ACÓRDÃO Nº 667/94
Procº nº 822/93.
2ª Secção.
Relator:‑ Consº BRAVO SERRA.
I
1.
A. foi, no Tribunal de comarca de
São Pedro do Sul, submetido a julgamento em processo sumário em virtude de se indiciar
que, pelas 18 horas e 30 minutos do dia 16 de Outubro de 1993, conduzia um
automóvel ligeiro de passageiros numa via pública, apresentando uma taxa de
álcoolemia no montante de um grama e cinquenta centigramas de álcool por litro.
Por
sentença do dia seguinte, o Juiz daquele Tribunal de comarca, por um lado,
condenou o arguido, por infracção ao disposto no nº 1 do artº 2º do Decreto‑Lei
nº 124/90, de 14 de Abril, na pena de noventa dias de multa à taxa diária de
Esc. 200$00 ‑ a que corresponderam 60 dias de prisão alternativa ‑ e, por
outro, não o condenou "na sanção
acessória da inibição da faculdade de conduzir" prevista na alínea a)
do nº 2 do artº 4º do mesmo diploma, "por
[o] julgar inconstitucional"
visto que, em seu entender, esta última norma violava os princípios "da culpa" e da "proporcionalidade das sanções criminais"
consignados nos artigos 1º, 13º, nº 1, 25º, nº 1, 18º, nº 2 e 88º, nº 1, todos
da Constituição.
2. Dessa sentença, relativamente à
desaplicação normativa, recorreu para este Tribunal o Ministério Público, tendo o seu Representante aqui em funções
apresentado alegação na qual concluiu dever ser provido o presente recurso,
assim se determinando a reforma da impugnada decisão, por isso que, não
podendo "considerar-se como efeito
automático da condenação por certo tipo legal de crime a imposição de uma
sanção acessória, mediante decisão do juiz, que se encontra habilitado a
graduar a medida daquela, em função da ponderação das circunstâncias do caso",
o "regime estatuído no artigo 4º nºs
1 e 2, alínea a), não ofende o disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição,
nem envolve qualquer infracção aos princípios constitucionais da culpa e da
proporcionalidade das sanções criminais".
Por
seu turno, o recorrido não ofereceu qualquer alegação.
Tendo
em conta que a matéria de que curam os presentes autos é também objecto de
outros processos pendentes neste Tribunal e na sua 2ª Secção - como é o caso,
designadamente, do processo nº 828/93, onde já se determinou que fossem cobrados
«vistos» dos Juízes - , dispensou-se, nos vertentes autos, a sua continuação
com termo de «vista» aos mencionados Juízes.
II
1. A norma cuja recusa de aplicação,
fundada num juízo de inconstitucionalidade efectuado pelo Juiz a quo, teve lugar na decisão sob
censura, insere-se no D.L. nº 124/90, diploma que, precedido da autorização
legislativa concedida pela Lei nº 31/89, de 21 de Agosto, criou um novo tipo de
ilícito penal, justamente o correspondente ao da efectivação da condução de
veículos, com ou sem motor, apresentando o condutor uma taxa igual ou superior a um grama e vinte
centigramas de álcool por litro no seu sangue, além de criar, igualmente,
ilícitos de natureza contravencional nos casos em que aquele taxa, sendo
inferior à acima referida, seja, porém, igual ou superior a cinquenta
centigramas e inferior a oitenta centigramas de álcool, ou superior a esta
última, mas inferior a cento e vinte centigramas.
Relativamente
ao ilícito de natureza criminal, a sanção
para ele cominada, em caso de dolo, foi estabelecida como sendo a pena
de prisão até um ano ou multa até
200 dias dias (se pena mais grave não for aplicável) - cfr. artº 2º, nº 1 - ou,
em caso de negligência, pena de prisão até seis meses ou multa até 100 dias -
cfr. artº 2º, nº 2 - .
A
estas penas, e como estabeleceu o artº 4º (precisamente o preceito no qual se
insere a norma objecto de apreciação no presente recurso), entendeu o
legislador dever acrescer uma outra, acessória, de inibição da faculdade de
conduzir.
E
foi assim que se comandou nos números 1 e 2 daquele artº 4º:
"Artigo
4º.
Inibição
da faculdade de conduzir
1 - Às
penas previstas nos artigos 2.º e 3.º acresce a sanção acessória de inibição da
faculdade de conduzir.
2 - A inibição
terá a seguinte duração:
a)
Seis meses a cinco anos nos casos previstos no artigo 2.º;
b)
Três meses a dois anos nos casos previstos no n.º 2 do artigo 3.º;
c)
Um a seis meses nos casos previstos no nº. 3 do artigo 3.º"
2. Segundo a decisão em recurso, das
estatuições ínsitas nos transcritos preceitos resultaria que a pena acessória
de inibição da faculdade de conduzir - pena essa limitativa do exercício de um
direito civil - seria uma pena de aplicação automática na sequência da
condenação (no caso que ora releva) pelo ilícito criminal estabelecido no artº
2º do D.L. nº 124/90, o que contrariaria o que se consigna no nº 4 do artigo
30º da Constituição.
E,
por outro lado, segundo a mesma decisão (se bem se entende o que ali se
discreteou), a pena acessória em causa ofenderia os princípios da culpa e da
proporcionalidade das sanções criminais, já que era prevista a mesma moldura de
inibição, quer para os ilícitos penais cometidos sob a forma dolosa, quer para
os cometidos sob a forma negligente.
Impõe-se,
desta arte, apreciar uma tal corte de fundamentação.
3. Torna-se desde logo seguro que,
contrariamente ao referido na sentença sub
iudicio, a pena de inibição da faculdade de conduzir não é algo de
funcionamento automático em consequência da condenação em pena privativa da
liberdade ou em pena de multa pelo ilícito penal de exercício da condução de
veículos sob a influência de álcool.
Efectivamente,
trata-se, a par destas últimas penas,
da imposição de uma outra pena - acessória, pois (cfr. a própria
designação empregue no exórdio do D.L. nº 124/90) - aplicável em situações
subsumíveis àquelas cuja fattispecie
constitui um ilícito de natureza penal (só este, in casu, nos interessa tratar agora), e cuja aplicação é unicamente
relegada para o juiz que, atento o circunstancionalismo rodeador da infracção,
a vai, em concreto, dosear de entre um amplo espectro temporal previsto abstractamente na norma previsora.
Por
isso, e como bem realça o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na alegação
apresentada, nenhuma identidade existe entre a previsão ora em apreço e
aqueloutra constante do nº 2 do artº 46º do Código da Estrada que levou à
prolação do Acórdão nº 224/90 deste Tribunal.
Não
há, na norma sub specie, qualquer automatismo
de aplicação em consequência da imposição de uma condenação por um certo crime
ou em certa pena, o que vale por dizer, enfim, que a decretanda inibição da
faculdade de conduzir não é um efeito necessário da condenação por uma outra
pena ou por um determinado crime (cfr., sobre a questão da produção ope legis dos efeitos das penas,
Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito
Penal, «Parte Geral» II - Penas e Medidas de Segurança, 1989, título II,
capítulos I e II, e Figueiredo Dias no artigo intitulado «Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do
futuro», in R.O.A., 1983, 5 e segs.).
Sendo
assim, logo por aqui se verifica que é de afastar a pretensa enfermidade
constitucional de que padeceria a norma da alínea a) do nº 2 do artº 4º do D.L.
nº 124/90.
3.1. De outra banda, também não
convencem os argumentos carreados na sentença em crise e segundo os quais a
norma sob sindicância afronta os princípios da culpa e da proporcionalidade das
sanções criminais.
De
facto, a circunstância de a medida abstracta da pena acessória de inibição da
faculdade de conduzir ser a mesma, quer para os ilícitos de condução sob a
influência do álcool cometidos sob a forma dolosa, quer sob a forma negligente,
não acarreta aquela afronta. É
que, atento o acima referido amplo espectro temporal da falada medida - 6
meses a 5 anos - obviamente que ao juiz é conferida uma larga margem de
discricionariedade para, em concreto, fixar tal pena acessória segundo as
circunstâncias concretas do caso submetido à sua apreciação, entre estas,
inequivocamente, se contando as conexionadas com o grau de culpa do agente. E
daí, logo em primeira linha, a possibilidade de adequar a medida concreta
consoante esteja em causa um grau de culpa menos acentuado, como é o caso da negligência, ou um grau de culpa
de maior gravidade, como se passará com os casos de dolo.
A
isto cabe aditar que, mesmo confrontando a medida abstracta da pena principal
- prisão de 30 dias a um ano ou multa de 10 a 200 dias (cfr. os mínimos fixados
para a prisão e multa, respectivamente nos artigos 40º, nº 1, e 46º, nº 1, do
Código Penal) - com aqueloutra fixada para a pena acessória de que ora se
cura, ainda assim não se antevê que os mencionados princípios se mostrem
violados.
Na
realidade, para além das considerações já formuladas no tocante à ampla margem
de graduação da pena de inibição, não se pode olvidar que, ainda que se tenha
em mente só o seu limite máximo, é seguro, por um lado, que na Lei Fundamental
inexiste qualquer normativo que aponte ou imponha que as penas acessórias
tenham de ter correspondência com as penas principais e, por outro, que, tendo
em conta os perigos que, notoriamente, advêm da condução sob a influência do
álcool, é perfeitamente ajustada uma sanção como aquela de que nos ocupamos,
que apresenta um limite mínimo temporal de seis meses e um máximo de 5 anos o
que, há-de convir-se, se posta como algo adequado à perigosidade demonstrada
por um agente que se coloque na previsão do ilícito em apreço.
4. Poder-se-ia colocar a questão de
saber se, atento o princípio da legalidade das penas, a moldura de duração da
medida em apreço, constante da alínea a) do nº 2 do artº 4º do D.L. nº 124/90
- que aponta para uma proporção,
nos limites máximo e mínimo, de 1 para 10 - era respeitadora, ou melhor, se
conformava com tal princípio.
Neste
particular, porém, tendo em consideração que nos situamos perante, não uma pena
criminal principal, mas sim perante uma pena acessória, entende o Tribunal que,
no caso, não se poderá afirmar que esse princípio se mostra derespeitado.
III
Em
face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência,
determinar a reforma da sentença recorrida na parte impugnada, a fim de a
mesma ser reformada de harmonia com o presente juízo sobre a questão de
constitucionalidade.
Lisboa,
14 de Dezembro de 1994.
Bravo
Serra
Fernando
Alves Correia
Guilherme
da Fonseca
Messias
Bento
Luís
Nunes de Almeida