Tribunal Constitucional, Jurisprudências e Políticas Públicas
Professor Doutor J. J. Gomes Canotilho
XX Aniversário do Tribunal Constitucional
28 de novembro de 2003
Pequeno Auditório do Edifício da Caixa Geral de Depósitos - Culturgest

Ao longo de vinte anos de jurisprudência, o Tribunal Constitucional fez muita política. Dizer isto indicia já que gostaria de vos apresentar um outro modo de analisar algumas das sentenças do Tribunal Constitucional Português. Não é preciso recorrer à ironia dirigida contra os juízes do Tribunal Constitucional Alemão: “os juízes de toga vermelha fazem política”. Basta analisar alguns leading cases do nosso Tribunal para se verificar que, sob o manto diáfano da dogmática e metódica constitucionais, se escreveram páginas de alta política constitucional, chegando aqui e ali a reinventar-se politicamente a própria Constituição. E não podia deixar de ser assim. As questões decididas em algumas sentenças tinha um cuore político – eram problemas de políticas públicas –, não podendo deixar de transportar dimensões de politicidade típicas da aplicação de normas constitutivas do estatuto jurídico do político.

O tema poderá parecer estranho, sobretudo numa cerimónia em que se comemoram os “Vinte anos do Tribunal Constitucional de Portugal”. Convém, por isso, avançar desde já as razões impulsionadoras deste trabalho.

Em primeiro lugar, pela sua proximidade dialógica, temos em mente a excelente análise feia pelo Ex-Presidente deste Tribunal – o Dr. José Manuel Cardoso da Costa – na “República do Direito” em Coimbra. Aí se aflorou, com conhecimento de causa, a análise política de alguns acórdãos do Tribunal Constitucional.

Em segundo lugar, cumpre fazer referência à incomodidade que vimos sentindo com alguns dos nossos colegas brasileiros, firmemente convictos de que é possível e desejável a fiscalização judicial das políticas públicas.

Por último, assinalaremos o provável impacto que relativamente ao nosso tema irá produzir a constitucionalização das políticas públicas na Constituição da União Europeia. Quem se der ao trabalho de ler o prolixo Projecto de Constituição verificará, com efeito, que nele se positivaram as políticas e acções internas da União (mercado interno, livre circulação de mercadorias, capitais e pagamentos, regras de concorrência, política económica, monetária, política social, coesão económica, social e territorial, etc.). A este propósito, não deixa de ser estranha a décálage entre as propostas de revisão da Constituição Portuguesa ultimamente difundidas pela comunicação social e as propostas da Constituição Europeia. As primeiras retomaram a “questão constitucional” debatida há vinte anos e procedem a um “expurgo” ou “desbaste” revisionista do texto de abril. As segundas, transmutam ou pretendem transmutar o acquis comunautaire – convencional, regulamentar e jurisprudencial – em regras e princípios constitucionais europeus.

Cremos, assim, que os traços e os tropos da intriga estão tendencialmente revelada. Passaremos agora à sua impostação crítica. Antes, porém, é mister explicitar o outro lado da intriga. Com efeito, o título da nossa intervenção aponta para um outro tópico que se liga à própria jurisprudência. Introduzimos na epígrafe o sibilino plural “júrisprudências”. É isto mesmo. Há várias jurisprudências, pelo menos no plano metódico, dentro da jurisprudência do Tribunal Constitucional. Vamos começar por aqui.

§§2º Jurisprudências

A leitura das sentenças que o Tribunal Constitucional proferiu ao longo destes vintes anos denota claramente as mudanças na sua composição, mas revela, igualmente, algumas constâncias que tentarei sistematizar.

1. Pragmatismo jurisprudencial
Talvez se possa dizer que o Tribunal assumiu um papel
regulativo e recentrador das controvérsias jurídico-constitucionais e político-constitucionais, reduzindo as complexidades do político e da política através de duas formas metodicamente pragmáticas:

(1) através da rejeição, ou, pelo menos, prudência quanto à utilização dos amparos maiêuticos das grandes teorias” (“discurso racional”, “razão pública”, “agir comunicativo”, “teoria da justiça, “teorias referenciais”);

(2) através da parcimónia na abordagem dos problemas metódico-metodológicos de interpretação/concretização das normas constitucionais.

Se alguém nos coloca a pergunta de saber se o Tribunal é influenciado pelas “teorias da justiça”, do “agir comunicativo”, da “integridade discursiva” responderíamos que elas não cabem, enquanto tais, na ratio decidendi das questões jurídico-constitucionais. De igual modo, se alguém nos colocar a pergunta – e ela tem-nos sido feita sobretudo por alunos do Programa Erasmus – da teoria da interpretação sufragada pelo Tribunal Constitucional Português, diríamos, pragmaticamente, que ele oculta as premissas metódicas do seu labor interprétativo.

Quais as consequências deste pragmatismo? Colocando-nos na pista do juiz Holmes, ele próprio na senda do filósofo Peirce, e, nas eras contemporâneas, na companhia do juiz Posner, diríamos que, em geral, o pragmatismo jurisprudencial opera um verdadeiro downsize nos sujeitos de interpretação porquanto ele obriga o aplicador das normas constitucionais a duas autocontenções:

(1) a encontrar uma solução prática, operacional, aceitável e credível para o problema constitucional concreto e apenas para este;

(2) a colocar entre parêntesis os fundamentos ou concepções teóricos eventualmente antagónicos sempre que isso não perturbe a sua autonomia de juízo.

A nosso ver, este pragmatismo jurisprudencial não significa, no caso português, um minimalismo dogmático e teorético. Pelo contrário. As sentenças denotam cargas teóricas pouco comuns na jurisprudência comparada e revelam a afirmação positiva das diferenças, nas frequentes dissenting opinions dos juízes conselheiros.

2. Jurisprudência principialista ou principialismo jurisprudencialista
Como o próprio nome indica, a jurisprudência principialista diz o direito do caso concreto manejando a aplicação de princípios. Estará fora de questão proceder a uma peregrinação teorética em torno da distinção entre princípios e normas. Tão pouco iremos saturar a atenção do auditório fazendo uma crónica de erudição de desenvolvimento do principialismo jurisprudencial, começando com J. Esser, com o princípio e norma no direito privado, e acabando em R. Alexy, com a sua decantada elaboração teórica de regras e princípios. Pelo meio, encontraríamos a influência decisiva de Dworkin, e, no campo de direito constitucional, as iluminantes sugestões de G. Zagrebelsky. Estas menções a autores servem, como se poderá deduzir, para aproveitar este momento e saudar a presença neste diálogo do ilustríssimo colega, professor e Juiz G. Zagrebelsky.

Feito este desvio, concentremo-nos na jurisprudência do Tribunal Constitucional Português. Mais uma vez, a rota dicisória do nosso órgão de fiscalização concentrada se nos afigura um caminho aberto aos caminhantes. Foi um ex-juiz do Tribunal Constitucional Alemão, o Professor E.W. Bockenförde, que clarificou a questão da jurisprudência principialista. Quando se fala de jurisprudência de princípios isso não significa que a jurisprudência possa ou deva desprezar as regras jurídicas, precisas e densas. O direito não pode ser todo de princípios nem reduzir-se a regra. No entanto, bem se poderia afirmar que, neste contexto, bastará seguir uma máxima inspirada noutras máximas formuladas a este respeito: “diz-me se o Tribunal Constitucional aplica princípios e eu dir-te-ei que tipo de justiça constitucional ele faz”. Ora, basta consultar o último número dos Acórdãos do Tribunal Constitucional (nº 52, referente ao ano 2002), para se poder concluir que o nosso Tribunal tem uma visão do ordenamento jurídico-constitucional como um sistema aberto de regras e princípios. Desde princípios jurídico-constitucionais próximos de regras (ex.: princípio da anualidade orçamental) até princípios densificados de princípios fundantes do Estado de direito democrático (princípio da adequação, princípio da confiança, princípio imparcialidade da administração, princípio da legalidade, princípio da proporcionalidade, princípio da necessidade, princípio da segurança jurídica) passando pelo princípios básicos da igualdade, da equidade e da justiça, todos eles nos surgem como normas inspiradoras da ratio decidendi e do obiter dictum, mas, sobretudo, como normas fundamentadoras das decisões. Tanto basta para, neste momento, incitarmos os jovens estudiosos a sujeitarem esta riquíssima jurisprudência de princípios a um crivo analítico-dogmático absolutamente imprescindível ao progresso da ciência do direito português.

3. Jurisprudência contextualista
Num interessante artigo de Doris Luke intitulado “Doxa e Prudentia: conflitos de racionalidade e problemas de comunicação como paradoxos jurídicos da profissionalidade”, colhemos um conceito que se nos afigura apropriado: o da jurisprudência multicontextual. Ela aponta basicamente para a necessidade e indispensabilidade de os profissionais do direito estarem dentro das situações da vida e das experiências primárias. Se o Tribunal Constitucional, pela sua própria natureza e funções, não está imerso na vida, nem por isso pode deixar de estar atento às sugestões da jurisprudência multicontextual. Algumas sentenças são reveladoras desta articulação da
prudentia com a aceitação dóxica (ex.: jurisprudência sobre transmissão de arrendamento no caso de existência de filhos menores, extensão de regime da lei dos cônjuges às uniões de acto com filhos, jurisprudência sobre tratamento de nacionais e não nacionais para efeito de aposentação).

Assegurados que sejam as cautelas impostas pela racionalidade jurídico-normativa, a aproximação do código binário constitucional/inconstitucional do código, também binário, de justo/injusto permitirá ao Tribunal Constitucional captar a aceitação/não aceitação, adequação/não adequação das soluções jurídico-constitucionais.

4. Jurisprudência precedentalista
A fórmula literal indicia já o sentido: jurisprudência precedentalista é aquela que recorre sistematicamente a remissões e reenvios para sentenças anteriores onde foram discutidos as mesmas questões ou questões semelhantes.

Este tipo de jurisprudência merece sérias reticências à doutrina. Num trabalho publicado em 1984, um jurista alemão (R. Schmidt) chamava a atenção para a prática profissional dos juízes. Ter-se-ia instalado um positivismo jurisprudencial jurisdicional ancorado num precedentalismo metodico judicialmente fechado. Mas de que precedentalismo se trata? De reenvio para leading cases que se transformaram em casos de arte jurisprudencial? Não! De “assentos” ou de uniformizações de jurisprudência, tendencialmente inevitáveis e desejáveis? Não! O que se passa é um pragmatismo do caso baseado noutros “casos”. A remissão de “sentença para sentenças”, o “reenvio de acórdãos para acórdãos”poderá ser um meio de “descarga” da inflação processual, mas pode transformar-se também na morte da própria jurisprudência. Se o teoreticismo jurisprudencial corre o risco de uma scientia sem prudentia, o positivismo precedentista coloca-nos perante os perigos de uma prudentia sem scientia.

O Tribunal Constitucional corre também estes riscos e perigos. Não é desrazoável assentar num acquis jurisprudencial, mas já será, talvez, pouco estimulante, que o princípio da igualdade venha há mais de vinte anos a ser glosado de sentença para sentença, sem enriquecimentos visíveis a nível dogmático-jurídico. O actual processo de filtragem dos recursos abre também as vias, senão houver vigilância, para este positivismo jurisprudencial jurisdicional.

§§3º
Políticas

O Tribunal Constitucional fez política por linhas do direito. Formulamos assim a segunda intriga. Porquê falar em políticas? As razões já foram atrás explicitadas quando aludimos à fala de Cardoso da Costa, à incomunicabilidade com a doutrina brasileira em torno da fiscalização da constitucionalidade das políticas públicas e aos desafios da constitucionalização das políticas comunitárias no Projecto de Constituição Europeia. O que se segue não é mais do que uma observação sobre estas observações.

Não deixa de ser intrigante que o Tribunal tenha feito tanta política – e “alta política constitucional” – sem ser crucificado (salvo pelos críticos do “bloqueio”) no diálogo intersubjectivo da comunidade jurídica. É certo que a doutrina e o próprio Tribunal já tinham dedicado particular atenção aos problemas de legitimidade e legitimação da justiça constitucional.

O livro publicado nos Dez Anos do Tribunal Constitucional (Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, Coimbra, 1995) continha já importantes contributos quanto a alguns aspectos de justiça constitucional (princípio democrático, princípio a maioria, composição). No entanto, e como o próprio nome indica, tratava-se fundamentalmente de discutir a própria legitimidade e legitimação da justiça constitucional. À escolha do tema não teriam sido alheios dois importantíssimos trabalhos teóricos onde a justiça constitucional era questionada em termos teórica e dogmaticamente estimulantes. Referimo-nos aos trabalhos de J. Habermas (Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskursstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaates, Frankfurt/M, 1992) e de Ronald Dworkin (Laws Empire, Cambridge Mas., 1986). O problema da legitimidade e legitimação ficou discutido e não vale a pena rediscutir o que já está bem discutido.

Regressemos então à nossa intriga: qual a razão de o Tribunal ter feito política chegando mesmo aos limites da revisão constitucional por via jurisdicional, ou, pelo menos avançando sugestões de desenvolvimento constitucional, sem que a doutrina constitucional tenha dedicado trabalhos à ocultação discursiva, retórica e metódica do controlo jurídicoconstitucional de políticas públicas?

Uma das razões é seguramente a de que a discussão dessas políticas estava sujeita a um princípio jurídico-constitucional incontornável: a limitação do controlo a actos normativos. Ao deslocar-se o problema para a inconstitucionalidade da norma e não das políticas públicas, acabava-se por discutir e dar centralidade decisória a temas como os de “reserva de lei” e “reserva de decreto-lei”, competência da Assembleia” e “competência do governo”, “lei abstracta” e “lei medida”, “separação de poderes” e “núcleo essencial de direitos”, ou seja, temas de grande relevância jurídico-constitucional e jurídico-dogmática, mas tendencialmente ocultadores da natureza de political question dos problemas a decidir.

A segunda ordem de razões prende-se com o “tournant pragmaticizante” sob as vestes de balanceamento e ponderação de bens e direitos. O alicerçamento do “Estado ponderador” permitia também um “compromisso justicialista” claramente atento às contingências do caso concreto.

Acresce que - e isto nem de propósito mas a propósito – as questões políticas das políticas públicas constituíam verdadeiros tabus políticos. O Tribunal Constitucional, ao discutir temas tão politicamente sensíveis como o das “taxas moderadoras” dos serviços de saúde, o da “actualização de propinas” do ensino superior, o da liberalização do comércio farmacêutico, nunca passou dos direitos às políticas. Por mais que fosse evidente que law is politics e law is economics e que as normas garantidoras de direitos sociais, económicos e culturais traziam acoplados direitos sociais e políticas públicas, o problema era sempre o de conformação, modelação e restrição normativa de direitos fundamentais e não o de controlo de políticas públicas concretizadoras destes direitos. Além disso, como a Constituição deixava pouca liberdade de conformação ao poder político-legislativo ao consagrar os esquemas organizativos e funcionais da realização das políticas (direito à saúde realizado através de um serviço nacional de saúde universal e gratuito, direito ao ensino mediante uma política de democratização do ensino baseada na gratuitidade progressiva dos vários graus de ensino, direito à segurança social com base num sistema nacional e unificado de segurança social), compreende-se que o Tribunal Constitucional tivesse de emprestar força normativa à Constituição em vez de se empenhar numa insegura discussão sobre políticas públicas. A consagração concreta de políticas de direito implicava um mandato constitucional de optimização dos direitos através de uma política predeterminada com a consequente restrição da liberdade conformadora do legislador e a entrada do controlo das políticas no da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade. A forma como o Tribunal Constitucional português aborda estas questões é uma verdadeira ars judicandi. Vejamos porquê. O Tribunal não podia alargar as dimensões multicontextuais da sua jurisprudência, invocando a pluralidade racional ou a racionalidade plural de mundos parciais como a economia, o ensino e a ciência. Em linguagem mais sofisticada, o Tribunal não podia invocar as exigências de responsividade e as dimensões de reflexividade incontornavelmente presentes nas políticas constitucionais de direitos.

Mas não é só isto. Ao colocar-se ao Tribunal o problema das “taxas moderadoras” ou o “problema das propinas”, pretendia-se, no fundo, que ele emprestasse a bênção constitucional a um problema central da teoria económica e de políticas públicas – o problema do racionamento do acesso a um bem essencial. Fomos ver, afivelando a máscara naif de aprendiz de economia. Tratava-se de discutir aquilo que os economistas designam por rationing devices for publicly provided private goods (Joseph Stiglitz, Economics of the Public Sector, 3ª ed., New York/London, 2000, p. 137 ss). Devemos ter serenidade bastante para reconhecer que o racionamento dos serviços de saúde, dos serviços de ensino, dos serviços de segurança social por falta de recursos para assegurar os custos de direitos sociais era um verdadeiro tabu político dentro do enquadramento constitucional das políticas dos direitos. O Tribunal Constitucional não se colocou, até porque lhe era constitucionalmente vedado, no papel de “quebrador de tabus”, antes procurou discutir e decidir, de modo normativamente fundado, a necessidade, admissibilidade e limites do racionamento de serviços públicos. As soluções a que chegou passaram a constituir a medida jurídico-constitucional do racionamento. Elas anteciparam, em certa medida, a revisão dos critérios de justiça social ao admitir como constitucionalmente conforme o pagamento de um preço pela prestação de serviços garantidores de direitos sociais por parte daqueles que revelem capacidade económica.

Nem sempre, porém, o Tribunal Constitucional abordou o problema das políticas públicas em termos jurídico-constitucionalmente aceitáveis. Para darmos um exemplo basta referir os acórdãos sobre a política pública de ensino concretamente incidentes sobre o ensino de religião e moral católicas nas escolas superiores de educação e nos centros integrados de formação de professores das universidades (Acs. Nº 174/93). Além de sustentar teses jurídico-dogmáticas manifestamente insustentáveis (como a da exigência de lei de bases quanto a regimes jurídicos dela carecidos apenas quando se trata de regimes inovatórios, o que possibilitou a repristinação de normas corporativas inconstitucionais, o Tribunal Constitucional radicalizou o multicontextualismo fazendo apelo a critérios sociológicos em vez de recorrer aos princípios constitucionais (princípio de separação, princípio da neutralidade, princípio de não identificação). A nosso ver, o Tribunal perdeu aqui uma boa ocasião para recortar com profundidade as incidências destes princípios, que, note-se, não tinham de conduzir a um wall of separation entre o Estado e as Igrejas, mas sim a um recorte material da neutralidade confessional do Estado e da neutralidade política das Igrejas e Confissões Religiosas. Acresce que, em termos de políticas públicas, teria sido importante saber como é que um “direito de liberdade” é camufladamente transmutado em direito a prestações. Mesmo assim, é com grande expectativa que aguardamos a revisão da Concordata para sabermos se, também, aqui, o Tribunal Constitucional operou ma verdadeira mutação constitucional através da interpretação.

§§4º
Saudações

É tempo de terminar, não sem antes, e em jeito conclusivo, registar o inestimável contributo do Tribunal Constitucional para o enriquecimento do o direito constitucional português. E o principal mérito da sua jurisprudência continua a ser o de levar a sério a normatividade constitucional. A positivação da “lei superior” é um bem querer dos povos e não uma criação de um corpo de juízes, qualquer que seja o seu título de legitimação democrática. A normatividade das regras e princípios constitucionais positivamente plasmados por “cidadãos” e “povos” através de esquemas democraticamente aceites continua a ser o melhor meio para distinguirmos uma Constituição de uma Bíblia e separar os mandados constitucionais dos mandamentos divinos. A Constituição não é, nem deve ser, uma Bíblia; uma Bíblia não é, nem deve ser, uma Constituição. As sucessivas gerações de juízes assim o têm entendido. O Estado de direito democrático-constitucional português seria certamente outro – e talvez pior – se não possuísse esta Justiça Constitucional.