 e 32 - 1 da Lei Fundamental e é inconstitucional.
Acresce que, declarada a especial complexidade pela Veneranda Relação de Lisboa
sem que à defesa fosse sequer dada oportunidade de defesa e de contraditar tão
drástica medida - que prorroga desnecessariamente a prisão preventiva e afecta
os direitos de defesa violou-se o Princípio do Contraditório - art 32 da Lei
Fundamental.
A Lei adjectiva - art. 216 CPP - prevê que em caso de perícia se suspenda o decurso da prisão preventiva por período
de três (3) meses ... pelo que inexiste fundamento para atribuir especial complexidade a processo julgado
em I Instância ...
A Veneranda Relação decidiu sem que o recorrente possa defender-se, nem
sequer o tendo ouvido, previamente, sobre decisão que o afectava, pois
prorroga-lhe, sem fundamento, a prisão preventiva!!
O Supremo Tribunal Justiça privou o arguido do direito ao recurso!!!
A privação do direito ao recurso num caso como o vertente em que se
debate questão de fundo e em pena de 16 anos de prisão afecta os direitos do
recorrente.
O direito ao recurso está consagrado pela Convenção Europeia dos Direitos
do Homem - arts 5° e 6°, pelo art 81 do Estatuto do Tribunal Penal
Internacional, pelo art 14° - 5 do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e
Políticos e pelos arts 20 e 32 - 1 da Lei Fundamental Portuguesa e ainda pelo
artigo 400 CPP a contrario atenta a
pena de 16 anos.....
A hermenêutica expendida na Douta Decisão da II Instância no sentido de
que pode ser ampliado o prazo de prisão
preventiva pela especial complexidade, com base em perícias - estas subtraídas
à livre apreciação do Senhor Juiz Julgador e já com o prazo consignado no art.
216 C.P.P. e sem que à Defesa seja comunicada previamente a Promoção do
Ministério Público - viola os arts 32‑1 e 2 da Lei Fundamental, os arts.
5° e 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Princípio do
Contraditório.
A prorrogação da prisão preventiva é infundada e contrária aos arts. 215-
1 d) e 3, 151, 163 e 216 do C.P.P. e violadora do art. 32- 1, 2 e 3 da Lei
Fundamental e os citados arts 5° e 6° da CEDH.
Assim a defesa espera que o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, considerando
ADMISSÍVEL O RECURSO INTERPOSTO e em sede de recurso final julgue
inconstitucional a interpretação da Veneranda Relação dos arts 215 - 3 e 216
CPP no sentido de ser ampliada a prisão preventiva - por especial complexidade
com base em perícias subtraídas à livre apreciação do Juiz Julgador sem que à
Defesa seja previamente comunicada a promoção do Ministério Público - por
violação do Princípio do Contraditório - arts 32-1, 2 e 3 Lei Fundamental.
As inconstitucionalidades supra indicadas foram suscitadas nas conclusões
5 e 6 do recurso interposto a 28-Abril-2004, no pedido de Aclaração de
4-Agosto-2004 e parcialmente atendidas no Voto de Vencido do Colendo Acórdão do
STJ de 22 Julho 2004.
A Relatora proferiu o
seguinte Despacho:
1. O recorrente
pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional as normas dos artigos
151º, 163º, 215º, nº 1, alínea d), e
nº 3, e 216º do Código de Processo Penal, fundamento, no caso, da declaração de
especial complexidade do processo.
Contudo, a decisão recorrida é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
de 22 de Julho de 2004, no qual foi decidida a rejeição do recurso interposto
do acórdão de 14 de Abril de 2004, com fundamento no disposto no artigo 400º,
nº 1, alínea c), do Código de
Processo Penal, como se referiu. Não se apreciou, no aresto recorrido, a
questão relativa à declaração de especial complexidade do processo.
Nessa medida, qualquer juízo que o Tribunal Constitucional viesse a
formular sobre tal questão não teria a virtualidade de alterar a decisão
recorrida, uma vez que as normas impugnadas não foram aplicadas pela decisão
recorrida, isto é, não constituem a sua ratio
decidendi.
Assim, também não se tomará conhecimento do objecto do recurso no que
respeita aos artigos 151º, 163º, 215º, nº 1, alínea d), e nº 3, e 216º do Código de Processo Penal.
2. Notifique‑se
o recorrente para apresentar alegações, no prazo de vinte dias, quanto à
questão de constitucionalidade que tem por objecto a norma da alínea c) do nº 1 do artigo 400º do Código de
Processo Penal, suscitando‑se a presente questão prévia quanto às demais
normas impugnadas, nos termos do artigo 3º do Código de Processo Civil,
aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional.
O recorrente apresentou
alegações que concluiu do seguinte modo:
1- Em processo penal inexistem decisões irrecorríveis, conforme o
princípio ínsito ao art. 399 CPP.
2 - Uma decisão‑surpresa que afecta os direitos do arguido,
proferida pela Veneranda Relação Lisboa em 1ª instância, admite recurso para o
tribunal superior.
3 - A privação do direito ao recurso viola os arts. 399 e 400-1- c) CPP,
o art. 5°-4 da Convenção E. Direitos Homem, o art. 14°-5 do Pacto Internacional
S. Direitos Civis e Políticos e os arts. 32-1 e 20º da Lei Fundamental.
4 - O art. 400-1-c) do C.P.P. é inconstitucional por violação dos arts.
32‑1 e 20 da Lei Fundamental e art. 5º da C. E. D. Homem, quando
entendido que do acórdão da Relação - a
funcionar em 1ª instância - que profere decisão-surpresa (“especial
complexidade”) - não é admissível recurso para o tribunal superior.
Foram violados os arts. 399 e 400-1-C) CPP e arts. 20 e 32-1 da CRP e
art. 5°-4 da CEDH pelo que deve ser concedido provimento ao recurso.
O Ministério Público, por
seu turno, contra‑alegou, concluindo o seguinte:
1 - O princípio do duplo grau de jurisdição, ínsito no direito ao recurso,
consagrado no artigo 32° da Constituição da República Portuguesa relativamente
a todas as decisões condenatórias e atinentes a medidas de coacção privativas
da liberdade do arguido, não implica um irrestrito acesso ao Supremo,
relativamente a todas as decisões das Relações, proferidas no âmbito de um
precedente recurso, que incidam sobre tais matérias.
2 - Na verdade, o papel constitucionalmente reservado ao Supremo Tribunal
de Justiça, como tribunal de revista - e não de instância - legitima
plenamente o estabelecimento, pelo legislador infraconstitucional, de limites
à recorribilidade para o Supremo, relativamente a determinadas questões,
nomeadamente de índole meramente procedimental ou interlocutória.
3 - Bastando-se, neste caso, o princípio do duplo grau de jurisdição com
a prolação de uma decisão final por um Tribunal Superior - a Relação - e com a
possibilidade de o arguido fazer sindicar, pelo colectivo de juízes, mediante
o meio impugnatório da reclamação para a conferência, a decisão tomada pelo
relator, sem ulterior possibilidade de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça,
mediante um novo grau de recurso.
4 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
A)
Delimitação do objecto do
recurso
4. O
recorrente indica, no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, como normas que pretende que o Tribunal Constitucional
aprecie, a norma do artigo 400º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por um lado, e, por outro lado, as
normas dos artigos 151º, 163º, 216º, nºs 1, alínea d), e 3, e 212º, do mesmo Código. Porém, este último conjunto de
normas não foi aplicado pela decisão recorrida, como se refere no Despacho de
fls. 74, transcrito supra, ao qual o
recorrente não respondeu nas alegações apresentadas.
Assim, não se tomará
conhecimento do objecto do recurso relativamente a tais normas, pelas razões
constantes do despacho de fls. 74, circunscrevendo‑se o presente recurso
à apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 400º, nº 1,
alínea c), do Código de Processo
Penal.
B)
Apreciação da conformidade à
Constituição da norma do artigo 400º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal
5. O
artigo 400º, nº 1, alínea c), do
Código de Processo Penal, tem a seguinte redacção:
1 – Não é
admissível recurso:
(...)
c) De acórdãos
proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa;
(...)
O Supremo Tribunal de
Justiça considerou, no acórdão recorrido, que a decisão que declara a
excepcional complexidade do processo, consubstanciando uma decisão
interlocutória, não poria, nessa medida, termo à causa, não sendo recorrível para o Supremo Tribunal
de Justiça, mesmo quando tal declaração seja realizada em “primeira instância”
pela Relação. Entendeu, assim, que a norma em causa não seria inconstitucional,
porque, tendo a Relação competência para decidir definitivamente em recurso tal
questão, não faria sentido que deixasse de ter competência quando a mesma fosse
suscitada “no âmbito e por ocasião do desenvolvimento processual de um
recurso”.
A declaração de excepcional
complexidade do processo repercute‑se no limite máximo do prazo de
duração da prisão preventiva, nos termos do nº 3 do artigo 216º do Código de
Processo Penal. Nessa medida, a decisão proferida nos autos implica o aumento
do período de duração da prisão preventiva, afectando intensamente o direito
fundamental à liberdade do arguido sujeito a tal medida de coacção.
A questão de
constitucionalidade suscitada nos presentes autos é, pois, a de saber se a
irrecorribilidade em decisão que pela primeira vez se pronuncie sobre a
excepcional complexidade do processo, declarando‑a, proferida pelo
Tribunal da Relação, irrecorribilidade decorrente da norma impugnada, é
compatível com o artigo 32º, nº 1, da Constituição, que consagra, como garantia
de defesa, o direito ao recurso.
6. Analisando
o problema colocado, o Tribunal Constitucional entende o seguinte:
A autonomização do direito
ao recurso no âmbito das garantias de defesa (artigo 32º da Constituição),
operada pela Revisão Constitucional de 1997, significou a atribuição de
autonomia de tal garantia no contexto geral das garantias de defesa, isto é, um
valor garantístico próprio e não “dissolúvel” em outras garantias de defesa.
Tal explicitação
constitucional tem por efeito a garantia (constitucional) da possibilidade de
interposição de recurso de decisões que respeitem a direitos, liberdades e
garantias, maxime que restrinjam tais
direitos.
A decisão dos autos da qual
o recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça restringe
indiscutivelmente a liberdade do arguido, já que se traduz num aumento do prazo
de duração da prisão preventiva. Por outro lado, o Tribunal da Relação de
Lisboa proferiu a decisão “em primeira instância”, isto é, como igualmente se
realçou, sem ter sido a mesma objecto de apreciação anterior. Ora, a tutela
constitucional do direito de recorrer de decisões que restringem direitos
fundamentais em processo penal impõe a possibilidade efectiva de uma
reapreciação em recurso, o que no caso poderia consistir no recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça.
O Ministério Público refere,
porém, que a questão da declaração de excepcional complexidade do processo foi
apreciada no despacho inicial do relator e no acórdão que sobre ele recaiu,
pretendendo com isso salientar ter havido quanto a essa questão oportunidade
processual de contra‑argumentar e uma possibilidade efectiva de
reapreciação por quem a ditou.
Contudo, tal tramitação não
se confunde com a garantia constitucional de um direito de recorrer. Com
efeito, o despacho inicial não constitui a decisão definitiva da instância, que
só ocorre com a prolação do acórdão (ou com o trânsito em julgado do despacho).
Desse modo, só uma instância se pronunciou no caso.
Como se referiu, a
Constituição prevê expressamente o recurso como garantia de defesa e a noção de
recurso implica, como seu conteúdo fundamental, a apreciação da decisão por
órgão diferente (superior hierarquicamente) daquele que proferiu a decisão
impugnada sempre que ele exista (cf. Armindo
Ribeiro Mendes, Recursos em
Processo Civil, 1999, p. 21; Germano
Marques da Silva, Curso de
Processo Penal, III, 2ª ed., 2000, 309 e ss.). Diversamente, a reclamação
consiste na apreciação da questão pelo mesmo órgão jurisdicional que proferiu a
decisão.
Aquele sentido autónomo do
recurso como garantia constitucional não se esgota, porém, numa “dupla
apreciação” pelo mesmo órgão. Trata‑se, antes, de uma expressa garantia
de reponderação por órgão distinto e superior no sentido de assegurar plena
imparcialidade e objectividade na decisão de uma questão que afecte os direitos
fundamentais.
Assim, a tutela
constitucional do direito de recorrer
quanto a decisões que impliquem uma definitiva afectação de direitos há‑de
implicar a garantia efectiva do recurso, no caso de tal ser possível (por
existir instância adequada e superior), nas decisões que restringem direitos
fundamentais, não sendo suficiente para a sua concretização a possibilidade que
o arguido tem de reclamar perante o órgão que proferiu a decisão.
Também o Ministério Público
invoca, contrapondo a uma perspectiva de violação do direito ao recurso, os
Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs
390/04, de 2 de Junho, D.R., II
Série, de 7 de Julho de 2004, e 94/01, de 13 de Março, D.R., II Série, de 24 de Abril de 2001. Contudo, tais arestos não
colidem com a perspectiva que agora se acolhe.
O Acórdão nº 390/04 versa
sobre uma questão que tem a ver com a recorribilidade de decisão que indeferiu
a arguição de nulidade de um acórdão proferido em segunda instância pela
Relação. Porém, ainda aí o Tribunal Constitucional invocou a não obrigatoriedade
de autonomização da questão da nulidade de decisão em relação à questão de
fundo e a natureza meramente procedimental ou processual de tais regras, o que
não acontece no caso. Trata‑se de uma situação que tem uma conexão com a
restrição de direitos, liberdades e garantias diferente da subjacente aos
presentes autos, a qual põe directamente em causa o prolongamento da prisão
preventiva.
O Acórdão nº 94/01, por seu
turno, respeita à recorribilidade em matéria cível apreciada no processo penal.
Trata‑se, pois, de questão de relevância diversa da dos presentes autos.
O Ministério Público invoca,
ainda, a questão relacionada com a possibilidade de a declaração de excepcional
complexidade do processo poder ocorrer no Supremo Tribunal de Justiça. Porém,
não só tal não é a questão dos autos, pelo que não caberia agora apreciá‑la,
como também sempre existiriam nesse caso argumentos de viabilidade do recurso
ou relacionados com a composição e posição na ordem dos tribunais judiciais do
Supremo Tribunal de Justiça que não podem ser transpostos, sem mais, para o
Tribunal da Relação.
Finalmente, também não
prejudica a consideração de violação do direito ao recurso da presente norma a
perspectiva expendida no Acórdão nº 49/2003, de 29 de Janeiro, D.R., II Série, de 16 de Abril de 2003,
quanto à não inconstitucionalidade do artigo 400º, alínea e) do Código de Processo Penal, em que sobre a mesma questão foi
afinal proferida uma decisão por duas instâncias diferentes, de nível
hierárquico diverso, na ordem dos tribunais judiciais. Já a decisão quanto à
especial complexidade do processo não define, de modo algum, a questão
controvertida objecto da causa, não sendo análoga à da desconformidade de
decisões sobre o objecto do processo.
Questão mais próxima da
agora controvertida é, antes, a que se relaciona com a própria decretação ou
manutenção da prisão preventiva, relativamente à qual o recurso está previsto
no Código de Processo Penal como meio de impugnação normal, nos termos do
artigo 219º, bem como o disposto no artigo 432º, alínea a), que prevê o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das
decisões proferidas pelas Relações em primeira instância. Por outro lado, o
Código de Processo Penal prevê, por exemplo, como decisão em primeira instância
pela Relação o julgamento de juízes de Direito [artigo 12º, nº 2, alínea a)], não deixando de existir, por isso,
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Embora sem que daí se retirem
argumentos sobre a inconstitucionalidade da norma em crise, tudo aponta para
que razões de semelhança justifiquem o mesmo regime, em que, sem dúvida, se
manifesta o direito ao recurso garantido pela Constituição.
7. Assim,
conclui‑se pela inconstitucionalidade por violação do nº 1 do artigo 32º
da Constituição da norma do artigo 400º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser
irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie pela primeira
vez sobre a especial complexidade do processo, declarando‑a.
III
Decisão
8. Em
face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento da questão de constitucionalidade relativa
às normas dos artigos 151º, 163º, 215º, nºs 1, alínea d), e 3, e 216º, do Código de Processo Penal;
b) Julgar inconstitucional por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição
da norma do artigo 400º, nº 1, alínea c),
do Código de Processo Penal. interpretada no sentido de ser irrecorrível uma
decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie pela primeira vez sobre a
especial complexidade do processo, declarando‑a,
concedendo, consequentemente, provimento ao recurso
e revogando a decisão recorrida que deverá ser reformulada de acordo com o
presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 30 de Novembro
de 2004
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos