A "Constituição Europeia" e a Ordem Jurídica Portuguesa
Professor Doutor Jorge Miranda
XX Aniversário do Tribunal Constitucional
28 de novembro de 2003
Pequeno Auditório do Edifício da Caixa Geral de Depósitos - Culturgest


I

1. Os fundadores das três Comunidades Europeias – do Carvão e do Aço, Económica e de Energia Atómica – pretenderam dar lhe características próprias, pelos fins mais amplos e pelos poderes mais fortes com que as dotaram, por as normas e as decisões dos seus órgãos beneficiarem de tutela jurisdicional e por incluirem órgãos (ou titulares de órgãos) com relativa independência frente aos Estados membros.

Não sem dificuldades e vicissitudes várias, conseguiriam implantar se e consolidar se, mercê da memória traumática dos conflitos da primeira metade do século, da consciência das suas vantagens para os povos europeus, do êxito do mercado comum. O Acto Único de 1986 e, sobretudo, o Tratado de Maastricht de 1992 (seguido pelos de Amesterdão e de Nice de 1998 e de 2001), acentuariam esse rumo, formalizado na criação daquilo a que passaria a chamar se a União Europeia.

Algumas dessas vicissitudes ocorreram nos anos 60, em face da desconfiança ou da oposição da França sob a presidência do GENERAL DE GAULLE (levando, por exemplo, aos acordos do Luxemburgo de 1966). Mas, ao mesmo tempo que se dava uma paragem ou um recuo dos elementos políticos de integração, o Tribunal de Justiça, em ousada construção pretoriana, sustentava um sentido uniformizador e até federalizante da nova ordem jurídica [2]. E esse rumo seria prosseguido sucessivamente [3].

Pois bem: com o projecto de “tratado que institui uma Constituição para a Europa”, saído da “convenção” dirigida por GISCARD D’ESTAING, algo de parecido se repete. O projecto, em vez de um reforço da componente comunitária e igualitária dos Estados, aponta para uma componente intergovernamental com pendor dominante dos Estados mais populosos. Mas, ao mesmo tempo, pretende transpor para o tratado europeu em formação a jurisprudência do Tribunal de Justiça, sintetizada no art. 10º, nº 1 da primeira parte: “A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União, no exercício das competências que lhes são atribuídas, primam sobre o direito dos Estados membros”.

Veremos adiante como esta fórmula, ao contrário do que resulta prima facie, é ambígua e passível de diversas interpretações. Por agora, vamos recordar os pontos nucleares da orientação do Tribunal.

2. São os seguintes esses pontos nucleares:
1º) Os tratados europeus criaram uma ordem jurídica a se, que envolve as ordens jurídicas dos Estados membros;

2º) As normas jurídicas comunitárias têm aplicação imediata nos Estados membros e vinculam todos os seus órgãos, sendo inadmissível a necessidade de mediação de leis internas;

3º) Eles têm efeito directo, podendo ser invocáveis enquanto tais em tribunal;

4º) A validade das normas jurídicas comunitárias não depende das ordens jurídicas nacionais, não podendo, na sua interpretação e na sua aplicação, ser tidas em conta as regras e as noções destas ordens jurídicas;

5º) Pela sua própria razão de ser e por um princípio de igualdade entre os cidadãos, as empresas e os Estados, as normas comunitárias têm de receber aplicação uniforme em todos os Estados membros;

6º) A incorporação das normas comunitárias na ordem interna de cada Estado membro, aceite na base da reciprocidade, impede quaisquer medidas unilaterais que ele possa adoptar;

7º) A validade das normas e dos actos dimanados de órgãos comunitários só pode ser apreciada à luz do Direito comunitário;

8º) As normas comunitárias tornam inaplicáveis de pleno direito as normas contrárias decretadas pelos Estados membros, sejam previgentes ou subsequentes à sua formação;

9º) Por esse mesmo postulado de congruência estrutural, nem sequer se lhes pode opor normas constitucionais internas;

10º) Donde, o primado do Direito comunitário;

11º) Órgãos de aplicação do Direito comunitário tanto são o Tribunal de Justiça e o Tribunal de 1ª Instância das Comunidades como os tribunais dos Estados membros, enquanto decidam segundo normas comunitárias;

12º) No entanto, para garantia ainda da aplicação uniforme do Direito comunitário, cabe ao Tribunal de Justiça proceder à sua interpretação, mediante o mecanismo de reenvio prejudicial a que estão adstritos os tribunais nacionais;

13º) A acção por incumprimento, a propor pela Comissão contra os Estados, é uma garantia complementar da execução do Direito comunitário.

São bem conhecidos os primeiros e principais passos do percurso que o Tribunal de Justiça trilhou: o acórdão Costa ENEL, de 15 de julho de 1964; o acórdão Internationale Handelsgesshschaft, de 17 de dezembro de 1970; o acórdão Simenthal, de 9 de março de 1978 [4].

3. Independentemente da construção assim erguida, os tribunais dos Estados membros, mormente os tribunais constitucionais, não deixaram de ter consciência, também eles, desde o início, da problemática suscitada pela ordem jurídica comunitária, a que procuraram responder não sem influência das concepções monistas ou dualistas aí dominantes.

O primado sobre o Direito ordinário interno foi geralmente acolhido como imperativo imprescindível. Divergências só foram surgindo a propósito da apreciação da eventual desconformidade entre normas legislativas e normas comunitárias – se se reconduziria a inconstitucionalidade (indirecta) ou não e se seriam competentes os tribunais constitucionais ou outros tribunais [5].

Muito mais grave era a posição a tomar frente às relações do Direito comunitário com as Constituições, por força do princípio da soberania do Estado e por causa da salvaguarda dos direitos fundamentais. Mas foi se dando uma evolução sensível de uma atitude muito rigorosa, sobretudo na Alemanha, para fórmulas mais flexíveis capazes de evitar ou superar conflitos.
Numa primeira fase, o Tribunal Constitucional Federal afirmou a extensão, sem quebras, do princípio da constitucionalidade às normas europeias. Numa segunda fase, por admitir que na esfera comunitária os direitos fundamentais já obtinham um grau de protecção comparável ao atingido a nível interno, aceitou autolimitar o seu poder, embora reservando se a indagação da comparabilidade. Num terceiro e mais recente momento, assentiu numa espécie de presunção de respeito dos direitos fundamentais pelas normas comunitárias, fazendo recair sobre quem as impugnasse o ónus da demonstração contrária [6].

Tem vindo, portanto, a reduzir se a margem de intervenção dos tribunais constitucionais e de órgãos homólogos, em nome de um esforço de concertação ou de coordenação entre as ordens jurídicas e de reconhecimento de valores jurídicos comuns [7]. Não obstante, nunca esses tribunais se renderam, pelo menos de forma explícita, a um primado puro e simples ou radical do Direito comunitário, nem renunciaram à defesa, em última análise, dos direitos e dos vectores básicos das correspondentes Constituições [8].

II

4. No nosso país, se o Tribunal Constitucional não teve até agora de se pronunciar [9], nem, nem por isso a doutrina tem deixado de reflectir sobre a relação entre Direito comunitário derivado e Constituição. Prevalece a tese da supremacia desta, com mais ao menos contenção [10], mas há também quem defenda o valor supraconstitucional daquele Direito.
Segundo ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS para que o Direito Comunitário vigore na ordem interna dos Estados membros e prime sobre todo o Direito estadual não é necessário que a Constituição o diga: quando um Estado adere às Comunidades aceita implicitamente a sua ordem jurídica com todas as suas características essenciais – com todos os seus atributos próprios – e o primado é o primeiro deles [11].

O disposto no art. 8°, n° 3, acrescentam, deve prevalecer sobre os arts. 207º e 277°, nº 1 da Constituição, já que está colocado na parte da Constituição dedicada aos “Princípios Fundamentais” [12].

Avançando ainda mais, EDUARDO CORREIA BAPTISTA considera incontornáveis o regime do Direito Comunitário e os factos decorrentes do seu “implacável sistema de garantias”. É algo penoso ter de o reconhecer, mas a existir uma norma nula internamente (ou ineficaz por revogação), esta norma será a constitucional por contrariar a norma comunitária e não o inverso ... e as normas nulas não vinculam os tribunais [13].

5. A nossa posição é aquela que, por último, assumimos no nosso Curso de Direito Internacional Público de 2002 [14].
Não negamos a conveniência ou a “exigência estrutural” de uma interpretação e uma aplicação uniformes do Direito comunitário na ordem interna de todos os Estados pertencentes às Comunidades. Todavia, exigência análoga existe em relação ao Direito internacional convencional, em face do princípio da boa fé na interpretação e na aplicação dos tratados (arts. 31º e 26º da Convenção de Viena).

Como sublinha MIGUEL GALVÃO TELES, aceitar a incorporação da norma internacional e negar, ao mesmo tempo, a interpretação e a integração da fonte de que deriva segundo os critérios que lhe são próprios significaria, em última análise, conceder com uma mão o que se retira com outra. Nem se descortinaria motivo sério que justificasse que o Estado quisesse a todo o transe assegurar o respeito dos seus critérios interpretativos e integrativos quando os abandonou ao receber a norma internacional [15].

Se não fosse assim, acentua outro Autor, RUI MOURA RAMOS, seria o Direito internacional que se esfrangalharia num conjunto de regulamentações estaduais que lhe fariam perder a unidade. O Direito internacional defrontar se ia com o paradoxo de a sua generalização provocar necessariamente a descaracterização dos seus comandos. Haverá, pois, que buscar ao máximo a maior conformidade de conteúdo e regime das suas normas, quer quando são objecto de aplicação na ordem internacional, quer quando são actuados nos vários sistemas jurídicos estaduais [16].
A diferença entre Direito comunitário e Direito convencional, aliás não pouco importante (se bem que sem infirmar o postulado) está na maior extensão e na maior densidade das normas comunitárias e na insuficiência de garantias que ao cumprimento dos tratados pode dar o Tribunal Internacional de Justiça, desprovido de jurisdição obrigatória.

6. Uma coisa vem a ser, porém, a conveniência ou a necessidade de adequação da ordem jurídica interna, incluindo a Constituição, à ordem jurídica comunitária; outra coisa, proclamar um princípio de primado de normas provenientes das instituições comunitárias sobre as normas constitucionais.

Afirmar tal primado é logicamente absurdo. Tais normas decorrem da competência de órgãos criados por um tratado (aqui o Tratado da União Europeia), o qual tem de ser aprovado e ratificado nos diversos Estados partes, com observância das respectivas Constituições (daí as prévias revisões constitucionais efectuados em alguns Estados para evitar quaisquer discrepâncias). Ora, como poderiam as normas de Direito comunitário derivado valer mais do que as normas constitucionais?

Haveria ainda aí uma contradição insanável com os alicerces democráticos da União. Ora, não é, em regime democrático, a Constituição a máxima expressão da vontade popular, manifestada em assembleia constituinte ou por referendo? Como conceber então que a ela se sobreponha uma normação sem base democrática imediata (a do Conselho de Ministros, da Comissão ou do Banco Central Europeu)? Como conceber um primado verdadeiro e próprio de normas de origem burocrática e técnica sobre as normas directamente assentes na legitimidade democrática [17].

GOMES CANOTILHO, na última edição do seu livro Direito Constitucional e Teoria da Constituição, alude a um processo constituinte europeu, simultaneamente processo constituinte dos Estados membros, pelo que o Direito primário dos tratados acabaria por se impor ao Direito constitucional interno. Mas acrescenta que isto não significa que não haja limites a uma eventual supremacia e preferência de aplicação. Desde logo, tratar se á sempre de aplicação preferente, não de proeminência quanto à validade. Os preceitos constitucionais internos incompatíveis com normas comunitárias não são nulos ou anuláveis, apenas inaplicáveis no caso concreto. Em segundo lugar, as normas europeias não poderão transportar “revoluções internas” a ponto de subverter os princípios constitucionais materialmente irreversíveis. A Constituição constituinte impõe se aqui ao processo constituinte.

E GOMES CANOTILHO conclui, para o que agora interessa: o Direito europeu com primazia de aplicação relativamente a normas constitucionais só pode ser o Direito convencional. O alargamento da tese da primazia de aplicação a todas as normas comunitárias (desde os tratados ao mais anódimo regulamento ou directiva) acabaria por minar a medula óssea do Estado de Direito democrático e constitucional [18].

7. Sem olvidar o interesse básico da unidade do Direito comunitário, tem, pois, de se procurar encontrar soluções de equilíbrio com as Constituições nacionais, soluções de harmonização e concordância prática. E, de resto, mesmo Autores voltados para a afirmação de uma Constituição europeia (como MIGUEL POIARES MADURO e FRANCISCO LUCAS PIRES), reconhecem a necessidade de um pluralismo ou dialogismo jurídico [19] e devendo a ordem jurídica europeia ser pensada como integrando, simultaneamente, as pretensões de validade das ordens jurídicas nacionais e comunitária [20].

Não é preciso destruir a função da Constituição para aceitar um princípio de cooperação entre ordens jurídicas – escreve CRUZ VILAÇA [21]. À visão monista de supremacia subordinação pode contrapor se, diz, por seu turno NUNO PIÇARRA, a ideia de uma repartição material de competências: à “competência das competências” dos Estados são subtraídas, por vontade destes, competências fundamentalmente em matérias económicas lato sensu [22]. Ou, como frisa MARIA LUÍSA DUARTE, a relação entre o Direito comunitário e os Direitos nacionais constró se com base nos princípios da atribuição de competências e da colaboração ou complementaridade funcional de ordenamentos autónomos e distintos [23].

Poderá, por conseguinte, justificar-se alguma contenção – como temos sugerido desde 1991 [24] – no funcionamento dos mecanismos de fiscalização instituídos pelos arts. 204° e 280° e segs. da nossa Constituição, embora nunca a pretexto de uma pretensa prioridade do art. 8°, n° 3. Este não incorpora um princípio fundamental da Constituição; princípio fundamental é, sim, o princípio da constitucionalidade, declarado no art. 3°, nºs 2 e 3.

O princípio da repartição material de competências, concretizado nas cláusulas implícitas ou explícitas de limitação da soberania, é suficiente – afirma ainda MARIA LUÍSA DUARTE – para justificar a não fiscalização da constitucionalidade das normas comunitárias, salvo naqueles casos em que se trate de garantir o núcleo essencial da Constituição, insusceptível, por natureza, de integrar o âmbito da delegação de competências pacticiamente definido. Não se trata de conferir à norma comunitária um valor supraconstitucional, insuperavelmente contraditório com a própria ideia de Constituição [25].

8. Pelo exposto, vimos preconizando uma via média no tocante ao controlo de constitucionalidade das normas comunitárias (e, porventura, também de normas dimanadas de organizações internacionais ao abrigo do art. 8º, nº 3, da Constituição): exercício de fiscalização para defesa dos valores básicos da Constituição; e adopção para o resto de algo de semelhante ao disposto quanto à inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratado que não resulte da violação de uma disposição fundamental (art. 277º, n° 2), com a consequente mera irregularidade aqui de eventual contradição [26].

Tais valores básicos são os plasmados nos limites materiais de revisão constitucional (art. 288º), a identidade nacional – manifestada, antes de mais, na língua portuguesa e nos laços privilegiados com os países que a adoptam [arts. 9º, alínea g), e 10º, nº 3, assim como arts. 7º, nº 4, 15º, nº 3 e 78º, nº 2, alínea d)] – e os princípios e regras conformadores da própria participação de Portugal na construção europeia – os princípios da reciprocidade, da subsidiariedade e a exigência de tratado para o exercício da soberania em comum ou em cooperação (art. 7º, nº 6).

Nem se invoque, para afastar totalmente a fiscalização, a omissão do Direito comunitário no preceito respeitante ao recurso obrigatório para o Ministério Público de decisões dos tribunais de desaplicação de normas constantes dos actos de maior relevância (art. 280º, nº 3) [27], porque ele não apaga a regra geral da recorribilidade de decisões que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade [art. 280º, n° 1, alínea a)] e porque a não obrigatoriedade de recurso bem pode entender-se, justamente, na perspectiva de relativa auto limitação que alvitramos.

Muito menos aceitável, embora aliciante, seria convolar a questão de inconstitucionalidade suscitada em qualquer tribunal em questão prejudicial de validade jurídico comunitária, funcionando então o Tribunal de Justiça das Comunidades como juiz legal para efeito do art. 177° (hoje 234º) do Tratado de Roma [28]. Além de não ter, neste momento, nenhum apoio de preceito positivo, poderia traduzir-se, em última análise, numa absorção do Direito constitucional pelo Direito comunitário.

Na prática, hipóteses de inconstitucionalidade relevante serão extremamente remotas (tal como o têm sido nos demais países). Só que não seria prudente, olhando ao vanguardismo jurídico do Tribunal de Justiça e ao risco de hegemonia dos “Grandes” Estados nas instituições comunitárias, excluí lo a priori.

Nem, no fim de contas, isto será muito, muito diferente do que se verifica com a fiscalização sucessiva da constitucionalidade de normas convencionais. Também ela, por um duplo princípio de pacta sunt servanda e de boa fé (designadamente para evitar inconstitucionalidade superveniente por efeito de revisões constitucionais), apenas em casos raros se justificará [29].

9. Noutro plano, ficam:
1º) A fiscalização dos actos legislativos de transposição de directivas comunitárias (art. 112º, nº 9 da Constituição);

2º) A fiscalização do processo de participação de Portugal na tomada de decisões comunitárias que versem sobre matérias que incidam na esfera de competência legislativa reservada da Assembleia da República, quando esta se não tenha pronunciado [art. 161º, alínea n)]; fiscalização desse processo interno, não de decisões comunitárias em si mesmo.
Mas também neste segundo caso a consequência negativa dificilmente poderá ir além da irregularidade.

10. Ainda uma referência à infracção de normas comunitárias por lei interna.
Tal como em caso de infracção de tratado, os tribunais portugueses devem ser considerados competentes para a apreciar, ao abrigo do princípio geral ínsito no art. 204º da Constituição. Não há, no entanto, diferentemente do que sucede na relação entre lei e tratado [art. 70º, nº 1, alínea i) da Lei nº 28/82, de 15 de novembro, após a Lei nº 85/89, de 7 de setembro] recurso para o Tribunal Constitucional.

Na lógica do Direito comunitário, o que poderá ocorrer serão – então, sim – reenvio prejudicial para um tribunal das Comunidades [30] [31]. E solução similar haverá de ser dada à desconformidade entre normas de Direito derivado e de Direito originário.


III

11. É altura de voltarmos a ler o art. 10º, nº 1 do projecto de novo tratado: “A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União no exercício das competências que lhe são atribuídas primam sobre o direito dos Estados membros”.

Preceito ou cláusula não presente em nenhum dos tratados anteriores, estará aí a declaração de um primado equivalente a fundamento de validade? Doravante, o Direito dos Estados membros retirará a sua validade, a sua susceptibilidade de conformação das situações da vida da conformidade com o Direito da União (do Direito da União, como agora se diz)? Estaremos diante de uma pirâmide normativa de tipo kelseniano? Havendo contradição entre qualquer norma estatal e uma norma europeia, aquela será tida por inválida, insusceptível de produzir efeitos desde a ocorrência da contradição, nula?

Depois, esse primado abarca tanto o Direito ordinário dos Estados membros quanto o Direito constitucional, e este sem nenhum limite? Ou, sem embargo da sua aparente ratio – a aplicação uniforme das normas comunitárias nas ordens jurídicas de todos os Estados membros – o que se pretende atingir é tão somente o Direito infraconstitucional?

Admitindo que apenas se visa formalizar a jurisprudência do Tribunal de Justiça, é esta em todas as suas linhas de força ou atende se também à jurisprudência de tribunais constitucionais como o alemão? E não se destina a consagração, por via de tratado, dessa jurisprudência, a infirmar a jurisprudência dos tribunais constitucionais e a reduzir cada vez mais o peso das ordens jurídicas nacionais?

Eis perguntas a que importa responder, tentando superar ambiguidades e perplexidades manifestas.

12. Antes de mais, julgamos que o art 10º, nº 1 não comporta um nexo estrutural de validade idêntico ou semelhante ao que se produz entre normas situadas dentro do mesmo ordenamento (por exemplo, entre normas constitucionais e normas ordinárias, entre lei e regulamento, entre jus cogens e tratado, entre tratado constitutivo da União Europeia ou de outra entidade internacional e acto dele derivado, ou entre tratado principal e tratado acessório). Falta um elemento genético e fundacional ao Direito da União diante do Direito de cada Estado membro.

Em segundo lugar o preceito logo se autolimita ao falar em “direito adoptado no exercício das competências que lhe são atribuídas”. Em conjugação com o art. 9º, nº 1, reitera se aí o princípio de competência por atribuição [32] – da atribuição operada por via de tratado, o qual (insistimos) terá de ser ratificado e só poderá ser revisto com o consentimento de todos os Estados membros (arts. 8º e 7º da parte IV). Só quando os órgãos da União emanarem normas contidas no âmbito dessa competência (e das suas competências específicas) é que terá sentido o disposto no art. 10º, nº 1. Mas primado verdadeiro e próprio pressuporia um referente de carácter global que não se verifica [33].

Não ignoramos que as competências da União Europeia saem bastante alargadas do projecto (arts. 11º e segs. da parte I), porquanto, no domínio das competências partilhadas, os Estados apenas as podem exercer na medida em que a União as não tenha exercido ou deixado de exercer (art. 11º, nº 2, 2ª parte); e, sobretudo, porque se se tornar necessária uma acção da União no quadro das políticas definidas na parte III (que é imensa, com 218 longos programáticos artigos) para atingir um objectivo estabelecido na “Constituição”, não prevendo esta os poderes requeridos para o efeito, o Conselho de Ministros tomará as disposições adequadas, por deliberação unânime, sob proposta da Comissão e após aprovação pelo Parlamento Europeu (art. 17º, nº 1 da parte I).

Nem por isso se modifica a natureza das competências. Tudo está no equilíbrio dessa “cláusula de flexibilidade”, com os princípios de subsidiariedade e da proporcionalidade (art. 7º, nº 1, 2ª parte), nas relações de força reais (e não apenas jurídico formais) naqueles órgãos e no entendimento que aos poderes recíprocos da União e dos Estados vai dar o Tribunal de Justiça.

13. Relativamente ao Direito ordinário interno, é seguro que o art. 10º, nº 1 contém um princípio inamovível de prevalência de aplicação. Idênticas certezas não se vislumbram quanto ao Direito constitucional.

A interpretação jurídica tem de ser sistemática e a dos tratados não foge a este cânone: neles importa sempre atender ao contexto (art. 31º, nº 1 da Convenção de Viena). Ora, do projecto consta um preceito, o art. 5º, em que se prescreve que a União respeita a identidade nacional dos Estados membros, reflectida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles, e as funções essenciais do Estado; e preceito análogo não consta do tratado [34] em vigor. Acresce que, diferentemente também de tratados anteriores, se regula o direito de recesso de qualquer Estado membro, em conformidade com as respectivas normas constitucionais (art. 59º, nº 1 da parte I).

Talvez estas considerações não sejam suficientes para arredar o primado do Direito da União sobre as Constituições nacionais; pelo menos, deixam a questão em aberto.

14. Já aquando do Tratado de Maastricht houve quem tivesse dito que tinha sido exercido um poder constituinte europeu; ou que, se não havia uma Constituição, pelo menos haveria uma pré Constituição ou uma Constituição transnacional [35]. E não poderia então, a aderir se a essa tese, acabar por se ter por justificado o primado, no sentido próprio, da “Constituição europeia” sobre as Constituições nacionais?

Não, de modo algum. Só pode falar se em Constituição europeia na mesma acepção em que poderia falar se em Constituição das Nações Unidas, do Mercosul, da Liga Árabe ou da Organização Internacional do Trabalho. Mas tal Constituição europeia não participa da natureza de Constituição, como lei fundamental e fundadora, expressão de um poder originário e vocacionada para abranger a vida colectiva de toda uma comunidade política. Nunca se manifestou até hoje um poder constituinte europeu, um poder da União Europeia de se organizar, por si e para si, acima e para além dos Estados. A “convenção” que preparou o projecto dito de Constituição foi um mero grupo de trabalho e não uma assembleia constituinte.

Nem existe (ou não existe por enquanto) um povo europeu que seja titular desse poder constituinte; há, sim, um conjunto de povos europeus e é a eles que corresponde o Parlamento Europeu. Nem há cidadãos europeus [36]; há cidadãos de diferentes Estados europeus – aos quais são atribuídos certos direitos económicos e políticos comuns e nisto consiste, justamente, aquilo a que se chama cidadania europeia ou cidadania da União.

Por outro lado, a necessidade de prévia alteração de algumas Constituições dos Estados membros (tal como aconteceu aquando da ratificação do estatuto do Tribunal Penal Internacional) é sinal de que esses tratados não equivalem a uma Constituição, porque, de outro modo, ela não teria sido necessária [37] [38]. Se equivalessem a uma Constituição, aprovados e entrados em vigor, impor-se-iam por si próprios as suas normas prevaleceriam sobre as normas constitucionais, as quais seriam declaradas “inconstitucionais” ou “ilegais” por contradição com normas de grau superior; e nada disso sucedeu até hoje, nem vai agora suceder [39].

Há, naturalmente, quem não pense assim – quer Autores como FRANCISCO LUCAS PIRES, CARLA GOMES e ANA MARIA GUERRA MARTINS, quer, em obras recentes, GOMES CANOTILHO e PAULO OTERO.

Na esteira do que atrás referimos, segundo o primeiro destes Autores, a “maciça alteração” dos tratados, aprofundando a associação constitucional dos Estados, representaria ela própria um processo constituinte [40]. Mas a isso pode contrapor se que o fenómeno se reconduz apenas a um impulso legiferante, a um impulso legiferante constitucional, a um factor estimulante ou determinante da decisão de legislar e, portanto, da abertura de um procedimento de revisão [41]. Mutatis mutandis, de um estrito prisma jurídico, a assinatura dos tratados comunitários está para a revisão constitucional como as mensagens do Presidente da República, o programa do Governo, as petições ou as recomendações do Provedor de Justiça para a produção de leis ordinárias.

Quanto a PAULO OTERO, haveria mesmo um poder constituinte informal de fonte comunitária que, apesar de ainda assentar numa base autovinculativa, dita o conteúdo das opções fundamentais de cada Estado em matérias de índole económica e social [42]. As revisões constitucionais para harmonizar os textos das Constituições com a evolução do Direito comunitário primário demonstrariam já a prevalência do elemento externo na determinação do conteúdo das alterações constitucionais, registando se aqui uma verdadeira heterovinculação constitucional [43].

Achamos que é ir longe demais. Não menosprezamos a força política desse elemento externo; mas ele não consegue substituir se à decisão constitucional interna. Em primeiro lugar, porque, na sua lógica própria, nem sequer seria então necessário modificar a Constituição “oficial” de cada Estado membro. Em segundo lugar, porque não pode obliterar se quer a capacidade de resistência das ordens jurídicas nacionais quer a experiência histórica da rejeição de tratados europeus por via referendária.

15. Mais fecundo vem a ser outro passo da última obra de PAULO OTERO: aquele em que observa que o art. 7º, nº 6 da Constituição portuguesa (introduzido em 1992, aquando do Tratado de Maastricht) [44] envolve uma autolimitação decisória do Estado, inviabilizando que, em tais domínios (de poderes transferidos ou delegados), ele aprove normas contrárias à normatividade comunitária [45].

Mesmo assim, cremos excessivo enxergar aí um caso de “recepção formal indirecta” dos futuros tratados modificativos do Direito comunitário primário [46], dotados de um valor paraconstitucional ou de uma força hierárquico normativa idêntica à da Constituição [47], com a consequente inaplicabilidade de normas constitucionais formais por superveniência de novas normas desses tratados e vice versa [48].

Tal corolário, conquanto não subsumível em mútua revogabilidade, acarretaria não só a desnecessidade de revisão constitucional perante a celebração de novo tratado mas também a possibilidade de, na vigência de um tratado, a superveniência de uma lei de revisão tornar inaplicável internamente a norma comunitária. E, se a primeira consequência é desmentida pela prática e pela susceptibilidade de fiscalização preventiva da constitucionalidade dos tratados europeus [49], a segunda teria um efeito perverso sobre a ordem jurídica comunitária pelas razões que se sabem.

O que resulta, a nosso ver, do art. 7º, nº 6 é justamente o inverso: não que os tratados europeus venham a inserir se na Constituição formal à semelhança da Declaração Universal dos Direitos do Homem (por força do art. 16º, nº 2) [50]; mas que, depois de vincularem o Estado português, não possam ser afectados por revisão constitucional, enquanto não sujeitos eles próprios a alteração; e que não possa haver revisão constitucional em sentido desconforme, sob pena de ineficácia (não, evidentemente, de invalidade desta) [51].

Tão pouco se justifica falar em “derrogação constitucional” a propósito da redução de competência legislativa dos órgãos do Estado e das regiões autónomas em virtude de normas comunitárias [52]. Não há derrogação [53]. O que pode haver é preclusão de competência [54]: esses órgãos não ficam privados de competência, simplesmente não a podem exercer ou a exercer contra o disposto em normas comunitárias. E o art. 161º, alínea n) da Constituição confirma o: a pronúncia necessária da Assembleia da República sobre projectos de actos normativos da União Europeia que versem matérias da sua competência reservada serve de sucedâneo do poder de legislar, sem que o paralise de uma vez para sempre.

Derrogação constitucional acompanha de desconstitucionalização (e na divisa entre constitucionalidade e inconstitucionalidade), dá se, porém, no art. 33º, nº 5 (enxertado em 2001), ao permitir a aplicação de normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia mesmo com prejuízo de algumas das garantias constitucionais de expulsão e extradição.

Como quer que seja, todos estes importantíssimos aspectos mereceriam, obviamente, uma reflexão mais aprofundada que aqui não pode ser levada a cabo.

IV

16. Se a nossa interpretação do art. 10º, nº 1 do projecto de tratado e do art. 7º, nº 6 da Constituição é correcta, não é preciso proceder a qualquer alteração ou aditamento ao texto constitucional para se conseguir o desiderato almejado de aplicação do Direito comunitário em Portugal em termos iguais àqueles em que venha a aplicar se nos restantes Estados membros.

Não se subverte a força normativa da Constituição e continua a salvaguardar se para o Estado – em conjunto com as outras, através da via convencional – o princípio geral da competência das competências. E isto sem prejuízo da autocontenção relativa do controlo da constitucionalidade das normas europeias que vimos alvitrando e da autocontenção material do poder de revisão nos moldes acabados de propor.

Mas, ao invés, se se divisar no art. 10º, nº 1 do projecto uma proclamação radical, explícita e definitiva do primado de todo o Direito da União sobre todo o Direito dos Estados membros a proclamação de um primado estrutural, então não se trata já de uma revisão desnecessária; trata se de uma revisão impossível.

Não seria sequer uma revisão. Não seria sequer uma violação de limite material de revisão correspondente à independência nacional [art. 288º, alínea a)]. Seria muito mais do que isso: seria a destruição da Constituição, um suicídio constitucional, uma mudança qualitativa do Estado degradado a Estado sem soberania constituinte (e, pior do que tudo: tendo em conta a distribuição do poder previsto nos órgãos da União, degradado a uma condição próxima dos Estados alemães dentro da Constituição imperial de Bismarck, sujeitos à hegemonia da Prússia).

Non possumus
17. Foi, por isso, com surpresa e muito grande inquietação que encontrei no projecto de revisão constitucional nº 3/IX (apresentado por Deputados do Partido Social Democrata e do Centro Democrático Social) o seguinte preceito, que seria o nº 3 do art. 8º (o nº 3 actual passaria a nº 4):

“As normas da Constituição Europeia e o direito adoptado pelas instituições da União Europeia, no exercício das competências que lhes são atribuídas, vigoram directamente na ordem interna e prevalecem sobre as normas de direito interno, sem prejuízo do respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito democrático expressos na Constituição”.
A gravidade desta fórmula ressalta à vista desarmada, por se falar, sem mais, em Constituição Europeia e por, ressalvando se apenas os princípios fundamentais do Estado de Direito democrático, se consignar o primado das normas comunitárias – desde as “leis europeias” e as “leis quadro europeias” aos regulamentos delegados da Comissão e aos regulamentos do Banco Central Europeu – sobre as normas constitucionais que não se qualifiquem como princípios fundamentais.

E a fórmula é tanto mais espantosa quanto, na exposição de motivos que antecede o projecto de revisão se escreve (V) que “é importante clarificar as consequências jurídicas da ratificação do Tratado que aprovar a Constituição Europeia, consequências que se impõem sobre o nosso direito ordinário interno e não sobre as matérias da nossa Constituição, ao contrário do que algumas opiniões têm aqui ou ali insinuado”.

Torna se manifesta a contradição e não podemos senão concluir que quem redigiu o preceito proposto não só desconhecia que o Direito comunitário prevalece sobre as leis internas por força do nº 3 actual da Constituição como não foi capaz de exprimir, com rigor, o pensamento dos Deputados subscritores do projecto.

Muito menos se compreende, como defendendo os autores do projecto um referendo (“É preciso fazer um referendo europeu”) se advoga, desde já, a inserção na Constituição de uma norma que supõe, a partida, um resultado favorável ao tratado nesse referendo. E se o resultado for outro?

Assim como, mal se compreende que, antes de encerrada a conferência intergovernamental de Roma e estando em curso ainda negociações delicadas se pretenda que Portugal, na sua lei máxima, venha a ocupar se da matéria do art. 10º, nº 1 do projecto. Nem cremos que, em mais nenhum Estado membro da União, depois de assinado o novo tratado, se vá adoptar qualquer texto semelhante.

Esperemos que a Assembleia da República tenha o sentido de Estado, a sabedoria e a sensatez de saber esperar e saber ponderar!

18. A terminar, seja nos permitido ainda aludir à questão do referendo.

O artigo 115º da Constituição continua a não consentir referendos destinados a aprovar ou a rejeitar directamente leis ou tratados – é uma singularidade explicável historicamente. Reporta se, sim, a matérias ou a questões que devam constar de leis ou de tratados, obrigando depois os órgãos competentes a respeitar o veredicto popular.

E terão de ser somente matérias já objecto de projectos ou propostas de lei ou de tratados já assinados? Não parece. Interpretado o preceito à luz do princípio democrático, nada impede que sejam, simplesmente, matérias ou questões passíveis de tratamento legislativo ou convencional, ainda que não estejam em marcha os respectivos processos. Por isso, bem pode fazer se, por exemplo, um referendo para perguntar ao povo se concorda com a mudança de hora legal ou se concorda com esta ou aquela cláusula a inserir num tratado internacional.

Nem se objecte quanto a tratados, com o art. 197º, nº 1, alínea b) da Constituição, que atribui ao Governo competência para negociar e ajustar convenções internacionais. Pois ao Governo não é subtraída essa competência, apenas fica condicionada pela eventual decisão referendária.

Quer dizer: pode haver um referendo europeu, mesmo antes de aprovada na Conferência Intergovernamental, o novo tratado ou depois de assinado e antes de submetido ao Parlamento. E é preferível isso a que o povo seja colocado perante factos consumados. Os únicos problemas práticos advêm dos prazos constitucionais e legais a respeitar.

Quanto à fiscalização preventiva obrigatória da constitucionalidade dos referendos [arts. 115º, nº 8, e 223º, nº 2, alínea f) da Constituição], tudo estaria ainda no objecto a definir. Se estivesse em causa o primado na acepção mais ampla e radical, abrangendo quer Direito constitucional, quer Direito derivado, a inconstitucionalidade seria manifesta e o Tribunal Constitucional não poderia deixar de o impedir, sob pena de ruptura. Se estivessem em causa outras questões, tudo estaria em saber quais e de que maneira estariam equacionadas.