ACÓRDÃO N.o 71/90[1]
Processo: n.º 68/90.
Plenário.
Relator: Conselheiro António Vitorino.
Acordam, em plenário, no Tribunal
Constitucional:
I
Em 10 de Março de 1990, o Presidente da República, nos
termos do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 278.º da Constituição,
conjugados com o disposto nos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, ambos da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, requereu a apreciação preventiva da
constitucionalidade dos artigos 13.º, n.º 1, 17.º, n.º 1, e 19.º do Decreto n.º
239/V, da Assembleia da República, respeitante à «Lei-Quadro das
Privatizações».
O Presidente da República suscitou a apreciação preventiva
da constitucionalidade desses três dispositivos da Lei-Quadro das
Privatizações, com os seguintes fundamentos:
a) quanto ao n.º 1 do artigo 13.º por, ao deferir para o
decreto-lei do Governo de transformação em sociedades anónimas das empresas públicas a reprivatizar os
fundamentos da adopção das modalidades de negociação previstas nos n.os 3
e 4 do artigo 6.º, as condições especiais de aquisição de acções e o período de
indisponibilidade a que se referem os artigos 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 2, do
Decreto, sem definir esses fundamentos e os limites de tal período, poder
violar o disposto no artigo 85.º, n.º 1, e 296.º, alíneas a) e d), da Constituição,
ao delegar dessa forma no Governo o exercício de competências indelegáveis da
Assembleia da República;
b) quanto ao n.º 1 do artigo 17.º, que prevê que a reprivatização
de empresas públicas com sede e actividade principal nas regiões autónomas se
revestirá da forma estabelecida no artigo 4.º, mediante a iniciativa e com o
parecer favorável do governo regional de cada região, por poder violar o
disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição,
já que de tal forma se estaria a retirar às regiões autónomas poderes de
disposição do seu património próprio;
c) quanto ao artigo 19.º, que remete para o Governo a
definição da forma e do modo como os
trabalhadores das empresas objecto de reprivatização irão manter, no processo
de reprivatização, todos os direitos e obrigações de que sejam titulares, por
poder tal remissão contender com o disposto nos artigos 85.º, n.º 1, e 296.º,
alínea c), da Lei Fundamental, já que
assim se estaria a delegar no Governo competências indelegáveis da Assembleia
da República.
O requerimento foi apresentado em tempo, visto que o
Decreto em causa deu entrada na Presidência da República em 6 de Março e o
prazo para suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade é de oito
dias contados a partir da data da recepção do diploma para promulgação, nos
termos do n.º 3 do artigo 278.º da Lei Fundamental, na redacção que lhe foi
dada pela Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho.
Ao abrigo da faculdade que lhe é conferida pelo disposto no
n.º 8 do artigo 278.º da Constituição, o Presidente da República, invocando a
«urgência das privatizações», fixou em dez dias o prazo para pronúncia do
Tribunal Constitucional.
Admitido o pedido, foi o Presidente da Assembleia da
República notificado para sobre ele se pronunciar, nos termos e para os efeitos
do disposto no artigo 5.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, tendo vindo
oferecer o merecimento dos autos e tendo junto exemplares do Diário da Assembleia da República referentes
ao debate da impugnação de admissibilidade da proposta de lei correspondente,
ao debate na generalidade e à avocação ao Plenário do debate e votação de
diversas disposições, na especialidade, da mesma iniciativa legislativa e aos
relatórios que sobre ela foram emitidos pela Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e pela Comissão de Economia,
Finanças e Plano. O Presidente da
Assembleia da República juntou ainda na sua resposta cópia de um ofício do
Presidente desta última Comissão, acompanhada de cópia de duas declarações de
voto, documentos todos eles referentes à redacção final do diploma em causa no
concernente ao n.º 1 do artigo 17.º
Nada obstando, cumpre decidir.
II
1 — As questões suscitadas pelo Presidente da República
compreendem dois tipos de problemas fundamentais: por um lado, questões
atinentes à densificação normativa da
Lei-Quadro por referência às normas constitucionais aplicáveis, daí decorrendo
como consequência a definição do âmbito da subsequente intervenção legislativa
do Governo (as referentes aos artigos 13.º, n.º 1, e 19.º) e, por outro,
questões referentes à solução adoptada para reprivatização
de empresas públicas com sede e actividade principal nas Regiões Autónomas dos
Açores e da Madeira (as colocadas acerca do n.º 1 do artigo 17.º).
Analisaremos primeiro aquelas e só depois estas últimas.
O Decreto da Assembleia da República apreciando foi
aprovado pelo Parlamento ao abrigo do disposto nos artigos 85.º, 164.º, alínea d), e 169.º, n.º 3, da Constituição,
sendo, como a sua própria epígrafe indica, a «lei-quadro de privatizações» a
que se refere o primeiro daqueles preceitos constitucionais.
O artigo 85.º foi introduzido na segunda revisão
constitucional, em substituição do anterior artigo 83.º, que consagrava o
princípio da irreversibilidade das nacionalizações directas operadas após 25 de
Abril de 1974.
A segunda revisão da Constituição da República, neste
domínio, traduziu-se na eliminação daquela proibição constitucional e na
consagração de um complexo normativo tendente a permitir e a regular a
privatização das empresas que haviam sido objecto de nacionalização directa
após o 25 de Abril de 1974.
Tal complexo normativo assenta nos seguintes elementos fundamentais:
a) desde
logo no próprio artigo 85.º, que
dispõe que «a reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de
meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 só
poderá efectuar-se nos termos da lei-quadro aprovada por maioria absoluta dos
Deputados em efectividade de funções» (n.º 1 do preceito), matéria da exclusiva
competência da Assembleia da República;
b) no disposto no artigo 296.º, em sede de disposições finais e transitórias da
constituição, que consagra os princípios
fundamentais que deverão ser observados por aquela lei-quadro, a saber:
— a reprivatização da
titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens
nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 realizar-se-á, em regra e
preferencialmente, através de concurso público, oferta na bolsa de valores ou
subscrição pública [alínea a)];
— as receitas obtidas
com as reprivatizações serão utilizadas apenas para amortização da dívida
pública e do sector empresarial do Estado, para o serviço da dívida resultante
de nacionalizações ou para novas aplicações de capital no sector produtivo
[alínea b)];
— os trabalhadores das
empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da
respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares
[alínea c)];
— os trabalhadores das
empresas objecto de reprivatização adquirirão o direito à subscrição
preferencial de uma percentagem do respectivo capital social [alínea d)];
— proceder-se-á à
avaliação prévia dos veios de produção e outros bens a reprivatizar, por
intermédio de mais de uma entidade independente [alínea e)];
c) na
lei-quadro das reprivatizações sujeita a uma especial maioria de aprovação
(maioria absoluta de Deputados em efectividade de funções) e aos princípios
fundamentais atrás enunciados, que nela deverão ser observados e aos quais se
subordinarão os subsequentes actos normativos compreendidos em cada processo de
privatização.
2 — A figura das leis-quadro enquanto tal não tinha
consagração constitucional até à segunda revisão (embora algumas leis
ordinárias por vezes tenham adoptado tal designação) e após esta apenas surge
referida nos preceitos acabados de citar.
Contudo, em outros ordenamentos jurídicos como, por exemplo, o francês,
tal categoria de actos legislativos não só encontra expresso acolhimento como
se reveste de assinalável projecção e relevância, quer pelas matérias sobre que
versam, quer pelo valor na hierarquia das normas que se lhes reconhece.
A doutrina portuguesa tem, por vezes, estabelecido certo
paralelismo entre aquela categoria legislativa do ordenamento gaulês e as leis
de bases ou mesmo as leis de autorização legislativa (v. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed.,
Coimbra, 1986, pp. 622 e segs.).
Sem curar agora e aqui exaustivamente da sua natureza ou do
bem fundado dos paralelismos possíveis face a outros ordenamentos, sempre se
poderá dizer que, à face do disposto na Constituição, esta lei-quadro das
reprivatizações é concebida como uma norma
sobre a produção normativa (à
semelhança do que sucede com as leis de autorização legislativa, com as
denominadas leis de enquadramento — caso da referente ao Orçamento do Estado —
e mesmo com algumas leis de bases), destinada a desempenhar uma função habilitante, na medida em que
constitui pressuposto da prática, pelo Governo, dos actos normativos de
reprivatização de cada empresa pública ou nacionalizada (os decretos-leis de
transformação das empresas em causa em sociedades anónimas — artigo 4.º do
Decreto — e as resoluções do Conselho de Ministros que aprovam as condições
finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização
— artigo 14.º do Decreto) — e dotada de
uma primariedade material e hierárquica (porque conformadora daqueles
decretos-leis e daquelas resoluções e sobre uns e outras naturalmente
prevalecente, não só em razão da sua específica função hierárquico-normativa,
mas também por força do princípio da repartição de competências entre os órgãos
de soberania — já que versando matéria sobre a qual primariamente só o
Parlamento detém competência legislativa).
3 — Do exposto decorre a relevância do grau de densificação normativa desta lei-quadro que há-de ser
aquele pretendido pela Constituição para desempenhar a tripla função
assinalada.
Desde logo, afigura-se tratar-se de uma lei de princípios, à semelhança das leis de bases, porquanto a
Constituição revista consagra ela própria expressamente, em disposição final e
transitória (artigo 296.º), um elenco daqueles que entendeu que nela deveriam
ter acolhimento.
Por outro lado, deverá tratar-se de uma lei ordenadora ou de enquadramento de um
processo normativo composto por um conjunto de actos nela previstos e a ela
subordinados, a praticar pelo Governo, e nisto consistirá a sua função
habilitante e simultaneamente conformadora.
Neste contexto, o único critério constitucionalmente
adequado para aferir da conformidade à Lei Fundamental da concretização
legislativa dos seus dispositivos será o da cabal tradução, no plano da
legislação ordinária, daqueles princípios constitucionais sediados no artigo
296.º
4 — Tal como sucede com as leis de bases, assiste, nesta
sede, ao legislador parlamentar uma apreciável margem de liberdade na
consagração legislativa dos princípios constitucionais. Poderá fazê-lo com maior ou menor detalhe,
desde que garanta sempre um núcleo essencial de tradução legislativa das regras
constitucionais em causa.
No caso vertente, o grau de densificação normativa desta
lei-quadro foi desde o início questionado quando do debate do parecer da
Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias que
versava sobre a impugnação da sua própria admissibilidade, que havia sido
deduzida por um grupo parlamentar. No
seu decurso, verificou-se que, segundo certo entendimento, o normativo proposto
pelo Governo ficava aquém do que seria constitucionalmente exigível para
efeitos de concretização dos princípios constitucionais. Para a tese oposta, a proposta impugnada
preenchia os necessários requisitos constitucionais de tradução normativa
daqueles valores que o legislador da revisão exigiria em princípios
fundamentais das reprivatizações (cfr. intervenções dos Deputados José
Magalhães e Almeida Santos no primeiro sentido e do Deputado Pais de Sousa no
segundo, in Diário da Assembleia da
República, I Série, n.º 15, pp. 435 e segs.).
5 — No que para o caso releva, trata-se de saber em
primeiro lugar e naquilo que ao n.º 1 do
artigo 13.º do Decreto respeita — porque só da sua constitucionalidade
cumpre tratar —, se a lei parlamentar regulou a matéria da escolha das
modalidades de reprivatização, dos fundamentos da adopção das modalidades de
negociação previstas na lei, das condições especiais de aquisição de acções e
do período de indisponibilidade das acções a adquirir por pequenos
subscritores, por emigrantes e pelos trabalhadores da empresa a reprivatizar,
em termos que dêem cabal garantia de efectivação dos princípios das alíneas a) e d)
do artigo 296.º
No entender do Tribunal a resposta a esta questão só pode
ser afirmativa, até porque o n.º 1 do artigo 13.º questionado, quanto ao que
aqui interessa, é um normativo meramente remissivo, dependendo, por isso, do
que noutros preceitos do mesmo Decreto se dispõe, a saber, artigos 11.º, n.º 1
e n.º 2, e 12.º, n.º 1, e só estes.
E responde-se afirmativamente desde logo quanto à garantia
constitucional de os trabalhadores da empresa objecto de reprivatização
adquirirem o direito a subscrição preferencial de uma percentagem do capital
social da respectiva empresa [alínea d)].
O próprio princípio constitucional tem expressa consagração
no disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto («Uma percentagem do capital
a reprivatizar será reservada à aquisição ou subscrição por pequenos
subscritores e por trabalhadores da empresa objecto da reprivatização»), os
trabalhadores beneficiarão de condições especiais para efeitos dessa subscrição
(artigo 11.º, n.º 2) e a regra da preferência reconhecida aos trabalhadores
(alargada também aos antigos trabalhadores que hajam mantido vínculo laboral
durante mais de três anos com a empresa pública ou com a empresa privada cuja
nacionalização esteve na base da criação dessa empresa pública) consta expressamente
do n.º 1 do artigo 12.º, onde se abre a possibilidade de atender ao tempo de
serviço efectivo para um eventual rateio da subscrição entre os trabalhadores e
onde se consigna que a preferência legal que assim lhes é reconhecida se
verificará sempre, qualquer que seja a forma escolhida para proceder à
reprivatização (n.º 1 do mesmo artigo 12.º).
Garantido assim o principio constitucional, nada obsta, do
ponto de vista da conformidade à Lei Fundamental, que o legislador estabeleça
período ou períodos de indisponibilidade das acções em causa como contrapartida
dessa preferência, encontrando esta preferência e aquele ónus um fundamento
comum que radica na ideia de, por esta forma, associar os trabalhadores à vida
e ao destino da nova empresa de forma mais íntima e com vocação de alguma
permanência.
A não fixação de um período determinado de
indisponibilidade também não ofende o princípio constitucional porquanto,
tratando-se em certa medida de um ónus decorrente daquela preferência e das
condições especiais de aquisição que aos trabalhadores serão facultadas, deverá
entender-se como sendo preferível deixar ao Governo, em cada caso, a decisão
que melhor se adeque às características da empresa a reprivatizar, não
decorrendo do preceito constitucional, em tese geral, que as referidas
condições especiais e o mencionado período de indisponibilidade devam ser os
mesmos para todos os casos.
Assim sendo, uma vez estabelecidas na lei-quadro as
garantias da consagração da reserva de subscrição preferencial de uma percentagem
do capital social das empresas a reprivatizar em benefício dos trabalhadores
dessa empresa, o legislador parlamentar definiu um quadro de referência que
obriga o Governo, em cada caso, a dar adequada concretização ao princípio
constitucional segundo um modelo flexível, assente numa liberdade de escolha da
solução que melhor corresponda à situação concreta de cada empresa a
reprivatizar.
Neste contexto, em cada decreto-lei de privatização terá o
Governo que determinar a concreta percentagem de capital a reservar aos
trabalhadores e pequenos subscritores, as especiais condições de aquisição que
lhes forem concedidas e o período de proibição de transacção a que essas acções
ficarão sujeitas, em termos de cabal preenchimento da preferência que a
Constituição em seu benefício estabelece.
6 — O mesmo se poderá dizer quanto aos fundamentos das
modalidades de negociação previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 6.º do
Decreto.
Com efeito, a lei-quadro acolhe o princípio da preferência
de realização das reprivatizações mediante concurso público, oferta na bolsa de
valores ou subscrição pública, no n.º 2 do artigo 6.º Daqui resulta, directamente, que tal será a solução-regra e que
as excepções — concurso aberto a candidatos especialmente qualificados e venda
directa — só poderão ter lugar quando se verifiquem as condições previstas no
corpo do n.º 3 do artigo 6.º e nas alíneas a)
e b), respectivamente, que assim
surgem como os tipos legais de fundamentos consentidos pelo diploma em causa
para afastar a regra geral.
Pelo que, neste contexto, ao Governo apenas caberá indicar,
de entre as várias razões constantes do artigo 8.º da lei-quadro que permitem o
afastamento da regra geral, aquela ou aquelas que no caso fundamentaram a sua
opção.
Naturalmente que se poderia conceber uma diferente solução
legislativa, de que resultasse uma menor liberdade de escolha para o Governo em
cada caso, eventualmente uma diferente vinculação ao critério constitucional do
regime-regra, mas um tal juízo sobre essa questão não tem nesta sede cabimento,
porquanto a solução encontrada no artigo 13.º do Decreto apreciando é
suficiente para traduzir o núcleo essencial do pertinente critério
constitucional e fornece um quadro de referência relevante para nortear a opção
do Governo em cada caso, cuja conformidade à Lei Fundamental sempre terá que
ser assegurada.
Acresce que a relevância das próprias razões susceptíveis
de serem invocadas (o interesse nacional, a estratégia definida para o sector de
actividade económica onde a empresa se insere, a sua concreta situação económico-financeira,
requisitos atinentes à estratégia de desenvolvimento empresarial, de mercado e
a razões de índole tecnológica), a sua adequação aos objectivos das
reprivatizações previstos no artigo 3.º do Decreto, a garantia da avaliação
feita por duas entidades independentes (artigo 5.º), a obrigatoriedade de
existência nos ajustes directos de um caderno de encargos com indicação de
todas as condições da transacção (artigo 8.º, n.º 2), o facto de a opção pela
modalidade de venda escolhida constar de decreto-lei do Governo e a
circunstância de incumbir especialmente à Comissão de Acompanhamento das
Reprivatizações a verificação dos limites e regras constantes do artigo 1.º, são
tudo aspectos que efectivamente limitam a margem de escolha do Governo e
possibilitam o accionamento de mecanismos de controlo quanto às razões da sua
opção e à sua adequação aos princípios constitucionais pertinentes, quer se
trate dos mecanismos específicos desta lei, quer dos mecanismos de fiscalização
jurisdicional e de controlo político em geral.
Do exposto resulta que o legislador parlamentar não deixou
de curar, com algum detalhe, dos condicionalismos que garantam a efectivação do
princípio constitucional constante da alínea a) do artigo 296.º da Constituição, sem embargo de reconhecer ao
Governo uma ampla liberdade de escolha fundada em critérios gerais e em função
das condições objectivas de cada empresa a reprivatizar e do próprio momento da
reprivatização, mas fê-lo dentro de limites que se podem considerar como
adequados ao fim prosseguido pelo princípio constitucional.
7 — Vejamos de seguida a segunda questão colocada pelo
pedido do Presidente da República, atinente ao grau de densificação normativa
da lei-quadro, quanto à garantia de todos os direitos dos trabalhadores no
processo de reprivatização
No caso vertente, o artigo 19.º do Decreto limita-se a
reproduzir ipsis verbis o normativo
constitucional, sem nada lhe acrescentar.
Em tese geral, e tratando-se, como atrás se viu, de uma
lei-quadro com uma vocação enquadradora e ordenadora do processo de
reprivatizações, a mera reprodução do preceito constitucional, se não se pode
ter por violadora da Lei Fundamental, sempre se poderia considerar como insuficiente
no plano da densificação normativa, e consequentemente, por essa via,
defraudaria a reserva legislativa parlamentar.
Por absurdo, se a lei-quadro em todo o seu articulado se
limitasse a reproduzir o artigo 296.º da Constituição, não consagraria
preceitos em si mesmos contrários à Lei Fundamental, mas mesmo assim violaria a
Constituição, porque esvaziava de conteúdo útil a competência legislativa
parlamentar decorrente do disposto no n.º 1 do artigo 85.º da CRP, por insuficiente
densificação normativa.
Mas se esta conclusão parece legítima em tese geral,
vejamos se será igualmente no caso do artigo 19.º
Sobre este preceito, o Deputado João Proença no debate
parlamentar (Diário da Assembleia da
República, I Série, n.º 15, p. 482) afirmou que «(...) quando refere os
direitos e obrigações fixados na proposta de lei do Governo, eu diria que o que
lá está é o mesmo que nada. Isto porque
o Governo se limita a repetir o que está na alínea c) do artigo 296.º da Constituição.
Assim, estar ou não estar seria exactamente a mesma coisa, pois a
Constituição tem sempre de ser aplicada.
Efectivamente, o que tem de figurar numa lei-quadro é a forma como este
princípio irá ser aplicado».
Abordando a mesma temática, no mesmo debate, o Secretário
de Estado Adjunto e das Finanças (loc.
cit., p. 481) afirmou: «Sr. Deputado,
não considera que o artigo 13.º da proposta de lei do Governo [correspondente
ao artigo 19.º do Decreto], que estipula
que os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no
processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos de que sejam
titulares, diz tudo? Mais: não considera que, na prática até agora adoptada em
todos os processos de reprivatização — onde os trabalhadores têm sido ouvidos
no acto de transformação do estatuto da empresa pública em sociedade anónima de
capitais públicos, e expressamente se referem ao processo de privatização,
dando ou não o seu acordo a esse processo —, isso tem sido rigorosamente
cumprido em todos os actos e assim continuará a ser enquanto a legislação assim
consagrar?»
Desta passagem do debate parlamentar resulta que segundo um
entendimento a mera reprodução do texto constitucional nada diz, segundo outro
entendimento diz tudo, relevando agora apurar se, no caso, o Decreto diz tudo o
que a tal propósito a Constituição exige que seja dito.
8 — O princípio constante da alínea c) do artigo 296.º da Constituição constitui simultaneamente uma
garantia dos direitos dos trabalhadores no processo de reprivatização e uma
proibição de, no mesmo processo, poderem ser adoptados regimes excepcionais
derrogatórios dos direitos dos trabalhadores legal ou contratualmente
assegurados aos mesmos no momento do início desse referido processo.
Enquanto princípio ou norma de garantia, o preceito
constitucional invocado constitui uma
regra de aplicação directa, uma vez que em face do seu teor a protecção
dispensada aos direitos dos trabalhadores no processo de reprivatização
abrange, de facto, todos os direitos e
obrigações de que estes forem titulares, não distinguindo a Lei Fundamental
entre os que têm origem legal e os que têm origem contratual, não cabendo, por
isso, invocar a incompletude do Decreto por este se limitar — neste ponto — a
reproduzir o que a Constituição estipula e que, como já referimos, vigora plena
e directamente no ordenamento jurídico.
Enquanto princípio ou regra que coenvolve uma obrigação que
impende sobre o Governo de não introduzir em qualquer processo de
reprivatização disposições cerceadoras dos direitos dos trabalhadores ou
limitadoras das obrigações a que os mesmos estão vinculados perante a empresa a
reprivatizar, esta obrigação de non facere legislativo, este comando de abstenção dirigido ao
Governo, não carece também de qualquer densificação legislativa específica no
âmbito da lei-quadro para produzir os efeitos pretendidos pela Constituição.
Sublinhe-se ainda que, sobre esta matéria, o Decreto
verdadeiramente não se limita a reproduzir a Constituição, uma vez que, para
além do que é expressamente exigido pela Lei Fundamental, do n.º 3 do seu
artigo 4.º resulta também concretizado o princípio constitucional em causa, ao
dispor que «a sociedade anónima que vier a resultar da transformação continua a
personalidade jurídica da empresa transformada, mantendo todos os direitos e
obrigações legais ou contratuais desta».
Ora, deste dispositivo, por si só, decorre já que os direitos e
obrigações dos trabalhadores perante a empresa pública ou nacionalizada onde
trabalham como que se transferem para a sociedade anónima criada no quadro do
processo de reprivatização, resultando assim também deste princípio da
continuidade da personalidade jurídica da empresa a reprivatizar a garantia da
subsistência de todos os direitos e obrigações dos seus trabalhadores, como
pretende o preceito da alínea c) do
artigo 296.º da Constituição.
Face ao exposto, conclui-se que o princípio desta mesma
alínea c) do artigo 296.º da
Constituição não carece, nem quanto ao seu âmbito de aplicação, nem quanto à
sua concreta operatividade jurídica, de densificação legislativa específica no
plano da lei-quadro, pelo que desta não decorre assim nenhum acréscimo de
competência legislativa do Governo, nem qualquer norma de reenvio legislativo
em seu benefício com prejuízo da esfera de intervenção constitucionalmente
reservada ao Parlamento. Pelo que em
nada contende com o normativo constitucional em causa.
9 — Finalmente, o Presidente da República coloca a questão
de saber se o disposto no n.º 1 do artigo
17.º não violará o preceito da alínea h) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição, isto é, se o processo que
o Decreto consagra para reprivatização das empresas públicas ou nacionalizadas
que tenham sede e actividade principal nas Regiões Autónomas dos Açores e da
Madeira não contenderá com a norma constitucional que consagra como poderes das
regiões «administrar e dispor do seu património e celebrar os actos e contratos
em que tenham interesse».
A Proposta de Lei n.º 121/V, de que resultou o Decreto
analisando, não continha qualquer norma correspondente à do n.º 1 do artigo
17.º deste último, o mesmo acontecendo, aliás, com o Projecto de Lei n.º 441/V,
da iniciativa do Partido Socialista, que foi debatido na generalidade
conjuntamente com a proposta de lei do Governo.
A disposição em análise viria a surgir no debate na
especialidade na Comissão de Economia, Finanças e Plano, no seguimento de uma
proposta de aditamento de um novo artigo, apresentada pelos Deputados do
Partido Social Democrata, que viria ainda a ser alterada pelo Plenário da
Assembleia da República.
Ao mesmo tempo, foram rejeitadas duas propostas de
aditamento subscritas por Deputados do PS e do PCP, uma no sentido de a decisão
de privatizar as empresas públicas regionais ser tomada por decreto legislativo
regional, cabendo aos governos regionais exercer, em relação a essas empresas,
as competências atribuídas pela lei-quadro ao Governo da República, e outra que
propunha o estabelecimento de um protocolo entre o Governo da República e os
governos regionais que garantisse formas de cooperação em matéria de
privatizações.
Uma vez aprovada a versão que consta do Decreto, e
conforme ofício do Presidente da
Comissão de Economia, Finanças e Plano junto aos autos, em sede de redacção
final, os Deputados do PSD apresentaram uma proposta de alteração da redacção
do n.º 1 do artigo 17.º do seguinte teor: «1. A
reprivatização de empresas públicas com sede e actividade principal nas Regiões
Autónomas da Madeira e dos Açores, far-se-à por decisão do Governo, sob a forma
estabelecida no artigo 4.º, desde que se registe a iniciativa e o parecer
favorável do respectivo governo regional».
Justificando a sua proposta, aqueles Deputados escreveram
que «decorre inequivocamente dos princípios constitucionais que a competência
legislativa do Governo é indelegável. A
iniciativa legislativa do Governo pode estar sujeita a pressupostos para o seu
exercício, mas nunca fica o Governo vinculado a fazer uso obrigatório da sua
competência legislativa.
O artigo 17.º, n.º 1, do texto deve entender-se
precisamente nestes termos: o Governo não está autorizado a privatizar empresas
regionais se não houver iniciativa e parecer favorável do respectivo Governo
Regional; mas, existindo aqueles é livre de decidir fazer ou não a privatização
através do necessário decreto-lei.
Compreende-se que assim seja, pois as empresas públicas regionais
integram o património das respectivas regiões e delas não pode o Governo dispor
livremente; mas, por outro lado, porque a privatização se realiza no mercado de
capitais que é nacional e é único o Governo deve ter a competência de se
manifestar no sentido de fazer ou não.
Considerando, porém, que no debate em plenário desta
proposta de lei se suscitaram dúvidas — que pelo acima exposto se julgam
carecidas de fundamento —, no âmbito do pensamento legislativo que se entende
fluir do texto aprovado, apenas no intuito de o tornar mais claro propõe-se nos
termos do artigo 161.º, n.º 2, do Regimento a seguinte modificação de
redacção:» seguia-se a proposta de redacção já atrás transcrita.
Contudo, por oposição de um dos Deputados da Comissão que
considerou não se tratar de uma mera correcção de redacção, esta proposta não
obteve vencimento.
10 — Conforme resulta do exposto, o tratamento desta
matéria não foi pacífico no decurso do debate parlamentar.
Assim e em primeiro lugar, cumpriria apurar se as empresas
públicas em causa integram ou não o conceito constitucional de património
próprio das regiões autónomas e, subsequentemente, caso a resposta fosse
afirmativa, se a solução encontrada no Decreto para a reprivatização dessas
empresas seria limitativa do âmbito de poderes dos órgãos de governo próprio
das regiões quanto à administração e disposição do património regional.
Com efeito, para quem entenda que as denominadas empresas
públicas regionais não se podem considerar abrangidas pelo conceito de
património próprio das regiões autónomas, então o preceito questionado pelo Presidente
da República não padecerá de qualquer vício de inconstitucionalidade.
Quem tenha entendimento contrário, terá que apurar qual o
alcance dos poderes constitucionalmente conferidos às regiões autónomas em
relação ao seu património próprio para aferir da conformidade à Lei Fundamental
da solução constante do artigo 17.º, n.º 1, do Decreto apreciando.
A versão originária da Constituição, na alínea h) do artigo 229.º, dispunha que eram
atribuições das regiões autónomas, a definir nos respectivos estatutos,
«superintender nos serviços, institutos públicos e empresas nacionalizadas que
exerçam a sua actividade exclusivamente na região e noutros casos em que o
interesse regional o justifiquem».
Com base neste normativo, o 6.º Governo Constitucional
aprovou o Decreto-Lei n.º 315/80, de 20 de Agosto, que, no seu artigo 1.º,
determinava que «são transferidas do domínio privado do Estado para o das
regiões autónomas as empresas públicas e nacionalizadas que nelas tenham a sua
sede e exerçam a actividade principal em qualquer delas». No mesmo diploma (artigo 2.º) estatuía-se
que «os poderes que na lei ou nos estatutos das empresas referidas no artigo
anterior sejam atribuídos ao Conselho de Ministros ou aos vários Ministérios
passam a competir ao Governo Regional da região autónoma em que a empresa tenha a sua sede».
Com este diploma, o Governo da República pretendeu proceder
à transferência da propriedade e da tutela das empresas públicas e
nacionalizadas que tenham sede e exerçam a título principal a sua actividade na
região para o âmbito do domínio privado das regiões, de que resultaria,
naturalmente, a integração das mesmas no património das regiões autónomas.
Património esse que na versão originária da Constituição
era garantido pelo disposto na alínea e)
do artigo 229.º que estabelecia já que competia às regiões «administrar e
dispor do seu património e celebrar os actos e contratos em que tenham
interesse».
O Estatuto Político-Administrativo dos Açores vigente à
época, aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, no seu artigo 89.º, referia
que «a Região tem activo e passivo próprios, competindo-lhe administrar e
dispor do seu património» e no artigo
91.º, alínea a), estatuía que
integravam o domínio privado da região «os bens do domínio privado do Estado
existentes no território regional, excepto os afectos aos serviços estaduais
não regionalizados» aos quais a alínea d)
acrescentava «os bens adquiridos pela Região, dentro ou fora do seu
território, ou que por lei lhe pertençam».
Nos termos da alínea
c) do artigo 27.º deste mesmo diploma era definida como matéria de
interesse específico da região a «orientação,
direcção, coordenação e fiscalização dos serviços e institutos públicos e das
empresas nacionalizadas ou públicas que exerçam a sua actividade exclusivamente
na Região», matéria que era de igual forma integrada na esfera de competência
do governo regional pela alínea e) do
artigo 44.º
Por seu turno, o Estatuto Provisório da Região Autónoma da
Madeira, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 318-D/76, de 30 de Abril, na redacção
que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 427-F/76, de 1 de Junho, dispunha, no seu
artigo 60.º, que «integram o património da Região os bens do extinto distrito
autónomo, os que por ela vierem a ser adquiridos e os que vierem a ser
definidos no estatuto definitivo».
Ainda o mesmo diploma previa que competia ao governo
regional, nos termos do artigo 33.º, alínea d),
«superintender nos serviços, institutos públicos e empresas nacionalizadas que
exerçam a sua actividade exclusivamente na Região e, em termos a fixar no estatuto definitivo, noutros casos em que
o interesse regional o justifique».
A revisão constitucional de 1982 viria a deixar inalterada
a alínea e) do artigo 229.º, mas
modificou a redacção da alínea h),
que passou a j), com a seguinte
formulação: «Superintender nos serviços, institutos públicos e empresas
públicas e nacionalizadas que exerçam a sua actividade exclusiva ou
predominantemente na região, e noutros casos em que o interesse regional o
justifique».
Finalmente, a revisão de 1989 manteve a redacção de ambos
os preceitos atrás mencionados e, para o que no caso releva, limitou-se a
permitir que as regiões possam, no âmbito dos respectivos poderes legislativos
próprios, desenvolver leis de bases gerais do estatuto das empresas públicas
«em função do interesse específico das regiões» [artigo 229.º, n.º 1, alínea c) ].
O Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira
mantém-se ainda em vigor, com a redacção decorrente do Decreto-Lei n.º
427-F/76, a que atrás aludimos, e o estatuto definitivo dos Açores já foi
objecto de revisão pela Lei n.º 9/87, de 26 de Março. Esta lei introduziu no artigo 26.º, n.º 1, uma alínea cv): disposição que no texto publicado
em anexo à referida Lei passou a ser a alínea h) do n.º 1 do artigo 32.º, que atribui à Assembleia Legislativa
Regional competência para criar empresas públicas, alterou a redacção da alínea
c) do artigo 27.º (novo artigo 33.º),
que passou a ser a seguinte: «Orientação, direcção, coordenação e fiscalização
dos serviços e institutos públicos e das empresas nacionalizadas ou públicas que
exerçam a sua actividade exclusiva ou predominantemente na Região e noutros
casos em que o interesse regional o justifique». O mesmo diploma alterou
ainda a redacção da alínea e) do
artigo 44.º, que no texto definitivo passou a ser a alínea f) do artigo 56.º, no sentido de que compete ao governo regional
«orientar, coordenar, dirigir e fiscalizar os serviços, os institutos públicos
e as empresas públicas e nacionalizadas que exerçam a sua actividade exclusiva
ou predominantemente na Região», deixando inalterados os artigos 89.º e 91.º,
que passaram, respectivamente, a artigos 103.º e 105.º
11 — Traçado o panorama da exclusão legislativa, cumpre
analisar as questões inicialmente suscitadas.
Começando pela Região Autónoma dos Açores, parece evidente que as empresas públicas que nela
tenham sede e actividade principal se devem considerar como integrando o
património regional. Tal decorre com
clareza do Decreto-Lei n.º 315/80, em perfeita sintonia com o disposto no
respectivo Estatuto Político-Administrativo no seu texto original, sobretudo no
artigo 91.º, alíneas a) e d).
Quanto à Região Autónoma da Madeira, não se verificou, até
ao momento, a mesma evolução estatutária.
No entanto, também a ela é aplicável o referido Decreto-Lei n.º 315/80;
e se o estatuto provisório não apresenta a clareza do estatuto dos Açores, a
verdade é que o seu artigo 60.º (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei
n.º 427-F/76) constitui, sem dúvida, cobertura estatutária suficiente para o
referido diploma. É que essa disposição,
ao determinar que integram o património da Região os bens «que por ela vierem a
ser adquiridos», não introduz qualquer limitação aos possíveis títulos de tal
aquisição, que assim poderão incluir, sem dificuldade, a transferência feita
pelo Governo da República, através de decreto-lei.
Analisando esta temática, escreveu Eduardo Paz Ferreira
(«Domínio Público e Privado da
Região», in A Autonomia como fenómeno cultural e político — comunicações
apresentadas na VII Semana de Estudos dos Açores, Angra do Heroísmo, 1987, p. 81):
Como o Professor
Sousa Franco podemos dizer que o património creditício integra do lado activo:
— os créditos, direitos de participação social e
outros direitos equivalentes com conteúdo patrimonial e material;
— os saldos de tesouraria do Estado;
— as participações do Estado em empresas
nacionais ou estrangeiras;
— a titularidade empresarial do Estado sobre a
generalidade das empresas públicas.
(…)
Aplicada à região,
essa autonomização de um património creditício seria particularmente relevante
em relação ao universo das empresas públicas regionais.
Com efeito, ainda
que as disposições que mais directamente regulam o património regional não
abordem directamente a existência de um sector público empresarial, tal
existência é hoje em dia incontroversa.
Não só a
Constituição atribui às regiões, no artigo 22.º, o poder de superintenderem nas
empresas públicas ou nacionalizadas, o que ainda permitiria alguma ambiguidade
quanto à titularidade de tais empresas, como o Decreto-Lei n.º 315/80 de 20 de
Agosto, veio expressamente determinar a transferência das empresas públicas com
sede nas regiões e que aí exerçam a sua actividade principal para património
regional.
Assim sendo, nesta interpretação, não restariam dúvidas que
as empresas públicas que tenham sede e actividade principal nas regiões
autónomas dos Açores e da Madeira integrariam os respectivos patrimónios
regionais.
12 — Admitindo, por ora, esta resposta à primeira das
questões colocadas apenas para efeitos de apreciação da temática sub judice, importa agora determinar
qual o alcance do preceito constitucional invocado pelo Presidente da República
para aferir da admissibilidade da solução constante do artigo 17.º, n.º 1, do
Decreto.
Estabelece o preceito constitucional pertinente que compete
às regiões autónomas «administrar e
dispor do seu património e celebrar os actos e contratos em que tenham
interesse».
Ora, mesmo para quem entenda que as empresas públicas com
sede e actividade principal nas regiões integram o património regional no
preciso sentido contemplado pela alínea
h) do n.º 1 do artigo 229.º da
Constituição, tal não poderia significar, contudo, que as regiões pudessem
dispor livremente, incondicionadamente, desse património. É lícito à lei, nomeadamente
a uma lei com as características já assinaladas da lei-quadro das
privatizações, criar limitações e condicionantes a essa liberdade de disposição
por parte das regiões autónomas. No
caso presente, a intervenção do Governo da República no processo de
privatização das empresas públicas com sede e actividade principal nas regiões
autónomas justifica-se plenamente, tendo em conta a evidente relevância
nacional da decisão e o seu especial estatuto constitucional. Tem, assim, pleno cabimento que a lei-quadro
confira ao Governo um poder de intervenção decisivo quanto ao processo de
privatização em causa, o que, contudo, não exclui de todo o interesse das
regiões.
Este interesse das regiões em intervir no processo de
privatização daquelas empresas públicas encontra, no entanto, satisfação cabal
nas formas de participação previstas no n.º 1 do artigo 17.º do Decreto.
É que, independentemente de outras razões que se poderiam
aduzir, é entendimento deste Tribunal que a reserva de iniciativa do processo
de privatização das empresas públicas com sede e actividade principal nas
regiões autónomas estabelecida pelo artigo 17.º, n.º 1, em benefício do governo
regional e a salvaguarda da necessária obtenção, pelo Governo da República, de
um parecer prévio favorável desse mesmo governo regional para adopção do
decreto-lei previsto no artigo 4.º do diploma em apreço constituem, por si só, requisitos suficientes para
garantir uma participação decisiva das regiões autónomas no processo de
reprivatizações em causa, sendo por isso inatacável a solução da lei-quadro do
ponto de vista juridico-constitucional. Pelo que, mesmo nesta óptica — ou seja,
no caso de se entender que as empresas públicas em causa integram o património
regional no preciso sentido contemplado pela alínea h) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição —, a participação
garantida pelo Decreto às regiões autónomas no processo de privatizações, que é
uma participação essencial, consome o conteúdo útil do referido preceito
constitucional quanto aos poderes das regiões no tocante a esse processo. De onde resulta que não existe a violação da
Lei Fundamental.
III
Nestes termos, o Tribunal decide:
a) não
se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 13.º do
Decreto n.º 239/V da Assembleia da República;
b) não
se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma do artigo 19.º do mesmo
Decreto;
c) não se pronunciar pela inconstitucionalidade
da norma do n.º 1 do artigo 17.º do referido Decreto..
Lisboa, 21 de Março de 1990. — António Vitorino (vencido quanto à alínea c) nos termos da declaração de voto que junto) — Bravo Serra — Vítor Nunes de Almeida —
Alberto Tavares da Costa — Fernando Alves Correia — Messias Bento — Maria da
Assunção Esteves — José de Sousa e Brito
(vencido quanto à alínea c),
com o alcance e pelas razões da declaração de voto do Sr. Conselheiro Relator)
— Luís Nunes de Almeida (vencido nos
termos e com os fundamentos da declaração de voto do Ex.mo Relator)
— Mário de Brito (vencido, nos termos
da declaração de voto junta) — Armindo
Ribeiro Mendes (vencido nos termos e com os fundamentos da declaração de
voto do Ex.mo Relator) — Antero
Alves Monteiro Diniz (vencido nos termos da declaração de voto agora junta)
— José Manuel Cardoso da Costa.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido a conclusão constante da alínea c) por entender, pelas razões que
constavam do Memorando que submeti à apreciação do Tribunal e que nesta parte
não logrou vencimento, que o disposto no n.º 1 do artigo 17.º do Decreto n.º
239/V viola o preceito constitucional da alínea h) do n.º 1 do artigo 229.º
Com efeito, e para além de outras razões de censura que se
poderiam aduzir quanto ao artigo 17.º, decorrentes da sua confrontação com
outros preceitos constitucionais, à solução do acórdão sempre se poderá
obtemperar que, não me oferecendo qualquer dúvida que as denominadas empresas
públicas regionais integram o património próprio das regiões autónomas, e
independentemente da reconhecida relevância que na solução do Decreto cabe à
participação dos órgãos regionais no processo de privatização daquelas
empresas, a verdade é que em última análise não
são eles que praticam o acto ou os actos em que se traduz a alienação desse
património regional, quer o acto de transformação da empresa pública
regional em sociedade anónima, quer o de alienação das respectivas partes
sociais. Desta forma resulta violado,
pelo menos, o segmento final da alínea h)
do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição, que inequivocamente reserva para as
regiões a prática dos actos e dos
contratos que lhes interessem em termos de administração e de disposição dos
seus patrimónios próprios.
Acresce que, como referi no Memorando citado e se reflecte
no acórdão, a norma constitucional em causa, uma vez garantida a impostergável
imputação do acto ou dos actos de disposição do património regional às
respectivas regiões, não impede, nem invalida, que a lei-quadro reserve ao
Governo da República, tendo em conta a relevância nacional da matéria e os termos do seu estatuto
jurídico-constitucional, uma intervenção decisiva e conformadora (quer quanto
ao momento quer quanto ao conteúdo) do concreto processo de reprivatização de
cada uma das empresas públicas regionais.
E desta forma se teria acatado integralmente a norma da Constituição sem
qualquer motivo de reparo ou censura.
Por estas razões votei no sentido da inconstitucionalidade
do n.º 1 do artigo 17.º do Decreto, por violação, entre outros, do artigo
229.º, n.º 1, alínea h), da
Constituição. — António Vitorino.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Estão em causa normas do decreto da Assembleia da
República que aprovou a «Lei-Quadro das Privatizações».
Na verdade, o artigo 85.º da Constituição da República
Portuguesa, na redacção resultante da Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de
Julho — Segunda revisão da
Constituição —, dispõe no seu n.º 1 que «a reprivatização da titularidade ou do
direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois
de 25 de Abril de 1974 só poderá efectuar-se nos termos da lei-quadro aprovada
por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções». E, por sua vez, o artigo 296.º fixa os
princípios fundamentais que essa «lei-quadro» deve observar.
Para decidir acerca da conformidade constitucional das
normas sujeitas a apreciação preventiva deste Tribunal interessa destacar os
seguintes princípios:
1.º a
«reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de
produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974
realizar-se-á, em regra e preferencialmente, através de concurso público,
oferta na bolsa de valores ou subscrição pública» [alínea a) do artigo 296.º];
2.º «os trabalhadores das empresas objecto de
reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa
todos os direitos e obrigações de que forem titulares» [alínea c) do referido artigo];
3.º «os trabalhadores das empresas objecto de
reprivatização adquirirão o direito a subscrição preferencial de uma
percentagem do respectivo capital social» [alínea d) do mesmo artigo].
O princípio enunciado em primeiro lugar tem expressão no
artigo 6.º do decreto da Assembleia da República, assim redigido:
1 — A reprivatização da titularidade realizar-se-á,
alternativa ou cumulativamente, pelos seguintes processos:
a) Alienação das
acções representativas do capital social;
b) Aumento do
capital social.
2 — Os processos previstos no número anterior
realizar-se-ão, em regra e preferencialmente, através de concurso público,
oferta na bolsa de valores ou subscrição pública.
3 — Quando o interesse nacional ou a estratégia definida
para o sector o exijam, ou quando a situação económico-financeira da empresa o
recomende, poderá proceder-se:
a) A
concurso aberto a candidatos especialmente qualificados, referente a lote de
acções indivisível, com garantias de estabilidade dos novos accionistas e em
obediência a requisitos considerados relevantes para a própria empresa em
função das estratégias de desenvolvimento empresarial, de mercado, tecnológicas
ou outras;
b) Por
venda directa, à alienação de capital ou à subscrição de acções representativas
do seu aumento.
4 — Os títulos transaccionados por concurso público
limitado ou venda directa são nominativos, podendo determinar-se a sua
intransmissibilidade durante determinado período a fixar no decreto-lei
referido no artigo 49.º do presente diploma.
O segundo princípio está repetido, pode dizer-se, ipsis verbis, no artigo 199.º desse
decreto:
Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização
manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos
e obrigações de que sejam titulares.
O terceiro princípio teve acolhimento ao artigo 12.º do
mesmo decreto, do seguinte teor:
1 — Os trabalhadores ao serviço da empresa a reprivatizar,
bem como aqueles que hajam mantido vínculo laboral durante mais de três anos
com a empresa pública ou com as empresas privadas cuja nacionalização originou
esta empresa pública, têm direito, independentemente da forma escolhida para a
reprivatização, a aquisição ou subscrição preferencial de acções, podendo para
o efeito atender-se, designadamente, ao tempo de serviço efectivo por eles
prestado.
2 — A aquisição ou subscrição de acções pelos trabalhadores
da empresa a reprivatizar beneficiará de condições especiais, não podendo essas
acções ser objecto de negócio jurídico que transmita ou tenda a transmitir a
sua titularidade, ainda que com eficácia futura, durante um determinado período
a contar da data da sua aquisição ou subscrição, sob pena da nulidade do
referido negócio.
3 — As acções adquiridas ou subscritas nos termos do
presente artigo não conferem ao respectivo titular o direito de votar na assembleia
geral por interposta pessoa, durante o período de indisponibilidade a que se
refere o numero anterior.
4 — Não beneficiarão do regime referido no numero 1 os
antigos trabalhadores da empresa que hajam sido despedidos em consequência de
processo disciplinar, e ainda os que hajam passado a trabalhar noutras empresas
com o mesmo objecto social daquela, por o contrato de trabalho ter cessado por
proposta dos trabalhadores interessados.
Para além deste «regime de aquisição ou subscrição de
acções por trabalhadores» institui o diploma, no artigo 11.º, um «regime de
aquisição ou subscrição de acções por pequenos subscritores e emigrantes»,
assim definido:
1 — A aquisição ou subscrição de acções por pequenos
subscritores e emigrantes beneficiará de condições especiais, desde que essas
acções não sejam transaccionadas durante um determinado período a contar da
data da sua aquisição ou subscrição.
2 — As acções adquiridas ou subscritas nos termos do número
anterior não conferem ao respectivo titular o direito de votar na assembleia
geral, por si ou por interposta pessoa, durante o período da indisponibilidade.
2 — Como se disse, estamos em presença de uma «lei-quadro».
Trata-se de uma categoria que não estava prevista na nossa
actual Constituição antes da segunda revisão, e mesmo após a Lei Constitucional
n.º 1/89 só é referida a propósito justamente da «reprivatização da
titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens
nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974».
Sem pretender fazer doutrina sobre tal categoria, direi
que, enquanto as chamadas «leis de bases» se limitam a consagrar as bases
gerais ou princípios rectores de um regime jurídico, ficando a cargo do
executivo a tarefa de desenvolver em decretos-leis essas bases ou
princípios [artigos 115.º, n.º 2, e 201.º, n.º 1, alínea c), da Constituição], no caso desta «lei-quadro» o que se prevê é a
emissão de um decreto-lei para cada empresa
a reprivatizar, através da sua transformação em sociedade anónima (artigo 4.º
do diploma em apreciação).
Esse decreto-lei é que, nos termos do artigo 13.º, n.º 1,
do mesmo diploma, «aprovará o processo, as modalidades de cada operação de
reprivatização, designadamente os fundamentos da adopção das modalidades de
negociação previstas nos n.os 3 e 4 do artigo 6.º, as condições
especiais de aquisição de acções e o período de indisponibilidade a que se
referem os artigos 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 2».
Estará isto de acordo com a Constituição?
É esta, com efeito, a primeira norma a respeito de cuja
constitucionalidade o Presidente da República tem dúvidas, por a mesma, ao
delegar no Governo tais competências, poder estar a violar os citados artigos
85.º, n.º 1, e 296.º, alíneas a) e d), da Constituição.
Ora, a este respeito poderá argumentar-se, como foi
salientado por alguns Deputados na discussão da proposta de lei do Governo
sobre tal matéria, que, exigindo a Constituição uma «lei-quadro» com
observância de princípios previamente fixados e com a aprovação de uma maioria
qualificada, não pode tal lei ser uma «autorização legislativa em branco» ou,
por outras palavras, têm as regras dela constantes de ser «materiais, espessas,
com conteúdo». Mais concretamente:
a) determinando a Constituição que a reprivatização seja
feita, de preferência, por concurso público, oferta na bolsa de valores ou
subscrição pública, não se pode admitir que o decreto-lei de reprivatização de
cada empresa coloque a escolha de qualquer das modalidades previstas nas alíneas
a) e b) do n.º 3 do artigo 6.º na dependência de critérios que recorram
a conceitos vagos como os de «interesse nacional», «estratégia definida para o
sector» ou «situação económico-financeira da empresa»;
b) consagrando a Constituição um direito dos
trabalhadores à subscrição preferencial de uma percentagem de capital social
das empresas objecto de reprivatização, não basta que o artigo 12.º, n.º 2
(como o artigo 11.º, n.º 1, para o caso de subscrição de acções por pequenos
subscritores e emigrantes), venha dizer que essa subscrição beneficiará de
«condições especiais», sem as especificar, e que sejam os decretos-leis de
reprivatização a fazer tal especificação;
c) esse artigo 12.º, n.º 2 (como o artigo 11.º, n.º 1),
deveria precisar o período durante o qual os trabalhadores da empresa (como os
pequenos subscritores e emigrantes) ficam impedidos de transaccionar as acções
por eles subscritas sem perda dos benefícios a que têm direito, não se
admitindo que sejam os decretos-leis de reprivatização a fixar esse período.
A norma do artigo 13.º, n.º 1, é, assim, inconstitucional,
por violação dos artigos 85.º, n.º 1, e 296.º, alíneas a) e d), da Constituição.
3 — Quanto à norma do artigo 17.º, n.º 1:
Segundo este número, «a reprivatização de empresas públicas
com sede e actividade principal nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores
revestir-se-á da forma estabelecida no artigo 4.º mediante a iniciativa e com
o parecer favorável do respectivo Governo Regional».
O acórdão não se pronuncia pela inconstitucionalidade desta
norma.
Mas admite o entendimento de que as «empresas públicas com
sede e actividade principal nas regiões autónomas» integrem o património dessas
regiões.
Ora, no meu modo de ver, as empresas em questão não fazem
parte do património das regiões. Que
assim é, resulta logo do confronto da alínea h) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição com a alínea n) do mesmo número: — se o património
das regiões abrangesse tais empresas públicas, não seria necessário que a
Constituição, depois de ter dito na primeira alínea que as regiões autónomas
tem o poder de «administrar e dispor do seu património», viesse dizer na
segunda que lhes cabe «superintenter» nas «empresas públicas e nacionalizadas
que exerçam a sua actividade exclusiva ou predominantemente na região».
É certo que pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 315/80, de
20 de Agosto, «são transferidas do domínio privado do Estado para o das regiões
autónomas as empresas públicas e nacionalizadas que nelas tenham a sua sede e
exerçam a actividade principal em qualquer delas».
Nada garante, porém, a conformidade constitucional de tal
norma.
Ora, não constituindo as empresas em questão património
próprio das regiões autónomas, não é inconstitucional a norma em questão, na
parte em que manda que a reprivatização das empresas públicas com sede e
actividade principal nas regiões autónomas seja feita por decreto-lei (do
Governo).
A haver inconstitucionalidade, ela estará, sim, na outra
parte da norma, ou seja, naquela que condiciona a reprivatização à «iniciativa»
e ao «parecer» favorável» do respectivo Governo Regional. — Mário de Brito.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Reconheceu-se no presente acórdão. relativamente à
Região Autónoma dos Açores, parecer «evidente que as empresas públicas que nela
tenham sede e actividade principal se devem considerar como integrando o
património regional. Tal decorre com
clareza do Decreto-Lei n.º 315/80, em perfeita sintonia, com o disposto no
respectivo estatuto político-administrativo no seu texto original [sobretudo no
artigo 91.º, alíneas a) e d)]».
E no tocante à Região Autónoma da Madeira a conclusão
alcançada não foi de sentido contrário, havendo-se, a tal respeito aduzido que
«(...) também a ela é aplicável o referido Decreto-Lei n.º 315/80; e se o
estatuto provisório não apresenta a clareza do estatuto dos Açores, a verdade é
que o seu artigo 60.º (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º
427-F/76) constitui, sem dúvida, cobertura estatutária suficiente para o
referido diploma. É que essa disposição, ao determinar que integram o
património da Região os bens ‘que por ela vierem a ser adquiridos’, não
introduz qualquer limitação aos possíveis títulos de tal aquisição, que assim
poderão incluir, sem dificuldade, a transferência feita pelo Governo da
República, através de decreto-lei».
Na verdade, parece ser incontroversa, à luz do
enquadramento normativo que disciplina esta matéria, a conclusão de que as
empresas públicas com sede e actividade principal nas regiões autónomas
integram os respectivos patrimónios regionais.
2 — Mas, sendo assim, tem-se por seguro que a norma do
artigo 17.º, n.º 1, do Decreto a que se reporta o pedido, colide com o disposto
no artigo 229.º, alínea h), da
Constituição.
Assegura-se neste preceito que às regiões autónomas
pertence o poder de «administrar e dispor do seu património e celebrar os actos
e contratos em que tenham interesse».
Ora, aquela norma, não só faz depender a reprivatização das empresas
públicas com sede e actividade principal nas regiões autónomas da edição de um
acto normativo do Governo, como também e ainda, no plano jurídico substancial,
a decisão final sobre a reprivatização ou não reprivatização fica a caber a
este mesmo órgão de soberania.
Deste modo, pese embora o facto de a iniciativa e o parecer
favorável do respectivo Governo Regional serem elementos condicionadores da
reprivatização (o Governo da República está impedido de reprivatizar sem que
previamente se hajam verificado tais pressupostos indispensáveis ao
funcionamento do processo), o certo é que, mesmo após o inteiro preenchimento
de tal condicionalismo, o Governo da República pode opor-se à manifestação de
vontade do Governo Regional e impedir a reprivatização que eventualmente este
tenha por inteiramente justificada na linha dos objectivos essenciais a que
devem obedecer as reprivatizações.
Não se questiona que a lei-quadro confira ao Governo um
significativo poder de intervenção no processo de reprivatização, pois que nada
obstacula a que a lei, nomeadamente uma lei com as características próprias de
uma lei-quadro, possa ter criado condicionamentos ao exercício da liberdade de
disposição patrimonial das regiões autónomas.
Mas já não se tem por legitimado que os condicionamentos
estabelecidos na lei-quadro, no rigor das coisas, possam impossibilitar o
exercício do direito constitucionalmente assegurado às regiões autónomas no
artigo 229.º, alínea h), impedindo estas de administrar e dispor
do seu património e de celebrar os actos e contratos em que tenham interesse.
Na verdade, e contrariamente ao que se refere no acórdão,
não se tem por exacta a afirmação ali contida de que «a reserva de iniciativa
do processo de privatização das empresas públicas com sede e actividade
principal nas regiões autónomas, estabelecida pelo artigo 17.º, n.º 1, em
benefício do governo regional e a salvaguarda da necessária obtenção, pelo
Governo da República, de um parecer prévio favorável desse mesmo governo
regional para adopção do decreto-lei previsto no artigo 4.º do diploma em
apreço constituem, por si só, requisitos
suficientes para garantir uma participação decisiva das regiões autónomas no
processo de reprivatizações em causa».
A participação garantida no processo de reprivatizações às
regiões autónomas, é tudo menos uma participação decisiva pois que, em
última análise, não depende delas mas sim de decisão e acto do Governo a concretização de uma eventual
disponibilidade do seu património empresarial.
Traduzindo este património
um importante instrumento de orientação da actividade económica, como forma de
satisfação de necessidades sociais, como fonte de obtenção de receitas e como
elemento propulsor do desenvolvimento económico, a gravosa limitação quanto a
ele estabelecida na norma do artigo 17.º, n.º 1, da lei-quadro acaba por representar
uma violação ao princípio consagrado no artigo 229.º, alínea h), da Constituição.
Isto já assim não seria se aquela norma, impondo embora às
regiões autónomas um apertado e rigoroso cumprimento de condições delimitadoras
das reprivatizações, provado que fosse a integral satisfação destas exigências,
reservasse para as regiões autónomas uma participação verdadeiramente decisiva no processo, isto é, a decisão sobre o
destino do seu património empresarial, bem como a prática dos actos através dos
quais aquela haveria de se concretizar.
Na linha do entendimento exposto, recusando que a
participação garantida às regiões autónomas no processo de reprivatizações, por
não ser uma participação decisiva, não consome o conteúdo útil do preceito
constitucional já citado, pronunciei-me no sentido da inconstitucionalidade da
norma do artigo 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei sob sindicância. — Antero Alves Monteiro Diniz.