ACÓRDÃ0
Nº 99/02
Proc. nº 482/01
1ª Secção
Rel.: Consº Luís Nunes de
Almeida
Acordam
na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. L... foi condenado no 2° Juízo Criminal da Comarca
de Lisboa, por sentença de 24 de Março de 2000, como autor material de um crime
de exploração de jogo ilícito, previsto e punido pelos artigos 3°, nº 1, 4°, nº
1, alínea g), e 108° do Decreto-Lei n°
422/89, de 2 de Dezembro. Operada a soma das penas parcelares, foi a pena
global fixada na multa única de 155.000$00, subsidiariamente em 23 dias de
prisão.
Desta sentença
interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo
suscitado, na respectiva motivação, a questão da inconstitucionalidade das
disposições com base nas quais foi condenado.
Alegou então o
recorrente:
III – Finalmente, impõe-se a
absolvição do arguido, por inconstitucionalidade material do art. 108°, n° 1,
conjugado com os arts. 3° e 4°, n° 1, alínea g) do D.L. 422/89-12-02,
resultante da violação do princípio da proporcionalidade das penas, consagrado
no art. 18° da Constituição.
É que, como bem se acentuou já em
sentença do 4° Juízo Criminal de Lisboa, “retira-se, assim, da finalidade da
proibição de exploração de jogos de fortuna ou azar, fora dos locais legalmente
autorizados, que tal proibição se mostra despida de conteúdo ético. De outro
modo, não se compreenderia que o legislador proibisse a exploração de jogos de
fortuna e azar nuns locais e o permitisse noutros. Com efeito, se essa
exploração fosse ético-socialmente desvaliosa, o legislador tê-la-ia proibido
pura e simplesmente, independentemente do local onde fosse praticada. Ao não o
fazer limitando-se a proibi-la, apenas, em determinados locais, é evidente que
o que está em causa é a salvaguarda de receitas”.
(...)
O
legislador não considera, manifestamente, o jogo socialmente pernicioso!
O
que o legislador considera é que o jogo deve gerar receitas para o Estado e os concessionários
do jogo!
E, quanto às máquinas, o que quer é
impedir a concorrência nos casinos e, assim, salvaguardar as receitas ... dos concessionários dos casinos!
Repare-se na curiosa técnica
legislativa:
a) No art° 3° define-se que “a exploração
e prática de jogos de fortuna ou azar só são permitidos nos casinos existentes
em zonas de jogo (…)” legalmente autorizadas;
b) No art° 4°, elenca, de a) a f) um
conjunto de jogos nitidamente de fortuna ou azar;
c) Na alínea g) inventa outro
tipo de situação que legalmente equipara a jogo de fortuna ou azar, o de
“máquinas que, não pagando directamente fichas ou moedas (…)”.
Ora, como é evidente, nenhuma
máquina que não pague prémios em fichas ou moedas é explorada ou explorável em
casino autorizado!
(...)
(...) o legislador (...) sabe
perfeitamente que as máquinas aí previstas não são nem nunca serão
utilizadas ou utilizáveis em zonas de jogo legalmente autorizadas!
O
seu único objectivo é proibir que, fora dessas zonas, se utilizem essas
máquinas – máquinas que não dão prémios, nem em fichas, nem em dinheiro,
note-se!
Obviamente
que apenas e tão só para proteger os casinos da concorrência dessas
máquinas (pois elas não dão prémios).
(...)
Ou
seja, sob a aparência de defesa do cidadão, pretende-se é levá-lo a jogar... no
casino!
O
que se protege com esta norma? Apenas e tão só as receitas dos
concessionários dos casinos!
(...)
Este
propósito de protecção aos concessionários de zonas de jogo não é claramente a
tutela de um princípio ético.
Também (verdade se diga) não tem em
si um desvalor ético: é aceitável que, impondo o Estado ao concessionário de
zonas de jogo o pagamento de vultosas quantias, o Estado proteja
a actividade do concessionário.
simplesmente,
Viola o princípio da proporcionalidade ínsito no art. 18°, n° 2 da Constituição
que efectue essa protecção através de sanção penal.
Sancionar penalmente conduta que não
é ético-socialmente desvaliosa, mas que foi apenas proibida para proteger
determinados interesses económicos (dos concessionários das zonas de jogo),
viola claramente, rudemente, brutalmente o princípio da
Proporcionalidade.
Atentos os objectivos prosseguidos
pela proibição, constitucionalmente apenas é admissível uma sanção de natureza
contra-ordenacional – é para isso que ela serve !!! -, nunca de natureza
Criminal.
E se o legislador agiu de uma forma
desproporcionada, irrazoável, logo inconstitucional, deve o Tribunal usar o
poder que lhe detém e que a Constituição lhe impõe:recusar a aplicação da
norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
E concluiu
deste modo:
(...)
9. O art. 108°, n° 1, aplicado
conjugadamente com os artigos 3°, n° 1 e 4°, n° 1, alínea g), todos do DL
422/89-12-02, está viciado de inconstitucionalidade material, por violação do
princípio da proporcionalidade das penas, consagrado no art. 18° da
Constituição.
10. Com efeito, a finalidade da
proibição da exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente
autorizados está despida de conteúdo ético, pois de outro modo não se
compreenderia que o legislador proibisse a exploração de jogos de fortuna ou
azar nuns locais e os permitisse noutros, nem que permitisse, eufemisticamente
chama de “jogos sociais”, o País seja um autêntico casino-gigante, com a
apologia dos Jackpots e das Rodas dos Milhões e das Santas Casas nas televisões e nos
anúncios das rádios e nos cartazes e em tudo o que é sítio.
11. A única finalidade da proibição
é a da salvaguarda de receitas para os concessionários dos jogos e, no caso,
particularmente através da proibição de concorrência aos casinos.
12. Mais: a norma até obriga
aquele que gosta de jogar videopoker a não o poder fazer por diversão, em
qualquer salão de jogos e a ter de ir jogar a dinheiro nos casinos.
13.
Assim, atento o objectivo de protecção do lucro de alguns da norma, e não a
protecção de qualquer valor ético, consagrar sanção criminal viola claramente o
sentido da proporcionalidade ínsito no art. 18°, n° 2 da Constituição.
14. Com efeito, apenas é admissível
sanção contra-ordenacional – é para isso que o direito de mera ordenação social
serve -, nunca de natureza criminal.
2. O Tribunal da Relação de Lisboa
negou provimento ao recurso, por
acórdão de 22 de Fevereiro de 2001.
Aí se
apresentam, inter alia, as seguintes razões:
Ao contrário do que pretende o
recorrente, a proibição do jogo fora dos casinos tem outras finalidades que não
a de proibir a concorrência desleal aos titulares da concessão de jogo.
Desde logo, surge a finalidade de
melhor proteger os menores de 18 anos, os incapazes, inabilitados e culpados de
falência fraudulenta que não tenham sido reabilitados, e todos os demais
cidadãos com propensão para o vício do jogo que nos casinos podem, até por sua
iniciativa, solicitar ao Inspector geral de jogos que lhes impeça o acesso às
salas de jogos.
Desta enumeração meramente
exemplificativa resulta bem claro que a proibição de jogo fora dos casinos tem
por finalidade proteger o cidadão mais incauto e desprevenido, bem como os
menores, da atracção sobre eles exercida pelo jogo, com todos os problemas que
lhe são inerentes se o utilizador dos mesmos tiver propensão para o jogo, desde
os empréstimos superiores às suas possibilidades de pagamento a outras
vicissitudes, mais controláveis (ainda que não completamente) se o jogo apenas
for permitido em determinados locais com concessão para o efeito, e que para a
manter têm de obedecer a regras estritas.
Por outro lado, não vislumbramos que
direito fundamental do recorrente esteja posto em crise por tal legislação, e
que tenha sido ofendido pela alegada violação do princípio da
proporcionalidade. É que nenhum direito fundamental seu pode ter como
consequência a possibilidade de violação dos direitos fundamentais de terceiro
por parte do recorrente.
A nosso ver, a legislação cuja
inconstitucionalidade o recorrente pretende ver declarada tem como objectivo
proteger os incautos da possibilidade de acabarem explorados pelo jogo através
do qual apenas pretendiam passar umas horas de lazer.
Daí que nenhuma violação do
princípio da proporcionalidade na fixação das penas exista, nem os jogos na
televisão se lhe possam sequer comparar pois esses são, pelo menos,
fiscalizados pelo Governo Civil respectivo.
3. Inconformado, interpôs o arguido
recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na alínea b) do
n° 1 do artigo 70° da LTC.
Nas suas alegações, continua a defender a
inconstitucionalidade do artigo 108°, n° 1, conjugado com os artigos 3°, n° 1,
e 4°, n° 1, alínea g), do Decreto-Lei n° 422/89, por violação do princípio da
proporcionalidade ínsito no art° 18°, n° 2, da Constituição.
Essas alegações
concluem da forma seguinte:
1. O interesse juridicamente
protegido pelas disposições conjugadas dos arts. 108°, n° 1 – 3°, n° 1 e 4°, n°
1, al. g) do DL n° 422/89-12-02 é a tutela dos interesses dos concessionários
de jogo.
2. Este interesse não é
constitucionalmente protegido.
3. Logo, não é admissível restrição
ao direito fundamental “liberdade individual” através de sancionamento penal em
pena de prisão.
4. De qualquer forma, ainda que
protegido constitucionalmente fosse aquele interesse ou também fosse outro
interesse também tutelado por tais normas, sempre a restrição ao direito
“liberdade individual” operada por sancionamento penal com pena de prisão é
desproporcionada, por desnecessária.
5. Com efeito, mostra-se ultrapassada
a medida da necessidade admitida pelo art. 18°, n° 2 da Constituição,
com tal tutela penal.
6. Adequada, e à disposição do
legislador, seria apenas tão só a tutela por via de sanção
contra-ordenacional, a exemplo do que abundantemente existe no Ordenamento
Jurídico Português.
7. Consequentemente, deve ser
recusada a aplicação, por inconstitucionalidade material, das referidas normas
conjugadas, por violação do art. 18°, n° 2 da Constituição e do princípio da
proporcionalidade nele ínsito.
Por seu turno,
o Ministério Público sublinha o seguinte nas suas contra-alegações:
Não
questiona, aliás, em rigor, o recorrente a ilicitude da actividade que exerceu
e com base na qual foi condenado – já que expressamente admite a sua
relevância, pelo menos no domínio contraordenacional – mas tão-somente a
criminalização do facto, traduzida na possibilidade de sancionamento com uma
pena privativa da liberdade.
Existe, porém – como vem, aliás,
reconhecendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional – uma ampla margem de
discricionariedade legislativa na precisa delimitação de fronteiras entre o
ilícito penal e os demais direitos sancionatórios públicos – só em situações
limites se podendo considerar violadora dos princípios da necessidade e proporcionalidade
a criminalização de determinados comportamentos (v.g. acórdãos 204/94, 59/95,
527/95) – pelo que incluir certo e determinado ilícito no domínio do direito
penal ou prevê-lo apenas no domínio dos direitos contravencional ou
contraordenacional dependerá, em larga medida, de um juízo relativamente
discricionário do legislador ordinário (desde que, naturalmente, tal
entendimento e valoração não afronte manifestamente o princípio da
necessidade).
Tudo visto,
cumpre decidir.
II
4. O objecto do presente recurso é constituído pelas
normas conjugadas dos artigos 3°, n° 1, 4°, n° 1, alínea g), e 108°, n° 1, do
Decreto-Lei n° 422/89 (Lei do Jogo),
cuja constitucionalidade já foi, aliás, examinada – mas tão-só face ao
parâmetro constitucional do princípio da tipicidade - no Acórdão n° 93/01
(publicado no Diário da República, II
Série, de 5 de Junho de 2001).
São do seguinte
teor as referidas disposições legais:
Artigo 3°
1 – A exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são
permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário
criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos
6° a 8°
(...)
Artigo 4°
1 – Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos
seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
(...)
g)
Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas,
desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como
resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
(...)
Artigo 108°
1 – Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna
ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2
anos e multa até 200 dias.
(...)
Conforme se
referiu, este Tribunal analisou, no citado Acórdão nº 93/01, a
constitucionalidade deste bloco normativo, tendo então sido apenas confrontado
com a questão da eventual violação do princípio da tipicidade, tendo concluído
pela não desconformidade consitucional das normas impugnadas. No entanto, não
estando o Tribunal Constitucional vinculado pelo princípio do pedido no que se
refere aos fundamentos da inconstitucionalidade, nada o impedia – se o
considerasse necessário - de ter analisado as disposições criticadas à luz de
outros princípios constitucionais, nomeadamente o da proporcionalidade ou da
necessidade das penas, sendo certo, porém, que o não fez e que tais questões
nem sequer foram evocadas no aresto em causa; se daí se pode extrair que este
Tribunal não encontrou então, qualquer motivo para suspeitar, prima facie, da existência de outros
possíveis fundamentos de inconstitucionalidade, tal não o dispensa, todavia, de
dever agora apreciar ex professo os
fundamentos aduzidos ex novo pelo
recorrente.
Esses
fundamentos – recorde-se – resumem-se ao seguinte:
-
as normas questionadas violam o princípio
da necessidade das penas, por ser suficiente a punição contra-ordenacional
do ilícito em causa, pois que ele não atinge qualquer interesse
constitucionalmente protegido;
-
de todo o modo, a punibilidade desse ilícto com pena de prisão
configura-se como excessiva, donde decorre igualmente a violação do princípio da necessidade das penas, bem
como do princípio da proporcionalidade.
5. O princípio da necessidade da pena decorre do preceituado no artigo
18º, nº 2, da Lei Fundamental, segundo o qual «a lei só pode restringir os
direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na
Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». Encontra-se,
assim, umbilicalmente ligado ao princípio
da proporcionalidade.
Este Tribunal
tem, aliás, reconhecido que a Constituição acolhe o princípio «da necessidade
(para defesa dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) ou da máxima
restrição (compatível com aquela defesa) das penas e das medidas de segurança
(artigo 18°, n°s 2 e 3)», sendo certo que «por serem as sanções penais aquelas
que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser
evitadas, na existência e na medida, sempre que não seja certa a sua
necessidade» (Acórdão n° 59/85, Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 30º vol., págs. 96-97).
E no Acórdão nº
634/93 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 26º vol., págs. 211-212) já se escrevera:
Seja como for, uma abordagem mais
incisiva da matéria em causa é, porém, a que pode ser feita à luz do princípio
da subsidiariedade do direito penal (ou princípio da máxima restrição das
penas) que, como é sabido, limita a intervenção da norma incriminadora aos
casos em que não é possível, através de outros meios jurídicos, obter os fins
pretendidos pelo legislador.
É certo que o princípio da
subsidiariedade do direito penal não resulta expressamente das normas que
correspondem à chamada «constituição penal» (artigos 27º e seguintes da
Constituição). Todavia, ele não é mais do que uma aplicação, ao direito penal e
à política criminal, dos princípios constitucionais da justiça e da
proporcionalidade, este aflorando designadamente no artigo 18º, nº 2, da
Constituição, e ambos decorrentes, iniludivelmente, da ideia de Estado de
direito democrático, consignada no artigo 2º da Lei Fundamental.
Segundo Jescheck (Tratado de
Derecho Penal – Parte General, trad., Bosch, 1986, p. 34), o princípio da proporcionalidade dos meios
(proibição do excesso), também com consagração constitucional no direito
alemão, refere-se ao conceito de Estado de direito material e foi introduzido
expressamente no direito criminal como pressuposto de determinação das medidas
penais. Deste princípio, bem como dos da protecção da dignidade da pessoa
humana e da protecção geral da liberdade, resulta a limitação do Direito Penal
à intervenção necessária para «assegurar a convivência humana na comunidade».
Como é sabido, entre nós, a consagração
constitucional destes princípios não merece contestação desde a revisão
constitucional de 1982.
(...)
É que, como afirma o Prof.
Figueiredo Dias, «num Estado de Direito material, de raiz social e democrática,
o direito penal só pode e deve intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis
das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da
personalidade de cada homem» («O sistema sancionatório do Direito Penal
Português no contexto dos modelos da política criminal», Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pp. 806/807). Daqui decorre, para o mesmo autor,
que não devem constituir crimes – ou, sequer, caber no objecto do direito penal
– as condutas entre outras, que «violando embora um bem jurídico, possam ser
suficientemente contrariadas ou controladas por meios não criminais de política
social; com o que a necessidade social se torna em critério decisivo de intervenção do
direito penal: este, para além de se limitar à tutela de bens jurídicos, só
deve intervir como última ratio da política social» («O Movimento da
Descirminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social» Jornadas
de Direito Criminal – O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos
Judiciários, p. 323).
Pode, assim, reconhecer-se que
haverá que pesar os diversos bens e valores em causa para efectuar uma
«ponderação de interesses segundo as circunstâncias do caso concreto», para
averiguar «se o sacrifício dos interesses individuais que a ingerência comporta
mantém uma relação razoável ou proporcionada com a importância do interesse
estatal que se trata de salvaguardar», já que «se o sacrifício resulta
excessivo a medida deverá ser considerada inadmissível, ainda que satisfaça os
restantes pressupostos e requisitos decorrentes do princípio de
proporcionalidade» (Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, Proporcionalidad
y Derechos Fundamentales en el Processo Penal, Colex, p. 225).
O recurso a meios penais está, pois,
constitucionalmente sujeito a limites consideráveis. Consistindo as penas, em
geral, na privação ou sacrificio de determinados direitos (maxime, a privação da liberdade, no caso da prisão), as medidas
penais só são constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e proporcionadas à protecção de determinado
direito ou interesse constitucionalmente protegido (cfr. artigo 18° da
Constituição), e só serão constitucionalmente exigíveis quando se trate de
proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e essa
protecção não possa ser suficiente e adequadamente garantida de outro modo.
A este
propósito, mas arrancando já para uma outra perspectiva, Maria Fernanda
Palma (Constituição e Direito Penal -
As questões inevitáveis, Perspectivas
Constitucionais - Nos 20 anos da Constituição de 1976, Vol.II, Coimbra
Editora, 1996) afirma:
Há, com efeito, limites claros à
opção criminalizadora. As sanções criminais não podem ser conexionadas com um
ilícito puramente civil (por exemplo, violação de direitos de crédito), laboral
ou disciplinar. Só onde estejam em causa bens com relevância social externa,
atinentes aos valores da sociedade em geral, é que o Direito Penal pode
legitimamente intervir.
Assim,
o Direito Penal pressupõe a dignidade punitiva das condutas que prevê, definida
pela essencialidade do bem lesado ou posto em perigo, na perspectiva das
condições da existência e realização dos fins do Estado de direito democrático,
e pelo desvalor das condutas incriminadas, na dimensão de uma clara gravidade
ética.
Por outro lado, a Constituição exige
a carência efectiva de tutela penal das condutas incriminadas, a inexistência
de meios alternativos eficazes de protecção jurídica.
Por seu lado, Figueiredo
Dias e Costa Andrade, (Direito Penal
- Questões fundamentais - A doutrina geral do crime, plicop., 1996),
ensinam:
A limitação da intervenção penal
acabada de referir, independentemente do mandamento expresso contido no artigo
18°-2 da CRP, derivaria sempre aliás do princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade em sentido amplo que,
como é sabido, faz parte dos princípios inerentes ao Estado de direito. Uma vez
que o direito penal utiliza, com o arsenal das suas funções específicas, os meios
mais onerosos para os direitos e as liberdades das pessoas, ele só pode
intervir nos casos em que todos os outros meios da política social, em
particular da política jurídica, se revelem insuficientes e inadequados.
Quando assim não aconteça aquela intervenção pode e deve ser acusada de
contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de
violação do princípio da proibição de
excesso. Tal sucederá, p. ex., quando se determine a intervenção penal para
protecção de bens jurídicos que podem ser suficientemente
tutelados por intervenção dos meios civis (a legitimidade ou ilegitimidade
de criminalização do cheque sem provisão constitui, a este propósito, um
exemplo instrutivo), pelas sanções do direito administrativo (entrando aqui, de
pleno, toda a controvérsia sobre as fronteiras que devem separar o direito
penal do direito de mera ordenação social ou das contra-ordenações: cf. infra) ou do direito disciplinar.
Como o mesmo sucederá sempre que se demonstre a inadequação das sanções penais para prevenção de determinados
ilícitos, nomeadamente sempre que a criminalização de certos comportamentos
seja factor da prática de muitíssimas mais violações do que aquelas que aquela
se revela susceptível de evitar (o que se sucede sobretudo no domínio dos
criminologicamente “crimes sem vítima” como, v.g., o consumo de drogas ou de
álcool, a prostituição, a pornografia, etc.); caso em que fica próxima a
afirmação de que a prevenção e controlo de tais comportamentos, quando se
repute socialmente desejável, deve ser deixada por inteiro à intervenção de meios não
penais de controlo social. Neste sentido se pode e deve afirmar, em definitivo, que a função
precípua do direito penal – e consequentemente também o conceito material de
crime – reside na tutela subsidiária (de
ultima ratio) de bens jurídicos.
E o Tribunal
Constitucional, mais recentemente, afirmou com clareza (Acórdão n° 108/99, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42º
vol., págs. 521-522):
O direito penal, enquanto direito de
protecção,
cumpre uma função de ultima ratio. Só se justifica, por isso, que intervenha para
proteger bens jurídicos - e se não for possível o recurso a outras medidas
de política social, igualmente eficazes, mas menos violentas do que as sanções
criminais. É, assim, um direito enformado pelo princípio da
fragmentariedade,
pois que há-de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à
protecção das condições sociais indispensáveis ao viver comunitário. E
enformado, bem assim, pelo princípio da subsidiariedade, já que, dentro da panóplia
de medidas legislativas para protecção e defesa dos bens jurídicos, as sanções
penais hão-de constituir sempre o último recurso.
A
necessidade social apresenta-se, deste modo, como critério
decisivo da
intervenção do direito penal. No dizer de SAX (citado por EDUARDO CORREIA,
loc.cit.), a necessidade da pena surge “como o caminho mais humano para proteger
certos bens jurídicos”. (Para maiores desenvolvimentos sobre esta questão, cf.
o citado Acórdão n° 83/95, publicado no Diário da República,II série, de 16 de Junho de
1995).
Este princípio da necessidade – que, no dizer de EDUARDO
CORREIA (“Estudos sobre a reforma do direito penal depois de 1974”, in Revista de
Legislação e de Jurisprudência, ano 119°, pág. 6), marca o “limite do âmbito do direito penal” –
decorre do n° 2 do artigo 18° da Constituição. (...)
Mas
então, como adverte FIGUEIREDO DIAS (“O sistema sancionatório no direito penal
português”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, I, Boletim da
Faculdade de Direito, número especial, Coimbra, 1984, página 823), há-de observar-se “uma
estrita analogia entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos
bens jurídico-penais”, ficando toda a intervenção penal subordinada “a um
estrito princípio de necessidade”. “Só por razões de prevenção geral,
nomeadamente de prevenção geral de integração – sublinha – se pode justificar a
aplicação de reacções criminais”.
Idêntico
é o pensamento de JOSÉ DE SOUSA E BRITO (“A lei penal na Constituição”, in Estudos
sobre a Constituição, 2° vol., Lisboa, 1978, pág. 218), que escreve: “Entende-se que as
sanções penais só se justificam quando forem necessárias, isto é,
indispensáveis, tanto na sua existência, como na sua medida, à conservação e à
paz da sociedade civil”.
Pode, pois,
dar-se como assente que os princípios da proporcionalidade
e da necessidade da pena postulam
que a norma penal, sobretudo quando recorre a penas privativas da liberdade,
deve constituir uma última instância
dos meios de tutela estadual dos valores ético-sociais constitucionalmente
protegidos.
6. Contudo, não se deve simultaneamente
perder de vista que o juízo de constitucionalidade se não pode confundir com um
juízo sobre o mérito da lei, pelo que não cabe ao Tribunal Constitucional
substituir-se ao legislador na determinação das opções políticas sobre a
necessidade ou a conveniência na criminalização de certos comportamentos.
Com efeito,
como se assinalou no já citado Acórdão nº 634/93, «o juízo sobre a necessidade
do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se
há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade».
Consequentemente, a limitação da liberdade de conformação legislativa, no que
se refere à opção de criminalizar determinada conduta, só pode «ocorrer quando
a punição criminal se apresente como manifestamente
excessiva».
Neste mesmo
sentido, Costa Andrade (O novo
Código Penal e a moderna criminologia, Jornadas de Direito Criminal,
Centro de Estudos Judiciários, fase 1, Lisboa, 1983, nota 34, pág. 228),
refere:
(...)
importa,acima de tudo, salvaguardar o “primado político do legislador” (Bachof)
nos espaços de discricionariedade decorrentes do princípio da subsidiariedade.
A sub-rogação de qualquer outro órgão neste domínio, designadamente do Tribunal
Constitucional, representaria uma questionável transposição das fronteiras
entre o jurídico e o político e uma violação do princípio da separação dos
poderes. Como refere Bachof, deve reservar-se ao legislador a competência para
definir os objectivos políticos e os critérios de adequação, como assumir os riscos
pelas expectativas ou prognósticos sobre cuja antecipação assentam as suas
decisões normativas.
Com efeito,
como sublinha J.J. Gomes Canotilho (Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 3° ed., Coimbra, 1999, pág. 876),
a «política deliberativa sobre as políticas da República pertence à política e
não à justiça»; e, por isso mesmo, no dizer de Jorge Miranda, ao juiz
constitucional não compete «apreciar a oportunidade política desta ou daquela
lei ou a sua maior ou menor bondade para o interesse público», mas tão-só
averiguar «a correspondência (ou não descorrespondência) de fins, a
harmonização (ou não desarmonização) de valores, a inserção (ou não
desinserção) nos critérios constitucionais» (Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, Coimbra Editora, 2001,
págs. 43-44), sem «transformar o juízo de constitucionalidade em juízo de
mérito em que se valora se a lei cumpre bem ou mal os fins por ela própria
estabelecidos» (idem, vol. II,
Coimbra, 1991, pág. 342).
Nesta
conformidade, no mencionado Acórdão n° 108/99, numa linha jurisprudencial que
aqui se adopta e reitera, concluiu-se que «quando, pois, se não se esteja em
presença de uma situação de excesso – ou, pelo menos, não seja manifesto que tal aconteça – a norma
incriminadora não pode ser censurada sub
specie constitutionis, em nome do princípio
da proporcionalidade».
Em suma, também
em matéria de criminalização, o legislador não beneficia de uma margem de
liberdade irrestrita e absoluta, devendo manter-se dentro das balizas que lhe
são traçadas pela Constituição; mas no controlo do respeito pelo legislador
dessa ampla margem de liberdade de conformação, com fundamento em violação do
princípio da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional só deve proceder à
censura das opções legislativas manifestamente arbitrárias ou excessivas.
No caso dos
autos, tal significa que importa, desde logo, determinar se a punição criminal
da exploração de jogo ilegal constitui algo de intrinsecamente avesso ou indiferente às valorações ético-sociais que
decorrem dos interesses juridico-constitucionalmente protegidos.
7. A repressão penal da exploração – e
da própria prática – dos jogos de azar
remontará ao Direito Romano, tendo-se acentuado, após um breve período de maior
tolerância, no final da Idade Média. É que a «difusão do jogo e os graves
inconvenientes provocados pela paixão do jogo – litígios, rixas e delitos,
fraudes e enganos múltiplos para garantir a vitória à outrance, a que não foram insensíveis nobres e sacerdotes,
acolhendo estes últimos na Igreja jogadores que, assim, beneficiavam da
imunidade concedida aos lugares sacros para jogar e apostar – convenceram
rapidamente os legisladores que não bastava limitar
o jogo de azar e que urgia tomar medidas mais drásticas. Ou seja, que era
preciso abandonar a tolerância e introduzir normas severas» (Carlos Alberto
da Mota Pinto, António Pinto Monteiro e João Calvão da Silva, Jogo e Aposta – Subsídios de Fundamentação
Ética e Histórico-Jurídica, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 1982,
pág. 47).
No nosso
Direito Penal mais recente, evoluiu-se da punição, em todos os casos, daqueles
que fossem achados a jogar jogo de fortuna ou azar ou o dirigissem ou
explorassem (artigos 265º e 267º do Código
Penal de 1886), para a punição, em leis avulsas, da exploração e prática de
jogos de fortuna ou azar, fora dos locais e sem respeito pelas condições em que
os mesmos são autorizados – maxime,
nos casinos e salas de bingo. Adoptou-se, portanto, o sistema da autorização regulamentada (cfr. Carlos
Alberto da Mota Pinto ..., ibidem, págs.
34-35).
Para justificar
a opção por este sistema, têm sido apontadas diversas razões (idem, ib., págs. 30-31 e 36):
Por um lado, ao criar zonas de jogo,
que fiscaliza, e ao estabelecer o monopólio da exploração de outros jogos em
favor de certas entidades idóneas, o Estado, ao mesmo tempo que possibilita a
satisfação de uma tendência natural do homem, fá-lo ainda por saber que serão
observadas certas condições por ele impostas, as quais contribuem para atenuar
os efeitos negativos do jogo (por ex., condições de entrada em casinos
restritas a uma certa idade, profissão, etc.).
Assim, ao mesmo tempo que permite
que o homem satisfaça o seu desejo de jogar, o Estado encaminha a sua prática para
instituições onde são dadas garantias de seriedade e isenção aos jogadores –
instituições que o Estado controla e fiscaliza -, reduzindo, ou anulando mesmo,
o interesse pelo jogo clandestino, ilícito e particularmente perigoso, em si mesmo e
no ambiente marginal que o rodeia.
Por outro lado, e ao mesmo tempo, o
Estado obtém importantes receitas fiscais, incentiva o turismo e canaliza parte
considerável das receitas do jogo para fins de ordem social.
Acresce ainda, no que diz respeito
mais especificamente à lotaria nacional e ao «totobola», que se trata de jogos
(«lato sensu») de características marcadamente populares, praticamente isentos de
gerar qualquer perigo, visto que a sua prática envolve apenas o dispêndio de
pequenas quantias, possibilitando, em contrapartida, ganhos elevadíssimos.
Além disso, trata-se de jogos cuja
prática não é contínua, não constituindo, pois, uma actividade absorvente que
desvie o jogador das suas ocupações diárias. O tempo que decorre entre as
diversas «jogadas» impede que o jogador seja prejudicado pela excitação
momentânea produzida pelos resultados favoráveis ou desfavoráveis que tenha
obtido.
Trata-se, em suma, de jogos que,
além de revelarem poucos ou nenhuns inconvenientes, permitem que se obtenham
apreciáveis vantagens, tanto para os particulares que arriscam, como para a
sociedade, que beneficia em larga medida da receita dos mesmos.
(...)
Destarte, o Estado procura sublimar
as tendências humanas para o jogo, controlando-as, defendendo a ordem pública e
os bons costumes através de uma rigorosa disciplina preventiva de segurança
pública que evite o jogo como fonte de litígios, de desordem e mesmo de paixões
ardentes – a fazer com que o jogo lícito e controlado deixe de ser visto como
ética e socialmente reprovável.
A moralidade dos jogos lícitos e
controlados radica, pois, não só no facto de os seus benefícios se aplicarem a
fins socialmente úteis mas também, mais directamente, em que sejam conduzidos
honestamente e em que permitam satisfazer sem perigos a inclinação ao jogo
inata no homem.
A opção
criminalizadora portuguesa não se encontra isolada, já que outras legislações
europeias punem esta conduta como ilícito penal, e mesmo de forma grave.
Por
exemplo, o Código Penal alemão, no §284, pune com prisão até dois anos ou com multa
quem organizar publicamente um jogo de azar sem autorização administrativa, ou
ceder instalações para tal efeito, salvo se actuar de forma profissional ou
como membro de um grupo que se tenha constituído para cometer continuadamente
tais actos, caso em que será punido com pena de prisão de seis meses a cinco
anos. E a própria participação em jogo de azar não autorizado é punida com
prisão até seis meses ou com multa (cfr. Emilio Eiranova Encinas (coord.),
Código Penal Alemán StGB/Código Procesal
Penal Alemán StPO, Marcial Pons, Barcelona, 2000, pág. 160).
E, de idêntica
forma, o Código Penal francês, no seu artigo 410, pune os organizadores e
exploradores não autorizados de jogos de azar ou de lotarias com penas que
podem ir, consoante os casos, até três ou seis meses de prisão, para além de
pesadas multas e do confisco de todos os bens móveis que guarneçam ou decorem
os locais onde se processe o jogo proibido (Codes Dalloz, Code Pénal – Nouveau Code Pénal,
1993-1994, pág. 564).
A punição penal
da exploração de jogos de fortuna ou azar não autorizados não se destina
primacialmente a impedir a prática de uma actividade – o jogo – considerada
moralmente reprovável. Com efeito, o fundamento ético-social do sancionamento
penal do jogo de azar não se encontra tanto na necessidade de proteger o jogador contra as inclinações, gostos ou
vícios que lhe podem – e normalmente são – prejudiciais, quanto na necessidade
de reprimir a prática de uma actividade que constitui objecto de uma
significativa reprovação social, do ponto de vista ético, tendo em conta os
males e prejuízos para a própria sociedade que se considera encontrarem-se-lhe
associados – por exemplo, acréscimo de burlas, usuras e fraudes, bem como de
litígios e violências, facilitando o alastramento do crime organizado;
significativa perturbação da vida familiar dos jogadores, com repercussão na
capacidade de manutenção e educação dos filhos; ou, ainda, possibilidade de
incidência negativa no domínio das relações laborais ou económicas dos
jogadores.
Ora, o que é
certo é que em todas estas possíveis situações se encontrarão afectados
interesses constitucionalmente protegidos – a segurança dos cidadãos, o
respeito da legalidade democrática, a protecção da infância e da juventude, a
estabilidade da vida social e económica. E, consequentemente, não se vê que o
legislador, ao criminalizar a exploração do jogo, pudesse estar a violar o
princípio da necessidade da pena, procedendo a uma opção manifestamente
arbitrária ou excessiva.
Não se sufraga,
assim, pelo menos na sua integralidade, o que sustenta Rui Pinto Duarte
(O Jogo e o Direito, Themis, II. 3 (2001), págs. 69 e
segs.):
Tenho dois comentários a fazer ao
tipo penal “prática ilícita de jogo”.
O primeiro é o de que ele é provavelmente inconstitucional (por razões
que nada têm a ver com o carácter indeterminado do conceito do “jogos de
fortuna ou azar”). O segundo é o de que ele é, de certeza, discutível…
Desenvolvendo os dois comentários,
recordarei que a Constituição determina, no seu art° 18, n° 2, que as
restrições legais aos direitos e liberdades dos cidadãos se devem limitar ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos. Não vejo quais são os direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos para cuja salvaguarda é necessário incriminar a prática de jogos de
fortuna ou azar, em especial aqueles que não envolvem o dispêndio de dinheiro
pelo jogador. A razão da permanência da incriminação, com a sua enorme
latitude, é, como adiante melhor veremos, a inércia na manutenção de mecanismos
antiquados de defesa dos cidadãos contra o pecado e a dissipação do património,
a par da protecção de interesses fiscais do Estado (e das entidades por ele
beneficiadas). Discutíveis parece-me o mínimo que a tais fundamentos de
incriminação se pode chamar.
O mesmo autor
afirma ainda:
Embora entenda que nenhum dos bens
jurídicos referidos justifica a punição criminal das actividades ligadas ao
jogo, creio que na base dos quatro tipos penais em causa estão,
sincreticamente, os três valores referidos (bons costumes, propriedade,
interesse fiscal) ou melhor, certos entendimentos desses valores – cuja
permanência na ordem jurídica resulta da inércia política. Em cada um dos
quatro tipos penais considerados parece haver pesos diferentes dos três valores
em causa, mas é defensável que estes estão presentes em todos aqueles.
É evidente que,
tendo o legislador optado pelo já referido sistema da autorização regulamentada para evitar alguns dos piores malefícios
associados à prática dos jogos de azar, por entender que essa ainda é uma forma
adequada de alcançar esse desiderato, nem por isso fica ele impedido de
criminalizar, de todo o modo, a exploração do jogo ilícito.
Por um lado,
porque as razões que justificam a criminalização se verificam necessariamente –
senão, todo o sistema da autorização
regulamentada teria de ser considerado como incoerente – com muito maior
acuidade no caso de jogo ilícito que no caso de jogo autorizado. Por outro
lado, porque também a defesa dos interesses fiscais do Estado, resultantes do
particular sistema de tributação do jogo (cfr. Sérgio Vasques, Os Impostos do Pecado – O Álcool, o Tabaco,
o Jogo e o Fisco, Almedina, Coimbra, 1999), pode fundar a opção pela
criminalização dos comportamentos em causa, uma vez que a doutrina vem
considerando que a protecção de relevantes interesses financeiros do Estado
pode justificar a adopção de normas penais que inclusivamente estabeleçam penas
privativas da liberdade (cfr. Eduardo Correia, Os artigos 10º do Decreto-Lei nº 27153, de 31 de Outubro de 1936, e 4º,
nº 1, do Decreto-Lei nº 28221, de 24 de Novembro de 1937, a Reforma Fiscal e a
Jurisprudência (Secção Criminal) do Supremo Tribunal de Justiça, Revista de Legislação e Jurisprudência,
ano 100º, nºs 3550 a 3557; Augusto Silva Dias, O Novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro, Fisco, nº 22, Ano 2, Julho 90, págs. 16 e segs.; Nuno Sá
Gomes, Direito Penal Fiscal,
1983, pág. 342; Celeste Cardona, A
Infracção Fiscal no Direito Comparado, Estudos
(col.), Centro de Estudos Fiscais, 1983, págs. 446 e segs.; Castro Martins e
Macaísta Malheiros, A Pena de Prisão
no Direito Fiscal, Ciência e
Técnica Fiscal, nºs 226-228, págs. 29 e segs.).
Nesta
conformidade, a criminalização de certo comportamento, tendo em vista a
protecção dos interesses do fisco, depende de uma «qualificação ética» que
resulta de «algo de historicamente condicionado, que ao cabo e ao resto
dependerá das exigências éticas da consciência social em cada momento» (José
Manuel M. Cardoso da Costa, Curso de
Direito Fiscal, 2ª ed., Almedina, 1972, págs. 106-107), o que cabe, em
primeira linha, ao legislador determinar.
Assim, a
criminalização operada pelas normas impugnadas – face à alternativa da mera
qualificação como contra-ordenação – deve ser tida como uma opção aceitável à
luz da Constituição. Aliás, o próprio Rui Pinto Duarte (ob. cit.) o reconhece implicitamente
quando afirma que «no que toca aos interesses fiscais do Estado, mesmo que os
mesmos justifiquem a punição criminal de quem frustra a arrecadação de impostos
– ou seja a punição criminal da exploração ilícita de jogo – eles não
justificam certamente os outros tipos penais em causa.». Ora, no caso vertente,
está em causa exactamente a dita exploração
ilícita de jogo e não qualquer das outras infracções cuja punição aquele
autor questiona do ponto de vista da sua conformidade constitucional.
8. Como se assinalou, questiona ainda o
recorrente que a previsão da pena de prisão viola, in casu, o princípio da
proporcionalidade.
Poder-se-ia,
desde logo, colocar a questão de saber se a apreciação desta questão teria
interesse no caso vertente, tendo em consideração, por um lado, que a pena de
prisão foi substituída por multa (e que, por outro lado, a condenação em prisão
subsidiária não está aqui em causa, por não ter sido suscitada a
constitucionalidade do artigo 49º do Código Penal).
De todo o modo,
sempre se dirá que, tendo este Tribunal já sublinhado, no Acórdão n° 13/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, ) «que ao legislador dev(e) ser reconhecida uma larga margem de
liberdade de conformação ou, se se quiser, uma ampla margem conformativa», pelo
que o juízo de censura constitucional só pode ocorrer «quando a gravidade do sancionamento se mostre inequívoca, patente
ou manifestamente excessiva», essa não é, patentemente, a situação que se
configura no caso sub judicio, tendo
designadamente em consideração a já referida legitimidade constitucional da
previsão da aplicação de penas privativas da liberdade em crimes deste tipo e a
pouca gravidade da pena em causa, bem como a sua substituição por multa.
Também nesta
dimensão, pois, se não descortina qualquer inconstitucionalidade nas normas
impugnadas.
III
9. Em face do exposto, nega-se
provimento ao recurso.
Custas pelo
recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa, 27
de Fevereiro de 2002
Luís Nunes de Almeida
Artur Maurício
Maria Helena Brito
José Manuel Cardoso da Costa