A Lei, o Direito e a Constituição
Professor Doutor Gustavo Zagrebelsky
XX Aniversário do Tribunal Constitucional
28 de novembro de 2003
Pequeno Auditório do Edifício da Caixa Geral de Depósitos - Culturgest


1. As vicissitudes históricas e conceptuais da lei ao longo dos 25 séculos de que somos filhos não são senão as da relação mutável com o direito: lex e ius. Seria necessária uma dupla definição. Mas aquilo que se segue provavelmente torná-la-á supérflua.

2. Pollà tá deinà (v.332) dá início ao celebérrimo primeiro estásimo da Antígona no qual Martin Heidegger via a síntese profética e premonitória do surgimento e declínio da civilização ocidental. Muitas coisas admiráveis e, ao mesmo tempo, terríveis são os seres humanos e as suas obras, quando com artifícios se propõem dominar a natureza das coisas – por exemplo, sulcando mares tempestuosos – ou extenuar a terra, ferindo-a com o arado e despojando-a da sua energia. Cada transformação, cada inovação implica divisões e separações e estas, por sua vez, violência e dor. O Angelus Novus de Paul Klee, que Walter Benjamin levava na sua bagagem, é impelido nas asas abertas pelo incessante e irresistível vento do progresso, da modernização e da novidade e ao voltar-se para trás fica petrificado pelas coisas que vê, todas duma só vez: assim se recupera a imagem do deinòs sofocleano ao mesmo tempo que dela se dá uma tradução fiel numa linguagem universal.

3. O texto fundador da nossa civilização jurídica – a Antígona, precisamente – é uma reflexão sobre a lei como deinòs (o “Ungeheuer” – o maravilhoso e terrível da tradução de Friedrich Holderlin). Só visto deste modo se compreende o significado do canto coral sobre o homem e as suas conquistas, colocado no início da acção trágica e destinado a lançar sobre a própria lei uma assustadora luz de ambiguidade.

4. Sabemos o suficiente acerca da Atenas do século V para compreender que por detrás do contraste entre o direito de Antígona e a lei de Creonte residia um conflito entre resistência arcaizante e tensões modernizantes no governo da cidade. A pequena donzela cheia de pura fé na sacralidade dos laços de sangue, ela que viola o decreto de Creonte, o rei, para prestar honras fúnebres ao irmão, apesar de este ter sucumbido como traidor erguendo as armas contra a própria pátria, não é propriamente a heroína da justiça, da coerência moral absoluta e da rebelião contra a injustiça, tal como a víamos todos nós na época despreocupada da nossa juventude.

5. Não se trata de uma disputa abstracta entre norma moral e lei do poder. A luta mortal de Antígona e Creonte colocava os cidadãos de Atenas, reunidos para a representação teatral, perante o irresoluto conflito político que, nessa época, dividia ânimos e facções.

6. De um lado, as raízes tradicionais da cidade, o ius “não escrito e não mutável, que não é de ontem nem de hoje, mas de sempre, cuja revelação se desconhece” (v. 756); o ius válido para os círculos humanos vinculados pela comunhão de sangue centrada na família, que por isso mesmo faz apelo à estrutura gentílica originária da polis, está enraizado nos laços vitais e portanto no culto dos mortos e é reforçado pelo sentido da honra e da fidelidade singular, de que é depositário o elemento feminino da sociedade.

7. Do outro lado, a força inovadora de uma sociedade-estado destinada a tornar-se potência hegemónica do mundo grego, fundada em leis vitoriosamente proclamadas à luz do sol (“raio de sol, luz, a mais bela de quantas apareceram a esta Tebas das sete portas”: vv. 102, ss.) para ter validade universal: leis que exigem obediência uniforme e incondicionada, quebram a unidade dos laços interpessoais e familiares, arrastam eros, amor conjugal, sentimento paterno, fraterno e filial, reconhecem apenas cidadãos indiferenciados, ignoram a contiguidade de sangue e são garantidas pelo elemento masculino da sociedade: o rei, único e supremo legislador.

8. Esta tragédia da realidade dividida e sofrida – na opinião de Hegel, “uma das obras de arte mais excelsas e a todos os níveis mais perfeitas de todos os tempos” – ergue-se assim à condição de símbolo do desenlace funesto resultante do desconhecimento recíproco de ius e lex, do direito profundo e estável dos laços sociais, personificado por Antígona, e da artificial e mutável lei pública do Estado, personificada por Creonte: desenlace radical de morte física, para Antígona, e de morte espiritual – “deslegitimação total”, diríamos nós – para Creonte, rejeitado pelos seus compatriotas e repudiado até na sua própria casa, do qual no fim “resta um nada” (v. 1325). Se nos voltamos, ainda hoje, para este texto fundador, não é por artifício retórico obsoleto ou porque se tornou moda introduzir os discursos sobre a actualidade com uma citação literária. É, isso sim, porque de facto, repito, de facto, fala também por nós e a nós, iluminando questões e identificando perspectivas profundas e determinantes, que além do mais continuam encobertas na rotina do quotidiano.

9. Antígona representa um início. A lei mal mostrava a sua pretensão e a sua legitimidade era fortemente contestada. O poeta trágico, nas passagens confiadas ao coro dos anciãos, fala pela cidade num dos seus lugares sagrados – o teatro. Ele insiste na loucura e no absurdo da sacrossanta intransigência de Antígona, rebelde à lei (por exemplo, vv. 68, 92, 96 e, sobretudo, 470) e atinge-a inclusive com um mote de derisão desencantada (v. 839) pela inanidade da sua rebelião. Começa a surgir a consciência da inevitabilidade histórica da lei. Porém, no fim, o coro é claramente levado a tomar o partido da jovem rebelde. Deste modo – é de supor – também os seus concidadãos, partícipes da acção trágica – acabavam por tomar o partido dela. Há uma espécie de afeição às raízes e pressente-se, dolorosamente, que esta afeição terá de dar lugar à novidade, imposta racionalmente.

10. Hoje, esse percurso parece encerrado com a inversão total dos pontos de partida. Conhecemos apenas mais leis escritas e mutáveis, que são de ontem, de hoje e decerto não já de amanhã; sabemos quem e quando as proclamou, em que circunstâncias, em nome de que interesses e com que propósitos. A silenciosa sacralidade do direito foi superada pela verbosa exterioridade da lei. O Estado é há muito uma máquina legislatória. Só desta forja esperamos que saia o direito, sem saber o que ele poderá ser, uma vez que isso depende de quem, de cada vez, conseguir assumir o comando, desautorizando o maquinista anterior.

11. A legislação invadiu todas as esferas da existência humana, até as mais privadas e durante muito tempo refractárias a normas exteriores, como as das relações afectivas entre as pessoas: a família, a convivência, as relações entre pais e filhos. O extraordinário e incessante desenvolvimento das aplicações da tecnologia a manifestações da existência, outrora confiadas às regras da natureza e das ciências naturais – a procriação, a luta contra a doença, o uso dos tecidos e dos órgãos humanos, a luta contra as forças do envelhecimento, a morte – abre novos e ilimitados campos à intervenção legislativa, contribuindo para a multiplicação das leis; do mesmo modo, as novas técnicas da comunicação à distância, da recolha e elaboração de dados colocam problemas de protecção dos direitos pessoais que requerem leis sempre novas adequadas às inovações. A própria mãe terra, até há não muitas décadas considerada criatura auto-suficiente, base segura da vida dos seres animados, necessita agora de redes jurídicas de protecção dos seus equilíbrios, seriamente ameaçados pelo desenvolvimento destrutivo das actividades dos seus filhos. Pode pois dizer-se que não existe dimensão da existência que não seja objecto de atenção do direito, na sua forma de lei positiva. E até mesmo para satisfazer a exigência, hoje especialmente sentida, de devolver autonomia às escolhas e às responsabilidades individuais e sociais, sectores da experiência humana anteriormente sujeitos a normas jurídicas, como os da iniciativa económica, paradoxalmente é necessário multiplicar e não reduzir o número de leis. A economia de mercado aberta não é uma instituição menos artificial do que qualquer outra forma de economia controlada e, para ser construída e protegida, nomeadamente contra esse direito “privado” representado pelos pactos de negócios estipulados nos escritórios de advogados das grandes empresas comerciais e das sociedades financeiras internacionais, precisa também ela de um imponente castelo de normas. A política de redução e simplificação legislativa – há muito invocada e jamais aplicada, em Itália como noutros países – é contrariada em todas as áreas pelo desenvolvimento de legislação em sentido exactamente oposto.

12. Se necessária fosse uma confirmação concreta do que significa a metáfora da “máquina legislativa”, no que diz respeito ao que se passa no meu país, e provavelmente noutros, bastaria dar uma olhadela à mais consultada das recolhas de legislação, Le Leggi d’Italia. A primeira edição de 1963 era constituída por trinta e três enormes volumes que recolhiam todas as leis então em vigor; hoje, à distância de quarenta anos, aumentou para setenta e oito volumes. Actualizações mensais contidas em folhas oportunamente definidas de “móveis” dão corpo à imagem de um vendaval legislativo: novas leis; alterações às velhas, pro futuro e retroactivas; leis temporárias, transitórias, reguladoras, experimentais, de “interpretação” autêntica e errata corrige; textos únicos da mais diversa natureza; sentenças constitucionais com alcance normativo; tudo isto multiplicado pelas muitas autoridades normativas, centrais, locais e supranacionais, que procuram evitar que nada escape à mais minuciosa e avassaladora regulação jurídica.

13. O mundo do direito está saturado de leis. A legalidade, como correspondência à lei, ficou a ser apenas unidade de medida jurídica e desautorizou a legitimidade, como correspondência ao direito. Aliás, apoderou-se desta, como previra Max Weber no início do século, ao falar de legalidade como forma exclusiva da legitimidade na época moderna, uma época de comportamentos políticos, económicos e sociais tendentes à racionalização, à padronização, à planificação, à homologação, perante os quais o Estado, por sua vez, assume cada vez mais o carácter de uma empresa tecnicizada, funcionalizada, funcionarizada e burocratizada para a qual a lei é o equivalente do fluxo de energia num organismo vivo, que de outro modo seria inerte. A linguagem comum, também aqui sintoma infalível de uma condição espiritual, foi registando esta trajectória no termo da qual a lei devorou o direito; a legalidade, a legitimidade. Para dizer que tenho razão segundo a lei, vou designar a minha pretensão de legítima, e não de legal, traindo no entanto assim a nostalgia de uma dimensão jurídica perdida – a legitimidade do direito, justamente – e prestando-lhe inconscientemente homenagem. E o mesmo acontece com a linguagem especializada: com a expressão Estado de Direito, a partir do século XIX, designa-se na realidade um estado de leis, um estado meramente legal.

14. Esta nossa condição de indivíduos legalizados parece-nos perfeitamente natural e nem sequer nos passa pela cabeça que em várias épocas isto foi diferente. Censuramos a inflação de leis, a legalização progressiva de todas as esferas da vida, mas não conseguimos imaginar nada de diferente. Preferimos ignorar que a condição originária não é de modo algum esta e não temos dúvidas de que provavelmente, nem mesmo agora, vendo bem, é ou pode ser realmente assim. Quando o sistema legislativo claudica – o que significa que não acompanha as exigências sociais – reconhecendo só leis, a única solução é legiferar novamente. E deste modo acabamos por pretender enfrentar a debilidade da lei com outras leis. Não se trata apenas de um círculo vicioso que acaba por deixar as coisas na mesma; é uma espiral que conduz ao rebaixamento, ao desgaste da lei, a uma erosão progressiva do sentido de legalidade. Pode-se até estabelecer uma proporção perversa: quanto mais leis, mais ilegalidade.

15. Os séculos que nos separam de Antígona constituíram um confronto por fases alternadas entre o direito e a lei. O domínio da lei sobre o direito, aliás a absorção monopolista deste em relação àquela, é o produto de poderes políticos abstractos de grandes dimensões, designadamente espaciais, desenvolvidos primeiro em paralelo e depois contra as tradicionais estruturas sociais concretas de pequenas dimensões, através de uma administração burocrática do direito. O direito romano republicano, por exemplo, não era ainda assim. Embora compreendesse leis, isto é, decisões do povo reunido em assembleia destinadas a todos os cidadãos, não era um direito legislativo. Fundido em unidades de responsa de juristas não enquadrados na burocracia, era um conjunto de mores arcaicos, de interpretações sacras das XII Tábuas, de programas jurisprudenciais estabelecidos pelos éditos pretorianos. Daí que se falasse de um dualismo latente – perceptível ainda hoje através das fontes que nos chegaram na forma da codificação justiniana – entre ius civile, guardado e desenvolvido por especialistas-juristas com prestígio social, e lex reguladora daquilo que poderíamos chamar a dimensão pública da vida; um dualismo não teorizado pelos romanos e contudo vivido como dado característico da própria experiência jurídica e política. E até mesmo quando depois os juristas foram chamados a cooperar com a potestas imperial, tornando-se seus funcionários, os mais conscientes de entre eles representaram não simplesmente o domínio do príncipe na sua forma legal (as constitutiones imperiais) mas, prolongando a tradição, também a legitimidade do poder.

16. O que terá sido a experiência jurídica da época intermédia é coisa que se não pode apreender numa fórmula simplista. A partir do desmoronamento da autoridade política central, a sociedade medieval entregue a si própria foi pouco a pouco exprimindo o seu próprio sistema jurídico, no qual as situações ou tradições locais e os privilégios de status – o particularismo portanto – acabavam por se fundir no quadro do ius commune. Confluíam para o ius commune o direito canónico, propício, pela sua inimitável flexibilidade, a acolher no seu seio esta complexa realidade, e o Corpus Iuris romano, redescoberto nos finais do século XI e revitalizado no novo contexto pelas escolas dos glosadores. Esta representação estilizada não faz justiça à existência de outras dimensões verdadeiramente pluralistas do direito: o direito natural cristão que teorizava o primado político da Igreja, em nome do qual a Europa acendeu as fogueiras da Santa Inquisição; a obra dos legistas que trabalhavam sobre o direito romano imperial, defensores da razão de estado. De qualquer maneira, a incidência da lei, fosse ela a eclesiástica ou a civil, era rara, marginal, inorgânica.

17. A situação espiritual, que acompanhava a política, começou a mudar completamente a favor da lei entre os séculos XVI e XVII quando surgiram as primeiras teorias exclusivistas do direito, consubstanciais ao absolutismo político. Hoje somos talvez tentados a atribuir um peso determinante, na formação do espírito jurídico do tempo, às doutrinas do Estado Absoluto, à República de Jean Bodin e ao Leviatão de Thomas Hobbes. Estas doutrinas políticas eram acompanhadas por concepções naturalistas do direito, moldadas nos exemplos das ciências teoréticas, como a matemática ou a geometria. Elas já não existem como tais, mas a sua influência na formação, além do mais inconsciente, da mentalidade científica da nossa jurisprudência é ainda hoje decisiva. Quantos juristas e, sobretudo, não-juristas acreditam ainda que o direito é como uma rede de regras válidas em si e por si, na sua própria esfera de existência objectiva: regras que apenas se podem desvelar por aquilo que são ou então, em alternativa, trair por aquilo que não são, sendo contudo independentes dos casos da vida a regular? Segundo Gottfried W. Leibniz, por exemplo, o direito deveria consistir em definições racionalmente estabelecidas, desenvolvidas umas a partir das outras, como no raciocínio matemático, produzindo proposições válidas e verdadeiras em si mesmas, como acontece com a lei objectiva dos números que está acima de todos (incluindo Deus: também para Ele dois e dois são quatro) e vale independentemente da circunstância concreta de haver alguém saiba contar e de haver algo para contar. Do mesmo modo, o direito possui a sua verdade e o seu valor independentemente do facto de haver ou não algo ou alguém para julgar.

18 .O absolutismo monárquico dos séculos XVII e XVIII nutriu-se destas e de outras teorias naturalistas semelhantes, que, evidentemente, comungavam da ideia, ou ideologia, do valor absoluto da lei. Mas na época da revolução de 1789, a luta do soberano para impor o domínio da sua lei em todo o reino estava ainda longe de estar concluída. A oposição com que até ao fim o rei enfrentou os Parlamentos (os parlamentos de então) era o resíduo da velha e tenaz oposição entre leis novas do rei e as antigas estruturas feudais francesas. Os Parlamentos do Antigo Regime, órgãos político-judiciários, eram uma espécie de justiça constitucional de controlo dos actos gerais do rei em nome da tradição. Através deles, a nobreza hereditária procurou em várias ocasiões impor uma espécie de despotismo nobiliário, voltado para trás, contra o despotismo legal do rei, virado para o futuro. A política daqueles, frequentemente corrupta, fechada de forma míope à inovação e defensora hipócrita dos privilégios, foi objecto de crítica feroz por parte dos philosophes (o Tratado sobre a Tolerância de Voltaire inspira-se na pena capital a que foi condenado o mercador huguenote Jean Calas, pronunciada pelo Parlamento de Toulouse) e foi um dos principais motivos que desencadearam os acontecimentos de 1789. Trois sont les fléaux de la Provence: le Mistral, le Parlement et la Durance, dizia uma lengalenga popular em Aix-en-Provence.

19. A revolução em França encerra o ciclo aberto com a derrota originária de Antígona. O direito tornou-se lei única e a lei poder único. Poder justificado racionalmente, algumas vezes; mas sempre poder, perante o qual há apenas súbditos. Um poder, aliás, tanto mais absoluto, quanto mais (pretensamente) racional. Com a ideologia rousseauiana da lei como vontade geral, Creonte, e com ele o absolutismo no direito, venceu a sua batalha. A revolução atingiu efectivamente os objectivos do projecto monárquico que em três séculos não conseguira impor-se completamente. Era o que dizia Mirabeau ao escrever secretamente a Luís XVI, um ano após os primeiros acontecimentos revolucionários, para o encorajar a não opor resistência: “Comparai o novo estado de coisas com o antigo regime. Este paralelo é confortante e motivo de esperança. Uma parte das actas da Assembleia Nacional, e é a maior parte, é claramente a favor de um governo monárquico. Achais irrelevante ficar sem Parlamentos, sem corpos separados, sem ordens do clero, da nobreza, dos privilegiados? A ideia de formar uma única classe de cidadãos teria sido do agrado de Richelieu: esta superfície completamente igual facilita o exercício do poder. Inúmeros períodos de governo absoluto não teriam feito pela autoridade régia aquilo que fez um só ano de revolução”. A história tomou um rumo diferente, a favor do povo e não do rei. Mas, no que diz respeito à lei, a intuição de Mirabeau foi exacta: a revolução não rompera com o absolutismo régio, mas conduzira-o à sua consumação.

20. E a consumação foi a divinização da lei. No seu Noventa e Três (Livro III, §§ 2e 3), Victor Hugo descreve assim a sala das sessões da Convenção nas Tulleries, onde tinham assento os legisladores encarregados de pôr na linha da lei a moral universal: “Por cima de um dos lados da tribuna, numa moldura de madeira preta, estava dependurado um cartaz de nove pés de altura que, sobre dois painéis separados por uma espécie de ceptro, exibia a Declaração dos Direitos do Homem; do lado oposto, um espaço vazio mais tarde foi preenchido por um cartaz semelhante, que apresentava a Constituição do ano II e cujos dois painéis eram separados por um gládio. Por cima da tribuna, sobranceiras ao orador, saídas de um palco profundo de dois pisos cheios de espectadores, ondulavam três bandeiras tricolores dispostas quase horizontalmente, apoiadas num altar no qual se podia ler: A LEI. Atrás do altar erguia-se, como a sentinela da liberdade de expressão, um enorme feixe romano, da altura de uma coluna. Estátuas colossais encostadas à parede ficavam em frente dos representantes. À direita do presidente, Licurgo; à sua esquerda, Sólon; por cima da Montana, Platão”. “Por debaixo do primeiro piso, ocupado pela Assembleia”, porém, “todo o rés-do-chão do edifício constituía uma espécie de longo corpo de guarda repleto de feixes de espingardas e de camas de campanha das tropas de cada regimento que montavam guarda à volta da Convenção. A assembleia tinha uma guarda de honra denominada “os granadeiros da Convenção”.

21. Desde então, a lei é o instrumento para todas as aventuras do poder, seja este qual for, democrático ou antidemocrático, liberal ou totalitário. A “força de lei” esteve ao serviço, sucessivamente, da razão revolucionária dos jacobinos; do compromisso moderado entre o monarca e a burguesia liberal, contra o socialismo; do autoritarismo liberal dos finais do século XIX; das reformas democráticas do início do século XX e das ditaduras de direita e de esquerda que se seguiram. A lei era a lei, benéfica ou maléfica, moderada ou cruel, e nenhum outro direito se lhe podia opor. O estado que actuava segundo a lei era, só por isso mesmo, legal e legítimo. O fascismo e o nazismo condecoraram-se inclusive com o título “científico” de estados de direito, e foi-lhes possível fazê-lo porque a força de lei, em si mesma, não distingue direito de delito. Negociantes, aventureiros, ideólogos fanáticos e até mesmo movimentos criminosos, organizados com técnicas eficazes para a conquista descarada do poder, reivindicaram legitimidade para as suas acções sob forma de leis feitas por eles próprios, por meio do controlo total, entretanto adquirido, das condições de produção legislativa: consenso social, opinião pública, factores técnicos parlamentares e governamentais. Consequentemente, os poderes que iam atribuindo a si próprios podiam certamente ser considerados legítimos no sentido de legais, sendo ao mesmo tempo cientificamente qualificáveis como usurpações, ou seja, poderes auto-proclamados e auto-conferidos. Assim se chegou ao cúmulo: a legalidade transformada em modo de ser não só de homens de poder-pelo-poder, mas de autênticos salteadores, de acordo com a denúncia de Bertolt Brecht e até com o reconhecimento de alguém que conhecia esta realidade por experiência directa, Carl Schmitt.

22. Isto, no entanto, não nos instiga de modo algum a uma demolição crítica da lei enquanto tal e, como reacção, a uma exaltação acrítica do direito. Não é lícita uma apologia incondicionada do direito contra a lei. Do mesmo modo que não é lícito o contrário.

23. A 30 de junho de 1934, dia fatídico para o nazismo, destacamentos especiais das SS e da Goring-Polizei, com a participação directa de Hitler, procederam à eliminação do comandante e dos quadros da SA, as Sturmabtellungen de Ernst Rohm, que se tinham tornado perigosos concorrentes na condução da “revolução nacional-socialista”. Foi um massacre terrível, uma autêntica chacina, e Hitler reivindicou o respectivo mérito perante um Reichstag agradecido e comovido, a 13 de julho, auto-proclamando-se juiz supremo (oherster Gerichtsherr) do povo alemão: “Se alguém me censurar e me perguntar porque é que não recorri aos tribunais regulares, posso dizer apenas isto: nessa hora era responsável pelo destino do povo alemão e era portanto o seu juiz supremo”. Por seu lado, o Gabinete do Reich, a 3 de julho, com um decreto de uma só frase retirou a essa acção qualquer carácter ilegal, confundindo direito e lei, legitimidade e legalidade: “As medidas adoptadas a 30 de junho (...) a fim de truncar os ataques dos traidores são acções legítimas de autodefesa do Estado”. Vemos aqui um caso de paroxismo legislativo que transforma o delito em direito supremo.

24. Mas mais interessante é a repugnante adulação, que lemos num texto escrito por Carl Schmitt, na altura presidente da associação dos juristas alemães, pela necessidade imediata de colocar a ciência jurídica alemã ao lado do Fuhrer. O texto em causa, Der Fuhrer schutzt das Recht. Zur Reichstagrede Adolf Hitlers vom 13 Juli 1934 (in Deutsche Juristen-Zeitung, Heft 15, 1 agosto 1934, 1 e ss.), que não é apenas uma traição ocasional a toda uma tradição da ciência europeia do direito, como fazem crer numerosas leituras precipitadas actuais, mas é um esboço de doutrina jurídica baseada na desvalorização da lei do parlamento e na absolutização do ius do povo alemão, começa com uma citação: “Durante o encontro anual dos juristas alemães realizado em Leipzig a 3 de outubro de 1933, o Fuhrer destacou o contraste entre um direito substancial (o ius, precisamente), impregnado de moralidade e justiça, e uma legalidade vazia marcada por uma falsa neutralidade e mostrou a contradição intrínseca do sistema weimariano que encontrou o seu ocaso nessa legalidade desprovida de conteúdo tendo assim ficado à mercê dos seus inimigos. E concluiu dizendo: “Que isto nos sirva de aviso”. Continua assim: “Significativo do cego modo de pensar do legislador liberal parece ser o facto de se ter procurado fazer do direito penal o salvo-conduto, a Magna Carta do criminoso. O direito constitucional transformou-se consequentemente na Magna Carta dos traidores da Pátria. A Justiça transforma-se assim numa questão de cálculo, perante cujo funcionamento regular e previsível o criminoso pode alegar um sacrossanto direito subjectivo. O Estado e o povo ficam por seu lado prisioneiros de uma legalidade apertada. Em casos de extrema necessidade são-lhes concedidas saídas apócrifas, que alguns juristas liberais reconhecem como aplicáveis em determinadas condições, ao passo que outros lhas negam em nome do estado de direito e as consideram “juridicamente inexistentes”. Essas concepções podem compreender a acção do Fuhrer exclusivamente como uma medida aplicada em caso de necessidade, carecendo de legalização ex post. Um princípio fundamental do nosso actual direito constitucional, ou seja, o da prevalência política da Fuhrung, é desse modo transformado numa frase sem importância, e o agradecimento que o Parlamento dirigiu ao Fuhrer em nome do povo alemão acaba por parecer uma simples indemnização senão mesmo uma absolvição”. E conclui: “Na realidade a acção do Fuhrer foi uma expressão do direito em estado puro. Ela não está sujeita aos Tribunais porque foi ela própria justiça suprema. Não se tratou da acção de um ditador republicano qualquer que – aproveitando-se de um espaço vacante num sistema jurídico (que por um momento poderá ter fechado os olhos) – pôs em prática uma determinada conduta para depois, consumado o facto, deixar o lugar à ilusão de uma legalidade exacerbada. A jurisdição do Fuhrer emana da mesma fonte de direito de que deriva todo o direito de qualquer povo. Em casos de extrema necessidade põe-se à prova o direito supremo e executa-se a máxima expressão jurídico-punitiva desse direito. Todo o direito emana do direito à existência (o Lebensrecht) do povo. Todas as leis do estado, todas as sentenças, contêm direito somente na medida em que este lhes é atribuído por essa fonte. Tudo o resto não é direito, mas um conjunto positivizado de leis coercitivas de que o delinquente abusa”.

25. Se no decreto de 3 de julho se podia ver o paroxismo da vontade e do poder de um legislador que legaliza o delito, nestas justificações vê-se muito mais. Vê-se o paroxismo do direito que subverte todo o valor da lei. Revela-se, ao mesmo tempo, a aberração a que pode chegar o poder que se nutre de um direito perverso e se afirma pela lei do mais forte.

26. Portanto não é só a pura força legisladora que é capaz de delito, mas também o direito. Os juristas (legisladores, juízes, ciência do direito) têm de saber de que matéria explosiva e ambivalente o seu objecto é feito. A lei, no seu absoluto, pode ser o comando arbitrário que constrói e reforça sistemas de domínio incontrolados e priva dos seus direitos elementares (até mesmo o direito à vida) indivíduos e grupos, mas pode ser também instrumento de libertação, defesa e difusão dos direitos, igualdade entre os seres humanos. O ius, por sua vez, na sua existencialidade cega, pode servir para activar forças brutais em nome de valores irracionais e puramente emotivos; mas, pelo contrário, ao fazer apelo a patrimónios de princípios civis interiorizados no decurso da história de um povo, pode ser factor de estabilização da lei e garantia contra os seus abusos. É necessária prudência. Todos os apelos ao carácter indiscutível da lex ou à sacralidade do ius deverão sempre pôr-nos alerta. Entre Antígona e Creonte não devemos jamais escolher a priori. Teremos de manter a autonomia do nosso juízo e suspendê-lo enquanto não for possível ver o que contêm os seus decretos.

27. Com a queda dos regimes totalitários do século passado, o deinòs inerente à lei manifestou-se suficientemente. De facto a memória dessas experiências escaldantes tornou as gerações posteriores prudentes e desconfiadas, até mesmo em relação à lei regularmente votada no Parlamento ou deliberada directamente pelo povo em referendo. Mas, para estabelecer limites e procedimentos cautelares, todos os outros instrumentos diferentes da lei tinham sido perdidos um século e meio antes. O direito antigo dos pequenos círculos sociais fora destruído há muito. A sociedade mudara irremediavelmente. O ius a que os regimes fascistas recorreram (o instinto vital do povo alemão, o seu sangue e a sua terra; a romanidade do povo italiano, o seu nacionalismo) revelara-se um mito perverso, de efeitos funestos. Já não havia maneira de produzir legitimidade senão, precisamente, através dos procedimentos da legislação. A previsão de Max Weber, a legalidade como única forma da legitimidade, realizara-se plenamente. O único instrumento disponível para tentar limitar e estabilizar a legislação era, então, apenas uma lei, mas dotada de valor e “força” superiores à ordinária, o valor e a força de lei constitucional. Confiámo-nos às Constituições, aí registando catálogos de direitos invioláveis e princípios de justiça inderrogáveis e aí prevendo mecanismos e órgãos de garantia: procedimentos especiais para as alterar, chefes de estado “garantes da Constituição”, como é o Presidente da República previsto pela nossa Constituição, e Tribunais Constitucionais, como é a nossa Corte Constitucional.

28. Não havia evidentemente outra solução. O positivismo jurídico, ou seja, a redução do direito a pura lei positiva, impedia outra solução que não fosse a de estabelecer uma outra lei, a lei mais alta. Mas era realmente a solução? A semente da dúvida germinava já numa pequena frase profética pronunciada por Joseph De Maistre, o crítico do 89: “Como é possível dizer-se que a Constituição a todos vincula, se alguém a fez? Como é que se pode impedir que esse alguém – indivíduo ou povo oportunamente evocado – do mesmo modo que estabeleceu a constituição, assim a suspenda, a evite, a viole ou a altere, fora das garantias que a própria Constituição estabeleceu para se defender de tudo isto? É uma contradição, uma aporia, um círculo vicioso. Como é que se pode contar com o poder para se defender do poder? As Cartas Constitucionais são de facto uma garantia, mas não a última, apenas a penúltima. De resto, ainda De Maistre, pensando nas vicissitudes do poder em França, avisara: uma constituição escrita é um concurso sempre aberto a quem escrever uma melhor.

29. É este o paradoxo do constitucionalismo do nosso tempo. As leis, e entre elas a Constituição, podem muito, mas não podem tudo. Elas formam uma espécie de enorme construção, mas não é mais sólida do que um castelo de cartas, na medida em que o seu fundamento se situa nelas próprias: isto é, em última análise, no poder. Antígona avisa-nos mais uma vez: sem ius, a lex torna-se fraca e, ao mesmo tempo, tirânica. A aposta do constitucionalismo reside inteiramente nisto: na capacidade da Constituição, estabelecida como lex, de se tornar ius; fora das fórmulas, na capacidade de sair da esfera do poder e das palavras frias de um texto escrito para atrair para a esfera vital das convicções e das ideias dilectas, sem as quais não se pode viver e às quais se adere calorosamente.

30. Para usar mais uma vez as nossas categorias, a constituição, no seu sentido profundo, pode ser considerada uma tentativa de restaurar a legitimidade no direito, na vizinhança da sua legalidade. Talvez seja verdade, como se disse, que a legitimidade restaurada não é senão um paraíso artificial; mas a primeira tarefa de quem zela pela Constituição é precisamente a de transcender o artifício de que ela nasce para a transformar em força cultural que viva com naturalidade na sociedade; a de transferir progressivamente a Constituição da área da decisão política que divide, cria inimizades e conflitos, para a área consensual da cultura política difusa que recompõe fracturas, absorve o deinòs sofócleo. Deste ponto de vista, nós, como juristas e especialmente como constitucionalistas condicionados pela ideologia jurídica positivista, devemos, no que nos diz respeito, reconhecer honesta e humildemente a nossa culpa por não termos cumprido inteiramente o nosso dever. Mesmo movidos pelas melhores intenções – fazê-la viver no mecanismo da ordem jurídica e aplicar também a seu favor os mecanismos de garantia do positivismo da lei – acabámos por isolar a Constituição no mundo das puras leis positivas descurando a tarefa, tão ou mais importante, de a fazer valer como força constitutiva de um idem sentire político, difuso em todos os estratos sociais. Colocámo-la no vértice de uma construção jurídica, como a lei mais alta, no lugar – o vértice – onde não é de excluir que possa concentrar-se uma medida de poder suficiente para a ridicularizar, em vez de agir para a difundir nos fundamentos da vida social como direito fundamental, isto é, literalmente, direito que serve de fundamento.

31. Pensámos que a Constituição poderia situar-se lá em cima, glorificada nas esferas do poder ofuscante, ou seja, do lado de Creonte; em vez de se situar (também e) antes de mais nas relações interpessoais dos pequenos círculos sociais e nas relações entre os grupos sociais e depois, sempre a subir, até ao círculo mais amplo que coincide com a colectividade nacional; e mais além ainda, para que os princípios de valor universal que ela encerra se possam estender, juntamente com os das outras Constituições, de modo a construir contextos constitucionais supranacionais. Descurámos Antígona, ao não pensar que a Constituição dever ser acima de tudo uma sua norma, e não de Creonte, e deste modo continuámos a aplicar as categorias mentais e jurídicas que provêm de um passado essencialmente autoritário que pressupunha, designadamente através do uso da força, uma sociedade passiva sobre a qual o direito impendia do alto, do soberano do Antigo regime ou do Estado Soberano, sujeitos igualmente absolutos na sua pretensão monopolista de dispor de todo o direito por meio de leis.

32. Assim, acabámos por descurar precisamente a defesa mais importante e expusemos a Constituição inerme aos riscos que, oxalá não aconteça nunca, podem advir de uma vontade política qualquer, solidificada nos vértices do poder, que pretendesse agir contra ela com força de lei.


Tradução de António Rocha