ACÓRDÃO N.º 185/2004
Processo n.º 422/03
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário
Torres
Acordam
na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A.
intentou, em 25 de Outubro de 2002, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, contra a
B.,
acção emergente de contrato individual de trabalho, tendo em vista anular e
eliminar do seu cadastro a sanção disciplinar de “um dia de suspensão sem vencimento”, que reputa de ilícita e
abusiva, pedindo ainda a condenação da ré no pagamento de € 393,20 (€ 35,52 da
quantia ilicitamente descontada, € 355,20 a título de indemnização por se
tratar de sanção abusiva, e € 2,48 de juros de mora), acrescida dos juros
legais vincendos.
Em
audiência realizada em 9 de Dezembro de 2002, frustrou‑se tentativa de conciliação
das partes, tendo nesse mesmo acto a ré sido notificada para contestar, o que
ela fez, por excepção e por impugnação, invocando a prescrição do direito de impugnar
a sanção disciplinar, por ultrapassagem do prazo de um ano a contar da sua
aplicação, ocorrida em 6 de Junho de 2001, e sustentando a licitude e o
carácter não abusivo da mesma.
Atenta
a simplicidade da causa e face ao disposto no artigo 62.º, n.º 1, do Código de
Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 480/99, de 9 de Novembro
(CPT), o juiz do 1.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa dispensou a realização
de audiência preliminar e proferiu de imediato despacho saneador, julgando
procedente, nos termos conjugados dos artigos 496.º e 510.º, n.ºs 1, alínea b), e 3, 2.ª parte, ambos do Código de
Processo Civil, a excepção peremptória da prescrição invocada pela ré e
absolvendo esta do pedido. Tal decisão assentou na seguinte fundamentação:
“Para
a apreciação da excepção de prescrição invocada pela ré, importa atender à
seguinte factualidade, que se encontra provada, por acordo das partes e face à
prova documental junta aos autos:
1.
O autor foi admitido ao serviço da ré, mediante celebração de contrato de
trabalho sem termo, em 4 de Julho de 1979;
2.
... mantendo‑se ainda ao serviço da ré.
3.
Em 18 de Abril de 2001, o autor foi notificado da nota de culpa junta por cópia
a fls. 38;
4.
... à qual respondeu dentro do prazo que para o efeito lhe foi fixado, nos
termos do documento junto por cópia a fls. 40.
5.
Através do documento junto por cópia a fls. 27, recebido pelo autor em 6 de
Junho de 2001, a ré notificou o autor de que lhe foi aplicada a sanção
disciplinar de «um dia de suspensão sem
vencimento».
6.
... tendo‑lhe sido descontada a quantia correspondente a um dia de retribuição
(€ 35,32) no mês de Setembro de 2001.
A prescrição arguida pela ré constitui uma excepção peremptória, impeditiva dos efeitos jurídicos pretendidos pelo autor.
O Código
Civil não estabeleceu qualquer critério para distinguir a prescrição da
caducidade, devendo a distinção operar‑se mediante a interpretação das
disposições legais onde se fixem prazos para o exercício de direitos, procurando,
através da sua razão de ser e finalidade, se a lei pretende estabelecer um
prazo de prescrição, ou, antes, de caducidade (Antunes Varela, in Obrigações, pág. 149).
No
que respeita à prescrição, constituem seus requisitos gerais: a) a existência de um direito não
indisponível; b) que possa ser
exercido; c) mas que o não seja
durante o lapso de tempo estabelecido na lei; d) e que não esteja isento de prescrição (Menezes Cordeiro, in
Obrigações, 1980, pág. 157).
No
caso dos autos, entende a ré que o prazo para o autor impugnar a sanção
disciplinar que lhe foi cominada pela ré era de um ano a contar da aplicação
da sanção, qualificando tal prazo como de prescrição.
Compulsado
o Código de Processo do Trabalho, apenas se detecta, no artigo 170.°, o
estabelecimento de um prazo (de 15 dias) para impugnação judicial de decisão
disciplinar proferida em processo do contencioso das instituições de
previdência, abono de família e associações sindicais.
Todavia,
tal preceito não é de aplicação geral a todos os casos de impugnação de sanções
disciplinares. Antes resulta da inserção sistemática do mesmo, no Capítulo III
(sob a epígrafe Processo do contencioso
das instituições de previdência, abono de família e associações sindicais)
do Título VI, dedicado aos Processos
Especiais, do CPT, que o seu âmbito de aplicação está limitado aos
beneficiários de instituições de previdência e aos sócios de organismos
sindicais e pessoas por eles representadas.
Conforme
decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Maio de 1998, citado
pela ré (também disponível para consulta in
www.dgsi.pt/jstj), «o prazo previsto no artigo 164.° do CPT [de 1981] – (correspondente
ao actual artigo 170.° do CPT [de 1999]) – para
o exercício de acção de anulação de sanção disciplinar não se aplica às
reclamações por parte dos trabalhadores em relação às sanções aplicadas pela
sua entidade patronal. Nestes casos, o prazo de impugnação deverá ser o de um
ano contado desde a data de comunicação da aplicação da respectiva sanção».
Aí são invocados os seguintes fundamentos:
«Esta
solução é a que melhor se harmoniza com os princípios da estabilidade e certeza
do direito disciplinar, evitando que se fique vários anos – 10, 15... – sem se
saber se determinada sanção se mantém ou é anulada.
E
esta solução justifica‑se e harmoniza‑se, ainda, com o prazo fixado para a
impugnação do despedimento, que tem o prazo de um ano a contar do dia seguinte
ao da cessação do contrato dela resultante.
Finalmente,
é esta a solução preferível, tendo em conta a facilidade de prova, por não
deixar correr um prazo demasiado longo.»
No mesmo sentido, pode ver‑se o Acórdão do STJ de 4 de Julho de 1990, proferido no âmbito de uns autos que correram termos no Tribunal do Trabalho de Lamego, em que era autor C. e ré D..
Parece-nos
que é esta a solução mais ajustada, uma vez que se nos afigura não ser
passível de aplicação o disposto pelo artigo 38.° da LCT, adequado apenas para
a impugnação do despedimento, que é a sanção mais grave que pode ser cominada
ao trabalhador. De outro modo, uma sanção menos grave, como a dos autos,
poderia ser impugnada dentro do prazo de um ano a contar da cessação do
contrato de trabalho, ainda que aquele se tivesse mantido durante 10 ou 20 anos
após a aplicação da mesma, enquanto que o despedimento, apesar de ser muito
mais gravoso, apenas poderia ser impugnado no prazo de um ano.
Assiste,
pois, razão à ré quando considera que a presente acção foi intentada
extemporaneamente.
Decorre
da matéria assente que o autor foi notificado em 6 de Junho de 2001 da decisão
da ré de lhe aplicar a sanção disciplinar de «um dia de suspensão sem vencimento».
Compulsado o rosto da petição inicial, verifica-se que o carimbo comprovativo da data da entrada da mesma na secretaria deste Tribunal – registo n.° 6084 – refere o dia 25 de Outubro de 2002.
Logo,
quando a presente acção foi intentada já tinha decorrido o prazo de prescrição
de um ano de que o autor dispunha para impugnar a sanção que lhe foi cominada
pela ré.
O
artigo 323.° do Código Civil prescreve, no seu n.° 1, que «a prescrição interrompe‑se pela citação ou notificação judicial de
qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o
direito (...)».
In casu, tendo a acção sido proposta mais
de um ano depois da comunicação da decisão de aplicação da sanção disciplinar,
o autor só estaria em tempo para reagir judicialmente contra aquela sanção caso
se tivesse interrompido o prazo de prescrição aplicável – o que não se
verifica.
Pelos
motivos expostos, conclui-se que, à data da propositura da acção, e atento o
disposto pelo artigo 38.°, n.° 1, do Decreto‑Lei n.° 49 408, de 24 de
Novembro de 1969, já se encontravam prescritos os créditos invocados pelo
autor.”
Notificado
deste despacho, o autor interpôs o presente recurso, ao abrigo do artigo 70.º,
n.º 1, alínea b), da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada
pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98,
de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade – por violação dos
artigos 2.º e 9.º, alínea b)
(princípio da protecção da confiança dos cidadãos), 13.º (princípio da
igualdade) e 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) – da
norma do artigo 38.º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho,
aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969, “na interpretação segundo a qual o prazo
prescricional para a impugnação de sanções disciplinares é de um ano,
independentemente de o contrato de trabalho ter cessado ou não”. Mais
referiu que a inconstitucionalidade da interpretação normativa aplicada na
decisão recorrida não pôde ser suscitada pelo recorrente antes da prolação
desta decisão, pois a prescrição foi invocada pela ré, como excepção, na sua
contestação, e o artigo 60.º do CPT apenas admite resposta do autor à excepção
nos casos em que o valor da causa exceda a alçada do tribunal, o que no caso
não ocorre, uma vez que o valor da causa é de € 393,20; assim, “tendo sido julgada procedente a excepção de
prescrição, a douta sentença recorrida pôs termo à acção sem que o autor
pudesse defender‑se ou invocar a inconstitucionalidade da norma aplicada”.
Reconhecendo‑se
que, de facto, o recorrente devia ser considerado dispensado da suscitação da
questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida, por não
ter tido oportunidade processual para o fazer, foi determinada a apresentação
de alegações, tendo o recorrente finalizado as por si produzidas com a
formulação das seguintes conclusões:
“1.ª
– O prazo especial de prescrição dos créditos laborais é de um ano contado a
partir do dia seguinte ao da cessação do contrato de trabalho e encontra‑se
estabelecido no artigo 38.° da LCT (Decreto‑Lei n.° 49 408, de 24 de
Novembro de 1969).
Esse
prazo de prescrição abrange todos os créditos laborais emergentes do contrato
de trabalho, seja da sua execução, seja da sua cessação, quer sejam de natureza
estritamente pecuniária ou de outra natureza.
Aliás,
o prazo de impugnação do despedimento – de um ano contado a partir do dia
seguinte ao da cessação do contrato – resulta dessa norma, uma vez que não se
encontra estabelecido outro prazo especial para esse efeito.
2.ª
– A douta sentença recorrida julgou procedente a excepção de prescrição
invocada pela ré e absolveu‑a do pedido, apesar de continuar em vigor e em
execução o contrato de trabalho entre a ré e o autor, concluindo: «Pelos motivos expostos, conclui‑se que, à
data da propositura da acção, e atento o disposto pelo artigo 38.°, n.º 1, do
Decreto‑Lei n.° 49 408, de 24 de Novembro de 1969, já se encontravam prescritos
os créditos invocados pelo autor».
Porém,
contrariamente à consideração que esteve na base da douta decisão recorrida,
o prazo de prescrição do direito à reclamação dos créditos laborais é igual em
relação a todos esses créditos, seja qual for a sua natureza, isto é, é de um
ano contado a partir do dia seguinte ao da cessação do contrato.
3.ª
– À semelhança do que acontece em relação a certos direitos do menor, que
podem ser exercidos no prazo de um ano contado a partir da data em que o menor
atinge a maioridade, a fixação do termo inicial do prazo de prescrição dos
créditos laborais no momento da cessação do contrato de trabalho tem a sua
razão de ser no facto de o trabalhador se encontrar, durante a vigência do
contrato, numa situação de grande dependência em relação à entidade patronal,
encontrando‑se, por esse motivo, inibido de exercer os seus direitos de crédito
perante essa entidade.
Ora,
o que varia, em função da duração do contrato de trabalho, é o termo inicial
do prazo de prescrição e não o próprio prazo de prescrição, que é, em todos os
casos, de um ano.
4.ª
– Assim, se o prazo de prescrição começa a correr apenas com a cessação do
contrato de trabalho, como parece inegável, e se a razão de ser desse regime de
prescrição dos créditos laborais é a que acima se enunciou, então, na
interpretação que a douta sentença recorrida faz da citada norma do artigo
38.°, n.° l, do Decreto‑Lei n.° 49 408, de 24 de Novembro de 1969, o
crédito que o ora recorrente reclamou constituiria uma excepção em relação à
generalidade dos demais créditos laborais.
5.ª
– Ao pretender, alegadamente, estabelecer uma igualdade entre os prazos de
prescrição da impugnação do despedimento e da impugnação de sanções menos
graves que o despedimento, a douta sentença recorrida faz uma interpretação que
conduz, pelo contrário, a uma desigualdade, impondo ao trabalhador, para a
impugnação de sanções inferiores ao despedimento, um prazo diferente – e em
princípio menor – que o aplicável aos demais créditos laborais.
6.ª
– Em relação ao seu crédito, o trabalhador ficaria, atenta a ratio legis do artigo 38.°, n.° 1, do
Decreto‑Lei n.° 49 408, de 24 de Novembro de 1969, limitado no seu direito
fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.°
da CRP).
7.ª
– Por outro lado, atenta a formulação da citada norma do artigo 38.°, n.° 1, do
Decreto‑Lei n.° 49 408, de 24 de Novembro de 1969, na interpretação feita
pela douta sentença recorrida, tal norma viola o princípio da protecção da
confiança dos cidadãos (artigos 2.° e 9.°, alínea b), da CRP), na medida em que estabelece um regime que não tem na
sua letra, nem na economia do diploma em que se insere, qualquer
correspondência verbal, induzindo em erro os cidadãos e privando‑os, também
por essa via, do direito fundamental de acesso ao direito e tutela
jurisdicional efectiva.
8.ª
– Acresce que, nessa interpretação, a referida norma viola o princípio da
igualdade (artigo 13.° da CRP), porquanto, sem qualquer fundamento
constitucionalmente relevante, estabelece uma discriminação entre situações
relativamente às quais procedem as mesmas razões.
Com
efeito, é manifesto que, pelas razões acima apontadas, os princípios da
estabilidade e certeza do direito têm de ceder perante a subordinação do
trabalhador à entidade patronal, sendo certo que os princípios da estabilidade e certeza ao direito disciplinar,
invocados na douta sentença recorrida como categoria especial, não existem.
9.ª
– Pelo exposto, na interpretação feita pela douta sentença recorrida, a norma
do artigo 38.°, n.° l, do Decreto‑Lei n.° 49 408, de 24 de Novembro de 1969,
é inconstitucional, porque viola os princípios e direitos fundamentais da
igualdade, da protecção da confiança dos cidadãos e do acesso ao direito e à
tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 2.°, 9.°, alínea b), 13.° e 20.°, todos da Constituição
da República.”
A
ré, ora recorrida, não contra‑alegou.
Tudo
visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A questão de inconstitucionalidade
colocada a este Tribunal pode exprimir‑se da seguinte forma: viola a Lei
Fundamental a interpretação normativa (que a decisão recorrida ancorou no
artigo 38.º, n.º 1, da LCT, face à inexistência de norma legal expressa a
regular a questão, inexistência que se mantém no novo Código do Trabalho) de
acordo com a qual o prazo de impugnação judicial de decisão de sanção
disciplinar (de um dia de suspensão sem vencimento) prescreve no prazo de um
ano contado desde a data de comunicação da aplicação da respectiva sanção,
mesmo que o contrato de trabalho não haja cessado?
O
recorrente assenta esta questão de inconstitucionalidade na invocação de uma
tripla violação de direitos e princípios constitucionais: (i) violação do direito de acesso ao direito e de tutela
jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da CRP; (ii) violação do princípio da protecção da confiança dos cidadãos,
decorrente dos artigos 2.° e 9.°, alínea b),
da CRP; e (iii) violação do princípio
da igualdade, proclamado no artigo 13.º da CRP.
Antes
de mais, cumpre salientar que não compete ao Tribunal Constitucional, nesta
sede, pronunciar‑se sobre a correcção jurídica do entendimento perfilhado pela
decisão recorrida, mas apenas se tal interpretação normativa viola, ou não, os
referidos direitos e princípios constitucionais.
A
LCT estabelece, no seu artigo 38.º, n.º 1, a regra de que todos os créditos
resultantes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação se extinguem
por prescrição, decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou
o contrato de trabalho. Trata‑se de norma – mantida no artigo 381.º, n.º 1, do
novo Código do Trabalho – que encontra a sua justificação na presunção de que,
durante a vigência do contrato, o trabalhador não terá plena liberdade
psicológica para reclamar o que lhe é devido (cf., por todos, António Lemos Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12.ª edição,
Almedina, Coimbra, 2004, pág. 480).
Chegou
a suscitar alguma divergência doutrinal e jurisprudencial a questão de saber se
esse prazo prescricional era também aplicável à acção de impugnação judicial
de despedimento “nulo” ou “ilícito” e se os “créditos” referidos no citado
preceito abrangiam o direito à reintegração, mas acabou por se consolidar o entendimento
afirmativo, cuja conformidade constitucional foi reconhecida pelos Acórdãos
n.ºs 148/87 (Diário da República, II
Série, n.º 178, de 5 de Agosto de 1987, pág. 9674; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 367, pág. 203; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º
vol., pág. 701), 140/94 (Diário da
República, II Série, n.º 5, de 6 de Janeiro de 1995, pág. 238; Boletim do Ministério da Justiça, n.º
433, pág. 168; e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 27.º vol., pág. 287) e 97/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt)
do Tribunal Constitucional, nas perspectivas do direito ao trabalho, do direito
à segurança no emprego, do princípio da igualdade e do direito de acesso aos
tribunais.
O
problema que agora se coloca é, porém, distinto, não só por se tratar de sanção
disciplinar diversa da do despedimento, mas sobretudo por se questionar a imposição
de o direito de impugnação judicial de tal sanção ter de ser exercitado, sob
pena de extinção por prescrição, durante a vigência de facto do contrato de
trabalho, o que obviamente não acontecia com a impugnação do despedimento.
Só
foi possível localizar duas decisões dos tribunais superiores sobre este tema:
o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26 de Junho de 1989, assim sumariado
no Boletim do Ministério da Justiça,
n.º 388, pág. 602: “No silêncio da lei
quanto ao prazo para impugnar sanção disciplinar inferior ao despedimento, deve
entender‑se, face ao disposto no artigo 31.º, n.º 3, da Lei de Contrato do
Trabalho, que, só podendo a execução da sanção disciplinar ter lugar nos três
meses subsequentes à decisão, sob pena de perder validade, deverá a impugnação
ser feita no mesmo período de três meses”; e o acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça, de 13 de Maio de 1998, citado na decisão recorrida e publicado em Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, ano VI, 1998, tomo II, pág. 278, que decidiu
(com um voto de vencido do Ex.mo Cons. Sousa Lamas, sustentando não haver
prazo legal para o trabalhador impugnar a sanção disciplinar de suspensão de
trabalho) que “o prazo para impugnação
das sanções disciplinares aos trabalhadores pela sua entidade patronal é de um
ano a contar da aplicação das sanções”. Foi este último entendimento
(também sufragado por Albino Mendes
Baptista, Jurisprudência do
Trabalho Anotada, 3.ª edição, reimpressão, Quid Juris, Lisboa, 2000, págs.
268‑269) o acolhido na sentença recorrida.
2.2. Quanto à alegada violação do direito de acesso aos tribunais e à tutela
jurisdicional efectiva, há que considerar, como se explanou no citado
Acórdão n.º 140/94, que “o direito de
acesso aos tribunais não é violado pela simples fixação pelo legislador de um
prazo (seja ele de prescrição ou, antes, de caducidade) para o exercício”,
pois “essa violação só existiria se o
prazo fosse desadequado e desproporcionado (cf. os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 99/88
e 370/91, o primeiro publicado no Diário da República, II Série, n.º 193, de 22 de Agosto de 1988, o segundo no mesmo Diário, II Série, n.º 78, de 2 de Abril de 1992),
em termos de dificultar gravemente o
exercício concreto daquele direito, uma vez que, em tal caso, estar‑se‑ia
perante uma restrição ao direito de
acesso aos tribunais e não em face de um simples condicionamento ao exercício desse direito”.
O
prazo de um ano para impugnar uma sanção de gravidade inferior à de
despedimento, a contar da data da comunicação da aplicação dessa sanção, não é,
manifestamente, um prazo desadequado ou desproporcionado, que dificulte
gravemente o exercício desse direito impugnatório.
Dir‑se‑á
que o que restringe o exercício do direito não é a duração do prazo, mas antes
a circunstância de o mesmo decorrer na vigência do contrato de trabalho, em
que se presume a inibição do trabalhador em litigar contra a entidade empregadora,
sendo esta a razão pela qual o artigo 38.º, n.º 1, da LCT manda contar o prazo
de prescrição da generalidade dos créditos do trabalhador apenas a partir da
cessação de facto da relação laboral.
A
este respeito – e independentemente da questão de saber se o regime de
prescrição dos créditos laborais constante do artigo 38.º, n.º 1, da LCT é o
único constitucionalmente admissível – há que reconhecer que, no que respeita à
impugnação de sanções disciplinares, ocorrem ponderosas razões de paz jurídica, a reclamar que não se
deixe protelar excessivamente no tempo a solução desses litígios, que tornam
constitucionalmente conforme a interpretação acolhida na decisão recorrida de
que o prazo de tal impugnação corre mesmo na vigência da relação laboral. Essa
preocupação de paz jurídica é evidenciada pelos apertados prazos, legalmente
impostos à entidade empregadora, de início do procedimento disciplinar (60 dias
subsequentes ao conhecimento da infracção – n.º 1 do artigo 31.º da LCT), de
prolação da decisão punitiva (30 dias após a conclusão da instrução – n.º 8 do
artigo 10.º do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho
e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo, aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 64‑A/89, de 27 de Fevereiro) e de execução da sanção
disciplinar (3 meses subsequentes à decisão punitiva – n.º 3 do artigo 31.º da
LCT).
De
resto, e sem excluir a possibilidade da ocorrência de situações em que esse
constrangimento exista, há que considerar que, sendo a apontada inibição do
trabalhador em accionar a entidade empregadora susceptível de perder
intensidade à medida que cresce a empresa em que está inserido, por diminuir
o risco de represálias, mais próprio de empresas de reduzida dimensão, no
presente caso está em causa uma empresa como a Carris, com centenas ou milhares de trabalhadores. E, por
outro lado, importa não esquecer que o recorrente intentou a presente acção na
vigência do seu contrato de trabalho; fê‑lo, porém, para além do prazo de um
ano e só por não ter respeitado este dilatado prazo – o que não pode deixar de
ser imputado a negligência sua – é que viu soçobrar a sua pretensão.
Não
se pode, assim, considerar verificada a alegada violação do direito de acesso
aos tribunais e de tutela jurisdicional efectiva.
2.3. Quanto à alegada violação do princípio da protecção da confiança dos
cidadãos, que o recorrente faz decorrer dos artigos 2.° e 9.º, alínea b), da CRP, assinalou‑se no Acórdão n.º
1011/96 (Diário da República, II
Série, n.º 288, de 13 de Dezembro de 1996, pág. 17 303) que “independentemente da questão de saber se o
«princípio da protecção da confiança» é invocável ou não em face de uma mudança
de uma corrente jurisprudencial”, o mesmo “garante inequivocamente um mínimo de certeza e segurança das pessoas
quanto aos direitos e expectativas criados no desenvolvimento das relações
jurídicas, podendo afirmar‑se que, com base em tal princípio, não é consentida
uma normação tal que afecte de forma inadmissível, intolerável, arbitrária
ou desproporcionadamente onerosa aqueles
mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar
(cf. os Acórdãos n.ºs 287/90, 303/90, 339/90, 352/91 e 365/91, publicados no Diário
da República, II Série, de 20 de Fevereiro
de 1991, I Série, de 26 de Dezembro de 1990, II Série, de 17 de Junho de 1991,
II Série, de 17 de Dezembro de 1991, e II Série, de 27 de Agosto de 1991,
respectivamente)”.
Ora,
no presente caso, dando de barato que o princípio de protecção da confiança
também possa operar em relação à jurisprudência, não implica manifestamente
uma afectação intolerável das expectativas do recorrente o entendimento de que
a impugnação judicial das sanções disciplinares de gravidade inferior à de
despedimento prescreve no prazo de um ano a contar da notificação da aplicação
da sanção, independentemente de cessação do contrato de trabalho, tanto mais
que, como se registou, não se localizou, nem o recorrente a apontou, qualquer
anterior decisão judicial a sustentar entendimento oposto (sobre o aludido
princípio, cf., por último, o Acórdão n.º 556/2003, no Diário da República, II Série, n.º 5, de 7 de Janeiro de 2004, pág.
171).
Improcede,
assim, este segundo fundamento de inconstitucionalidade invocado pelo
recorrente.
2.4. Por último, quanto à alegada
violação do princípio da igualdade, a
decisão recorrida já salientou que os “créditos” respeitantes à impugnação de
sanção disciplinar não são equiparáveis à generalidade dos “créditos” (em
regra, de carácter estritamente pecuniário) referidos no artigo 38.º, n.º 1, da
LCT: relevam no domínio disciplinar especiais considerações de estabilidade e
certeza, que tornam particularmente inconveniente a manutenção durante anos de
uma situação de indefinição quanto à persistência da sanção aplicada, tendo
ainda em conta a fragilidade da prova, que se vai diluindo com o decurso do
tempo.
Como
já se assinalou (cf. supra, 2.2), a lei é particularmente rígida na imposição à
entidade empregadora de apertados prazos de início do procedimento disciplinar,
de prolação da decisão punitiva e de execução da sanção disciplinar, o que
justifica que, relativamente a este tipo de decisões, não se dilate
indefinidamente o prazo da sua impugnação pelo trabalhador.
Assim
sendo, a diferença deste regime, comparado com o regime do artigo 38.º, n.º 1,
da LCT para a generalidade dos “créditos” do trabalhadores, surge como
materialmente fundada, pelo que não ocorre violação do princípio da igualdade.
3.
Decisão
Em
face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma,
que a decisão recorrida reportou ao artigo 38.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato
Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 49 408, de 24 de
Novembro de 1969, de acordo com a qual o prazo de impugnação judicial de
decisão de sanção disciplinar de um dia de suspensão sem vencimento prescreve
no prazo de um ano contado desde a data de comunicação da aplicação da
respectiva sanção, mesmo que o contrato de trabalho não haja cessado; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso,
confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Março de 2004.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos