TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017
256 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL reclamação para a conferência nos tribunais de primeira instância constituiu uma inovação no processo administrativo sem paralelo nos demais processos. A reclamação para a conferência era um meio impugna- tório, funcionalmente diferente do recurso, que apenas tinha aplicação em sede de segunda instância, não na primeira. Nem é aceitável um entendimento que considere esse ónus processual facilmente discernível do texto da lei. O n.º 2 do artigo 27.º do CPTA refere-se a «despachos» e não a «sentenças», que são categorias de atos do juiz estruturalmente diferentes: a sentença, um ato pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente; o despacho, uma decisão que não respeita ao fundo da causa (artigo 152.º do CPC). Perante a letra da lei, a reclamação para a conferência constituiu assim um ónus imprevisível, com o qual os interessados em recorrer não podiam contar. É certo que o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 3/12 pretendeu minimizar, no que foi possível, divergências interpretativas sobre o âmbito de aplicação do n.º 2 do artigo 27.º do CPTA. Só que a interpretação fixada nesse acórdão não chegou sequer a adquirir a estabilidade jurídica suficiente para assegurar às partes o máximo de confiança e previsibilidade no uso dos meios impugnatórios das decisões sumárias dos tribunais de primeira instância tomadas em juiz singular. Como vimos, o critério jurídico revelado por esse acórdão suscitou ele próprio dúvidas interpretativas, incoerências e contradições de difícil superação no plano infraconstitucional. A interpretação fixada no acór- dão não só está em contradição insanável como a norma do n.º 1 do artigo 142.º do CPTA, que garante o recurso das decisões de mérito de primeira instância, independentemente da sua autoria singular ou coletiva, como foi infirmada por ulterior jurisprudência do STA com a contra-argumentação de que o artigo 27.º não se aplica aos tribunais de primeira instância. Acresce que o alcance da norma fixada no acórdão de unifor- mização foi continuamente adaptado e corrigido, nuns casos extensivamente e noutros restritivamente, con- forme a relevância material do caso concreto, criando-se uma situação de instabilidade e imprevisibilidade quanto aos meios reativos às decisões singulares proferidas nos tribunais de primeira instância. Ora, se é certo que ao Tribunal Constitucional não compete sindicar o modo com o direito infraconsti- tucional é interpretado, não pode deixar de ponderar, na apreciação da constitucionalidade de uma determi- nada interpretação normativa, as consequências que advêm para a parte por ela afetada. Neste contexto, a perda do direito ao recurso como efeito irremediavelmente preclusivo da não apresen- tação de prévia reclamação para a conferência em relação a decisões de mérito do juiz singular constitui obje- tivamente um ónus excessivamente oneroso, face à dúvida pertinente quanto à interpretação dos textos legais e ao próprio caráter inovatório do regime legal, quando aplicável a tribunais administrativos de primeira instância. O que surge reforçado pelo facto de, na interpretação normativa sindicada, a decisão de mérito ter sido proferida sem menção expressa do artigo 27.º, n.º 1, alínea i) , do CPTA, e sem suficiente explicitação quanto ao uso da competência decisória como juiz relator, ao abrigo dessa disposição. Além de que o ónus processual imposto à parte se reveste de maior imprevisibilidade face à prática jurisprudencial pacífica que foi seguida durante vários anos e acarreta uma consequência desproporcionada em relação à relevância da falta, mormente quando desprovida da possibilidade de convolação do recurso em reclamação para a conferência. 12. A interpretação normativa impugnada não põe em causa o direito ao recurso enquanto expressão do princípio da tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20.º da Constituição. No Acórdão n.º 846/13 o Tribunal Constitucional argumentou que «segundo a interpretação sindicada, a parte vencida não pode interpor recurso da decisão singular do relator, mas pode reclamar dela para a con- ferência, o que lhe assegura uma segunda apreciação da questão por uma formação do mesmo tribunal com uma composição alargada e não lhe elimina o direito de posteriormente interpor recurso para um tribunal superior desta segunda apreciação». Assim – acrescenta-se –, «a exigência de reclamação para a conferência, não só não impede a intervenção de um segundo grau de jurisdição, como reforça o número de reapreciações das questões em discussão, pelo que não tem qualquer fundamento a invocação duma violação ou sequer duma restrição do direito ao recurso». Sem dúvida que não há, neste contexto, uma violação do direito ao recurso – que tinha sido tam- bém invocado pela recorrente como parâmetro de constitucionalidade no presente caso –, nem é possível
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