ACÓRDÃO Nº 52/92[1]
Processo: n.º
10/89
Plenário
Relatora:
Conselheira Assunção Esteves.
Acordam, em
Plenário, no Tribunal Constitucional:
I — O Provedor de Justiça
requereu, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República (na redacção resultante da
revisão constitucional de 1982) e do artigo 51.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral,
das normas do artigo 49.º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em
Alta Tensão (C.G.V.E.E.A.T.), anexas ao Decreto-Lei n.º 43 335, de 19 de
Novembro de 1960.
O pedido vem
fundamentado nos seguintes termos:
1.º A
versão primitiva do artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T. anexas ao Decreto-Lei n.º 43
335, de 19 de Novembro de 1960 — que se encontra em vigor após a declaração,
com força obrigatória geral da norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º
296/82, de 28 de Julho, que deu nova redacção ao citado preceito (Acórdão n.º
33/88, de 2 de Fevereiro), atribui ao Secretário de Estado da Indústria poderes
para nomear o terceiro perito que integra a Comissão encarregada de solucionar
divergências que se levantarem entre o consumidor e o distribuidor acerca da
execução ou da interpretação das disposições das condições gerais, do caderno
de encargos da concessão ou da apólice aprovada.
2.º Tendo
a referida Comissão a natureza de instância arbitral necessária (artigos 5.º,
113.º, 116.º, 118.º e 120.º do citado diploma legal) e, pertencendo como
pertence à EDP — E. P. a distribuição e fornecimento, em exclusivo, da energia
eléctrica em Alta Tensão (Decreto-Lei n.º 205-G/75, de 16 de Abril, Decreto-Lei
n.º 502/76, de 30 de Junho, artigo 2.º) e estando esta empresa pública sujeita
a tutela económica e financeira do Estado através do departamento ministerial
competente (Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril, artigos 1.º, 12.º e 13.º,
Decreto-Lei n.º 502/76, artigos 5.º e 26.º) terá, forçosamente, de
reconhecer-se que o Governo passou, perante as mutações político-legislativas
operadas, a ocupar de forma mediata a posição que dantes cabia à entidade
concessionária e, por conseguinte, a desempenhar o papel de parte nos
diferendos surgidos no âmbito do fornecimento de energia eléctrica em Alta
Tensão.
3.º E
enquanto parte interessada o Governo (Secretário de Estado da Indústria, hoje
Secretário de Estado da Energia), deixou de gozar do estatuto de independência
e de imparcialidade susceptível de justificar a faculdade de designação do
terceiro perito da Comissão à qual se refere o artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T.
4.º A
persistência da versão originária desta norma não só contende com o artigo 23.º
da Lei Orgânica do Governo já que os Secretários de Estado não dispõem de
competência própria — mas, em sede constitucional, ofende frontalmente os
princípios da imparcialidade (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição) e da
independência constantes dos artigos 7.º e 10.º da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, artigo 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicáveis
por força do disposto no artigo 16.º da Constituição.
E concluiu-se assim:
5.º O
artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T. anexas ao Decreto-Lei n.º 43 335, de 19 de
Novembro de 1960, é, pois, materialmente inconstitucional por violar o disposto
no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição e os artigos 10.º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem aplicáveis
nos termos do que estabelece o artigo 16.º da Constituição.
Em requerimento
posterior, de 4 de Agosto de 1989, o Provedor de Justiça viria, porém, limitar
o âmbito do pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 49.º das
Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão (C.G.V.E.E.A.T.)
à «parte em que o mesmo normativo defere a nomeação do terceiro árbitro a um
membro do Governo».
Admitido o pedido,
foi o Primeiro-Ministro notificado para se pronunciar, nos termos do artigo
54.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
Em resposta,
referiu-se, assim, à norma do artigo 266.º, n.º 2, da Constituição, invocada
pelo Provedor de Justiça:
… Como resulta aliás da sua letra, este preceito
constitucional é dirigido aos «órgãos e agentes administrativos», para o
exercício da actividade administrativa.
Designadamente, o princípio da imparcialidade respeita
especialmente às relações entre a administração pública e os particulares,
traduzindo-se na necessidade de a Administração ponderar com imparcialidade e
isenção os conflitos que surgem no âmbito desta actividade procurando que as
situações sejam resolvidas com equidade e igualdade perante idênticos
circunstancialismos.
(…) Fácil é pois concluir que esta norma constitucional
visa a actividade administrativa, e se dirige aos órgãos e agentes
administrativos apontando-lhes um critério genérico de actuação nas suas
relações com os administrados.
E, prosseguindo na
argumentação, aduziu, essencialmente, o seguinte:
Ora, a norma do artigo 49.º das Condições Gerais de Venda
de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao Decreto-Lei n.º 43 335, ao
regular a composição, actuações e competência de uma «instância arbitral» ou de
um «tribunal necessário» (dúvidas não há sobre esta qualificação — cfr., por todos, Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 86/87, de 25 de Fevereiro), em nada colide, com o referido
preceito constitucional.
Efectivamente, a possibilidade legal de nomeação pela
tutela governamental, não é susceptível de pôr em causa a independência e
imparcialidade daquela instância arbitral, pelas seguintes razões:
— Aquele perito não intervém como delegado ou
representante do Governo, ou em obediência a instruções deste pois, uma vez
nomeado, o perito adquire um estatuto de total independência enquanto membro de
uma instância arbitral;
— Assente a natureza da instância da natureza
arbitral necessária da referida comissão de peritos, é inequívoco que os
membros desse tribunal arbitral beneficiam do estatuto de isenção no exercício
da jurisdição e de garantia de inamovibilidade, uma vez nomeados (cfr.
declaração de voto de Magalhães Godinho, no Acórdão n.º 32/87, de 28 de Janeiro);
— Assim, e após a sua nomeação, todos os peritos
nomeados actuam como árbitros, com independência e imparcialidade (tanto o
terceiro perito, como os restantes dois);
— O Governo não tem qualquer interesse directo
na forma de composição dos litígios que opõem a EDP aos seus clientes, pelo que
não é parte;
— O Governo celebrou com a EDP um contrato de
concessão (para venda de energia eléctrica em alta tensão) e apenas detém sobre
a empresa poderes de intervenção que resultem do mero exercício de tutela, por
se tratar de um serviço público essencial;
— Quanto ao mais, a EDP é uma empresa pública
com autonomia administrativa e financeira, e quem a administra e representa é o
Conselho de Gerência.
Concluiu, então, o
Primeiro-Ministro que:
O artigo 49.º das Condições Gerais de Venda de Energia
Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao Decreto-Lei n.º 43 335, de 19 de Novembro
de 1960, não viola o princípio constitucional da independência e imparcialidade
face à natureza da intervenção da instância arbitral necessária que deve julgar
com absoluta isenção e ao estatuto de total independência que assiste aos
respectivos membros.
II — As normas
1 — O Decreto-Lei
n.º 43 335, de 19 de Novembro de 1960, e as Condições Gerais de Venda de Energia
Eléctrica em Alta Tensão que lhe são anexas surgem no quadro da Lei n.º 2002,
de 26 de Dezembro de 1944 (Lei de Electrificação do País), que dispunham na
base XXVII: «as relações dos concessionários da produção e da grande
distribuição com os adquirentes da energia serão reguladas pelas condições
gerais de venda em alta tensão e respectivas apólices-tipo, a publicar pelo
Governo».
O artigo 49.º
daquelas Condições Gerais dispõe assim:
Artigo 49.º
(Comissão de
peritos)
As dúvidas ou divergências que se levantarem entre o
consumidor e o distribuidor sobre a execução ou a interpretação das disposições
destas condições gerais, do caderno de encargos da concessão ou da apólice
aprovada serão decididas por uma comissão de três peritos-árbitros, um indicado
por cada uma das partes e o terceiro designado pelo Secretário de Estado da
Indústria.
§ 1.º A constituição da comissão referida no corpo do
artigo poderá ser requerida por qualquer das partes à Direcção-Geral dos
Serviços Eléctricos, que fixará um prazo não inferior a quinze dias para a
indicação dos peritos-árbitros das partes.
A falta de indicação do respectivo perito implica a desistência da
reclamação ou a aquiescência a ela, consoante a falta for do requerente ou do
requerido. Se nenhuma das partes indicar
o seu perito-árbitro, extinguir-se-á o processo.
§ 2.º ………………………………………………………………
A questão de
constitucionalidade respeita a norma do artigo 49.º que defere ao Secretário de
Estado da Indústria (hoje Secretário de Estado da Energia) o poder de nomear o
terceiro árbitro da comissão de peritos ali prevista.
2 — Sublinhe-se,
desde logo, que a questão de constitucionalidade da norma do artigo 49.º das
Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, aqui em apreço,
não convoca o princípio constitucional da imparcialidade da Administração, ao
contrário do que se aduz nas conclusões do Provedor de Justiça.
Definindo aquele
preceito a formação e competência de uma instância arbitral (necessária), como
haverá de demonstrar-se, a análise da sua conformidade à Constituição só pode
ser referida à função jurisdicional e aos princípios constitucionais a que se
orienta.
Com efeito, no
programa da norma contida no artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T. não está em causa o
exercício da função administrativa nem, por isso, o princípio da imparcialidade
da Administração (CRP, artigo 266.º, n.º 2).
Não se configura
aí uma qualquer relação entre a Administração e os particulares de tal modo que
aquela age teleologicamente orientada à satisfação do interesse público (e,
nesse sentido, é parte) e, ao mesmo tempo, se encontra vinculada à proibição
constitucional do arbítrio (imparcialidade).
Não está em causa a Administração, empenhada na satisfação das
necessidades colectivas, dotada de iniciativa, parcial na prossecução do
interesse público e imparcial no tratamento dos particulares.
É, antes, da
função jurisdicional que se trata, dirigida à solução de conflitos, passiva —
«só conhecendo da lide ou controvérsia que lhe seja apresentada e só decidindo
o que lhe for pedido» (Jorge Miranda) — imparcial,
pela não prossecução de quaisquer interesses próprios, neutra.
Daí que o problema
da constitucionalidade da norma do artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T. só possa
colocar-se à luz da sua ordenação aos princípios orientadores da função
jurisdicional, consagrados na Constituição da República.
III — A fundamentação
1 — O Julgamento
da constitucionalidade da norma do artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T. — que prevê
uma comissão arbitral para o julgamento dos litígios suscitados no âmbito do
contrato de fornecimento de energia — deverá aferir-se pela apreciação de se,
com a competência aí deferida ao Secretário de Estado da Indústria para a
nomeação do árbitro-presidente não é afectada a garantia de independência e
imparcialidade do tribunal, estabelecida no artigo 206.º da Constituição.
O que está em
causa é saber se é ou não é respeitado o desiderato de exclusão de parcialismo
relativamente à lide, desiderato para cuja realização concorre a garantia de
independência e imparcialidade do tribunal e que se consubstância igualmente
numa exigência de paridade de tratamento das partes no processo.
2 — Em primeiro
lugar, há que analizarse e como é aplicável o mandado constitucional de
independência e imparcialidade dos tribunais à instância arbitral prevista no
artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T.
Trata-se, aí, de
uma instância arbitral necessária. Assim
o reconheceu o Tribunal Constitucional ao apreciar a constitucionalidade da
norma do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 296/82, de 23 de Julho, que dava nova
redacção ao artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T. e viria a ser declarado
inconstitucional (cfr. Acórdãos n.os 289/86, 32/87, 59/87, 86/87, 93/87, 94/87
e 33/88, in Diário da República, II
Série, n.os 5, de 7 de Janeiro de 1987; 81, de 7 de Abril de 1987; 88, de 15 de
Abril de 1987; 89, de 16 de Abril de 1987; 105, de 8 de Maio de 1987; 109, de
13 de Maio de 1987; e, I Série, n.º 43, de 22 de Fevereiro de 1988,
respectivamente).
As considerações aí
expendidas, incidindo, directa e primacialmente, sobre a nova redacção
conferida ao artigo 49.º valem também para a sua versão originária. É assim que se afirma no Acórdão n.º 86/87:
É irrecusável — em particular face à actual redacção do
preceito questionado — que a instância neste delineado se configura como um
verdadeiro «tribunal arbitral», e um tribunal arbitral «necessário»: assim, de
resto, vem agora expressamente qualificado no § 3.º
E que se trata de uma instância arbitral «necessária» é
algo que o respectivo enquadramento institucional só confirma.
Na verdade, nos termos do Decreto-Lei 43 335, o
fornecimento de energia eléctrica em alta tensão é objecto de uma «concessão»
[cfr. os artigos 5.º, alínea d), e
113.º e segs. do decreto-lei citado], estando, pois, reservado aos respectivos
«concessionários» aos quais simultaneamente se impõe a obrigação desse
fornecimento (cfr. os artigos 116.º a 118.º do diploma referido); por sua vez,
os contratos de fornecimento a celebrar entre esses concessionários e os
respectivos consumidores, não só devem obedecer a uma apólice tipo, aprovada
oficialmente (cfr. o artigo 120.º ainda do mesmo diploma), como ficam sujeitos
às Condições Gerais de Venda, definidas em anexo ao dito Decreto-Lei n.º 43 335
e dele fazendo parte integrante (cfr. o artigo 165.º). Ora, contando-se entre essas Condições Gerais
precisamente a da intervenção da «comissão» prevista no artigo 49.º, na decisão
das questões enunciadas neste último preceito, seguro é que o recurso a uma tal
comissão — a uma tal instância arbitral — surge como imposto por lei aos interessados, e não livre e autonomamente
estabelecido por estes.
3 — A Constituição
da República, no artigo 211.º, n.º 2, inclui, expressamente, os tribunais
arbitrais entre as diversas categorias de tribunais. E não distingue entre tribunais arbitrais
voluntários e tribunais arbitrais necessários.
Legítimo será concluir que, na nossa ordem constitucional, a jurisdictio não tem necessariamente de
ser exercida por órgãos do Estado: certos litígios podem ser decididos por
árbitros, em resultado de convenção ou disposição da lei.
E «mesmo que os
tribunais arbitrais se não enquadrem na definição de tribunais enquanto órgãos
de soberania (CRP, artigo 205.º), nem por isso podem deixar de ser qualificados
como tribunais para outros efeitos constitucionais, visto serem
constitucionalmente definidos como tais e estarem constitucionalmente previstos
como categoria autónoma de tribunais» (cfr. o Acórdão n.º 230/86 do Tribunal
Constitucional — Diário da República,
I Série, de 12 de Setembro de 1986).
Com efeito, o
«juiz-árbitro» desenvolve uma função jurídica pela qual declara o Direito (jurisdictio), se bem que não possa
executá-lo, ao invés do que se passa com o «Juiz-funcionário». Mas pode dizer-se que «esta evidente ausência de ‘potestas’ por parte do árbitro, enquanto não representa ou encarna
a organização jurídico-política do Estado, se vê compensada com a ‘auctoritas’ (cfr. José Medina e José
Merchán, Tratado de Arbitraje Privado Interno y Internacional, Madrid,
1978, p. 183). «As decisões do árbitro
são verdadeiras e próprias decisões jurisdicionais, dotadas de autoridade»
(cfr. Carlo Guarnieri, L'Independenza
della Magistratura, Pádua, 1981, p. 23).
A decisão do
árbitro sobre a controvérsia que lhe é submetida tem efeito de caso
julgado. A lei confere-lhe a mesma força
vinculativa de que gozam as sentenças judiciais. (cfr. Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, aplicável
por via do artigo 1528.º do Código de Processo Civil).
Haverá pois que
examinar a jurisdictio exercida pela
instância arbitral prevista no artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T., com vista a
determinar se o modo de designação do terceiro árbitro põe em causa as
garantias de independência e imparcialidade do julgamento (CRP, artigo 206.º). E, na medida em que a «imparcialidade é uma
nota essencial do próprio conceito de tribunal» (cfr. Castro Mendes,
«Independência dos juízes», in Estudos
Sobre a Constituição, 3.º vol., 1979, p. 654) haverá ainda de invocar-se a
norma constitucional atributiva do direito ao tribunal enquanto órgão
independente e imparcial de resolução de litígios. Ou seja, o parâmetro de avaliação de
constitucionalidade é dado pelas normas conjugadas dos artigos 20.º, n.º 1, e
206.º da Constituição.
4 — Não valem
neste plano da arbitragem necessária as teses contratualistas de certa
doutrina, segundo as quais, o fundamento da auctoritas
arbitral residirá na autonomia da vontade das partes (Guasp, Rocco,
Satta). O tribunal arbitral necessário é
um instituto distinto, pela sua origem, do tribunal arbitral voluntário; surge
em virtude de acto legislativo e não como resultado de negócio jurídico de
Direito privado. Daí, o seu carácter
tipicamente publicístico.
Por esse facto, a
imparcialidade de julgamento, que na arbitragem voluntária poderia, em tese,
mostrar-se assegurada pela livre concertação de vontades vertida no compromisso
arbitral postula, aqui, um outro tipo de garantias.
Uma argumentação
baseada na natureza contratualista das cláusulas contratuais gerais anexas ao
Decreto-Lei n.º 43 335, em que se inscreve o artigo 49.º, tendente a demonstrar
a natureza de «cláusula compromissória» do mesmo artigo e a aproximar a
instância arbitral aí prevista de uma jurisdição arbitral voluntária padece de
manifesto conceptualismo.
Como se afirmou no
Acórdão n.º 86/87:
… não se diga que, de todo o modo, sempre fica aos
consumidores a liberdade de celebrarem ou não o contrato de fornecimento de
energia, de maneira que é sempre à sua «vontade contratual» que reverte, em
último termo, a referida intervenção da comissão.
Com efeito, e desde logo, bem pode perguntar-se se o
carácter «necessário» de uma instância arbitral não decorre sem mais da
obrigatoriedade legal do recurso a
essa instância em certo tipo de situações ou contratos [cfr. o artigo 1525.º do
Código de Processo Civil (C.P.C.)], sendo irrelevante para o efeito a
«voluntariedade» da simples celebração destes, mas depois, e além disto, ocorre
que uma tal «voluntariedade» — ou
seja, a liberdade de celebrar o contrato — não passa, no caso, de uma miragem,
porquanto se está perante o fornecimento de um bem indispensável e que só pode
ser obtido dos concessionários a que o Estado outorgue o serviço da respectiva
distribuição. E, se a uma tal conclusão
já havia de chegar-se face só ao clausulado no Decreto-Lei n.º 43 335 e no
tempo da sua emissão, muito mais nitidamente ainda ela veio a impor-se depois,
quando, nacionalizadas que foram em empresas concessionárias da grande
distribuição de energia eléctrica e fusionadas seguidamente na recorrida
Electricidade de Portugal (EDP), E.P., esta
passou a ser o único distribuidor e fornecedor possível daquela energia
em alta tensão.
E, ainda, no
Acórdão n.º 289/86:
… uma causa imposta às partes, do exterior, que não
podem recusar sob pena de não
poderem celebrar o contrato de fornecimento de energia eléctrica (…), não se
harmoniza com a liberdade jurídica de
entrar em relação, que é essencial no conceito de contrato.
Nos termos dos
n.os 1 e 2 do artigo 14.º da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto (que regula a
arbitragem voluntária, e que, por força do artigo 1528.º do Código de Processo
Civil, é aplicável à arbitragem necessária), o árbitro-presidente é escolhido
por acordo das partes ou, na falta deste, por indicação do Presidente do
Tribunal da Relação.
Pelas razões que
vêm de ser expostas, não se poderá entender que a «adesão» às Condições Gerais
de Venda de Energia em Alta Tensão» (e ao seu artigo 49.º) consubstanciaria, de
algum modo, o acordo «…por escrito, até à aceitação do primeiro árbitro, noutra
solução» — acordo a que se refere o artigo 14.º, n.º 1, in fine, daquela lei.
Aliás, a nova
redacção do artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T., constante da norma do artigo 1.º do
Decreto-Lei n.º 296/82, de 28 de Julho, aproximava-se do processo de designação
do árbitro-presidente que vem hoje acolhido na Lei da Arbitragem
Voluntária. Contudo, esta norma foi
declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão n.º
33/88, de 2 de Fevereiro, com fundamento e em inconstitucionalidade orgânica —
e, por isso, repristinado o artigo 49.º na sua redacção originária.
5 — Configurada a
comissão arbitral a que se refere o artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T. como
instância arbitral necessária e considerada a natureza jurisdicional de respectiva
função, há que indagar se essa norma importa violação do imperativo
constitucional de o litígio ser julgado por tribunal independente e imparcial
(CRP, artigos 20.º, n.º 1, e 206.º).
Com efeito, o
desiderato do asseguramento da igual probabilidade de êxito das partes em
relação ao resultado da lide exige «um processo equitativo diante de um
tribunal independente e imparcial» (Sentença Delcout, 17 de Janeiro de 1970,
in: Publications de la Cour Européenne
des Droits de l'Homme, A/11, p. 15, § 28).
Daí as prescrições da exclusão do iudex
inhabilis e da recusa do iudex
suspectus (cfr. Eduard Bötticher, «L‘Uguaglianza di Fronte al Giudice», in Jus, Anno VII, Marzo 1956, pp. 479-480).
O que está em
causa é saber se o mecanismo de designação do terceiro árbitro, consignado na
norma do artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T., implica preponderância de uma das
partes (concessionário-distribuidor) em relação à outra (consumidor), perante o
tribunal arbitral.
Para o Provedor de
Justiça, essa preponderância resultaria da modificação do estatuto jurídico das
empresas concessionárias, operada por nacionalização, e posterior criação da
EDP, E.P., a qual levaria a que o Estado ocupasse, agora, a posição que
anteriomente cabia àquelas entidades.
Daí, a invocação da inconstitucionalidade da norma em apreço na medida
em que atribui a membro do Governo competência para a designação do terceiro
árbitro.
6 — A
independência e imparcialidade da jurisdição exigem garantias orgânicas,
estatutárias e processuais.
No caso em apreço,
dificilmente se poderá abstrair da forma de designação do árbitro, argumentando
com a natureza jurisdicional da instituição arbitral. Está em causa a composição de um litígio de
contornos previamente definidos. A
designação do juiz-árbitro é dirigida a uma situação concreta que suscitou ela
própria a constituição do tribunal. Não
é pois suficiente a ideia de que o juiz, depois do receptum arbitri se desvincula da sua nomeação, fundando-se a auctoritas das suas decisões no
exercício de uma função de natureza jurisdicional.
E assim,
argumentar que a independência do árbitro decorre da natureza da função que
exerce, quer dizer, uma função jurisdicional, configura não só um vício de
conceptualismo (estabelece-se a «natureza» do instituto para dela inferir a sua
configuração) como uma verdadeira e própria petitio
principii: a independência do julgamento decorreria da própria essência da
função jurisdicional.
É facto que
assistem às partes remédios processuais no sentido de afastar a parcialidade do
julgamento, nomeadanente, a possibilidade de anulação da decisão arbitral, nos
termos do artigo 27.º da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto [cfr., sobretudo, o
artigo 27.º, n.º 1, alínea c), e a
remissão que opera para o artigo 16.º — relativo aos princípios fundamentais a
observar no processo — e cuja alínea a)
estabelece que as «partes serão tratadas com absoluta igualdade»].
Por outro lado, aplica-se, neste
domínio da arbitragem, o regime de impedimentos e escusas estabelecido na lei de
processo civil para os juízes (Lei n.º 31/86, artigo 10.º).
Mas estes remédios processuais não
afastam ou diminuem a necessidade de garantir na sua própria constituição e
funcionamento a independência e imparcialidade do tribunal.
Sobre a necessidade do asseguramento,
no plano objectivo, das condições de imparcialidade do tribunal, afirmou-se no
Acórdão n.º 135/88 do Tribunal Constitucional (Diário da República, II Série, de 8 de Setembro de 1988):
… a independência do juiz é, acima de tudo,
um dever — um dever
ético-social. A «independência
vocacional», ou seja, a decisão de cada juiz de, ao «dizer o Direito», o fazer
sempre esforçando-se por se manter alheio — e acima de influências exteriores
e, assim, o seu punctum
saliens. A independência, nessa
perspectiva, é, sobretudo, uma responsabilidade
que terá a «dimensão» ou a «densidade» da fortaleza de ânimo, do carácter e da
personalidade moral de cada juiz. Como
sublinhar estes pontos, não pode, porém, esquecer-se a necessidade de existir
um quadro legal que «promova» e facilite aquela «independência vocacional».
Assim, necessário
é, inter alia, que o desempenho do
cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua
imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nesta
imparcialidade é justificadamente
posta en causa, o juiz não está em condições de «administrar justiça». Nesse caso, não deve poder intervir no
processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar — deve, numa palavra,
poder ser declarado iudex inhabilis.
A imparcialidade da jurisdição não é
só a imparcialidade subjectiva. É também
a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada antes e durante o
julgamento. Afinal, «trata-se da
confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às
partes. (…) Deve, pois, recusar-se
qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente recear a existência
de uma falta de imparcialidade… O
elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem
ter-se como objectivamente justificadas.
(Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, caso Hauschildt — 11/1987/134-188, p.
14, § 48).
7 — Importa,
então, analisar em que medida o modo de designação do terceiro árbitro, nos
termos do artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T., poderá importar violação do direito
ao tribunal enquanto órgão independente e imparcial de solução de conflitos
(CRP, artigos 20.º, n.º 1, e 206.º).
A imparcialidade do julgamento requer
que não haja confusão de interesses entre a entidade que nomeia o
terceiro-árbitro e qualquer das partes intervenientes no processo. A composição global do tribunal deve
assegurar que a decisão sobre o litígio se realizará do «estrito ponto de vista
da juridicidade» (Baptista Machado, Introdução
ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, p. 148), quer dizer,
não pode a sentença ser determinada por considerações de oportunidade política
ou de eficiência ou racionalidade económica.
A possibilidade de intervenção destes critérios anularia a própria
essência da jurisdição, a qual assenta precisamente «no facto de a decisão ou
sentença ser proferida de um ponto de vista estrita e exclusivamente jurídico»
(Baptista Machado, ob. cit., p. 146).
Haverá, então, que ponderar as
relações que intercedem entre a EDP e o Estado detentor do capital e dos
poderes de direcção que, por via disso, lhe vão ligados.
8 — A EDP foi criada pelo Decreto-Lei
n.º 502/76, de 30 de Junho, reunindo numa única entidade económico-jurídica as
anteriores empresas concessionárias do serviço público de produção, transporte
e distribuição de energia eléctrica que haviam sido objecto de nacionalização.
Constituia-se em empresa pública,
dispondo de estatuto próprio (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 502/76) que a
definia como «pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia
administrativa, financeira e patrimonial» (artigo 1.º), enquadrável no estatuto
geral das empresas públicas estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de
Abril.
À EDP, E.P. eram, pois, aplicáveis as
regras sobre tutela e intervenção do Governo nas empresas públicas. O artigo 5.º, n.º 1, do estatuto aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 502/76, de 30 de Junho, dispunha assim: «1 — O Governo assegurará a defesa do
interesse público mediante o exercício dos poderes de tutela e dos demais
conferidos pela lei e pelo presente estatuto.
2 — Os poderes referidos no número anterior serão exercidos pelo
Ministro da Indústria e Tecnologia, salvo nos casos em que na lei ou no
presente estatuto estiver expressamente previsto de outro modo».
O Capítulo III definia os órgãos da
empresa: o conselho geral, o conselho de gerência e a comissão de fiscalização.
O conselho geral (artigo 9.º) era composto,
entre outros, por representantes de diversos ministérios e os administradores
do conselho de gerência nomeados, nos termos do artigo 13.º, «pelo Conselho de
Ministros, sob proposta do Ministro da Indústria e Tecnologia», sendo o seu
presidente designado «…pelo Conselho de Ministros, sob proposta do Ministro da
Indústria e Tecnologia» (artigo 13.º, n.º 2).
Integravam a
comissão de fiscalização três membros «nomeados por despacho conjunto dos
Ministros das Finanças e da Indústria e Tecnologia, sendo um efectivo e um
suplente indicados pelos trabalhadores da empresa» (artigo 21.º, n.º 2).
O Capítulo IV
regulava a intervenção do Governo na EDP, através dos Ministros da Indústria e
Tecnologia, das Finanças e do Trabalho.
O Decreto-Lei n.º
7/91, de 8 de Janeiro, veio alterar a natureza jurídica da Electricidade de
Portugal (EDP), E.P., convertendo-a de pessoa colectiva de Direito público em
pessoa colectiva de Direito privado, com o estatuto de sociedade anónima de
capitais exclusivamente públicos (artigo 1.º).
A EDP passou, então, a reger-se por esse Decreto-Lei, pelo estatuto
constante do Anexo I do mesmo diploma, pelas normas reguladoras das sociedades
anónimas e «pelas normas especiais cuja aplicação decorra do objecto da
sociedade» (artigo 1.º, n.º 2).
O artigo 3.º
dispõe que «as acções da EDP pertencem ao Estado e só poderão ser transmitidas
para entes públicos» (n.º 1) e que «os direitos do Estado, como accionista da
EDP, são exercidos por representante designado por despacho conjunto dos
Ministros das Finanças e da Indústria e Energia» (n.º 4).
A EDP tem como
órgãos sociais a assembleia geral, o conselho de administração e o conselho
fiscal, com as competências fixadas na lei e nos estatutos.
Nos termos do
artigo 7.º do mesmo Decreto-Lei, «o conselho de administração enviará aos
Ministros das Finanças e da Indústria e Energia, pelo menos 30 dias antes da
data da assembleia geral anual: a) o
relatório de gestão e as contas do exercício; b) quaisquer elementos adequados à compreensão integral da situação
económica e financeira da empresa, eficiência da gestão e perspectivas da sua
evolução» (n.º 1). «O conselho fiscal
enviará, trimestralmente, aos Ministros das Finanças e da Indústria e Energia,
um relatório sucinto em que se refiram os contratos efectuados, as anomalias
detectadas e os principais desvios em relação às previsões» (n.º 2).
Ainda nos termos
do Decreto-Lei n.º 7/91, a «EDP procederá, por meio de cisões simples, à
formação de novas sociedades anónimas» (artigo 8.º, n.º 1), para o que o conselho
de administração promoverá a avaliação do património da EDP (n.º 2) a qual será
feita por «entidades escolhidas de entre as previamente qualificadas pelo
Ministro das Finanças para o efeito» (n.º 3) e está sujeita à aprovação do
mesmo membro do Governo (n.º 5). Além disso, o plano geral das cisões a
efectuar será submetido aos Ministros das Finanças e da Indústria e Energia
(artigo 9.º).
Relevante para a
questão de constitucionalidade que vem sendo apreciada é saber se os poderes de
tutela e intervenção do governo na EDP constituem fundamento de eventual
«interesse» do Estado no modo de composição dos litígios a que se refere o
artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T. O que é
perguntar se a relação que intercede entre o governo e a EDP constitui motivo
objectivamente justificado de «apreensão» sobre as condições de imparcialidade
do terceiro árbitro designado pelo Secretário de Estado da Energia na comissão
arbitral que aquele preceito se refere.
E para a questão
em exame não se afigura relevante a alteração do estatuto jurídico da EDP, com
a sua transformação de empresa pública, enquadrada nas bases gerais das
empresas públicas, em sociedade anónima de capitais públicos, cujo figurino é o
da legislação comercial. Em ambos os
casos, o Estado é o único detentor do capital, o proprietário da «empresa», na
acepção jurídico-económica do termo: o facto de exercer uma tutela cujo cariz é
em certa medida inspirada pelo Direito Administrativo, como acontece na E.P.,
ou definir as linhas de condução dos destinos da empresa em assembleia geral,
como único accionista, como acontece na sociedade de capitais públicos, não
altera a circunstância de que em ambos os casos existe um nexo de dependência
entre a empresa e o Estado.
Por isso, o
argumento «formalista» de que a empresa tem personalidade jurídica distinta do
Estado não colherá aqui. A
personificação da empresa (como E.P. ou sociedade anónima) converte-a tão-somente em centro autónomo de imputação de direitos e deveres, não põe um ponto final no interesse
do Estado nos resultados da condução da actividade económica da empresa.
Se se tratasse de
um problema de imputação de direitos e deveres, o argumento da distinta
personalidade jurídica colheria (na hipótese de se não configurar um caso
típico de admissibilidade de «desconsideração» da personalidade
colectiva). Mas, tratando-se de
assegurar a nomeação por fonte isenta de um juiz-árbitro, qualquer «sombra» de
interesse da entidade nomeante no
desfecho da lide afectará o princípio constitucional da imparcialidade dos tribunais.
Com efeito, a
especial exigência de isenção no exercício da função jurisdicional não permite,
ao analisar a norma do artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T., a abstracção das
relações que intercedem entre o Governo e a EDP. Não é possível afirmar, com segurança, que,
em quaisquer circunstâncias, o Estado não terá interesse nas controvérsias
submetidas à comissão arbitral a que aquela norma se refere.
A nomeação, por
membro de um órgão da Administração, do terceiro árbitro da comissão arbitral
prevista no artigo 49.º das C.G.V.E.E.A.T. não deixa inequivocamente intocadas
as garantias objectivas de imparcialidade do tribunal e, por isso, não afasta
os riscos de tratamento desigual das partes.
O regime de
designação do terceiro árbitro, consagrado naquela norma, não se afigura
adequado ao preenchimento das garantias de independência e imparcialidade.
A suspeição por
parte das entidades aderentes às C.G.V.E.E.A.T. de uma eventual parcialidade do
juiz-árbitro, anularia precisamente o carácter de «legitimação pelo
procedimento» (Luhmann) e a função de diluição e mediatização de conflitos que
é assegurada pela existência de tribunais e procedimentos jurisdicionais
dotados de garantias de imparcialidade.
O consumidor criaria a convicção de que a igualdade de oportunidades
perante o desfecho da lide se encontrava viciada à partida, pela forma de
designação do tribunal arbitral.
A norma do artigo
49.º das C.G.V.E.E.A.T. aqui em apreço, é, pois, inconstitucional, por violação
das normas dos artigos 20.º, n.º 1, e 206.º da Constituição da República.
IV — Decisão
Nestes termos,
decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da
norma do artigo 49.º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta
Tensão (C.G.V.E.E.A.T.), anexas ao Decreto-Lei n.º 43 335, de 19 de Novembro de
1960, na parte em que atribui ao Secretário de Estado da Indústria (hoje,
Secretário de Estado da Energia) competência para a designação do terceiro
árbitro da comissão de três peritos-árbitros aí prevista, por violação dos
artigos 20.º, n.º 1, e 206.º da Constituição da República.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 1992.
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Messias Bento
Antero Alves Monteiro Diniz
Fernando Alves Correia
António Vitorino
Mário de Brito
Luís Nunes de Almeida
José de Sousa e Brito
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida (com declaração que junto)
Bravo Serra (votei
o acórdão, embora não deva deixar de fazer a declaração de que me sobram
dúvidas sobre se é fundada a afirmação, sem mais, e a consequenciação segundo a
qual, incluindo a Constituição no n.º 2 do seu artigo 211.º a previsão dos
tribunais arbitrais nas diversas categorias de tribunais, sendo assim legítimo
concluir que, como na nossa ordem constitucional a jurisdictio não tem de ser
necessariamente exercida por órgãos do Estado, então estaria assegurada a
legitimidade constitucional dos tribunais arbitrais necessários.
A razão de ser
dessas dúvidas fundam-se, precisamente, na circunstância de a respectiva
jurisdição não repousar na vontade das partes, antes se lhes impondo, ainda que
contra a sua vontade, dessa arte afastando a possibilidade de a dilucidação dos
conflitos ser efectuada pelos órgãos estaduais expressamente previstos na Lei
Fundamental, e sem que haja concreta e explícita credencial constitucional para
tanto.
Foi por isso que,
não obstante tais dúvidas, dado o enfoque do acórdão, substancialmente
aceitando a existência dos tribunais arbitrais necessários desde que sejam
asseguradas as garantias de independência e imparcialidade do julgamento, votei
o presente aresto.
É que, se, no
momento, me fosse possível a ultrapassagem das citadas dúvidas no sentido de
propender pela inadmissibilidade dos tribunais arbitrais necessários,
obviamente que a decisão constante do acordo de que esta declaração faz parte
integrante seria por mim votada, mas com a divergência quanto à fundamentação,
pois que, nessa hipótese, o parâmetro constitucional relevante seria o do
artigo 20.º da Lei Básica, disposição que seria a violada pela norma ora
questionada)
José Manuel Cardoso da Costa.
DECLARAÇÃO DE VOTO
A fundamentação do
presente acórdão e a consequente conclusão suscitam-me reservas muito
profundas. É que não posso aderir à
concepção que faz pairar sobre o Governo uma prévia e iniludível suspeição a
tal ponto intensa que leve sempre ao enquinamento da formação do tribunal
arbitral com violação, note-se, do direito dos particulares ao tribunal,
enquanto órgão independente e imparcial de solução de conflitos.
Parece-me inequívoca
a existência de um nexo de dependência entre a empresa EDP, na sua actual
configuração, e o Estado, nexo sobretudo centrado nas relações entre aquela e o
órgão do Governo que tem a tutela do sector da energia. No entanto, por essa via, não fica, sem mais,
demonstrado um eventual «interesse» do Estado no modo de composição dos
litígios que não possa ser afastado pela aplicação, em concreto, das normas processuais sobre suspeições e
impedimentos.
O nexo aludido não
tem de reflectir-se, porém, no momento prévio à composição do litígio, que é o
da designação do terceiro árbitro. Nesta
fase, não perfeitamente autonomizada no acórdão, o interesse do Estado é um
geral interesse público na realização da justiça que bem pode por ele ser
prosseguido independentemente de quaisquer relações entre o Estado e a empresa
que lhe pertence. Pensar de outro modo,
é admitir que o Estado não exerce com isenção os diversos fins públicos que
deve realizar. Mas, admitindo ainda que
desse nexo consigam filtrar-se para a fase seguinte perversas partículas, é bom
notar que, além do carácter então não mediato do mesmo nexo, tudo passa pela
mediação de uma terceira pessoa, que é o juiz-árbitro designado. Na hipótese,
sempre possível, de esse terceiro árbitro ser uma mesma pessoa, que tanto pode
ser designada pelo Estado como por outra qualquer entidade eventualmente menos
comprometida e mais alheada da controvérsia, acreditar-se-á que a sua atitude
será influenciada pela origem da sua designação? Responder afirmativamente e sem hipótese de
demonstração do contrário é, pelo menos, excessivo.
São estas as
razões em que baseio as minhas reservas, subscrevendo embora o acórdão.
Vítor Nunes de Almeida.