ACÓRDÃO
N.o 364/91[1]
Processo: n.º 367/91.
Plenário
Relator: Conselheiro Tavares da Costa.
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I —
1.1 — O Presidente da República requereu, ao abrigo do
disposto no artigo 278.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República e
dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a
apreciação preventiva da constitucionalidade do artigo 2.º do Decreto n.º 356/V
da Assembleia da República, relativo à «Alteração à lei eleitoral das
autarquias locais», recebido na Presidência da República em 9 do corrente para
efeito de promulgação, o que fez com os fundamentos seguintes:
O disposto no artigo 2.º do Decreto da
Assembleia da República em apreço, ao dar nova redacção aos n.os 2 e
3 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 701-B/76, de 29 de Setembro, configura
determinadas incapacidades eleitorais passivas para os cidadãos que exerceram o
cargo de presidente da câmara municipal durante três mandatos consecutivos e
para os cidadãos que renunciem aos cargos de presidente ou vereador de câmara
municipal.
Sendo o direito de acesso a cargos
públicos um dos direitos, liberdades e garantias poderá estar a ser violado o
disposto nos artigos 18.º, n.os 2 e 3, e 50.º, n.os 1 e
3, da Constituição, na medida em que se entenda poderem não estar a ser
respeitados quer os pressupostos materiais de legitimidade constitucional das
leis restritivas ao exercício de direitos liberdades e garantias, quer os
limites constitucionais ao estabelecimento de restrições no acesso a cargos
electivos.
1.2 — Para a entidade requerente, trata-se de matéria
reputada da maior importância por dizer respeito à representação eleitoral
«tornando-se necessário não só verificar de modo inequívoco se as soluções
adoptadas estão de acordo com a Lei Fundamental, mas também garantir que as
mesmas correspondam à lógica da Constituição e à vivência consensual dos
valores que lhe estão subjacentes».
A finalizar, requer «a apreciação da conformidade
constitucional da norma do artigo 2.º do Decreto n.º 356/V, acima identificado,
com o disposto nos artigos 18.º, n.os 2 e 3, e 50.º, n.os
1 e 3, da Constituição da República».
2 — De acordo com o disposto nos artigos 54.º e 55.º,
n.º 3, da Lei n.º 28/82, foi notificado o Presidente da Assembleia da República
para os efeitos ali consignados, o qual respondeu, limitando-se a oferecer o
merecimento dos autos e a juntar um exemplar do n.º 7 do Diário da Assembleia da República, I Série, de 31 de Outubro de
1990, de onde consta o relato da discussão na generalidade, em conjunto, das
propostas de lei n.º 165/V — alteração à lei eleitoral das autarquias locais —
e n.º 166/V — alteração do regime de atribuições das autarquias locais e
competência dos respectivos órgãos.
II — A questão
Face ao exposto, verifica-se estar em causa em sede de
fiscalização preventiva, a apreciação da conformidade constitucional da norma
do artigo 2.º do Decreto n.º 356/V, tendo em conta o disposto nas normas dos
artigos 18.º, n.os 2 e 3, e 50.º, n.os 1 e 3, da
Constituição da República (CR).
1 — Trata-se de um texto destinado a entrar em vigor
no dia imediato ao da sua publicação (artigo 3.º) que, no seu artigo 1.º, visa
modificar a redacção dos artigos 5.º, 22.º e 23.º do Decreto-Lei n.º 701-A/76,
de 29 de Setembro, e, no artigo 2.º, único que nos interessa considerar,
pretende dar nova redacção aos n.os 2 e 3 do artigo 4.º do
Decreto-Lei n.º 701-B/76, da mesma data, diploma conhecido como Lei Eleitoral
dos Órgãos das Autarquias Locais.
Concretamente, consta deste artigo 2.º:
O artigo 4.º do Decreto-Lei n.º
701-B/76, de 29 de Setembro, passa a ter a seguinte redacção:
Artigo 4.º
(Inelegibilidades)
1 — ..........................................................................................................
a).......................................................................................................
..
f) ..
2 — São também inelegíveis para um
executivo municipal, durante o quadriénio imediatamente subsequente ao terceiro
mandato, os cidadãos que nesse executivo tenham exercido o cargo de presidente
durante três mandatos consecutivos.
3 — Os presidentes e vereadores das
câmaras que renunciem ao cargo não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem
nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia.
2 — Para o Presidente da República, a entrada em vigor
do texto poderá desrespeitar os pressupostos materiais de legitimidade constitucional
das leis restritivas ao exercício de direitos, liberdades e garantias e, bem
assim, os limites constitucionais ao estabelecimento de restrições no acesso a
cargos electivos.
E, a propósito, chama à colação as já indicadas normas
da Lei Fundamental — as dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º e n.os
1 e 3 do artigo 50.º
Dispõe o primeiro dos artigos:
1 — ..........................................................................................................
2 — A lei só pode restringir os
direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na
Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3 — As leis restritivas de direitos,
liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem
ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo
essencial dos preceitos constitucionais.
E consta do segundo:
1 — Todos os cidadãos têm o direito de
acesso, em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos.
2 — ..........................................................................................................
3 — No acesso a cargos electivos a lei
só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade
de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos
respectivos cargos.
3 — A questão de constitucionalidade submetida a este
Tribunal, está, assim, muito esquematicamente traçada.
Sublinhe-se, no entanto, que ao Tribunal
Constitucional só compete apreciar a questão em si, pronunciando-se ou não se
pronunciando pela inconstitucionalidade da norma, mas, para o efeito, não se
encontra necessariamente limitado à motivação jurídica invocada e respectivo
enquadramento jus-constitucional, como, de resto, flui do artigo 51.º, n.º 5,
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
III — A fundamentação
1 — A existência de um sistema de inelegibilidades
justifica-se seja pela necessidade, em Estado de direito democrático, de
garantir a dignidade e a genuinidade do acto eleitoral, seja como meio de
proporcionar correcção à formação da vontade do eleitor, não perturbando a sua
liberdade de escolha.
Na área do exercício do poder local electivo — em que
nos movimentamos — a axiologia da inelegibilidade assenta, particularmente, na
isenção e independência de quem exerce cargos electivos (como se observou no
Acórdão n.º 533/89, publicado no Diário
da República, II Série, de 23 de Março de 1990) e, simultaneamente, na
expressão livre do voto periodicamente exercido e, como tal, servindo para
aferir o comportamento do eleito, sancionando-o se for caso disso.
A inelegibilidade complementa-se com a
incompatibilidade e, por via de ambas, o princípio da universalidade dos
direitos fundamentais — acolhido no artigo 12.º, n.º 1, da CR — e a
homogeneidade tendencial do exercício desses direitos, são temperados, sempre
que redundem em excesso ou inadequação e desproporção, considerando os valores
e os interesses constitucionalmente tutelados.
Por isso se escreveu no Acórdão n.º 532/89, publicado
no citado Jornal Oficial, II Série,
de 23 de Março de 1990:
[…] no Estado de direito democrático o
poder local deve reger-se por coordenadas legais que o dignifiquem e visem
assegurar a sua independência, a essa luz se compreendendo o estabelecimento de
uma inelegibilidade como limite negativo ao direito de sufrágio passivo que, em
princípio, assiste a todo o cidadão maior de 18 anos (artigo 49.º da
Constituição da República), corolário daqueloutro segundo o qual todos os
cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos
assuntos públicos do País, directamente ou por intermédio de representantes
livremente eleitos (n.º 1 do artigo 48.º da Lei Básica).
2 — A inelegibilidade funciona, consequentemente, como
uma restrição — e restrição de acesso a cargos electivos.
No âmbito das autarquias locais e anteriormente à 2.ª
Revisão Constitucional, ou seja, quando ainda não existia o actual n.º 3 do artigo
50.º da CR, reconheceu-se a insuficiência do texto constitucional (cfr. Diário da Assembleia da República, II
Série, n.º 69-RC, de 26 de Janeiro de 1989, p. 2099), facto que, confrontado
com uma norma como a do artigo 153.º da CR, levou o Tribunal Constitucional,
desde cedo, a persistente elaboração jurisprudencial, conduzindo ao
entendimento maioritário segundo o qual esta última norma contém, em si, um
princípio geral do direito eleitoral português, deste modo servindo de
paradigma a todas as restantes eleições, pese embora a sua inserção sistemática
(eleições para a Assembleia da República).
Neste sentido, entre os mais significativos, citem-se
os Acórdãos n.os 4/84, 8/84, 12/84, 225/85 e 244/85, publicados no
citado Diário, II Série, de 30 de
Abril, 3 de Maio e 8 de Maio de 1984 e de 18 de Fevereiro e 7 de Fevereiro de
1986, respectivamente, sem prejuízo de outras decisões que não adoptaram este
fio argumentativo, de que é exemplo o Acórdão n.º 230/85, no mesmo Jornal, II Série, de 1 de Março de 1986.
De resto, nem sempre se trataria de restrição ao
direito mas sim de «limites» ao seu conteúdo e extensão, nalguma das suas
vertentes ou manifestações, considerando a dimensão institucional do direito de
acesso a cargos públicos, limites que, assim, o legislador estaria autorizado a
«declarar», concretizar ou a explicitar, sem necessidade, para tanto, de uma
«expressa» permissão constitucional, para utilizar inciso contido no citado
Acórdão n.º 225/85.
No entanto, a partir da 2.ª Revisão Constitucional, com
o aditamento ao artigo 50.º da CR de um n.º 3, passou a exigir-se ao intérprete
diferente leitura.
Volvendo ao Acórdão n.º 532/89 e ao direito de
sufrágio passivo transcreve-se mais uma passagem do que nesse aresto se
ponderou e se tem, aqui e agora, por inteiramente válido:
Como direito fundamental que é, a
própria Constituição — n.º 2 do artigo 18.º — adverte só poder a lei
restringi-lo nos casos nela expressamente previstos, «devendo as restrições
limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos».
Por outras palavras, proíbe-se o excesso e exige-se a adequação (meios-fins), tendo em
consideração os interesses tutelados.
O próprio texto constitucional
consagra, de resto, o critério dos limites admissíveis: no n.º 3 do artigo 50.º
afirma-se claramente que, no acesso aos cargos electivos, a lei só pode
estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de
escolha dos eleitores — acautelando-se, desse modo, os riscos inerentes à captação
da benevolência destes — e a isenção e independência do exercício dos
respectivos cargos, sancionando-se, assim, com dignidade constitucional, a
densificação do princípio da vinculação do legislador aos direitos fundamentais
mediante a imposição de outros valores que, passando pela necessidade de
afirmar o princípio da legalidade, conformam o poder político, no caso o poder
local.
O n.º 3 do artigo 50.º aditado pela Lei
Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, deu guarida, de certo modo, à
orientação jurisprudencial esboçada por este Tribunal [como atestam os
trabalhos preparatórios da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional,
nomeadamente através das intervenções dos deputados José Magalhães e António
Vitorino (cfr. Diário da Assembleia da
República, II Série, n.os 17-RC e 75-RC, de 15 de Junho de 1988
e 15 de Fevereiro de 1989)] e, cremos, simplificou a conciliação do problema da
força dirigente dos direitos
fundamentais, equacionado por Gomes Canotilho: isto é, a questão da vincula-ção
da Administração ao princípio da constitucionalidade, representado na eficácia
directa dos preceitos constitucionais consagradores dos direitos fundamentais,
e, simultaneamente, ao princípio da legalidade, ou seja, a subordinação da
Administração à lei (cfr. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional, 4.ª ed., 2.ª reimp., Coimbra, Almedina, 1989, p. 463).
3 — Através do n.º 3 do artigo 50.º da CR pretendeu o
legislador constituinte estabelecer «um critério delimitador de futuras novas
causas de inelegibilidade que o legislador pretenda vir a criar» como se
observou no decurso dos trabalhos da CERC.
E concretizou o seu intento pela adopção dos dois
parâmetros acolhidos no novo preceito:
a) A
necessidade de garantir a liberdade de escolha dos eleitores;
b) A
necessidade de garantir a isenção e a independência de exercício dos
respectivos cargos.
Ora, é à luz destes parâmetros e, bem assim, da
natureza excepcional das restrições em matéria de direitos, liberdades e
garantias, só admissíveis na estrita medida prevista nos n.os 2 e 3
do artigo 18.º da Lei Fundamental, que deverá analisar-se se os novos casos de
inelegibilidade que o Decreto n.º 356/V intenta criar são, ou não,
constitucionalmente conformes.
São eles:
1.º Para um (cargo de) executivo municipal é
inelegível, durante o quadriénio imediatamente subsequente ao terceiro mandato,
o cidadão que, nesse executivo, tenha exercido o cargo de presidente durante
três mandatos consecutivos.
2.º No caso de renúncia ao respectivo cargo, os
presidentes e vereadores das câmaras são inelegíveis (não podem candidatar-se)
para as eleições imediatas e as que se realizem no quadriénio imediatamente
subsequente à renúncia.
Poderão considerar-se, estes novos casos de inelegibilidade,
como desrespeitadores «quer dos pressupostos materiais de legitimidade
constitucional das leis restritivas ao exercício de direitos, liberdades e
garantias, quer dos limites constitucionais ao estabelecimento de restrições no
acesso a cargos electivos»?
Ou violadores de quaisquer outras normas ou princípios
constitucionais?
4 — O Decreto n.º 356/V teve por fonte a proposta de
lei n.º 165/V (Diário da Assembleia da
República, II Série-A, n.º 3, de 19 de Outubro de 1990), aceitando quase
integralmente o texto sugerido para o artigo 2.º, e o projecto de lei n.º
596/V, apresentado pelo PRD (Diário,
cit.).
O objectivo, no que ao artigo 2.º concerne, é
inequivocamente expresso na exposição de motivos da proposta de lei: a redução
do número de mandatos consecutivos do presidente da câmara, deriva do princípio
democrático, do qual «decorre o imperativo da renovação dos titulares de cargos
políticos, quer a nível de soberania quer a nível dos órgãos do poder local».
E, se bem que a medida adoptada se venha a
circunscrever aos presidentes das câmaras (e vereadores, no caso de renúncia),
acrescenta-se:
A fim de dar cumprimento a este
preceito constitucional [está-se a referir ao princípio democrático]
estabelece-se a inelegibilidade para um quarto mandato dos cidadãos que tenham
exercido o cargo de presidente da câmara por três mandatos consecutivos.
Assim diminui-se o risco de
pessoalização do exercício do poder e garante-se uma maior transparência,
isenção e independência na actuação dos titulares dos órgãos autárquicos.
Fomenta-se, também, o aparecimento de alternativas credíveis dinamizando o
funcionamento das instituições pelo aparecimento de novos quadros e, acima de
tudo, garante-se a liberdade de escolha dos eleitores, dando pleno cumprimento
às exigências do princípio democrático.
Semelhante é a motivação constante do projecto de lei
do PRD, onde se chama a atenção para a limitação de dois mandatos no caso do
Presidente da República e similitude da «extrema personalização» do exercício
das funções do Presidente da República e dos presidentes das câmaras.
Em 25 de Outubro de 1990, a Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República
pronuncia-se sobre a proposta de lei n.º 165/V, emitindo relatório e parecer
elucidativos.
Na verdade, após considerar que já o artigo 126.º da
CRP proíbe a reeleição do Presidente da República para um terceiro mandato
consecutivo, abona-se em J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira ao referirem que
o n.º 1 do artigo 126.º visa evitar a permanência demasiado longa no cargo, com
os riscos de personalização do poder, inerentes à eleição directa do Presidente
da República (cfr. Constituição da
República Portuguesa Anotada, 2.º vol., 2.ª ed., Coimbra, 1985, p. 101),
para assim finalizar, nesta parte:
As preocupações expostas nesta
disposição podem, dados os seus fundamentos, colocar-se analogicamente em
relação à figura do presidente da câmara.
Também da discussão, em plenário e na generalidade, da
proposta de lei n.º 165/V, se surpreendem certas linhas-força na exposição do
Ministro do Planeamento e da Administração do Território e dos oradores
seguintes que apoiaram a proposta (cfr. Diário,
cit., I Série, n.º 7, de 31 de Outubro de 1990, pp. 173 e segs.; a proposta
viria a ser aprovada com votos a favor do PSD e do PRD e votos contra do PS, do
PCP, do CDS, de os Verdes e do deputado independente João Corregedor da Fonseca
— Diário, cit., n.º 9, de 9 de
Novembro de 1990, p. 269).
São essas linhas-força, nomeadamente, a necessidade de
renovação dos titulares dos cargos políticos em nome de maior mobilidade dos
agentes públicos autárquicos, a abertura ao dinamismo de novos protagonistas, a
defesa de maior eficácia e melhor operacionalidade dos presidentes das câmaras.
Só que, dando-se por suposto que o decurso do tempo
afecta o funcionamento e a eficácia do exercício do poder local, porventura
acompanhados de vícios de actuação, caberá perguntar se, por seu turno, as
restrições impostas não afectarão o comando constitucional do n.º 3 do artigo
50.º
5 — O princípio democrático, invocado nos trabalhos
preparatórios do texto em análise, como se registou, é um princípio medular da
Constituição.
O artigo 2.º da CR consagra a República Portuguesa
como um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no
pluralismo de expressão e organização política democrática e no espírito e na
garantia da efectivação dos direitos e liberdades fundamentais.
Repousa, consequentemente, em estruturas do poder que
o princípio democrático, na sua pluridimensionalidade, «afeiçoa»,
materialmente, quanto aos valores constitucionalmente proclamados, e
organizatoriamente, quanto à titularidade e ao exercício do poder, acolhendo os
mais importantes postulados da teoria democrática representativa — órgãos
representativos, eleições periódicas, pluralismo partidário, separação de
poderes.
Assegura, ainda, estruturas que, no domínio dos
direitos fundamentais, permitam o exercício da democracia mediante a exigência
de garantias de organização e de processos com transparência democrática (cfr.
J. J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional, 4.ª ed., 2.ª reimp., Coimbra, 1989, pp. 349 e segs.).
O direito eleitoral tem, neste campo, lugar evidente e
dele consta o princípio da periodicidade do voto.
Ainda aqui o princípio democrático, na sua dimensão
representativa, impõe o sufrágio periódico e a renovação periódica dos cargos
políticos impedindo a vitaliciedade de mandatos (cfr. os artigos 116.º, n.º 1,
e 121.º da CR e Gomes Canotilho, ob.
cit., p. 355).
Também neste ponto o princípio democrático se articula
com o princípio do Estado de direito.
Observa a este respeito, o autor citado (ibidem):
[...] a duração do período de
exercício dos cargos deve ser previamente fixada no texto constitucional, proibindo-se
qualquer alteração desta delimitação temporal, a não ser nos casos e pelas
formas previstas na própria Constituição (cfr. artigos 131.º/2 e 174.º/2). A renovação dos cargos traduz-se, em geral,
em eleições simultâneas ou sucessivas para os diferentes órgãos de
soberania. O princípio democrático,
articulado com o princípio do Estado de direito, proíbe qualquer alteração ou inversão legal da ordem de eleições. Poder a tempo, mudado no
tempo constitucionalmente previsto, é, pois, a consequência fundamental do
princípio da renovação (cfr. artigo 196.º/6).
6 — Na sua projecção normativa eleitoral, o princípio
democrático exige uma investidura ad
tempus, repelindo o vitalício e impondo a renovação.
Não se vê, no entanto, na teorização do princípio e na
respectiva praxis, nas suas dimensões
material, organizatória e procedimental, arrimo justificativo do alargamento de
inelegibilidades — a eventual razoabilidade de algumas das motivações
adiantadas não abala a necessidade de credencial constitucional para alteração
do elenco de inelegibilidades, à revelia das excepções previstas no n.º 3 do
artigo 50.º da CR.
Poderia, no entanto, defender-se estar a limitação de
mandatos prevista no artigo 121.º da CR — princípio da renovação — e constituir
a precipitação de um princípio republicano, com expressão universal no domínio
do direito eleitoral.
E que, a essa luz, o legislador ordinário detém certo
espaço de manobra na criação de inelegibilidades com o que pretenderia
assegurar, mais do que a livre escolha dos eleitores, essencialmente a isenção
e independência do exercício dos respectivos cargos.
Poderia, ainda, esboçar-se um certo paralelismo —
senão mesmo parificação — entre Presidente da República e presidentes das
câmaras para recorrer à norma sobre reeligibilidade prevista quanto ao primeiro
no artigo 126.º da CR e, desse modo, considerá-la afloração de princípio geral
a observar quanto aos segundos ou a estes aplicável por analogia, como chegou a
ser aventado (cfr. relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais,
Direitos, Liberdades e Garantias, in Diário
da Assembleia da República, II Série-A, n.º 6, de 31 de Outubro de 1990, p.
90).
Nem uma nem outra das objecções procede.
6.1 — Quanto à primeira, dado o presidente da câmara
não desempenhar a título vitalício o cargo e estar sujeito ao voto de confiança
do eleitor, periodicamente exercido por sufrágio (o princípio da renovação
identifica-se, nestes casos, com o da eleição periódica) não é de invocar, em
abono de tese limitativa, o princípio republicano.
Como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira — ob. e vol. cit., p. 87 —, «a
proibição de exercício a título vitalício de qualquer cargo apenas exige que os
respectivos titulares não sejam designados por toda a vida; não exige que sejam
designados por tempo determinado (desde que a todo o tempo renováveis), nem
proíbe que os venham a exercer por toda a vida (através de sucessivas
renovações da eleição ou nomeação, conforme os casos)».
A harmonização da proibição da vitaliciedade com a
limitação de mandatos pode ser defendida, com boas razões, doutrinalmente
(cfr., a propósito, Jorge Miranda, Um
Projecto de Constituição, Braga, 1975, artigo 259.º, e Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, pp. 71 e 72) mas
não resiste ao texto constitucional vigente (o que, de resto, está implícito no
n.º 14 da exposição de motivos do projecto de Código Eleitoral).
E, por seu lado, admitir que o legislador ordinário
possa, em nome de um dos parâmetros estabelecidos no artigo 50.º, n.º 3, da CR,
criar restrições deste tipo nesta matéria, contrariaria a ratio essendi desta norma — norma geral legitimadora da fixação de
inelegibilidades, colmatando uma melindrosa lacuna, na opinião de José
Magalhães (Dicionário da Revisão
Constitucional, 1989, p. 50) — e a regra da excepcionalidade das restrições
que a jurisprudência deste Tribunal vem, aliás, destacando a este propósito,
após a 2.ª Revisão Constitucional (cfr., por todos, o Acórdão n.º 528/89, na II
Série do Diário da República, de 22
de Março de 1990).
6.2 — Também não procede qualquer juízo de similitude
entre as figuras do Presidente da República e do presidente de câmara — o que
não deixou de estar subjacente nos trabalhos preparatórios não só no apelo à
analogia, como já se sublinhou, como na motivação invocada pelo PRD no
preâmbulo justificativo do seu projecto de lei n.º 596/V.
O Presidente da República é um órgão de soberania (CR,
artigo 113.º, n.º 1), com competência constitucionalmente definida, como tal
ligado, necessária e primeiramente à soberania como poder próprio e originário
do Estado, possuindo os demais órgãos não soberanos de entidades autónomas,
diferenciadas do Estado, ou não, uma qualidade e uma consistência secundária de
poder, para seguir Jorge Miranda de perto (cfr. Funções..., pp. 92-93).
À competência do Presidente da República reserva a Lei
Fundamental um capítulo próprio (Capítulo II do Título II da Parte III)
constituindo a matéria da sua eleição reserva absoluta da competência
legislativa da Assembleia da República [alínea a) do artigo 167.º da CR].
Compreende-se, a esta luz, a razão de ser de uma norma
como a do artigo 126.º da CR: a permanência demasiado longa no cargo comporta
riscos de pessoalização do poder, no sistema de eleição directa, e o exercício
da renúncia, sem limitações, proporcionaria uma utilização abusiva e
fraudulenta do respectivo direito (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 2.º vol., p. 101, ao
ilustrarem a asserção com a figura do «homem de palha»: renúncia do PR —
eleição do «homem de palha» — renúncia deste — eleição do antigo PR
renunciante).
Não há, na verdade, símile possível entre o Presidente
da República, no exercício personalizado de um poder político através de uma
magistratura com o suporte institucional mais elevado, e um presidente de câmara
que, constitucionalmente, é o primeiro candidato da lista mais votada para o
município — autarquia local — sendo, por esse facto, o detentor de competências
próprias — as elencadas exaustivamente no artigo 53.º do Decreto-Lei n.º
100/84, de 29 de Março, na redacção do artigo único da Lei n.º 18/91, de 12 de
Junho — no órgão executivo colegial do município que é a câmara municipal,
responsável perante a assembleia municipal.
Ou seja, o presidente da câmara não é eleito
pessoalmente mas tão só o primeiro candidato da lista mais votada, sendo uma só
a eleição para presidente e para os outros membros da câmara; falecendo,
renunciando, suspendendo temporariamente as funções, é substituído por quem na
lista que encabeçava se lhe seguir (artigo 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
100/84); não é, enfim, órgão municipal, pelo que não exerce qualquer
magistratura a esse nível.
Salienta, a este propósito, Freitas do Amaral,
considerando o actual sistema português, ter a assembleia municipal sobre a
câmara «uma supremacia, uma superioridade, que confirma a situação de
subalternidade em que a câmara se encontra perante a Assembleia Municipal»,
facto que, a seu ver, comprova a ideia de que a câmara depende, efectivamente,
da assembleia municipal (cfr. Curso de
Direito Administrativo, vol. i, Coimbra, 1986, p. 472).
Inexiste, por conseguinte, razão para invocar o
Presidente da República e a limitação dos dois mandatos, ditada pela
necessidade de acautelar uma extrema personalização do exercício das
respectivas funções, transferindo esse instrumental argumentativo para o âmbito
dos presidentes de câmara.
Também, pelo exposto, a renúncia à presidência de um
executivo municipal não briga (necessariamente, pelo menos) com os parâmetros
acolhidos no n.º 3 do artigo 50.º: a eventualidade de um recurso fraudulento a
esta figura é uma hipótese a ter em conta que nem por isso justifica uma
restrição excepcional ao critério fixado pela norma constitucional.
À possibilidade de uma renúncia abusiva, contrariando
os valores de isenção e independência que se pretendem acautelar, sempre se
poderia contrapor a dignificação desses valores caso a renúncia se devesse ao
reconhecimento de um exercício não cabal de funções...
Na verdade, a questão não deve ser tratada em termos
relativizantes, sob pena de diluição casuística e correspondente
enfraquecimento do núcleo essencial do direito fundamental em causa.
Seja como for, o legislador constituinte optou pela
defesa de determinados valores — no caso, além do mais, a isenção e
independência do exercício dos respectivos cargos — e essa intenção
axiológico-normativa condiciona estritamente a liberdade de conformação do
legislador ordinário e só é concebível à luz dos princípios constitucionais que
integram o sistema dos direitos fundamentais.
Ou seja, a unidade sistemática da Lei Fundamental
impõe que se parta do «sistema» para o «problema» (e não ao invés), não
permitindo que a tensão dialéctica porventura criada «dê» uma resposta ao
problema que não passe pelo sistema.
Ao fim e ao cabo, está em jogo o princípio da
proporcionalidade, aferido mediante estalões de necessidade e adequação, sendo
certo que o núcleo essencial de protecção máxima deverá manter-se intocado e
que a realização óptima de cada um dos valores em jogo não é realizável em
termos matemáticos, como se exprime J. C. Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 222).
Ora, não só o n.º 3 em análise é tributário, em boa
parte, do n.º 2, e, consequentemente, da resposta que a este se dá, como, na
perspectiva jurídico-constitucional, aquela norma representa um desnecessário e
inadequado limite, inadmissível à luz do n.º 2 do artigo 18.º da CR.
Aliás, descendo ao terreno do casuístico — pese a
reserva ao método — choca o intérprete, pelo que tem de drástico e
desproporcionado, impedir a um presidente de câmara renunciante a candidatura a
vereador, embora situado na lista respectiva em ordem supostamente ao abrigo de
chamamento para preencher o cargo.
7 — O artigo 2.º do Decreto viola, por conseguinte, o
n.º 3 do artigo 50.º da CR.
E, do mesmo passo, os n.os 2 e 3 do artigo
18.º: os fundamentos invocados para legitimação da medida, sediáveis, afinal,
no interesse público, não são suficientemente relevantes para o justificar.
A liberdade de actuação do legislador ordinário
poderia ser equacionada e ponderada se as inelegibilidades em causa se
apresentassem como restrições absolutamente exigíveis, adequadas e
proporcionadas à salvaguarda daquele interesse, concretizado nos valores de
isenção e independência do exercício funcional dos cargos.
Não é, manifestamente, o caso, como o demonstram as
válvulas de segurança contidas nos próprios princípios constitucionais
expressamente invocados ou implicitamente considerados: o democrático, o do
Estado de direito democrático, o republicano, o do sufrágio e da eleição
periódicos ou o da renovação.
IV — A decisão
Na sequência do exposto o Tribunal Constitucional
decide:
— Pronunciar-se
pela inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º do Decreto n.º 356/V da
Assembleia da República, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.os
2 e 3, e 50.º, n.º 3, da Constituição da República.
Lisboa, 31 de Julho de 1991.
Alberto
Tavares da Costa
António
Vitorino
Armindo
Ribeiro Mendes
Antero
Alves Monteiro Diniz
Maria da
Assunção Esteves (parcialmente vencida, nos termos da declaração de voto junta)
Vítor
Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração que junto)
José
Manuel Cardoso da Costa (vencido em parte, conforme declaração de voto junta).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevi o acórdão na sua quase integralidade, mas
discordei do entendimento segundo o qual, nos casos de renúncia injustificada
ao cargo, a restrição temporária à elegibilidade não é constitucionalmente
admissível.
Com efeito, a norma geral do artigo 18.º, n.º 2, e a
norma especial do artigo 50.º, n.º 3, da Constituição, devem ser, como
quaisquer outras normas de Direito, interpretadas de acordo com a sua
funcionalidade teleológica e não apenas lógico semântica. Para mais, tratando-se de normas sobre
direitos fundamentais que, do ponto de vista da estrutura lógica, apresentam a
estrutura de princípios (cfr. Alexy), quer dizer, não implicando injunções
previamente determinadas quanto à totalidade dos seus efeitos, mas revelando um
amplo espaço de conformação e abertura a
valores ético-políticos constitucionalmente reconhecidos, a determinação do seu sentido injuntivo comporta
ainda mais uma argumentação e ponderação assentes nesses valores.
Neste caso, o legislador, ao não deixar apenas para o
juízo político a tutela da fiabilidade e
correcção do desempenho dos cargos políticos não está a estabelecer uma
restrição injustificada que afecte o núcleo essencial do direito ou outros valores
constitucionalmente garantidos, mas a mover-se num plano de razoabilidade e
proporcionalidade. — Maria da Assunção
Esteves.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Fiquei vencido quanto à decisão tomada pelo Tribunal
na parte referente ao n.º 3 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 701-B/76, de 29 de
Setembro, na redacção que lhe era dada pelo artigo 2.º do Decreto n.º 356/V, da
Assembleia da República.
Com efeito, entendo que os presidentes das câmaras e
vereadores que renunciem aos cargos para que foram legitimamente eleitos,
recusando-se a continuar a exercer um mandato a que voluntariamente se
propuseram, devem ser impedidos de se proporem a uma nova candidatura nas
eleições que se realizarem imediatamente após tal renúncia e no quadriénio
subsequente.
Admitindo, embora, que é de afastar a concepção de que
a inelegibilidade pode ser cominada como sanção para actos que, no plano dos
valores constitucionais, surgem como censuráveis, julgo que para determinadas
situações cuja tipificação sempre seria obrigatória, a solução sub judice não deveria ser rejeitada.
A experiência comum ensina que situações existem em
relação às quais é de pôr em dúvida a seriedade dos motivos e, portanto, a
autenticidade das candidaturas e em que o manobrismo político se sobrepõe aos
interesses das populações.
Nesses casos a isenção e a independência do exercício
dos cargos, estão, logo à partida, colocados em riscos gravíssimos.
Por essa razão, legítimo seria ao legislador
acautelá-los, como se fazia no diploma agora declarado inconstitucional.
Por estes motivos, e ainda porque entendo que algumas
das razões que estão na base da inelegibilidade do Presidente da República, na
sequência de uma renúncia ao mandato (artigo 126.º da CRP), podem também ser
convocadas para o caso dos presidentes das câmaras e vereadores, ressalvadas as
devidas proporções e diversa situação face aos cargos que um e outros exercem (v. g., a hipótese de renúncia sem
limitações pode proporcionar uma utilização abusiva e fraudulenta do respectivo
direito), não acompanhei, nesta parte, a decisão do Tribunal. — Vítor Nunes de Almeida.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Embora pudesse não ser de todo em todo insustentável
reconduzir a regra da limitação dos mandatos, prevista na norma em apreço,
ainda a uma ideia de «independência» da função — e portanto, prima facie, ao correspondente segmento
do n.º 3 do artigo 50.º da Constituição —, o Tribunal considerou, ao fim e ao
cabo, não ser legítimo um tão largo entendimento deste preceito da lei
fundamental. Uma vez que, no caso, o argumento
da «independência» não se ligaria, de facto, a qualquer circunstância exterior à própria função (e estranha,
por isso, à própria «lógica eleitoral»), acompanhei, em derradeira análise, a
interpretação estrita (ou mais estrita) que o Tribunal fez, neste ponto, da
cláusula constitucional sobre inelegibilidades — e, consequentemente, votei a
inconstitucionalidade da norma sub
judicio na parte em que dá nova redacção ao n.º 2 do artigo 4.º do
Decreto-Lei n.º 701-B/76.
Já não assim, porém, quanto à parte do preceito em que
se dá nova redacção ao n.º 3 do mesmo artigo 4.º Com efeito, creio que a solução nele vertida já teria bem mais
sólido, e suficiente, fundamento no n.º 3 do artigo 50.º da Constituição
justamente enquanto garantia da isenção e independência do exercício do cargo,
as quais não se compadecem, seja com actos de renúncia menos reflectidos, ou
até fúteis, seja mesmo (e é bem pior) com a utilização da renúncia com intuitos
de puro «manobrismo» político, desfiguradores da «seriedade» do processo
eleitoral. Em consequência, não votei a
inconstitucionalidade da disposição em apreço, nessa parte. — José Manuel Cardoso da Costa.