TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 110.º Volume \ 2021

99 acórdão n.º 123/21 Constitucional transformá-la numa mera hipótese teórica, através de um juízo de tal forma estrito sobre o procedimento (o como), que este resulte inoperável no plano prático. Todavia, o Acórdão faz, no nosso entender, uma leitura errónea da norma do artigo 24.º, n.º 1, da CRP («a vida humana é inviolável»), que protege a vida humana e a sua inerente dignidade, em todas as formas e todas as fases do percurso vital da pessoa, enquanto sujeito de direitos. Vejamos porquê. 2.1. A leitura que o Acórdão faz acerca do lugar constitucional do direito à vida e da vida enquanto valor constitucionalmente protegido revela-se errónea, desde logo, ao divergir, de forma substancial, daqueles que são os standards constitucionais comuns, nesta matéria, no espaço europeu (e até fora dele). Efetivamente, mal se compreende a premissa, subentendida na decisão, segundo a qual o nosso ordenamento jurídico-constitucio- nal se afasta, de forma irremediável, de vários dos seus congéneres, porquanto nestes se reconhece um direito fundamental ao suicídio, afastado, em termos absolutos, no caso português, pelo reconhecimento da vida como valor objetivo, intangível, e a proteger pelo Estado. Não nos parece que assim seja. Não existe diferença substancial entre o fundamento constitucional dos direitos à vida, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação e liberdade pessoais, consagrados na CRP, e as disposições normativas em que se baseiam densificações e leituras jurisprudenciais muito distintas da que a maioria acolhe. Sustentar o inverso – fundando na letra da norma constitucional um paradigma distinto – equivale, no nosso entender, a reconhecer que, então, bastaria uma alteração da formulação constitucional concreta plasmada na CRP, que explicitasse a dimensão jus-subjetiva da vida (substituindo a norma vigor por outra que afirme que todos têm direito à vida), em detri- mento da sua dimensão axiológico-valorativa, para que estivessem ultrapassadas parte das objeções levantadas pela maioria às normas questionadas no presente processo. Não é assim. O que se passa é que, numa matéria difícil e sensível como esta, com implicações éticas, filosóficas e religiosas, e na qual estão em causa a vida e a morte, a liberdade, a dignidade e a solidariedade humanas, mundividências distintas conduzem a leituras opos- tas das normas constitucionais. Contudo, julgamos que é maior a solidez dogmática da nossa visão, e que ela se enquadra melhor naquele que é, hoje, o panorama de direito comparado. Isto é tanto mais importante quanto, como acima se deu nota, não está em causa uma qualquer idiossincrasia constitucional, fruto de um espaço e de um tempo particulares, e caraterística inelutável de uma identidade constitucional distinta, mas sim as pedras- -de-toque de um património constitucional partilhado, os direitos fundamentais que constituem o pilar de um direito constitucional comum europeu, em sentido Häberliano. Uma digressão pelo direito comparado revela, aliás, uma óbvia e notória evolução quanto às questões aqui tratadas. Mostra também uma crescente convergência, fruto de uma reflexão e de um diálogo jurispru- dencial de décadas (veja-se a significativa jurisprudência do TEDH a este respeito), bem como da evolução das conceções sociais sobre vida, fim de vida, e qualidade de vida, e também sobre a morte e o processo de morrer. Estas reflexão e evolução foram impulsionadas pela necessidade de uma resposta jurídico-normativa sobre o tempo e o modo de morrer, em particular em situações para as quais a evolução científica e tecnoló- gica gerou possibilidades de prolongamento da vida que até há pouco o curso das leis da natureza impossi- bilitava. Tal não implica qualquer diminuição da importância ou do sentido ético, filosófico, político, social e jurídico da existência humana. Implica, sim, uma determinada compreensão do significado de ser pessoa e da centralidade da autodeterminação da vontade e do consentimento individuais, na modelação do caminho entre a vida e a morte. Assim, recordem-se as questões – diversas entre si, mas com uma linha comum – com as quais foram confrontados distintos tribunais constitucionais europeus e que se reconduzem exatamente ao oposto do problema que hoje se coloca a este Tribunal Constitucional. Enquanto que aqui se questiona se são constitu- cionalmente conformes o se (tendo em conta o alargamento do objeto operado) e o como (problema em que se centra o pedido do requerente) da legalização (mediante a introdução de causas de justificação de certas condutas médicas, no domínio penal, e de uma procedimentalização da expressão pública da vontade do paciente em sofrimento intolerável, que atuam no sistema normativo que o Decreto institui como faces da mesma moeda), decidida pelo legislador democrático, da morte medicamente assistida (nas modalidades de

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