ACÓRDÃO N.º 326/90
Processo n.º 50/90
1ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
– RELATÓRIO
1. - O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal judicial da Comarca de Montemor-o-Novo acusou A. como autor material de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos artigos 296.º e 297.º, n.ºs 1 e 2 e alínea c), do Código Penal, e ao qual corresponde uma pena abstracta de um a dez anos de prisão.
Porém, tendo em atenção o facto de o arguido, à data dos factos, ter apenas 22 anos de idade e ser delinquente primário, requereu o Ministério Público o seu julgamento em tribunal singular, pois entende não ser caso de aplicar pena superior a três anos de prisão.
Fundamentou-se tal requerimento no preceituado no artigo 16.º n.º3, do Código de Processo Penal de 1987 (CPP87), na redacção do Decreto-Lei n.º 387-E/87, de 29 de Dezembro, que confere ao tribunal singular competência para julgar os crimes previstos no artigo 14.º, n.º 2, do CPP (que, em princípio, deveriam ser julgados em tribunal colectivo), desde que o Ministério Público entenda que, em concreto, ao caso não deva vir a ser aplicada pena superior a três anos de prisão.
O senhor juiz, todavia, não acompanhou tal entendimento e, por despacho de 5 de Fevereiro de 1990, recusou a aplicação ao caso sub judicio do preceituado no artigo 16.º, n.º3 do CPP87, com fundamento em inconstitucionalidade desta norma por violar os princípios consignados nos artigos 13.º, 29.º, n.º3, 205.º, n.º 1 e 2, 32.º n.º 1, 5 e 7, da Constituição da República Portuguesa.
2. - Deste despacho recorreu, obrigatoriamente, o Ministério Público, tendo o seu ilustre representante junto deste Tribunal produzido alegações, nas quais conclui pela forma seguinte:
" 1.º A norma do n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo penal não viola qualquer norma ou princípio constitucionais;
2.º Deve, em consequência, conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão em conformidade com o precedente juízo de não inconstitucionalidade."
O arguido não apresentou qualquer contra-alegação.
3. - A questão que se suscita nos presentes autos é a de saber se o Artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 387-E/87, de 29 de Dezembro, viola (ou não) os preceitos dos artigos 13.º, 29, n.º 3, 32.º, n.ºs 1, 5 e 7, 205.º, 206.º e 224.º da Constituição – referidos no despacho em recurso – ou quaisquer outros e é, por isso, inconstitucional.
E, embora no despacho se refira também o n.º 4 do artigo 16.º, o certo é que a conformidade constitucional de tal norma não pode discutir-se no processo na medida em que a mesma não foi aplicada pelo despacho recorrido, sendo certo que nunca tal norma poderia estar em causa nesta fase processual, uma vez que a sua aplicabilidade nos autos está dependente da aplicabilidade do n.º 3 do preceito. Isto é, a norma do n.º 4 do artigo 16.º só poderá ser aplicada na fase do julgamento e depois de se ter aplicado o preceito do n.º 3 o qual foi expressamente desaplicado pelo despacho recorrido.
Assim, apenas se curará de conhecer da única questão de constitucionalidade suscitada nos autos – a da norma do n.º 3 do artigo 16.º do CPP87 –, que se passa a apreciar.
Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso, tendo-se cumprido os vistos legais.
II – FUNDAMENTOS
4.º - O artigo 16.º, n.º 3 do CPP, na sua actual redacção, tem o seguinte teor:
Artigo 16.º
(Competência do tribunal singular)
1- (…)
2- (…)
3- Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos no artigo 14.º, n.º 2, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou em requerimento, quando for superveniente o conhecimento do concurso entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos ou medida de segurança de internamento por mais do que esse tempo.
De acordo com o preceituado no n.º 2 do Artigo 14.º, o Ministério Público pode requerer o julgamento em tribunal singular dos seguintes crimes:
a) Crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa (alínea a) do n.º 2 do artigo 14.º);
b) Crimes cuja pena máxima abstractas mente aplicável, for superior a três anos de prisão (alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º).
Porém, estas infracções deveriam ser julgadas perante o tribunal colectivo, na medida em que é este tribunal que tem competência para julgar os processos por crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja superior a três anos de prisão (artigo 14.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Ora, no caso em apreço, decorre das normas incriminadoras – artigos 296.º, 297.º, n.º 1, alínea a) e 299.º, do Código Penal – que a pena máxima abstractamente prevista é superior a três anos de prisão, pelo que seria o julgamento do caso da competência do tribunal colectivo, a menos que o Ministério Público usasse, como usou, da competência que lhe é outorgada pelo artigo 16.º, cuja conformidade constitucional se questiona.
5. - A questão equacionada, foi já objecto de várias decisões deste Tribunal, todas no sentido da inexistência de inconstitucionalidade, no seguimento do Acórdão n.º 393/89, de 18 de Maio de 1989 (Diário da República, IIª Série, n.º 212, de 14 de Setembro de 1989), onde se fez uma análise profunda e global da questão e no qual, embora com dois votos de vencido, se decidiu ser o preceito do Artigo 16.º, n.º 3, do CPP, na sua actual redacção, inteiramente conforme à Constituição (ver os Acórdãos n.ºs 435, 436, e 465, de 1989 - in Diário da República, IIª Série, n.ºs 212 e 218 de 1989 e 25, de 1990, respectivamente - e Acórdãos n.ºs 41, 43, 44, 48, 95, 96, 97, 100, 101, 102, 137, 140, 142, 143, 145, 147, 164, 165, 166, 167 e 168, todos de 1990 e ainda inéditos).
Ora, nada vem aduzido nos autos, que permita fundamentar qualquer alteração da jurisprudência então firmada, que por isso deve manter-se, parecendo-nos que bastará, para o efeito, fazer-se uma síntese dos argumentos que basearam tal posição do tribunal quer no acórdão referido em primeiro lugar quer nos Acórdãos que se lhe seguiram.
6.- Vejamos, antes de mais, a «história» do preceito, para depois se proceder ao enquadramento constitucional das questões suscitadas nesta sede.
6.1- O Código de Processo Penal de 1987 consagrou uma única forma de processo penal comum, cuja tramitação concreta passou a depender de o processo dever ser julgado pelo júri, pelo colectivo ou pelo juiz singular. Interessa ao caso, a questão da partilha da competência entre o tribunal colectivo e o tribunal singular e, a este respeito, o princípio geral é o de que ao colectivo cabe julgar os processos relativos a crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a 3 anos de prisão.
Tal princípio não é absoluto, como se demonstrou largamente no Acórdão 393/89, pois não só há crimes cuja pena máxima é superior a três anos e são julgados pelo tribunal singular, como ao invés, o tribunal colectivo julga crimes cuja pena máxima não é superior a três anos.
O que desde logo significa que o mecanismo do n.º 3 do artigo 16.º não é, em si mesmo, susceptível de violar qualquer norma ou princípio constitucional" (Acórdão n.º 393/89).
A origem da norma resultou do facto de se ter reconhecido que, assentando a separação da competência entre o colectivo e o juiz singular no critério da gravidade do crime imputado, havia necessidade de retirar do âmbito do colectivo causas que, pela simplicidade dos factos ou pela confissão do arguido de todo em todo se não justificava serem julgadas por aquele tribunal.
Assim, o projecto do CPP previa já o mecanismo do actual preceito, mas a sua efectivação dependia de não haver oposição do assistente ou do arguido, com remessa do processo para o colectivo, caso tal oposição se verificasse com oportunidade e eficácia.
Neste mesmo sentido se orientava a proposta de lei do Governo (n.º 21/IV), mas o texto aprovado na Assembleia da República veio a ser modificado, eliminando-se a possibilidade de oposição do assistente e do arguido, deixando de ser possível a remessa do processo para o tribunal efectivamente competente.
As razões deste diferente regime foram alinhadas no referido Acórdão n.º 393/89: "Essas razões têm a ver, por um lado, com a necessidade de maior eficácia da justiça penal: pretendeu-se evitar que o assistente, por simples vingança pessoal, por exemplo, se oponha à intervenção do tribunal singular como forma de retardar o julgamento do arguido; e quis, também, contornar-se a tendência que alguns juízes poderiam manifestar de remeter, por sistema, os processos para o tribunal colectivo".
6.2- Embora o despacho recorrido tenha apenas mencionado a violação de seis normas constitucionais pelo preceito em questão, o certo é que este Tribunal pode fundamentar uma eventual declaração de inconstitucionalidade na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada – Artigo 51.º, n.º 5 , da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
Assim, seguindo de muito perto a jurisprudência do Tribunal constante dos Acórdãos já publicados (393/89, 435/89, 436/89 e 465/89) far-se-á a análise o mais sintética possível dos argumentos constantes de tais arestos relativamente às diversas disposições constitucionais reles vantes para esta matéria.
6.3- O artigo 16.º n.º 3 e os artigos 205.º, 206.º e 208.º da Constituição (versão de 1982).
O artigo 205.º da CRP estabelecia que "os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo", e o artigo 206.º (sempre na versão de 1982, em vigor à data da decisão), ao definir a função jurisdicional determinava que "Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados". O artigo 208.º estabelece a independência dos Tribunais.
Destes preceitos conjugados, decorre o princípio da «reserva do juiz», ou seja, de que o exercício da função jurisdicional cabe aos tribunais, devendo ser conjugado com o da independência dos mesmos tribunais.
A realização cabal desta função só pode ocorrer se os tribunais forem independentes – exigência constante do artigo 208.º da CRP – e a independência dos tribunais exige a independência dos juízes, que, no dizer do Acórdão 393/89, "é, acima de tudo, um dever ético-social [que] vem a traduzir-se no dever de julgar «apenas segundo a Constituição e a lei», sem sujeição a quaisquer ordens ou instruções".
No entender do Tribunal, a norma em causa não contende com a «reserva do juiz» pelo Ministério Público, na medida em que mesmo que se use a faculdade do n.º 3 do art.º 16.º, ainda assim quem julga é, afinal, o juiz; só que, a moldura penal em que se pode mover está condicionada, porquanto, por força do n.º 4 do preceito, no caso, a pena a aplicar não pode ser superior a três anos de prisão.
Não há, aqui, a atribuição de quaisquer funções materialmente judiciais ao Ministério Público, mas antes e tão-somente por parte deste o "exercício de um poder expressamente definido na lei", enquanto titular único do «ius puniendi» do Estado (v. para maiores desenvolvimentos, do Prof. Dr. Figueiredo Dias, "Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal", Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, pg. 3 e ss e pg. 19 a 22).
Não se verifica, pois, qualquer violação dos artigos 205.º, 206.º e 208.º da Constituição.
6.4. - O artigo 16.º n.º3 do CPP e o artigo 224.º da Constituição versão de 1982.
Neste preceito contém-se uma referência ao estatuto da Magistratura do Ministério Público, determinando-se que "goza de estatuto próprio" (no n.º 2) e definem-se as funções desta magistratura, à qual "compete representar o Estado, exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar".
Do preceito decorre, de acordo com a jurisprudência da Comissão Constitucional, o chamado «princípio da legalidade da acção penal», segundo o qual o Ministério Público está obrigado a requerer o julgamento por todas as infracções desde que disponha de suficientes indícios e de mais elementos para acusar.
Ao princípio da legalidade opõe-se o princípio da oportunidade, em que o Ministério Público pode não exercer a acção penal por meras razões de conveniência (política ou outras).
A faculdade consagrada no n.º 3 do artigo 16.º do CPP nem representa uma qualquer afloração do princípio da oportunidade, nem muito menos, viola o princípio da legalidade.
De facto, "quando o Ministério Público requer a intervenção do tribunal singular para julgar infracções que, por serem puníveis com pena de prisão que no seu limite máximo excede três anos, deveriam, em princípio, ser julgadas pelo tribunal colectivo, o que ele, justamente, está a fazer é a exercer a acção penal, embora de certo modo, ou seja, manifestando o desejo de que ao réu se não aplique pena de prisão superior a três anos".
O que mostra bem que o preceito em causa não deixa na inteira discrição do Ministério Público o exercício ou não exercício da acção penal – hipótese em que, na verdade, haveria violação do princípio da legalidade.
Acresce que o preceito tem uma razão de ser bem real e ponderosa: visou o legislador ao estabelecê-lo, tornar mais eficaz a justiça penal, aliviando o tribunal colectivo do julgamento de casos em que, com base num juízo prévio de prognose, acabariam por vir a ser aplicadas penas que caberiam dentro da competência do juiz singular.
Não há, pois, violação do artigo 224.º da Constituição, nem no aspecto relativo à competência do Ministério Público, nem no que se refere ao princípio da legalidade.
6.5- O artigo 16.º n.º 3 e o artigo 32.º n.º 7, da Constituição.
Este normativo constitucional determina que: "Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior".
Decorre deste preceito o "chamado princípio do juiz natural ou do juiz legal", princípio que "tem a ver com a independência dos tribunais perante o poder politico" e que "esgota o seu conteúdo de sentido material na proibição da criação «ad hoc», ou da determinação arbitrária ou discricionária «ex post facto», de um juízo competente para a apreciação de uma certa causa penal" (v. Figueiredo Dias, in Rev. Leg. Jur., ano 111.º, pp. 83 e ss.).
Assim, nenhuma violação de tal princípio ocorre com o preceito em causa, pois, a determinação do tribunal em casos como o dos autos, não é "arbitrária, discricionária ou discriminatória", mas antes realizada através dos critérios legais de determinação concreta da pena só deixando ao Ministério Público a possibilidade de, em casos de extrema simplicidade, condicionar a moldura penal aplicável em concreto.
6.6. - O n.º 3 do artigo 16.º e o artigo 32.º n.º 1 da Constituição.
Este preceito constitucional determina que: "O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa".
Decorrerá da aplicação do n.º 3 do art.º 16.º do CPP uma diminuição das garantias de defesa do arguido que seja insuportável para o sistema jurídico constitucional?
Parece que não.
De facto, embora o julgamento através do tribunal singular ofereça ao arguido menores garantias do que um julgamento em tribunal colectivo, o certo é que, o recurso à faculdade do n.º 3 referido provoca inelutavelmente a aplicação do preceituado no n.º 4, da mesma disposição e, por esta norma, fica limitado o poder condenatório do juiz que, em tal caso, não pode condenar em pena de prisão superior a três anos, pelo que não pode aqui falar-se de qualquer restrição intolerável das garantias de defesa do arguido.
Costuma ainda aduzir-se que a norma em causa vai permitir que o Ministério Público «escolha» o juiz mais conveniente para o caso, manipulando, assim, por forma ilegítima, a competência para julgar.
Esta objecção esquece, porém, que "no processo penal o Ministério Público não é uma «parte» que esteja interessado na condenação do réu", mas, pelo contrário, o seu interesse "é a descoberta da verdade", pelo que o Ministério Público, sempre que possa escolher o "tribunal do julgamento, tem de orientar por critérios de estrita legalidade e objectividade" – ou seja, pelos "critérios legais de determinação da pena".
6.7. - O n.º 3 do artigo 16.º do CPP87 e o artigo 32.º n.º 5.º da Constituição.
Quando se confronta a norma em causa com o n.º 5 do artigo 32.º da Lei Fundamental que estabelece que "o processo criminal tem estrutura acusatória", consagrando o chamado «princípio do acusatório», tem de se chegar à conclusão de que tal norma não viola o preceito ou princípio constitucional referido.
Este, tem o sentido de que é exigência constitucional a separação entre a entidade investigadora e acusadora do facto criminal e a entidade julgadora.
Ora, este princípio assim definido em nada é afectado pelo artigo 16.º, n.º 3 do CPP87. De facto, é sempre o Ministério Público quem acusa e o juiz quem julga, fixando a medida concreta da pena dentro da moldura legalmente aplicável ao caso.
Nem se diga que o Ministério Público quando usa a faculdade legal que se vem analisando, para além de deduzir a acusação, aprecia e valora os factos e limita a pena a aplicar. De facto, o que se verifica é que, neste caso, como em todos os outros casos em que o Ministério Público acusa, se limita a "fixar o se e o objecto concreto da actividade processual do juiz", mas continua a ser este quem julga os factos constantes da acusação (v. acórdão n.º 97/90, ainda inédito).
Inexiste, por isso, qualquer desconformidade entre a norma do n.º 3 do artigo 16.º do CPP87 e o princípio do acusatório constante do n.º 5 do artigo 32.º da CRP.
6.8. - O n.º 3 do artigo 16.º e o n.º 3 do artigo 29.º da Constituição (versão de 1982).
Estabelece este preceito da nossa Lei Fundamental que "Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior".
Consagra-se aqui o chamado «princípio da legalidade», não podendo ser aplicadas quaisquer penas que não estejam previamente fixadas em texto de lei.
Considera-se que tal princípio é violado pelo facto de o Ministério Público, ao usar da faculdade do n.º 3 do artigo 16.º, estar a alterar a moldura abstracta da pena pré-fixada e com isto a colocar na disponibilidade de tal magistratura uma verdadeira "faculdade legiferante".
Ora, sem dúvida que o Ministério Público ao usar da referida faculdade condiciona a fixação concreta da pena; porém, fá-lo no uso do poder punitivo que o Estado lhe concede em exclusivo e, por isso, no uso de um poder expressa e legalmente reconhecido, sem que, com isso, invada a competência do juiz ou a do legislador.
Aliás, é manifesto que ao requerer que o julgamento se faça perante o juiz singular o Ministério Público apenas limita a moldura penal abstracta, reduzindo-a por forma a que a pena concreta não possa ultrapassar a pena de prisão de três anos: não cria qualquer moldura penal nova que não se contivesse já na que consta do Código Penal.
Não há, assim, qualquer violação do referido princípio da legalidade.
6.9. - O n.º 3 do artigo 16.º e o principio da igualdade – Artigo 13.º da Constituição.
O princípio da igualdade constante do artigo 13.º da Constituição costuma desdobrar-se em três vertentes: proibição do arbítrio (que torna inadmissível quer o estabelecimento de diferenciações de tratamento sem qualquer justificação material razoável quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais), proibição de discriminação (que torna ilegítimas quaisquer diferenciações de tratamento baseadas em categorias subjectivas ou em razão dessas categorias) e a obrigatoriedade de diferenciação (como forma de compensar a desigualdade de oportunidades).
No despacho recorrido a violação do princípio resultaria de que «ao dar ao Ministério Público aquele poder de fixar o limite da pena máxima, impedindo a valoração e aplicação da lei penal violada sem essa restrição pelo órgão independente tribunal, está-se a pôr na mão do Ministério Público um instrumento de desigualdades perante a lei», pois, «o juiz com tal preceito, não condena de acordo com a lei geral e abstracta (igual para todos), mas antes com a lei concreta do Ministério Público».
Ora, parece manifesto que o artigo 16.º, n.º 3 do CPP87 não viola, por si mesmo, o princípio constitucional da igualdade na sua dimensão de proibição do arbítrio na medida em que a norma tem um fundamento material razoável e racional, tendo em consideração a natureza e a especificidade das situações nela previstas e dos efeitos que pretende atingir.
"É, de facto, inteiramente compreensível, razoável e justificável que a norma em questão permita ao Ministério Público que requeira o julgamento pelo tribunal singular, e não pelo tribunal colectivo, sempre que entenda que ao caso não virá a ser aplicada pena de prisão superior a três anos" (v. acórdão n.º 97/90, ainda inédito).
Não pode esquecer-se que o tribunal colectivo tem um funcionamento mais pesado, pelo que, se não for aliviado dos casos em que, presumivelmente, se viria a aplicar uma pena que não ultrapassaria os três anos de prisão, se corre o risco de dificultar o funcionamento do colectivo, com todas as consequências para a justiça penal, que não mais corresponderia às necessidades de celeridade e eficácia.
Por outro lado, o Ministério Público ao usar da faculdade legal do n.º 3 do artigo 16.º do CPP87 está vinculado a um critério de estrita legalidade e objectividade, por forma a tratar igualmente os casos materialmente iguais, respeitando necessariamente os critérios gerais de determinação da medida concreta da pena fixados no artigo 72.º do Código Penal.
Assim, conclui-se que também o princípio da igualdade não é violado pelo n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal de 1987.
Por todas as razões que ficam resumidamente alinhadas e que mais desenvolvidamente foram referidas no acórdão 393/89 e nos Acórdãos deste Tribunal ainda inéditos, conclui-se no sentido de que a norma do n.º 3 do Artigo 16.º, do Código de Processo Penal não é inconstitucional.
III – DECISÃO
Nestes termos e, de acordo com tudo quanto fica exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser reformado de acordo com o aqui decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 13 de Dezembro de 1990
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves
Antero Alves Monteiro Diniz
José Manuel Cardoso da Costa