Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade:
Legitimidade e Limites da Justiça Constitucional

Vital Moreira
(investigador da Faculdade de Direito de Coimbra)

l. Introdução

Começo por uma interrogação: cento e noventa anos passados sobre a célebre sentença do Supremo Tribunal dos Estados Unidos no caso Marbury v. Madison (1803), que inaugurou a judicial review da constitucionalidade das leis; mais de setenta anos decorridos desde a criação do Tribunal Constitucional austríaco (1920), que introduziu o sistema de fiscalização concentrada da constitucionalidade; mais de oitenta anos depois do estabelecimento em Portugal da fiscalização judi­cial difusa, de modelo americano (Constituição de 1911); e dez anos após a instalação do Tribunal Constitucional entre nós —, neste quadro, será que tem ainda sentido questionar a legitimidade da justiça constitucional em geral e a do Tribunal Constitucional em particular, nomea­damente à luz do princípio da maioria?

Com efeito, creio não ser ousado dizer que hoje estão definitiva­mente superadas, em termos práticos, as objecções tradicionais ao con­trolo judicial da conformidade constitucional dos actos do poder, desig­nadamente das leis. Faz já quase dez anos um eminente constitucionalista francês, Louis Favoreau — por sinal, presente entre nós, neste colóquio —, podia dizer afoitamente que «a legitimidade do controlo jurisdicional das leis não é mais posto em causa nos anos 80»[1].

Na verdade, cresce constantemente o número de países que se dotam de um tribunal constitucional ou que reconhecem aos tribunais comuns o poder de fiscalização da constitucionalidade. A somar às «três vagas» que o referido autor assinalou no movimento de criação de tribunais constitucionais neste século — a saber: entre as duas guer­ras mundiais, logo após a II Guerra, nos anos 70 —, assiste-se hoje a uma quarta vaga, tanto nos antigos países comunistas europeus como em vários países africanos que recentemente adoptaram formas de governo pluripartidário. A existência de uma jurisdição constitucional, sobretudo se confiada a um tribunal específico, parece ter-se tornado nos tempos de hoje num requisito de legitimação e de credibilidade política dos regimes constitucionais democráticos. A jurisdição constitucional passou a ser crescentemente considerada como elemento necessário da própria defi­nição do Estado de direito democrático.

*) Reprodução da comunicação apresentada, com pequenos aditamentos, incluindo as notas.

Mesmo na França, o país mais tradicionalmente avesso ao controlo jurisdicional da constitucionalidade das leis, o Conselho Constitucional, originariamente criado para impedir o parlamento de invadir a esfera de poder regulamentar autónomo reconhecido ao Governo pela Consti­tuição de 1958, parece evoluir seguramente no sentido de se transformar num verdadeiro tribunal constitucional, ao mesmo tempo que surgem pro­postas doutrinais de alargar aos tribunais comuns esse poder[2]. Tam­bém na Suíça, onde o sistema de fiscalização da constitucionalidade exclui desde sempre o controle das leis do parlamento federal, a comis­são de peritos para a revisão global da Constituição recomendou no seu relatório a introdução da fiscalização concreta das leis federais[3] . E até na Grã-Bretanha deixou de ser heresia a ideia de criar uma carta de direitos fundamentais constitucionalmente garantida contra o legislador (entrenched hill of rigths) ede confiar a sua defesa aos tribunais[4].

Os dois dogmas em que tradicionalmente se baseava a contestação da legitimidade da fiscalização judicial da constitucionalidade — ou seja, a soberania do parlamento e a separação dos poderes, ambos expres­são da prevalência do princípio da maioria — deixaram de ter, em grande parte, correspondência nas realidades político-constitucionais contemporâneas. Por um lado, a ideia da soberania do parlamento e da intangibilidade e omnipotência da lei parlamentar perdeu definitiva­mente terreno a favor da concepção da soberania e supremacia da Cons­tituição e do carácter constituído e subordinado do poder legislativo, bem como da convicção de que o princípio da maioria não equivale à pre­potência nem pode traduzir-se na imunidade do poder legislativo e exe­cutivo perante as violações da Lei fundamental[5]. Em segundo lugar, a velha objecção deduzida do papel de estrita subordinação à lei atribuído aos tribunais pela teoria clássica da separação de poderes e do entendi­mento de que as questões de constitucionalidade são de natureza neces­sariamente política, a que aqueles se devem manter alheios — argu­mento classicamente desenvolvido por Carl Schmitt para combater os esforços de criação de uma justiça constitucional na República de Weimar —, também essa ideia veio a ser ultrapassada ou ladeada pela con­sideração, da Constituição, como suprema lei do país (supreme law ofthe land), pela distinção, entre os poderes vinculados e os poderes constitucionalmente discricionários do legislador, pela própria configuração dos tribunais constitucionais como órgãos distintos e autónomos em relação à jurisdição comum, especialmente concebidos para lidarem com as especificidades da justiça constitucional[6].

A soberania do legislador cedeu o passo à supremacia da Consti­tuição. O respeito pela separação de poderes e pela submissão dos juízes à lei foi suplantada pela prevalência dos direitos dos cidadãos face ao Estado. A ideia base é a de que a vontade política da maioria governante de cada momento não pode prevalecer contra a vontade da maioria constituinte incorporada na Lei fundamental. A limitação da vontade da maioria ordinária decorre da supremacia de uma maioria mais forte. O poder constituído, por natureza derivado, deve respeitar o poder constituinte, por definição originário.

Provavelmente, a questão da admissibilidade da jurisdição consti­tucional nunca deixará de contar-se entre as aporias recorrentes da filo­sofia política e da teoria da Constituição, mormente quanto à sua com­patibilidade com o princípio democrático — enquanto governo da maioria — e com a missão dos tribunais. Mas é evidente que essa questão da legitimidade da justiça constitucional deixou de ser tema principal de controvérsia; o que sobretudo está em causa presentemente é o sentido, alcance, extensão e limites da justiça constitucional[7]. Do que se trata agora é de saber qual o sentido do princípio da maio­ria hoje em dia, e em que medida é que ele deve continuar a servir, não já de impedimento da justiça constitucional mas sim de limite dos poderes do juiz constitucional.

2. Metamorfoses do princípio da maioria

O princípio da maioria não tem hoje o mesmo sentido que nos pri­mórdios da era constitucional. Ele sofreu importantes modificações quanto ao seu alcance e funções constitucionais.

O facto é que dois séculos de desenvolvimento constitucional trou­xeram consigo alterações profundas quanto ao papel e relevância da Constituição, quanto ao funcionamento do Estado e em particular quanto ao estatuto da função legislativa e das relações parlamento-executivo, e finalmente quanto à estruturação da sociedade e do Estado e das relações entre si. Nenhum destes fenómenos pode deixar de se repercutir no significado e relevância constitucional do princípio da maioria.

Para começar é óbvio que toda a Constituição se traduz, por defi­nição, numa limitação do princípio da maioria, na medida em que ela regula a organização e o modo de exercício do poder político bem como os seus limites. Logo, quanto mais Constituição, maior limitação. Ora o espaço constitucional não tem cessado de se ampliar.

Ao princípio a Constituição ocupava-se fundamentalmente de duas coisas: por um lado, era o regulador da formação dos órgãos do poder e das suas competências e relações recíprocas; nos Estados federais pro­cedia também à definição das relações entre a federação e os estados-membros. Por outro lado, continha a carta dos direitos e garantias individuais. Mesmo esta segunda componente muitas vezes escasseava ou estava de todo em todo ausente. A Constituição norte americana na sua versão originária era uma lei quase exclusivamente organizatória, desprovida da enunciação e garantia de direitos fundamentais, que toda­via foram logo consagrados na primeira revisão constitucional (1798), nos primeiros dez amendments. O mesmo se passou com a generalidade, das muitas constituições francesas, incluindo a da III República, a de maior longevidade. A própria constituição da V República só garante os direitos fundamentais por efeito da remissão preambular para textos anteriores, nomeadamente a Declaração dos direitos do homem e do cida­dão de 1789 e o preâmbulo da Constituição da IV República (1946). Em todo o caso, a garantia dos direitos fundamentais é hoje um traço comum à generalidade das constituições e tornou-se uma ideia inerente à própria definição de Constituição.

Entretanto, desde a Constituição de Weimar (1919) que a consti­tuição deixou de conter apenas essas duas componentes, passando a integrar também os princípios fundamentais da ordem económica, social e cultural. E se nos tempos mais recentes se gerou um movimento de retracção quanto aos excessos de constitucionalização da ordem econó­mica e social, a verdade é que muitas constituições deste século contêm uma regulação constitucional mais ou menos densa dessas matérias. O âmbito dos próprios direitos fundamentais não deixou de se alargar para além dos clássicos direitos do homem e do cidadão, de matriz individual e liberal, concretizando-se em novas categorias de direitos políticos, de direitos dos trabalhadores, de direitos sociais de carácter posi­tivo, de direitos essencialmente colectivos, como o direito ao ambiente e ao património cultural. A própria densidade da regulação constitucional das instituições e da vida política foi-se intensificando com as novas constituições, num movimento de progressiva constitucionalização e juridifícação do processo político. Ora, com o alargamento do espaço cons­titucional restringe-se correspondentemente o âmbito da liberdade de con­formação do legislador. A extensão e intensidade da sua vinculação constitucional cresce; a sua autonomia diminui correspondentemente.

Em segundo lugar, alterou-se o próprio entendimento da lei, bem como o estatuto da vontade da maioria como fonte da lei. Na concepção clássica a lei era produto da «vontade geral» corporizada na representa­ção parlamentar composta por deputados livres de qualquer mandato imperativo ou outra dependência; e o executivo estava subordinado à lei como vontade heterónoma.

Essa compreensão está hoje longe de dar conta das realidades do Estado moderno. Em geral, a lei não é senão a vontade do partido ou coligação maioritária; o governo dita à maioria parlamentar o programa legislativo e o conteúdo das leis[8]. Em certos países o governo goza mesmo de amplos poderes legislativos, seja mediante um liberal regime de autorizações parlamentares, seja até a título originário — como ocorre em Portugal —, para não citar o caso extremo da França onde, a pre­texto de matéria regulamentar reservada ao governo, o parlamento está impedido de legislar fora das áreas que a Constituição lhe prescreve.

O próprio conceito de lei como expressão da vontade da maioria parlamentar foi sendo sujeito a crescente erosão, principalmente através de três mecanismos: primeiro, o requisito constitucional de participação de órgãos e entidades estranhas ao parlamento no processo de formação das leis parlamentares, o que sempre se traduz num condicionamento procedimental da expressão da vontade parlamentar[9]; segundo, o esta­belecimento de esferas de descentralização legislativa a favor de colecti­vidades territoriais infra nacionais, como as regiões e comunidades autónomas, o que resulta necessariamente em limitação da liberdade legislativa parlamentar[10]; por último, mas não menos importante, a exigência constitucional de maiorias qualificadas para a aprovação de certas leis, o que em certo sentido acaba por se traduzir na concessão de um direito de veto à minoria parlamentar[11].

Simultaneamente e por efeito disso verificou-se uma progressiva desarticulação do conceito originariamente unitário da lei, que hoje se revela uma figura multiforme, em que as várias categorias se ordenam segundo regras de hierarquia e de preferência interlegislativa. Por exem­plo: lei reforçada — lei ordinária, lei nacional — lei regional, lei qua­dro — lei de aplicação, lei de bases — lei de desenvolvimento. Naturalmente, tem de caber à Constituição definir as relações entre essas várias espécies e regular os respectivos conflitos. Mesmo quando não se traduzem directamente em problemas de constitucionalidade, as relações de dependência ou de preferência entre leis podem suscitar problemas equiparados, designadamente para efeitos de respectiva fiscalização. Como quer que seja, a própria ideia de vinculação do legislador por outras leis anteriores — e não já pela Constituição — não deixa de acentuar a degradação do princípio clássico da omnipotência do legis­lador e do princípio da maioria.

Em terceiro lugar, os postulados clássicos da separação de poderes entre o legislativo e o executivo também deixaram de ter correspon­dência na realidade. Especialmente nos países de sistema parlamentar com partido ou coligação maioritária, a ideia de separação de poderes entre legislativo e executivo e de subordinação deste àquele não fazem hoje grande sentido. A separação hoje relevante é a que se estabelece entre maioria governamental e a oposição, e a questão constitucionalmente mais importante deixou de ser apenas ou sobretudo a suprema­cia do legislativo sobre o executivo mas sim as garantias da oposição face ao poder da maioria existente no governo e no parlamento. Nas pala­vras de Giuseppe de Vergottini, «o princípio da separação, entendido como princípio garantístico que consente o controlo político sobre o «indirizzo», não dispõe hoje de real consistência quando se queira continuar a referi-lo às relações entre o órgão parlamentar e o órgão governo, mas conserva fundamento quando referido às relações entre minorias de oposição e o conjunto politicamente homogéneo maioria-governo»[12].

Em quarto lugar, na concepção clássica do Estado este era uma realidade monolítica e homogénea (descontado o caso dos Estados fede­rais). No continente europeu em especial, a revolução francesa, para quebrar os «corpos intermédios» do antigo regime, anatemizou toda a espécie de autonomia dentro do Estado, interdizendo a concepção mesma de entidades colectivas interpostas entre ele e os cidadãos. A pró­pria autonomia municipal foi consumida na voragem centralizadora do estado pós-revolucionário. O indivíduo e o Estado era a relação singela em que se analisava o entendimento tradicional conforme a representação individualista e liberal do Estado.

Hoje é toda outra a realidade e o correspondente entendimento do Estado moderno. Por um lado, à centralização sucedeu-se a descen­tralização política e administrativa, a afirmação das autonomias muni­cipal e regional, com posições constitucionalmente garantidas. Por con­seguinte, a vontade da maioria a nível nacional passou a ter como limites os direitos e interesses constitucionalmente protegidos das regiões e municípios; a legislação regional e os regulamentos das colectividades locais vêem o seu espaço constitucionalmente assegurado em relação à lei do Estado. Por outro lado, nos países pluri-étnicos e plurinlinguísticos ganharam também protecção constitucional a defesa das corres­pondentes minorias. Tudo isto se traduz numa correspondente limita­ção dos poderes da maioria.

Por sua vez, toda a sociedade se estruturou não apenas em orga­nizações de interesses de natureza económica ou profissional mas tam­bém em grupos mais ou menos formais orientados para promoção de valores, desde os movimentos feministas aos movimentos dos sexual­mente heterodoxos, passando pêlos movimentos ecologistas. Deu-se um processo simultâneo de complexização e de articulação do Estado e da sociedade: um Estado policêntrico, uma sociedade plural. Em alguns casos, algumas dessas organizações podem constitucionalmente adquirir status jurídico-público (caso das «corporações públicas», ou são espe­cialmente reconhecidas pela Constituição como veículos de defesa de direitos fundamentais ou de interesses ou valores constitucionalmente pro­tegidos (como sucede entre nós com as organizações de trabalhadores ou com as associações de defesa do ambiente ou do património). Em qualquer caso, essas organizações perfilam-se como centros de impu­tação e de agregação de interesses sectoriais ou corporativos constitu­cionalmente protegidos face aos interesses da maioria.

Um último factor de implicações profundas quanto ao lugar cons­titucional do Estado nos nossos dias, quanto aos poderes da maioria e quanto ao sentido e alcance da própria Constituição é o que tem a ver com a modificação da inserção internacional do Estado, tanto pela densificação do direito internacional geral como pela crescente rede de con­venções e organizações internacionais algumas baseadas na integração e na partilha de poderes soberanos — como sucede com a Comunidade europeia —, e dotadas de um «poder legislativo» com vocação de supre­macia sobre as leis nacionais e, como querem alguns, mesmo sobre o direito constitucional nacional. A concomitante despromoção do Estado nacional arrasta consigo uma nova limitação da autodeterminação legis­lativa dos Estados, e logo um novo condicionamento do princípio da mai­oria no contexto intraestadual.

3. Princípio da maioria e sentido e âmbito da justiça constitu­cional

São estas profundas transformações a nível da Constituição, do Estado e da sociedade e do significado do princípio da maioria que, por um lado, justificaram a criação e expansão da jurisdição constitucional durante o presente século e que, por outro lado, permanentemente questionam as suas concretas configurações.

a) Sentido e alcance da justiça constitucional

Como se sabe, a justiça constitucional surgiu historicamente para fazer prevalecer a Constituição contra os actos do poder em três domí­nios característicos, isolada ou conjuntamente: os direitos individuais, a separação dos poderes sobretudo entre o poder legislativo e o poder executivo, a definição de fronteiras entre os poderes federais e os dos Estados-membros no caso das federações.

Nos Estados Unidos, o berço da judicial review, esta serviu esses três sentidos. Na Constituição austríaca de 1920, a primeira criação do modelo de justiça constitucional concentrada e abstracta, a fiscalização da constitucionalidade parecia estar vocacionada sobretudo para resolver os conflitos de competência entre a federação e os estados membros, visto que o acesso ao TC cabia apenas ao governo federal, quanto às normas dos Länder, e aos governos regionais, quanto às normas da federação. Na França de 1958, o sentido originário da criação do Conselho Consti­tucional foi o de manter o poder legislativo do parlamento dentro das apertadas baias que a Constituição lhe estabeleceu, garantindo assim a autonomia materialmente legislativa reconhecida ao governo a título de poder regulamentar independente. Não era por acaso que, de início, o acesso ao Conselho Constitucional estava limitado ao Presidente da República, ao Primeiro-ministro e aos presidentes das duas câmaras e que a única fiscalização prevista era (e continua a ser) de índole pre­ventiva, tendo por objecto apenas as leis e demais actos das assem­bleias[13]

Hoje, porém, a justiça constitucional, para ser instrumento e garan­tia de cumprimento da Constituição em toda a sua inteireza, não pode deixar de garantir também as demais funções que a evolução histórica lhe fez atribuir.

À partida ocorre mencionar a garantia dos direitos constitucionais da oposição, dado que, como se viu, é na dialéctica maioria-oposição, mais do que na contraposição governo-assembleia, que hoje se articulam as democracias modernas. Não merecem menos protecção constitucio­nal, antes pelo contrário, as garantias dos direitos da oposição contra os abusos ou prepotências da maioria do que a defesa das prerrogativas do parlamento contra as invasões do executivo. De resto, muitas vezes, a invasão da esfera parlamentar tem por objectivo justamente furtar à minoria parlamentar a intervenção nas decisões políticas ou legislativas que cabem ao parlamento[14].

Do mesmo modo, tal como ontem a justiça constitucional tinha por objecto a defesa dos direitos dos estados membros contra os órgãos centrais do Estado federal (bem como impedir as tentações centrífu­gas), também hoje deve ser alargada à defesa das posições constitucionais das regiões e dos municípios contra o Estado central (bem como natu­ralmente, impedir a ultrapassagem dos seus limites). E não apenas das colectividades territoriais, mas também de todas as instituições que gozam de uma «garantia institucional» na Constituição (como sucede, por exemplo, com as universidades).

Em terceiro lugar, nos países onde existem minorias étnicas, culturais ou linguísticas, a justiça constitucional há-de ser também chamada a defender não apenas o direito dos seus membros a não serem negati­vamente discriminados face aos demais cidadãos, mas também a verem efectivamente reconhecidas a personalidade e idiossincrasia próprias que a Constituição lhes reconheça.

Por último, a justiça constitucional não pode ser alheia à defesa, da pluralidade e heterogeneidade social e cultural que hoje se afirma, lá onde a Constituição o imponha ou aponte, contra as rasoiras homogeneizadoras e os valores supostamente gerais.

Em suma, a nova realidade do Estado e da sociedade contempo­rânea, na medida em que se reflecte ou deva reflectir-se na lei funda­mental reclama uma correspondente ampliação do sentido e do alcance da jurisdição constitucional.

b) Âmbito da justiça, constitucional

O alargamento do sentido e alcance da justiça constitucional con­sequência por sua vez um reexame do seu âmbito, sob o ponto de vista dos actos do poder que lhe devem estar submetidos.

A verdade é que, em muitos sistemas constitucionais, nem todos os actos dos poderes públicos estão sujeitos a fiscalização da constitucio­nalidade. Nuns o controlo está limitado aos actos normativos. Nou­tros não abrange sequer todos os actos normativos, estando excluídas as leis parlamentares — como sucede na Suíça com as leis federais —, ou ao invés as «leis», governamentais — como sucede em Franca. Tradicional é a exclusão da fiscalização dos chamados «actos políticos» ou «actos de governo».

No caso português é evidente a discrepância entre o art. 3. ° da CRP, segundo o qual «a validade das leis e dos demais actos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição», e o sistema de fis­calização, que apenas prevê o controlo dos actos normativos (para além do caso especial dos actos de convocação de referendos). É bom de ver que em termos lógicos só pode dizer-se perfeito (no sentido de completo, acabado) o sistema de fiscalização que abranja todos os actos do poder, se e na medida em que são constitucionalmente vinculados. A liberdade de decisão política deve ser salvaguardada pela garantia na Constituição de adequadas esferas de discricionariedade política, e não mediante nor­mas constitucionais imperfeitas, isentas da fiscalização de constitucio­nalidade.

Como quer que seja, afigura-se que não devem continuar livres do controlo de constitucionalidade os actos do Estado, qualquer que seja a sua natureza, normativa ou não, desde que afectem quaisquer dos inte­resses ou posições constitucionalmente garantidas, a saber, os direitos da oposição, das regiões e dos municípios, das demais colectividades e ins­tituições constitucionalmente protegidas, das minorias culturais.

Aplicando este raciocínio ao caso português, verifica-se por exem­plo, que, estando sujeitas a controlo de constitucionalidade as leis que afectem os direitos da oposição, estão porém imunes a esse controlo os demais actos que tenham ignorado ou desrespeitado tais direitos. Por exemplo, uma resolução parlamentar que suspenda ou prorrogue os tra­balhos parlamentares em infracção das competentes normas constitucio­nais (cf. em especial o art. 177. °-2, que exige maioria de 2/3 para deli­berar a suspensão do funcionamento da AR); ou a eleição do presidente e dos vice-presidentes da AR em violação das pertinentes normas constitu­cionais (cf. o art. 178. ° da CRP, que exige a repartição dos vice-presi­dentes pelos quatro maiores grupos parlamentares), ou a eleição de titu­lares de cargos públicos pela AR em desrespeito pelas regras de eleição por maioria qualificada previstas na Constituição (art. 166. °/h)[15].

De igual modo, entre nós estão submetidos a controlo da consti­tucionalidade as leis e demais diplomas da República que violem as posições constitucionalmente garantidas das regiões autónomas ou dos municípios; mas estão isentos desse controlo os actos do Estado de carác­ter não normativo que afectem essas posições e que não possam ser recon­duzidos à categoria de actos administrativos, contenciosamente impug­náveis na justiça administrativa (por exemplo, uma medida de política monetária ou financeira lesiva dos interesses das regiões autónomas e tomada sem a sua audição, como o exige o art. 229. °-11 q). O mesmo discurso pode desenvolver-se a respeito das demais instituições e colec­tividades constitucionalmente protegidas.

Em resumo, o alargamento dos interesses constitucionalmente pro­tegidos e a necessidade de protecção do pluralismo político e social constitucionalmente garantido requerem um alargamento do âmbito da justiça constitucional.

Mas não está em causa somente a ampliação da fiscalização da constitucionalidade para fora dos actos de carácter normativo, embora em termos limitados. Não é menos importante a necessidade de uma fis­calização mais intensificada dos procedimentos constitucionalmente reque­ridos para a formação dos actos susceptíveis de controlo, sobretudo sempre que aqueles consubstanciam formas de participação ou sejam garantia do contraditório maioria-oposição. Cabe aqui falar em assegurar um consti­tucional due process na formação das leis e demais actos sujeitos à jus­tiça constitucional. Isso é particularmente relevante quanto à obser­vância dos trâmites parlamentares constitucionalmente regulados, porque o seu desrespeito significa normalmente a denegação ou restrição inde­vida dos direitos de intervenção parlamentar da oposição[16]. Por isso, por idênticas razões, a jurisdição constitucional não deveria deixar de ter por função também a de velar igualmente pela observância das regras regi­mentais, como sucede de resto em alguns países (como a França)[17].

c) Meios procedimentais e legitimidade processual

          O alargamento do sentido e âmbito da justiça constitucional reper­cute-se naturalmente na necessidade de novos instrumentos processuais. A defesa de um direito ou garantia constitucional corre o risco de ficar inerme sem os adequados meios processuais e sem a pertinente legitimidade processual para a impugnação dos actos que se traduzam na sua ofensa. Não se corre nenhum risco de exagero se se disser que há muitas normas inconstitucionais que se mantêm em vigor durante muito tempo só porque não existem meios processuais adequados ou por­que os interessados carecem de legitimidade para os suscitar.

Nos sistemas de fiscalização judicial difusa de modelo norte-americano, a impugnação de actos inconstitucionais é necessariamente inci­dental e os interessados têm sempre o direito de invocar em qualquer causa submetida a apreciação judicial a inconstitucionalidade dos que os lesem. Nos sistemas de fiscalização concentrada e abstracta, a lógica desta postula o princípio de que a justiça constitucional visa a defesa objectiva da ordem constitucional, independentemente das posições constitucionais subjectivas dos interessados. Por isso, em princípio a com­petência para suscitar as questões de constitucionalidade junto do TC não está ligada ao interesse na decisão da questão. Mas a rigidez do prin­cípio foi temperada em muitos sistemas de justiça constitucional concentrada, tanto através do incidente de inconstitucionalidade — que pode ser suscitado em qualquer causa pendente num tribunal comum e sobe para julgamento ao TC —, como sobretudo através dos meca­nismos de defesa directa de direitos fundamentais contra actos de poder, mediante recurso dos interessados para o TC, como sucede com o recurso de amparo no direito constitucional espanhol e na Verfassungsbeschwerâe da Grundgesetz alemã[18].

Na própria fiscalização abstracta foram desde cedo introduzidos elementos subjectivistas na definição do círculo de entidades com legi­timidade para levantar junto do TC questões de inconstitucionalidade. Desde o início que, por exemplo, na Áustria os órgãos dos Länder tive­ram o poder de impugnar a legitimidade constitucional das leis federais que lesassem as suas garantias ou poderes constitucionais. De igual modo, o reconhecimento da legitimidade de acesso ao TC por parte de um certo número de deputados ao parlamento — solução que se veri­fica em vários países (Áustria, Alemanha, Espanha) — funciona não só como instrumento de defesa objectiva da Constituição mas também, e talvez sobretudo, de defesa das prerrogativas constitucionais dos parti­dos não governamentais contra os abusos da maioria.

Entre nós também são notórios esses elementos subjectivistas na defi­nição do círculo das entidades com acesso ao TC. É o caso dos órgãos regionais, quanto à sua capacidade de impugnar a constitucionalidade das normas dos órgãos do Estado que lesem os seus direitos constitucionais, (art. 281. °-2 da CRP); o mesmo se passa com o direito de impugnação reconhecido a um décimo dos deputados às AR, o que dá aos partidos da oposição a faculdade de contestarem as normas que tenham por inconstitucionais, incluindo naturalmente as que desrespeitem os seus pró­prios direitos ou prerrogativas constitucionais (arts. 278. °-4 e 282. °-2). Porém, para além disso, cabe perguntar se uma concepção da jus­tiça constitucional adequada às exigências contemporâneas não deve considerar a ampliação da legitimidade processual junto do TC em matéria de fiscalização abstracta. O alargamento do âmbito da justiça cons­titucional aos actos não normativos, na medida anteriormente preconi­zada, deve naturalmente ser acompanhada da correspondente legitimidade constitucional dos órgãos e entidades que já hoje têm acesso ao TC. De facto, não teria sentido que passassem a estar submetidos a controlo de constitucionalidade por exemplo os actos do poder contrários aos direitos das regiões autónomas e aos direitos da oposição e que os inte­ressados não tivessem legitimidade para os impugnar sob o ponto de vista da sua validade constitucional.

O mesmo deverá valer, logicamente, para as demais entidades públi­cas com direitos ou posições constitucionalmente protegidas, como sucede com os municípios e as restantes entidades da administração autó­noma (como as universidades ou as ordens profissionais). De facto, afigura-se incongruente que, por exemplo, os municípios não tenham o direito de impugnar as normas e demais actos do Estado que os lesem nas suas garantias constitucionais, tendo de peticionar tal impugna­ção aos órgãos que detêm esse poder, como tem sucedido até agora. Note-se que entre essas entidades públicas autónomas se conta a Ordem dos Advogados, cujo direito de acesso ao TC poderia aliás servir não somente a defesa da autonomia constitucional da instituição mas também para efeitos gerais, no mesmo pé que os actuais titulares, em coerência com a função que aos advogados cabe como colaboradores da justiça[19].

De igual maneira, seria tudo menos descabido encarar favoravel­mente o acesso ao TC também por parte das entidades colectivas priva­das especialmente representativas de direitos ou interesses constitucionalmente reconhecidas, como são as centrais sindicais ou as associações representativas de defesa de direitos fundamentais ou das várias forma­ções sociais constitucionalmente reconhecidas desde que preenchessem certos requisitos e limitado tal acesso à defesa dos respectivos direitos e interesses constitucionalmente protegidos[20]. Ao fim e ao cabo, com isto apenas se criaria, não uma qualquer «acção popular de constitucionalidade», mas um limitado recurso directo de constitucionalidade, que em outros países, como a Espanha e a Alemanha, é reconhecida a todas as entidades singulares ou colectivas (privadas ou mesmo públicas) lesa­das nos seus direitos fundamentais por qualquer acto do poder.

Não se pode ignorar que não falta quem tenha a ideia de que a democratização ao acesso à justiça constitucional seria a sua perdição. Mas tais temores não são de compartilhar. Seguramente que a justiça cons­titucional não pode ser banalizada, nem os tribunais constitucionais devem ver-se sepultados sob aluviões de milhares de processos por ano. No entanto, os remédios para essas situações devem procurar-se preferentemente em instrumentos de filtragem dos recursos ou acções imper­tinentes e não no maltusianismo artificial de negar aos titulares de direi­tos ou prerrogativas constitucionalmente protegidos os instrumentos processuais adequados à sua defesa contra os poderes instituídos.

É provável que possa reclamar algum crédito a cínica tese, não poucas vezes insinuada, de que nenhum Estado poderia funcionar se todos os actos inconstitucionais fossem impugnados. Mas não sofre dúvidas de que um sistema de justiça constitucional deliberadamente dese­nhado para reduzir ao mínimo a possibilidade de contestação de actos inconstitucionais tarde ou cedo sofrerá os efeitos do correspondente défice de legitimação.

4. Princípio da maioria e função da justiça constitucional

A justiça constitucional supõe a prevalência do princípio da constitucionalidade, ou seja, a submissão de todos os poderes do Estado, a começar pelo poder legislativo, à Constituição (cf. CRP, art. 3. °-3).

A relação do princípio da maioria com o princípio da constitucio­nalidade é essencialmente ambivalente. Por um lado, o princípio da cons­titucionalidade é, obviamente, um Limite do princípio da maioria, isto é da maioria legiferante ordinária; por outro lado, porém, o princípio da constitucionalidade também é ele mesmo expressão do princípio da maioria, ou seja, da maioria fundante e constituinte da comunidade política.

Daí que a função da jurisdição constitucional de fazer prevalecer a Constituição contra a maioria legiferante arranca essencialmente da con­sideração de que a justiça constitucional visa adjudicar o conflito entre duas legitimidades, de um lado, a legitimidade prioritária da lei funda­mental e, do outro lado, a legitimidade derivada do legislador ordiná­rio. Nas palavras de Karl Korinek, «a vinculação do legislador ordiná­rio às determinações constitucionais é ao mesmo tempo a vinculação do legislador democraticamente legitimado a um acto de mais elevada legi­timação democrática»[21] .

A prevalência do princípio da constitucionalidade sobre o princí­pio da maioria implica, entre outras, três consequências essenciais.

Primeiramente, para o juiz constitucional a Constituição é um dado, não podendo ele substituir-se ao legislador constitucional na definição da extensão e da intensidade com que a lei fundamental limita a liber­dade de escolha do legislador ordinário. Não compete ao juiz consti­tucional «corrigir» a Constituição quando esta supostamente não con­tém as soluções mais acertadas ou avisadas.

Em segundo lugar, em princípio, todos os preceitos constitucionais detêm uma função normativa. Incumbe ao juiz constitucional, em sede de interpretação da lei fundamental apurar o sentido e o alcance de cada preceito, mas não lhe assiste o direito de desqualificar como norma não constitucional nenhum preceito da constituição. Para o juiz constitucional nenhum preceito constitucional pode à partida ser enjei­tado, incapacitado ou interditado como impróprio para efeitos de afe­rição da legitimidade constitucional das decisões dos poderes públicos. É certo que é distinto o alcance normativo dos diferentes tipos de pre­ceitos jurídicos, conforme a sua densidade normativa, isto é, consoante contenham normas preceptivas, princípios ou simples directivas de polí­tica. Mas nenhum preceito pode ser privado de função normativa[22].

Desnecessário se torna sublinhar que o respeito pela lei fundamental implica o reconhecimento e valorização das peculiaridades de cada Constituição, com as suas especificidades e soluções próprias. O fundo comum de muitas constituições europeias ocidentais, sobretudo das do último meio século, proporciona sem dúvida a convergência de soluções e de linhas jurisprudenciais. Mas essa «comunidade europeia da justiça constitucional» não pode ignorar nem apagar as diferenças sensíveis existentes entre as várias constituições. Por exemplo: as questões rela­tivas aos direitos dos trabalhadores, que gozam de um singular favor cons­titucional na CRP — por exemplo, em matéria de direito à greve e proibição do lock-out — não podem ser vistos entre nós por uma pers­pectiva idêntica à dos juízes do Tribunal de Karlsruhe, cuja Constitui­ção nessa matéria se inspira predominantemente no suposto da «igual­dade de armas» entre os chamados «parceiros sociais». Da mesma maneira, as questões atinentes à «constituição religiosa» da CRP, marcada pela enfática afirmação da separação das igrejas e do Estado e pela não confessionalidade do ensino, não poderiam equacionar-se como o fariam os magistrados do Palácio da Consulta de Roma, cuja Constituição deu recepção ao pactos de Latrão de 1929, com a consequente «incorpora­ção constitucional» da Igreja católica italiana. Ainda como exemplo, os problemas da autonomia das regiões autónomas não podem ser considerados no Palácio Ratton com os mesmos parâmetros a que têm de recorrer os juízes da rua Domenico Scarlatti de Madrid, pois as «comu­nidades autónomas» da Constituição espanhola são algo mais do que sim­ples regiões autónomas.

Em terceiro lugar, não assiste ao juiz constitucional o direito de autolimitar-se no exercício dos seus poderes (teoria do chamado selfrestraint), nomeadamente a pretexto de se tratar de «questões políticas» (political question doctrine, da jurisprudência constitucional norteamericana). Seguramente que, por definição, o juiz constitucional só pode censurar o legislador ordinário se e na medida em que este esteja vinculado pela Constituição, independentemente do mérito ou demérito das soluções legis­lativas em causa. Mas, uma vez verificado que o legislador estava constitucionalmente vinculado e violou a Constituição, não resta ao juiz constitucional senão tirar a consequência da inconstitucionalidade, inde­pendentemente da natureza, «política» ou não, das questões envolvidas.

O conceito de autolimitação da justiça constitucional é intrinse­camente contraditório e insusceptível de fundamentação razoável. Pois de duas, uma:

— ou, afinal, no caso concreto o legislador não infringiu nenhum parâmetro constitucional restritivo da sua discricionariedade legislativa, e então não há que falar em autolimitação do juiz constitucional, visto que nenhuma inconstitucionalidade existe;

— ou efectivamente o legislador actuou numa área constitucionalmente indisponível ou em termos constitucionalmente ilícitos, e então a autolimitação do juiz constitucional na declaração de inconstitucionalidade da norma traduz-se necessariamente numa renúncia à jun­ção que lhe está constitucionalmente cometida, que é a de verificar a constitucionalidade das leis e sancionar as inconstitucionalidades[23].

Penso que permanece inteiramente válida a já clássica contestação que Konrad Hesse fez da teoria da autolimitação. Escreveu ele: «Se é correcto o princípio de que o controlo do Tribunal Constitucional é determinado pelas funções que lhe são confiadas pela Constituição, então o postulado da retracção judicial [ríchterlicher Zuruckhaltung] é em geral falso. Pois a mais importante função confiada ao TC — velar pela observância da Constituição, especialmente a protecção dos direitos fun­damentais — pode exigir justamente o contrário da contenção, ou seja, uma decidida intervenção do Tribunal, mesmo com o risco de conflito com outra autoridade»[24]

5. Princípio da maioria e limites dos poderes do juiz constitu­cional

Se o princípio da maioria deixou de ser motivo de rejeição da jus­tiça constitucional — pelo contrário! —, ele não deixou de ser rele­vante para definir os parâmetros e delimitar os poderes do juiz consti­tucional.

Dele decorre uma exigência fundamental da jurisdição constitu­cional, que consiste em não usurpar o papel do legislador ordinário, expressão da maioria de governo, substituindo-se àquele nas escolhas constitucionalmente admissíveis.

Se o juiz constitucional não deve autolimitar-se nas suas funções de fiscalização da constitucionalidade, deve em contrapartida observar precipuamente os limites aos seus poderes que decorrem da Constituição ou são inerentes à fiscalização da constitucionalidade.

A ideia fundamental é a de que ao juiz constitucional só compete averiguar se a lei é ou não contrária à Constituição, mas não lhe com­pete substituir-se ao legislador na formulação das soluções conformes à Cons­tituição. Aqui continuam a ter plena validade as limitações decorrentes do princípio da maioria e da separação de poderes. É à maioria demo­craticamente legitimada para governar que compete fazer as leis e não aos juízes, mesmo ao juiz constitucional. A este só compete verificar se aquele legislou contra a Constituição. Ele é um contralegislador, não um legislador. Como diz um autor, a tarefa do juiz constitucional só começa quando o querer político — a lex ferenda — já se transformou em dever-ser jurídico — a lex lata[25].

São várias as consequências deste princípio. Apontemos as prin­cipais.

Desde logo, na chamada interpretação conforme à Constituição, o juiz constitucional não pode — só para não optar pela inconstitucionalidade — atribuir à norma um sentido que não possa ser reconduzível à vontade do legislador, pois de outro modo ele tornar-se-á o verdadeiro legislador. O sentido conforme à Constituição há-de ser um dos senti­dos possíveis da norma, de acordo com os cânones de interpretação.

Em segundo lugar, e salvo habilitação expressa da Constituição, a tarefa de fiscalização da constitucionalidade não consente ao juiz cons­titucional emitir normas substitutivas das normas declaradas inconstitu­cionais, mesmo a título provisório, nem sequer ditar ao legislador as normas que este haja de emitir para substituir as normas declaradas inconstitucionais. Em princípio, há sempre várias maneiras concretas de regulação legislativa de certa matéria não desconformes com a Cons­tituição, só ao legislador competindo eleger a que lhe aprouver.

Em terceiro lugar, no caso de haver apenas incompatibilidade par­cial de uma certa norma com a Constituição, a redução correspondente da norma só é lícita se a norma assim reduzida não se mostrar de todo incongruente com a intenção legislativa, pois de outro modo a norma subsistente será uma norma não querida pelo legislador, «criada» pelo pró­prio Tribunal[26].

Finalmente, na fiscalização das omissões inconstitucionais o juiz cons­titucional deve limitar-se a verificar se existem ou não as normas neces­sárias e adequadas ao cumprimento da incumbência constitucional, mas não lhe cabe naturalmente fazer injunções ou instruções concretas ao legislador sobre o modo de suprir a omissão constitucional, nem muito menos substituir-se ao legislador na sua emissão (também aqui salvo específica habilitação constitucional)[27]. Por princípio e em conse­quência da sua própria natureza, as decisões de inconstitucionalidade por omissão são de «mero reconhecimento» da inconstitucionalidade, não podendo o tribunal anular a omissão, visto que esta só pode ser supe­rada pela emissão de legislação adequada[28].

Em suma, são de rejeitar por princípio as concepções de activismo ou de criatividade do juiz constitucional, que fundamentam em boa parte a prática das chamadas «sentenças manipulativas» ou «construtivas», a que se referem os estudos sobre a jurisprudência constitucional de alguns países[29], nomeadamente na Itália[30]. Porque aí o juiz cons­titucional assume inequivocamente a veste do legislador e, em vez de se limitar a declarar a inconstitucionalidade das normas que o legislador emitiu, permite-se criar ele mesmo normas em substituição do legislador, ou imputar deliberadamente ao legislador normas diferentes da que este efectivamente emitiu[31].

Dessa maneira, porém, o juiz constitucional age a descoberto da legi­timidade própria da justiça constitucional, e entra directamente em choque com o princípio da maioria e com a repartição de funções entre o legislador — a quem cabe formular as escolhas normativas — e o juiz constitucional — a quem cabe somente verificar a compatibilidade des­tas com as normas constitucionais.

A conclusão a tirar é, por conseguinte, a de que o princípio da maioria e o respeito da autonomia constitucionalmente reconhecida ao legislador colocam limites efectivos aos poderes do juiz constitucional. Mas diversamente de algumas opiniões correntes, esses limites situam-se não no plano da extensão e intensidade do controlo mas sim no plano dos seus efeitos, que devem ser essencialmente negativos e não de con­formação normativa. Tudo o que na actuação dos poderes públicos infrinja a Constituição cai na alçada do juiz constitucional e deve ser por ele anulado, mas os seus poderes acabam lá onde começa a reserva ao legislador, ou seja, a formulação e selecção de opções legislativas de entre as não incompatíveis com a Constituição.