ACÓRDÃO Nº 325/86
Processo nº 82/83.
2.ª Secção.
Relator: Conselheiro Cardoso da Costa.
Acordam na 2.a
Secção do Tribunal Constitucional:
I ? Relatório
1- A., com os sinais nos
autos, interpôs recurso para este Tribunal do despacho do presidente do
Tribunal da Relação de Lisboa, proferido, sob promoção do respectivo
Procurador-Geral Adjunto, em 23 de Junho de 1983, que legalizou e manteve a
detenção da recorrente efectuada ao «abrigo do disposto nos artigos 27°, nº 3,
alínea b), da Constituição da
República Portuguesa e 1º, nº 1, 2ºe 12ºtodos do Decreto-Lei nº 437/75, de 16
de Agosto».
Como fundamento do
recurso, invocou a recorrente «a caducidade, por inconstitucionalidade material
superveniente», tanto do citado artigo 12ºcomo ainda do artigo 11º do dito
Decreto-Lei nº 437/75 (diploma que define, no direito interno português, o
regime jurídico da extradição e bem pode designar-se, pois, por Lei da Extradição), emergente da sua
incompatibilidade com o disposto, justamente, na alínea b) do nº 3 do artigo 27° da Constituição.
Em alegações, a recorrente
desenvolveu amplamente a sua tese e os respectivos fundamentos. Uma e outros
foram contraditados pelo Ministério Público, representado pelo Exmo
Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, o qual se pronunciou, assim, nas suas
alegações, no sentido do não provimento do recurso, mas só no caso de se
entender que ele devia prosseguir.
2- Na verdade, este último
magistrado começou por suscitar nas suas referidas alegações a questão da
inutilidade superveniente do recurso, argumentando que, tendo o processo de
extradição da recorrente entrado, entretanto, na sua «fase judicial», se
tornara irrelevante a situação de detida da mesma recorrente, enquanto
legalizada inicialmente pelo despacho impugnado.
Ouvida sobre esta questão
prévia, veio a recorrente contrapor que o recurso mantinha utilidade, atento,
designadamente, o disposto no artigo 27°, nº 5, da Constituição (direito a
indemnização no caso de prisão inconstitucional ou ilegal).
Decidindo tal questão,
veio este Tribunal a desatendê-la - e a dar razão, quanto a ela, à recorrente -
pelo seu Acórdão nº 90/84, de 30 de Julho de 1984. E isto não obstante já se
encontrar junta aos autos cópia do Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de
Setembro de 1983, que decretou a extradição da recorrente, Sophia Wagter, para
o Reino da Noruega.
3- Havendo o recurso
prosseguido, cumpre então conhecer do seu mérito.
Antes, porém não deverá
deixar de sublinhar-se que outros obstáculos processuais se não levantam a
esse conhecimento. Com efeito, o recurso foi tempestivamente apresentado; e,
além disso, tratando-se de um recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1,
alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional, encontram-se preenchidos os seus pressupostos específicos.
Na verdade - e agora pelo
que toca, mais concretamente, ao segundo dos aspectos referidos, é indiscutível
que a recorrente suscitou oportunamente a questão de inconstitucionalidade que
pretendeu ver reexaminada por este Tribunal (pois que o fez com anterioridade
ao despacho impugnado do Exmo Presidente da Relação de Lisboa, e precisamente
no auto de interrogatório, ou audiência, que, nos termos do artigo 42ºnº 1, do
Decreto-Lei nº 437/75, teve lugar antes da emissão de tal despacho); por outro
lado, é seguro que do mesmo despacho não cabia qualquer recurso ordinário (cf.
artigo 26°, nº 3, do Decreto-Lei nº 437/75). A admissibilidade do recurso e a
legitimidade da recorrente para interpô-lo [citado artigo 70º, nº 1, alínea b), e ainda artigos 70º, n° 2, e 72º, nº 2, da Lei do
Tribunal Constitucional] acham-se, pois, plenamente asseguradas.
4- Dito isto - e passando
a identificar e equacionar a questão de constitucionalidade que o Tribunal
haverá de decidir -, começará por recordar-se que, nos termos da respectiva lei
(citado Decreto-Lei n° 437/75), o processo de extradição comporta, basicamente,
duas fases distintas: a primeira, a chamada «fase administrativa» (artigo 25º),
abre-se com a apresentação do pedido de extradição, feito por via diplomática
(através do Ministério de Negócios Estrangeiros) ou directamente ao Ministro da
Justiça, e encerra-se com a decisão (uma decisão puramente «política») do
Governo de «aceitar» ou não tal pedido (isto é, de consentir ou não na
extradição solicitada); consentindo o Governo na extradição, inicia-se então a
segunda fase do processo, a sua fase «judicial», com a remessa do pedido pelo
Ministro da Justiça, por via hierárquica, ao Procurador-Geral Adjunto no
Tribunal da Relação territorialmente competente e a consequente promoção por
aquele procurador do cumprimento do mesmo pedido (artigo 27°).
Requerida ao tribunal a
execução do pedido será (artigo 28°, nº 3), ou pelo menos poderá ser (artigo
28°, nº 4), imediatamente ordenada a captura do extraditando [a menos que o
tribunal, por iniciativa do relator, ordene o arquivamento do processo, por
insuficiência de elementos instrutores do pedido ou liminar inviabilidade
deste (artigo 28°, nº 2)]. É, pois, na «fase judicial» do processo de
extradição - mas logo no início dela - que, em princípio, terá lugar a detenção
do extraditando.
A lei, porém, contempla
duas possibilidades de detenção
entecipada, e antecipada não só à fase judicial do processo de extradição, mas,
inclusivamente, ao pedido formal deste: são elas a detenção provisória (artigo 11º) e a detenção não solicitada (artigo 12º). A primeira
tem lugar quando, «em caso de urgência e como acto prévio de um pedido formal
de extradição», a «autoridade competente do Estado requerente» a solicite,
através de pedido transmitido directamente ao Ministério da Justiça; a segunda
é a que pode ocorrer nas circunstâncias definidas no artigo 12º, o qual dispõe
como segue:
É lícito às autoridades de
polícia judiciária efectuar a detenção de indivíduos que, segundo informações
oficiais, designadamente da INTERPOL, sejam procurados por autoridades
competentes estrangeiras para efeito de procedimento criminal ou de cumprimento
de pena por factos que notoriamente justifiquem a extradição.
Foi a
inconstitucionalidade material superveniente deste artigo 12º, e também do
artigo 11º, do Decreto-Lei nº 437/75 que a recorrente suscitou no auto de
interrogatório atrás referido. E isto porque - esclareceu-o ela no seu
requerimento de recurso - «era duvidoso se a recorrente tinha sido detida ao
abrigo de um ou de outro dos citados comandos legais».
Mostram os autos, porém,
que a detenção da recorrente teve lugar a coberto da faculdade concedida às
autoridades de polícia judiciária pela primeira das disposições mencionadas -
no seguimento, precisamente, de uma informação recebida pela Polícia
Judiciária, fornecida de Oslo pela INTERPOL, de que contra aquela (a
recorrente), por ter sido acusada da prática do crime previsto no $ 162 do
Código Penal norueguês, fora emitido um mandado de captura e que a sua
extradição seria pedida por via diplomática se viesse a ser presa no nosso
país. Chamado a legalizar - nos termos do artigo 42°, nº 1, do Decreto-Lei nº
437/75- a detenção assim efectuada, foi, pois, o artigo 12ºdo mesmo diploma legal
que o presidente da Relação de Lisboa «aplicou», ao confirmar tal detenção, no
despacho recorrido. Fora do objecto do presente recurso há-de considerar-se,
consequentemente, o artigo 11º da Lei da Extradição, cuja constitucionalidade a
recorrente também contestou.
Entretanto, concluindo as
suas alegações, veio a recorrente pedir que «se declare a caducidade, por
inconstitucionalidade material superveniente», ainda do disposto nos artigos
40º a 42º do Decreto-Lei nº 437/75. A questão da constitucionalidade destes
preceitos não se vê, porém, que haja sido expressamente invocada (salvo,
porventura, quanto ao artigo 42º nº 3) na audiência em que teve lugar a
prolação do despacho recorrido. Mas, ainda que se possa concluir que o foi implicitamente - e ainda que um tal modo de
suscitar a questão de inconstitucionalidade deva, porventura, considerar-se
suficiente, quando inequívoco, para o efeito do recurso do artigo 70º, nº 1,
alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional (problema este que se deixa agora em aberto) -, ainda assim, o
facto é que a tal inconstitucionalidade (a dos citados artigos 40º a 42°) não
fez a recorrente qualquer referência no requerimento de interposição do
presente recurso. Deste modo, logo por aqui - atento o princípio consignado no
artigo 684º, nº 2, e especialmente nº 3, do Código de Processo Civil - há-de
considerar-se igualmente fora do objecto do recurso em apreço a questão da
constitucionalidade desses outros preceitos. (Aliás, a não consideração
autónoma de tal questão será, de qualquer modo, irrelevante, porquanto, sendo
os mesmos preceitos relativos à execução
da
«detenção antecipada», a sua aplicação no caso sempre ficaria precludida se
houvesse de concluir-se pela inconstitucionalidade do artigo 12º).
Posto isto, emerge como
única questão integrando o objecto do recurso a da inconstitucionalidade do
artigo 12ºdo Decreto-Lei nº 437/75: é esta, pois, a única norma a apreciar.
5 - Tal
inconstitucionalidade fundamenta-a a recorrente na pretensa incompatibilidade
desse preceito com o disposto no artigo 27°, nº 3, alínea b), da Constituição, pelo que se estará aí perante a
restrição legal dum direito que não obedece às exigências do artigo 18º, nº 2,
também da Constituição. A norma questionada consta de um diploma legal anterior
à lei fundamental vigente: daí que a recorrente fale na sua «caducidade» por
«inconstitucionalidade material superveniente».
É, porém, irrelevante a
qualificação dogmática (caducidade, ou eventualmente outra) do problema. O que
importa é, simplesmente, averiguar da conformidade ou desconformidade
constitucional da norma. Concretamente: o que importa é, simplesmente,
averiguar se, exceptuando a Constituição ao direito fundamental à «liberdade e
segurança», do artigo 27°, nº 1, e ao seu imediato corolário do artigo 27°, nº
Eis, precisamente
delimitada nos seus contornos, a questão a decidir.
II - Fundamentos
6 - Num contexto
argumentativo subordinado à consideração do sentido constitucional do
«princípio da legalidade do direito criminal» e à ideia de que tanto as normas
que regulamentam a prisão preventiva como as que respeitam ao «instituto» da
extradição têm o carácter de normas
excepcionais, sustenta a recorrente, para fundamentar a tese da inconstitucionalidade do
artigo 12ºda Lei da Extradição, que «nem a ratio legis, nem o sentido possível das
palavras, permitem subsumir» a situação prevista em tal preceito ao disposto na
alínea b) do nº 3 do artigo 27° da
Constituição.
O facto é que - diz, em
resumo, e no essencial - a detenção em causa tem lugar antes mesmo do início da
«fase administrativa» da extradição (ou seja, da recepção pelo Estado
português de um pedido formal desta) e, portanto, não pode dizer-se que ocorra no decurso de um processo de extradição (sublinhado no original):
estaria, assim, inteiramente fora de qualquer sentido comportável pela letra da
disposição constitucional citada. Por outro lado, sendo, inclusivamente, certo
que no processo de extradição «a regra é a não captura do extraditando», não
pode pretender-se que a cobertura dada por essa disposição à detenção deste
último quando «se está verdadeiramente perante um caso de extradição em curso» valha também para a
situação prevista no artigo 12º (uma situação «em que o extraditando ficará preso até quinze dias
à espera de informações sobre [se] o Estado eventualmente interessado na
extradição irá ou não formular o respectivo pedido») (sublinhado no original).
A isto acrescenta ainda a
recorrente que, ao considerar-se também tal situação abrangida pelo artigo 27°,
nº 3, alínea b), nem se estará a fazer
interpretação extensiva, mas aplicação analógica. Como quer que seja, tal
extensão não poderá justificar-se com a consideração de que sempre haverá
lugar, na situação em causa, a um «controlo jurisdicional», nem tão-pouco com o
facto de ser admissível, na mesma situação, a liberdade provisória.
Contrapõe o Ministério
Público que «saber quando se considera em curso um processo de extradição é
resposta que nos dá o Decreto-Lei nº 437/75 e nele há um capítulo - o II- a
regular os processos de extradição, contendo uma parte II sobre a detenção
antecipada». «Tal detenção», prossegue, «insere-se, consequentemente, em
processo de extradição, como fase preliminar do pedido, e, aliás, está sujeita
'a decisão do tribunal sobre a legalidade do acto e sua manutenção', isto é,
decisão de carácter jurisdicional.» A detenção antecipada é, assim, «um
preliminar do pedido, mas já é processo de extradição», pelo que os preceitos
que a regulam (e agora, no caso, o artigo 12ºda Lei) são conformes à norma
constitucional do artigo 27°, nº 3, alínea b).
Como se vê, tudo gira em
torno do problema de saber se à referência a «processo» de extradição «em
curso» - através da qual a Constituição delimita o âmbito de uma das excepções
(e precisamente daquela que importa aqui) que consente ao princípio da
liberdade das pessoas - pode e deve ser atribuído um sentido tal que nela se
inclua ainda a «modalidade» de detenção prevista no artigo 12ºdo Decreto-Lei nº
437/75.
Ora, pode o Tribunal
adiantar desde já que, no seu entendimento, a este problema deve ser dada uma
resposta afirmativa [no mesmo sentido, de resto, se pronunciou já também o
Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 7 de Julho de 1983)]. Dir-se-ão, de
seguida, as razões deste entendimento.
7 - Como é geralmente sabido, «processo» significa, na
linguagem jurídica, um procedimento
tendente
a obter um determinado resultado -mais precisamente, uma determinada decisão ou
providência. E assim que Manuel de Andrade, por exemplo, ensina que «o processo (em sentido jurídico) é um verdadeiro procedimento, traduzido num encadeamento
de actos destinados a desembocar em certo fim (providência jurisdicional)» (Noções Elementares de
Processo Civil, I, 1." ed., p. 6), e é assim também que Figueiredo Dias, aplicando a
noção ao processo penal, o define - «de um ponto de
vista formal» - como «um 'procedimento'
público que se desenrola desde a primeira actuação oficial tendente [à]
investigação e esclarecimento [de um crime concreto] até à obtenção de uma
sentença com força de caso julgado ou até que se execute a reacção criminal a
que o arguido foi condenado» (Direito
Processual Penal, I, p. 294).
De acordo com esta noção -
eminentemente «formal», decerto, mas, sem dúvida, a adequada, por isso mesmo,
para apreender primariamente uma realidade também «formal», como é o processo
-, bem poderá dizer-se, no tocante ao processo penal (é o que aqui importa),
que ele se inicia com a própria notitia
criminis, ou então com o conhecimento dela pela entidade a que é dirigida (o
Ministério Público, por via de regra) e o acto através do qual a mesma entidade
lhe dá seguimento. Este é, na verdade, o primeiro elo da cadeia de actos em que
se traduz o «procedimento» visando a realização da justiça penal e aquele que,
simultaneamente, «desencadeia» tal procedimento. Numa tal perspectiva, poderá,
inclusivamente, afirmar-se (ao menos, de algum modo) que, nos casos de prisão
em flagrante delito, é logo aí, no acto de detenção do respectivo agente, que
se inicia o «processo» penal.
É assim que não pode
duvidar-se - e a doutrina quase unanimemente não dúvida - de que num processo
com a estrutura do processo penal português a «instrução» propriamente dita (a
instrução preparatória) já é uma fase desse processo, e não algo que lhe seja
extrínseco (por todos, F. Dias ob.
cit., p. 270, nºs 68, 297 e 425). E se, no tocante ao «inquérito preliminar»
(entre nós introduzido pelo Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro), a
jurisprudência da Comissão Constitucional (iniciada pelo Acórdão nº 6, no
Apêndice ao Diário da República, de 6 de Junho de 1977) foi
no sentido de constituir ele apenas uma fase pré-processual ou extraprocessual
do procedimento penal propriamente dito (no mesmo sentido, J. Castro e Sousa, A Tramitação do Processo Penal, Coimbra, 1983, pp. 153 e
segs.), a verdade é que tal jurisprudência apenas procurava demonstrar que o
«inquérito» se desenrolava numa fase pré-instrutória ou extra-instrutória desse
procedimento (em qualquer caso, fora do alcance da exigência do artigo 32°, nº
4, da Constituição e das finalidades próprias da «instrução»), e a verdade é
também que, de todo o modo, isso não tira que, onde desde logo se abra uma
«instrução» (e não apenas um «inquérito»), o processo deva ter-se como iniciado
no momento referido.
Tal ideia encontra clara
confirmação no Projecto de Código de Processo Penal acabado de publicar, em
vista do que se dispõe nos seus artigos 241º, 247° e 262°, nº 2. De facto, e
nomeadamente, a afirmação, que neste último preceito se faz, de que,
«ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá
sempre lugar à abertura de um inquérito» só pode significar que a própria notitia criminis já é um momento
processualmente relevante. Ou, dito de outro modo (o referido no Acórdão nº 434
da Comissão Constitucional, no Apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983,
p. 74), que o processo penal, ao cabo e ao resto, abarca «toda a actividade
pública consequente à notitia
criminis».
Entretanto, cumpre
sublinhar que o entendimento das coisas que vem sendo referido não esgota o seu
alcance num mero plano «formal», mas antes se reveste de um indiscutível e
muito importante interesse «substancial»: é que é esta «concepção integrada»
do processo penal que permite estender, e justifica que se estendam, a todo ele
as «garantias constitucionais» de que o mesmo deve rodear-se para salvaguarda
dos direitos e liberdades das pessoas. É essa, de resto, uma preocupação que
encontra ainda outras manifestações, tal como, designadamente, a de deverem
considerar-se os actos de polícia judiciária, «directa ou indirectamente, como
actos de um processo penal» (F. Dias, ob.
cit., p. 398).
8 - Pois bem: embora as
considerações precedentes respeitem imediatamente ao processo penal, em geral,
e não ao processo de extradição, em particular, não podem elas deixar de constituir
o adequado pano de fundo para dar resposta à questão em apreço. E isto porque,
como este Tribunal tem reiteradamente acentuado, se bem que a outro propósito,
o «processo de extradição» não deve senão conceber-se como uma modalidade
específica do «processo penal» - um processo, por conseguinte, que deve
subordinar-se aos princípios ou exigências básicas deste último e onde terão
cabimento, no fundamental, os correspondentes conceitos e categorias dogmáticas
[v., por último, o Acórdão nº 192/85, (Diário
da República, 2ªsérie, de 10 de Fevereiro de 1986)].
Ora, assim sendo, não se
vê por que não possa (e não deva) afirmar-se que, nos casos de «detenção
antecipada», é logo com o acto (um acto de polícia judiciária, afinal) que
ordena a detenção do extraditando que se inicia ou desencadeia o «procedimento»
da extradição. Esse acto, na verdade, já se pré-ordena (e não tem nem pode ter
outro sentido) ao objectivo ou finalidade (a providência da extradição) que um
tal procedimento visa: é verdadeiramente o primeiro elo da cadeia de actos
teleologicamente dispostos pelo legislador com vista à obtenção de um tal
resultado.
Mas, se é assim, então
logo por aqui se concluirá que, bem vistas as coisas, a detenção prevista no artigo
12ºdo Decreto-Lei nº 437/75 é já uma detenção que tem lugar num processo de
extradição «em curso», como se admite no artigo 27°, nº 3, alínea b), da Constituição. Ou seja: concluir-se-á que, mesmo
sem «ignorar» ou sequer «forçar», a letra dessa cláusula constitucional, já aí
encontra cobertura a modalidade de detenção agora em causa.
E, se uma consideração
fundamentalmente «literal» do preceito da Constituição pertinente ao caso em
apreço já conduz à conclusão apontada, mais essa conclusão indiscutivelmente
se radica, e reforça, entrando em linha de conta - como importa entrar - com a ratio do mesmo preceito. É que, consentindo a
Constituição uma excepção ou restrição ao direito à liberdade em nome dos
interesses e valores que estão na base da admissibilidade da extradição e
conferindo, do mesmo passo, a esses interesses e valores (os quais podem
reconduzir-se à ideia geral do reconhecimento da justificação e da necessidade
da cooperação internacional em matéria de perseguição e combate ao crime) dignidade
constitucional, não faria sentido que excluísse a possibilidade de detenção
«antecipada» do extraditando em caso de pedido urgente (é a hipótese do artigo
11º da Lei), ou mesmo só de um presumível extraditando relativamente ao qual as
autoridades portuguesas competentes já disponham de «informações oficiais»
seguras de que é perseguido criminalmente noutro ou noutros países «por factos
que notoriamente justifiquem a extradição» (é a hipótese do artigo 12º, que ora
nos ocupa).
Trata-se aí de uma detenção
que constitui «acto prévio de um pedido formal de extradição» (a fórmula é do
artigo 11º, mas vale seguramente também para o caso do artigo 12º) e que é
determinada pela necessidade de acautelar a possibilidade de o processo de
extradição cumprir efectivamente o seu precípuo objectivo: seria estranho,
pois, que a Constituição, consentindo a realização desse objectivo, não
admitisse simultaneamente o legislador a dispor sobre meios (como são os dos artigos
11º e 12ºda Lei da Extradição) que podem ser indispensáveis para alcançá-lo. Ao
fim e ao cabo, a detenção «antecipada» em processo de extradição é algo de
comparável à prisão «preventiva» no processo criminal comum: por conseguinte,
também se poderá dizer que, admitindo a Constituição esta última, em geral
[nos limites definidos pelo artigo 27°, nº 1, alínea a)], seria estranho que não admitisse a primeira no
âmbito daquele processo especial. Não pode ser esse, realmente, o sentido a
atribuir ao artigo 27°, nº 3, alínea b), da lei fundamental, na parte
que interessa agora considerar.
9- Contra isto não vale
argumentar - como a recorrente - com uma ideia de «excepcionalidade» da prisão
preventiva e do instituto da extradição, nem muito menos com a afirmação de que
no procedimento tendente à extradição «a regra é a não captura do
extraditando».
Quanto à última afirmação,
sucede desde logo que ela é inexacta, como claramente o mostra o artigo 28° da
Lei da Extradição, já atrás citado: iniciada a fase judicial, e a menos que o
processo deva logo ser arquivado, só «no caso de serem necessárias informações
complementares» é que «é ordenada apenas a vigilância do extraditando», mas não
sem que, mesmo nesse caso, possa «efectuar-se desde logo a sua captura». De
outro modo - e aí, pois, teremos a regra -, o extraditando será de
imediato detido.
Quanto ao referido
carácter «excepcional» da prisão preventiva e do instituto da extradição, mesmo
aceitando que tal qualificação possa ter aí algum sentido (e bem se sabe como
muitas vezes ela é equívoca e relativa), não pode, de todo o modo, servir só
por si, evidentemente, para encurtar a extensão e o alcance que devam
atribuir-se a um preceito constitucional específico, como é o artigo 27°, nº 3,
alínea b), face a outros tópicos e
elementos interpretativos mais imediatos e relevantes.
10- Significativo para um
juízo sobre a constitucionalidade da norma em apreço, porém, já é - ao
contrário do que pode inferir-se da alegação da recorrente - o saber como o
legislador regulamenta a detenção prevista no artigo 12ºda Lei da Extradição,
no tocante aos seus pressupostos e condições, à sua duração, às garantias de
que é rodeada. Haverá aí que atender, todavia, já não (ou já não tanto) ao
artigo 27°, nº 3, alínea b), da Constituição, mas a
outros preceitos ou princípios constitucionais, como sejam os do artigo 28° e
do artigo 18º, nº 2, in
fine.
Ainda sob este ponto de
vista, no entanto, a norma em apreço não merece censura.
Na verdade, sempre que
ocorra uma detenção ao abrigo dessa norma, deve a autoridade que a efectuou
«apresentar o detido no prazo de 24 horas ao procurador da República [agora
procurador-geral adjunto] junto do tribunal da Relação em cuja área a captura
foi efectuada, para o efeito de promover decisão do presidente do tribunal sobre a legalidade do acto
e sua manutenção (artigo 42ºnº 1, da Lei da Extradição). Além disso, é admitida
no caso a concessão da liberdade
provisória, por decisão do tribunal da Relação, em termos similares ao que o é pela lei
de processo penal comum (artigos 43° e 14º da mesma Lei). Assim, devendo
equiparar-se a detenção «antecipada» de um presumível extraditando à prisão
preventiva (ut supra), como tal sujeita às
exigências a que o artigo 28° da Constituição subordina esta última,
verifica-se que o seu regime legal satisfaz em pleno tais exigências,
nomeadamente quanto ao ponto verdadeiramente crucial delas, que é o da
garantia de uma legalização jurisdicional da detenção.
Por outro lado, já se pôs
em relevo que a detenção «não solicitada» do artigo 12ºda Lei da Extradição só
pode ter lugar (só é legítima, portanto) quando as autoridades portuguesas
disponham de informações oficiais estrangeiras ou
internacionais de que determinado indivíduo é perseguido criminalmente noutro
país, e perseguido por factos
que notoriamente justifiquem a extradição. Se a estes «pressupostos»
da licitude de tal detenção se acrescentar que ela será «comunicada
imediatamente ao Ministro da Justiça e, pela
via mais rápida, à autoridade estrangeira a quem interessar para que lhe informe, urgentemente e pela mesma via, ser irá
ou não ser formulado o pedido de extradição» (artigo 42ºnº 2); que a detenção
não poderá prolongar-se por mais de quinze
dias (desde a data da captura), se, entretanto, não for recebida tal informação,
ou por mais de quarenta, «se, tendo havido
informação positiva, o pedido de extradição não for aceite nesse prazo» (artigo
42º nº 3); e ainda que, verificando-se a detenção em causa, a lei impõe a aceleração do processo de extradição (artigo
42ºnº 4), para além do carácter urgente de que este já se reveste (artigo 25º,
nº 1), em termos de o mesmo dever ser ultimado no prazo máximo de quinze dias
(artigo 41º, nº 1, todos da Lei da Extradição), se se acrescentar tudo isto aos
referidos pressupostos, haverá então de concluir-se, por sua vez, que a
detenção em apreço e o seu regime legal também não merecem quaisquer reservas,
considerados sob a perspectiva da exigência a que, em geral, deverão obedecer
todas as restrições de direitos, nos termos da parte final do artigo 18º, nº 2,
da Constituição. Ou seja: haverá de concluir-se que se está perante uma solução
e um regime legais que respeitam o princípio da proporcionalidade (lato sensu) aí consignado, pois que
não vão além do «necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos».
Tudo, portanto, converge,
em resumo, para que não deva considerar-se contrária à Constituição, e por ela
excluída, a possibilidade de detenção «não solicitada» de um presumível
extraditando, prevista no artigo 12ºda Lei da Extradição.
III - Decisão
1 - Nestes termos, nega-se
provimento ao recurso.
Lisboa, 19 de Novembro de
1986. - Cardoso da Costa - Mário
Afonso - Nunes de Almeida - Mário de Brito - Messias Bento - Magalhães Godinho
- Armando Manuel Marques Guedes.